sábado, 1 de agosto de 2020

MEMÓRIAS

INFÂNCIA_ ADOLESCÊNCIA

Tive uma infância muito feliz. Tudo corria bem. Gostava do meu mundo, que eram casas grandes, corredores compridos, quintais e jardins cheios de recantos convidativos para constantes correrias e diversões.
(As casas da Avó Maria e da Tia Rozaura, em Gondomar e dos Avós paternos em Avintes). Havia árvores, cães, gatos, flores. E, sobretudo, o mundo estava de bem comigo, porque todos tinham paciência para me aturar, apesar de me manter sempre vertiginosamente em movimento, de fazer muitas asneiras, muitas perguntas, e de contar histórias inverosímeis.
Foi a minha época de ouro! Achavam-me precoce e engraçada e, por isso, assim eu me considerava. Tinha uma autoconfiança ilimitada e indestrutível, sentia-me o centro daquele mundo perfeito e divertido.
O pior era a noite, porque me obrigavam a deitar cedo e eu achava que dormir era um desperdício.
Imparável no ambiente doméstico, tornava-me um modelo de bom comportamento quando se tratava de passear, de carro, aos fins-de-semana. Os pais levavam-me com eles, prudentemente, nessas excursões familiares, com muitos tios e primos, numa fila de vários carros, quase sempre por terras do Minho... Com a Avó Maria ia, muitas vezes, ao Porto, lanchar à Confeitaria Villares, depois de ela comprar coisas várias em Santa Catarina e Sá da Bandeira (para mim brinquedos, que pedia, sem insistir demais...), com o Avô Manuel, desde os 5 ou 6 anos de idade, aos teatros e aos cinemas do Porto (os filmes de que ele e eu apreciávamos, nada de desenhos animados ou outras infantilidades...). Com o Pai, um pouco mais tarde, aos 9, 10 anos, frequentava, como sócia do FCP, quinzenalmente, o Estádio das Antas (estive na inauguração, o resultado foi mau, mas vi jogar o Barrigana, o Virgílio, o Carvalho...).
A escola foi uma outra experiência bem sucedida e esperada impacientemente. Nascida no mês de Junho, não me deixaram principiar a escolaridade com 6 anos, em Outubro de 1948. A regra era os 7 anos e a minha mãe - que acabava por mandar mais do que o resto da família... - achou que era melhor não tentar abrir excepções, deixar que a criança gozasse, por mais uma época, o "dolce far niente". Mas eu estava cheia de pressa de mudar de vida. Via a escola como uma promoção, uma etapa de crescimento, a transição para uma outra idade (e no meu caso foi - quase mudei de personalidade, ganhei juízo, acalmei os ímpetos infantis, tornei-me confiável, bani a mentira por desporto, passei a dizer escrupulosamente a verdade e a cumprir os deveres, pelo menos os que achava exigíveis – sentia-me promovida à idade madura. Lembro-me exactamente de como pensava, então!). Ir para as aulas, de pasta nova, cheia de cadernos e de livros, decifrar o mistério da escrita foi um verdadeiro prazer. Era excelente aluna, mas tinha uma feiíssima caligrafia... Comecei na Escola do Crasto, em Gondomar. Na 2º classe, uma passagem curta pela escola da Rua 23 em Espinho (porque os pais decidiram prolongar a época de férias, na casa de praia), onde me desentendi com a professora, uma mulheraça imensa, gorda e implicativa. Fui salva pela transferência, voltei a ser aluna bem cotada e realizada na Escola do Magarão em Avintes. A partir da 3ª classe, e durante sete longos anos lectivos, eis-me aluna interna do Colégio do Sardão, em Gaia, onde fui uma "recruta" forçada, a cumprir uma espécie de serviço militar obrigatório. Num distinto "quartel" de Doroteias, que são, ou eram, o feminino dos Jesuítas. A minha irmã também lá andava e contentíssima... O problema não era do colégio, a muitos títulos admirável, sem dúvida. O problema era meu - sentia-me enclausurada.
Apesar disso também lá se sucederam os momentos bons. Depressa me envolvi activamente na pequena comunidade de gente da minha idade. O Sardão era uma antiga quinta (de Almeida Garrett? – era o que constava…), com jardins, pequenos lagos, árvores, alamedas e caminhos, onde podíamos fazer quilómetros de marchas e corridas. Havia campos de jogos, courts de ténis, ringue de patinagem... Tirei o devido partido dessas estruturas. O desporto era aquilo de que mais gostava – “volei”, andebol, basquete, até futebol (clandestino, visto ser considerado modalidade imprópria para meninas).
Não obstante esta preferência, era, creio eu, mais dotada para os estudos - tinha notas altas a tudo, excepto a “comportamento”. Estive perto de ser expulsa, por ter escrito uma crónica jocosa sobre o sistema colegial (mais o sistema do que as pessoas – de muitas das religiosas, que foram boas amigas e conselheiras, guardo as melhores recordações). Cheguei a ser suspensa, mas venceu a facção das Doroteias que me compreendiam e apoiavam (a ser expulsa não estaria a abrir precedentes na família, porque dois irmãos da minha mãe, mais exactamente, um irmão e uma irmã já tinham tido essa sorte, ela também por "delito de opinião", ele porque fez explodir o laboratório de química).
As melhores recordações são as de fora de portas – os jogos, os recreios, quilómetros de saltos e correrias. Dentro da casa, tudo era frio, enorme, desconfortável - pelo menos para mim. Detestava os dormitórios, o imenso refeitório - onde me obrigavam a comer o detestável bacalhau, com frequência- os corredores infindáveis, onde marchávamos aos pares, com as mãos atrás das costas. Deprimente! A capela era mais acolhedora. Havia uma imagem do Menino Jesus de Praga, que fazia os meus encantos. E o confessionário era um verdadeiro oásis. O meu director espiritual era o Padre Leão, um jovem Padre muito inteligente e muito culto, homem de poucas e brilhantes palavras (sucinto e lapidar!), que dizia a missa quotidiana em 20 minutos e a missa solene em pouco mais de meia hora.
No confessionário, ouvia a enumeração dos meus pecados, que pouco variavam, e depois respondia às minhas perguntas e comentários sobre leituras. Teve muito mais influência na minha formação neste campo do que qualquer das minhas professoras... Ler foi sempre um dos meus passatempos preferidos. Gostava, porque gostava, mas a família também estimulava esse gosto. Ofereciam-me mais livros do que brinquedos. E com as "mesadas", eu comprava sobretudo livros. E, logo que aprendi as primeiras letras, uma revista, "O Mosquito", que saía duas vezes por semana. Às escondidas, folheava, no sotão da casa de Avintes, uma Bíblia antiga, que tinha sido de um tio bisavô padre - uma edição preciosa, com muitas gravuras e iluminuras. Um dia desapareceu. Soube, depois, que a Avó Olívia a deu ao pároco da terra - não sei se por me ter surpreendido em flagrante, a desvendar os segredos do Antigo Testamento...
Tive de voltar aos contos de Anderson ou às aventuras da Condessa de Ségur...
Mas rapidamente passei às irmãs Bronte, a Charles Dickens, a Júlio Dinis, ao Eça de "A cidade e as Serras" e da "Ilustre Casa de Ramires".... Das edições de "Os livros do Brasil", incluindo a colecção de "Miniaturas" poucos me escaparam. Nessa fase, dos 12-13 anos, um dos livros que mais me impressionou foi "O velho e o mar", um dos que mais me divertiu foi "In illo tempore" de Trindade Coelho" (aí terá começado o projecto de me formar em Coimbra, se bem que num tempo menos fascinante...). E também alguns dos humoristas que o meu Pai recomendava, como Jerome K Jerome ("Os 3 homens num bote") e Guareschi (a série de de Dom Camilo)... Depois, os policiais da "Vampiro" foram ganhando o seu lugar, com Agatha Christie e Erle Standley Gardner à cabeça. (muito desaconselhados pelo Padre Leão, que os achava um desperdício de tempo e uma perigosa, porque "viciante", concorrência à melhor literatura - mas no meu caso não o foram, pelo menos nessa fase, embora concorde que podem ser viciantes, como muito mais tarde constataria...).


Entretanto, aproximava-se a data da "libertação": terminado o 5º ano (agora 9º), saí, de vez, como queria, para o Liceu Rainha Santa Isabel, no Porto, onde fui muitíssimo afortunada - até recebi um prémio dos Rotários , mais o "prémio nacional" no fim do 7º ano (chamado curso complementar do liceu, salvo erro). Com os premiados dos outros liceus do país, ganhei, como "extra", uma viagem em grupo ao norte de África, Ceuta, Tânger, Alcácer-Kibir, porque estávamos em 1960, ano de comemorações Henriquinas. Fiz o meu baptismo de voo, porque não tinha alternativa, a não ser recusar o convite. (Lá em cima, achei o espectáculo deslumbrante, e toda a visita foi uma festa, mas não fiquei cliente da aviação por muitos anos ainda - até que voar se tornou parte do trabalho profissional). Imagine quem era o rapaz que representava o liceu de Ponta Delgada… Mota Amaral!

O tempo de adolescência, que tão longo me pareceu, é bem mais difícil de definir claramente, em termos de felicidade de alma, do que o anterior - foi feito de mais contrastes, de muito mais incertezas, muito mais descontentamento, melancolia, rebeldia... O que se explica, em parte, por causas exteriores, a começar pelo internato no Sardão, mas também por estados de alma subjectivíssimos. Foi a altura de escrever versos tristes, de alinhavar um diário inspirado no incomparável livro de Anne Frank (uma fracassadíssima imitação, a minha!), de olhar com pessimismo o futuro, sobretudo o académico (o pavor que tinha dos exames, sempre convencida que se aproximava a hora do grande desaire, que nunca aconteceria!). Fora dos círculos da família e amigos, onde mantinha intacta a antiga exuberância, tornara-me uma adolescente mais ou menos tímida e instável. Estranha metamorfose, que não atingiu, porém, outros traços de temperamento que suponho inatos, como a combatividade (quando surge o desafio ou a crise), o gosto pelo movimento constante, físico e mental, o entusiasmo por certas ideais ou actividades - "maxime", o desporto!
Recordo, por exemplo, tanto o delírio vivido nas Antas, ao lado do meu pai, com o 1º campeonato ganho pelo FCP (desde o meu nascimento...), como, pela negativa, o ano em que uma das Tias (a que fora expulsa do
Colégio, a célebre Tia Lola, que tem, na realidade, o mais solene nome de Glória Doroteia…) mandou para o director da revista "Modas e Bordados" um dos meus sonetos, que foi publicado, com foto e tudo, em pleno verão (de 55?). Estava em Espinho. As amigas da mãe todas me vinham dar os parabéns e eu ficava envergonhadíssima, queria desaparecer dali para um deserto, por milagre...
Muita da sobrevinda timidez, desse desconforto próprio do crescimento iria lançar as mesmas sombras ao longo da juventude, dos 5 anos de Coimbra, na Faculdade de Direito.
A mesma absoluta falta de confiança em mim, notória em época de exames, em cada uma das escritas e das orais, que tive de fazer. Tanto "stress" para nada, a entravar o gosto genuíno pelas matérias... Correu tudo, finalmente, bem, não valeu a pena o sofrimento. Nunca consegui mudar este quadro mental... Ficam dessa época, grandes amizades e o primeiro namoro longo - cinco anos - que acabou em casamento (breve, outros cinco anos, o que para casamento é pouco). No conjunto, uma década, que não deixou mal-estar. Nem havia razão para tanto. Desajustamento de feitios e de modos de encarar a “fidelidade conjugal" - aspecto em que eu era muito fundamentalista…. Ficamos bons amigos, e ele, como amigo, não tem defeitos.
Esse jovem praticante de vela, desporto mais chique do que o meu andebol, era colega de curso e uma fonte de preocupações suplementar, porque achava que ele também ia chumbar sistematicamente (não foi o caso, apenas um ou dois desaires, o que não foi mau de todo, atendendo ao pouco que estudava , devido às muitas actividades extra-escolares, o CADC,o Clube de Cinema…- o curso dele deu-me mais trabalho do que o meu!...).
Em fins de 64, quando entrava na última etapa do curso, aconteceu-me o que mudou definitivamente a forma como encarava e queria o futuro: a morte, para mim tão inesperada, da minha única irmã, com apenas 20 anos. (ela estava doente, mas há tanto tempo, e tinha tanto ânimo...
eu não acreditava que ela estivesse em perigo). A partir daí, nada mais foi tão importante como dantes. A vontade de andar à frente, a extrema competitividade, que era uma imagem de marca, deixou de ter verdadeira correspondência na realidade. Pode até parecer que não, porque sou sempre muito "reactiva". Mas é coisa epidérmica, questão de hábito, de feitio. Ou de princípios... frequentemente reacção "feminista" num mundo onde as mulheres continuam a ser o 2º sexo. Este é um domínio onde estive e, se for preciso, ainda estou em pé de guerra.
Já em criança, com 5 ou 6 anos, quando me proibiam uma brincadeira, porque não era "própria para uma menina", eu desobedecia de imediato e mostrava que era tão capaz de a executar a brincadeira como qualquer rapaz. Quando necessário, desobedecia clandestinamente. Assim joguei futebol na rua com os miúdos de Gondomar (graças a um primo, que era "craque" e que garantia a minha capacidade de resistência, vencendo preconceitos - foi obra, porque isto aconteceu há 60 anos...). Assim saltava e descia dos carros eléctricos, em andamento, a caminho da escola... Só me surpreende nunca ter sido denunciada à Avó Maria por algum pressuroso vizinho. Acho que não fui, porque se fosse não me deixariam continuar a fazer sozinha o curto trajecto para o Crasto.
(ainda hoje gosto de saltar do "intercidades" em andamento, com a técnica que então aperfeiçoei...).

2 - Motivação para a Política

Não tendo eu ingressado no mundo da política por acto voluntário, mas pelo contrário, com a maior relutância, não sei se poderei falar de "motivação para a política". Registo é um sucedâneo, que acabou por levar a que me aliciassem para esse ingresso: a motivação para a debate de ideias, a manifestação fácil e descontraída de opções muito claras em favor dos direitos das mulheres, dos direitos humanos, da democracia, da social-democracia (à sueca, note-se... Suécia, vanguarda mundial em todos estes domínios, em fins de cinquenta).
Nisso, posso à partida ter sido influenciada pelo meio em que cresci.
Na geração dos Avós, no ramo materno sobretudo, havia monárquicos convictos e republicanos radicais e até anarquistas, que em casa conviviam fraternalmente. No pós guerra, a família continuava muito dividida entra os Aliados e o Eixo entre o Salazaristas e oposicionistas de vários matizes, do conservadorismo britânico de meu pai ao socialismo de uma minoria. Discutiam, discutiam, mas davam-se todos bem, como mandava a tradição. Aprendi que há gente boa de um lado e de outro. Alguns estavam redondamente errados, eu achava as suas posições absurdas, mas, na qualidade de avós, tios ou primos, eram uns queridos.
Depois, pela vida fora, assim foi com colegas de faculdade, de empregos, da própria política. Tive sempre amigos do "lado de lá". Sou rigorosamente despida de preconceitos neste aspecto.
Curiosamente, ou talvez não, estou muito próxima do que pensava aos 18 anos...
Continuo muito pro-sueca, muito centro esquerda, muito feminista, etc, etc... Não sei se isto é bom ou mau sinal, mas é um facto. A minha 1ª incursão num processo eleitoral aconteceu em Coimbra. Concorri, obviamente "empurrada" pelos colegas do "Conselho de Repúblicas", às eleições para uma "secção feminina", com esse ou outro nome... Sei que, na altura, por inerência dava acesso à direcção da Associação Académica. Perdi, como seria mais ou menos previsível, porque era a lista mais à esquerda e as mulheres, ao contrário dos rapazes, votavam, em regra, mais à direita, na "LIA". Não havia 3ª via. Era a esquerda, com comunistas à mistura, ou direita, na companhia da direita ou extrema-direita... Eu, claro, preferia os primeiros.
Mesmo sendo previsível, a derrota convenceu-me que não era fadada para campanhas eleitorais. Só 20 anos depois, me vi, de novo, nesses
trabalhos: fui candidata a pela deputada pela emigração, pela coligação AD, com uma grandiosa votação de mais de 80%... Foi a 1ª de
muitas: encabecei o círculo de "Emigração Fora da Europa", repetidas vezes, sempre com votações excelentes, o da Emigração da Europa, por uma vez (recuperando o 1º lugar para o PSD, conseguindo por pequena margem de votos o que para nós foi uma grande vitória - até porque como Secretária de Estado do sector criava bastantes anti-corpos e porque, para piorar as coisas, metade da direcção da secção do PSD de Paris tinha aderido às hostes do emergente partido Eanista...).
Recuperei um pouco de auto-estima.

Todavia, o meu 1º cargo político, não foi o de deputada, mas o de Secretária de Estado do Trabalho num governo de independentes - o IV Governo Constitucional, chefiado pelo Prof Mota Pinto. Por isso, quando me perguntam a razão porque escolhi a vida política, respondo que não escolhi, e que, paradoxalmente, me foi dada a oportunidade pela pouco recomendável circunstância de não pertencer a qualquer partido...
Entrei na aventura, que à partida se estimava de curta duração, por não saber dizer "não" aos amigos - e não só o Primeiro Mº era um amigo, como o era também o "vizinho do lado", no Ministério do Trabalho, o João Padrão, um simpático e brilhantíssimo colega de curso, que ocupava a pasta do Emprego. À mistura com o receio de falhar - uma constante desde os bancos da faculdade - havia uma boa dose de curiosidade por conhecer o outro lado da "sociedade civil" - o lado do "poder" (ainda que muito relativo...). A "casa" era conhecida: estava no ministério onde começara o trabalho profissional, cerca de 11 anos antes. Apesar da mudança de regime, a boa qualidade dos funcionários, dos serviços estava intacta. Tudo era familiar - assuntos, problemas e até algumas das caras que via nos corredores - o que facilitava muito. Escolhi os adjuntos dentro da "casa", trouxe para chefe de gabinete um colega do Serviço do Provedor de Justiça (onde ambos éramos assessores, eu na área da segurança social, ele, providencialmente, na área do Direito Administrativo, que ali era bem preciso). Ajudaram-me naqueles tempos de iniciação a um novo ofício - fizemos uma equipa unida nos bons e maus momentos. E destes, houve alguns. Não tanto pelos conflitos sociais, negociações, greves...
Houve, por vezes, verdadeiros "braços de ferro", uma requisição civil... mas com o "adversário exterior" podíamos nós bem. O que incomodava era o interno... Foi por vezes complicado o relacionamento entre a equipa do ministro, que vinha do sector privado, com preconceitos contra o público e a minha que era 100% "funcionalismo público" (e do muito bom, que também havia e ainda há, aqui e ali). A competência dos quadros daquele ministério acabou mesmo por o convencer. Pior era o seu chefe de gabinete, que eu tive de "pôr na ordem", porque se julgava superior hierárquico do meu chefe de gabinete e tentava comandá-lo. Eu podia ser "caloira" no Governo, mas intromissões no meu "território" não estava disposta a admitir - e não admiti. O homem era pouco esperto e custou-lhe a perceber que nem mesmo ao ministro eu consentia semelhante comportamento. Fui sempre melhor a defender "os meus" do que a defender-me a mim própria. Eu, sim, tinha de actuar de acordo com orientações do ministro e ou concordava com ele ou me demitia. Não o fiz, porque não houve divergências de fundo - pude ir sempre por onde queria, ou quase sempre. Como disse, o pior foram questões pessoais, de "maneiras"...
Curiosamente, o estilo "impaciente" (e também muito frontal e
corajoso) de Eusébio Marques de Carvalho (igualmente "estreante" em lides governativa...) acabou por me influenciar bastante. Como ele, dei por mim a tomar decisões rápidas, a promover mudanças sem medo das reacções e a exigir execução pronta. Foi fácil, porque as pessoas corresponderam! Tive muita sorte...

O Governo Mota Pinto, foi o primeiro governo "não socialista" depois da revolução de 74. O ter combatido pelo seu programa, o ter resistido às pressões da rua (como então se dizia) o ter conseguido "governar", ainda que apenas durante 9 meses, foi mais importante do que parece para a história da democracia em Portugal - porque não há democracia sem alternativa, sem a possibilidade concreta e concretizada de viragem. Sá Carneiro haveria de salientar esta faceta, no discurso de tomada de posse, reivindicando o título de 1º governo de alternativa saído do sufrágio popular. O que era exacto, já que o de Mota Pinto não resultava directamente do voto, mas de nomeação presidencial.
Acredito, porém, que sem a experiência vivida ("ver para crer"...) que representou a acção governativa de Mota Pinto, a maioria do povo português não teria dado a vitória à AD, em fins de 1979...
Muitos dos independente da área social-democrata (que era a do Primeiro ministro Mota Pinto e, naturalmente, a de quase toda a sua equipa), acabariam por integrar o executivo da AD e por se filiar no PSD. Eu fui um caso entre tantos outros (a única mulher, claro e que, por isso, seria também a primeira militante do PSD num Governo da República).
Não conhecia pessoalmente Sá Carneiro até ao dia em que me convidou para ser a Secretária de Estado da Emigração, numa tarde do início de Janeiro de 1980.
A conversa foi divertidíssima. Senti-me tão à vontade, que falei com ele como quem fala com velhos amigos (com Mota Pinto ou com Rui Machete, por exemplo). Sá Carneiro estava "bem-dispostíssimo"! A certa altura, chamou ao gabinete o MNE Freitas do Amaral, com quem eu viria a trabalhar directamente, mas mesmo a três, o tom do diálogo não sofreu grande alteração - mais parecia uma tertúlia!
Saí pela porta a dizer "Senhor 1º Mº, por si faço tudo: vou de escadote colar o seu “poster” nas paredes. Vou de balde e pá pintar AD nas ruas. Tudo, menos ser Secretária de Estado!
Deu-me o prazo de 24 horas, para decidir. Pedi, acto contínuo, conselho ao Doutor Mota Pinto pelo telefone (estava em Coimbra, não havia outra hipótese) e fui jantar com Rui Machete, que tinha sido responsável pela mesma Secretaria de Estado, por uns meses, antes de se tornar Ministro dos Assuntos Sociais (em cujo gabinete colaborei, e do qual saí, por sua sugestão, para assessora do SPJ). Ambos, mais a Branca Amaral, sua cunhada e minha colega no SPJ, que se juntou a nós no jantar, me incitaram a aceitar. Aceitei, não sem repetir ao Dr Sá Carneiro que não me considerava à altura do cargo. Respondeu-me que não me preocupasse, porque assumia, por inteiro, a responsabilidade, pela sua escolha.
Acho que se apercebeu que eu "queria e não queria" envolver-me naquelas funções, que estava genuinamente insegura e deu-me um grande acompanhamento nas duas ou três primeiras semanas. Foi extraordinário!
Telefonava-me para me dar informação sobre casos concretos de emigração, para me dizer como esta ou aquela das minhas iniciativas tinha resultado bem... Pretextos para me dar ânimo - e dava!
Gastou comigo, alguém que não conhecia previamente, muito do seu tempo de primeiro-ministro, até ter a certeza de que eu seguia caminho perfeitamente segura... Um Sá carneiro bem diferente do que preferem traçar para a história...

Um líder singularíssimo, não só, mas também pela forma como estava atento a tudo e a todos... E verdadeiramente empenhado em levar o país para patamares mais altos.
Para mim, ele foi sempre o a “anti-Salazar” por excelência, - na medida em que confiava, sem sombra de dúvida, tanto quanto o velho ditador desconfiava da capacidade dos portugueses viverem em democracia, como os outros europeus do Ocidente. Toda a sua pressa, e o que chamavam perigoso “radicalismo” ou teimosia, era a manifestação da vontade de pôr o sistema a funcionar de imediato, sem tutelas militares ou outras… (era, quando muito um “radicalismo” absolutamente democrático.)
Na emigração, como globalmente, o princípio norteador era o diálogo com a sociedade civil - dito de outra maneira, ouvir o povo, seguir o povo. Manifestação da ideia personalista, que animava o seu pensamento e que foi prática do seu percurso político! Na “diáspora”, o grande projecto era, por isso ou para isso, a criação de uma assembleia de representantes das comunidades do estrangeiro: o Conselho das Comunidades Portugueses (CCP), de algum modo inspirado, (tal como os que, alguns anos depois do nosso, vieram a estabelecer-se na Itália e na Espanha, e, bastante mais tarde, na Grécia) no “Conselho Superior dos Franceses do Estrangeiro” – hoje, Assembleia dos Franceses do estrangeiro. Em suma, um órgão de representação específica dos emigrantes. Na altura, como o modele francês, com conselheiros eleitos num colégio de associações das comunidades. (o francês elegia, seguidamente, os Senadores da emigração. Isso não acontecia no nosso caso, desde logo porque não temos sequer uma segunda câmara e porque temos no Parlamento 4 deputados (apenas 4!), em dois círculos da emigração. Sá Carneiro falava de Portugal com “Nação de Comunidades”, mais uma “cultura” do que uma organização rígida, mais Povo do que território. São palavras dele, que muitas vezes me são atribuídas a mim, só porque, naturalmente, as repeti, sempre, ao longo de anos e anos.

Fiquei, por vezes com um grande sentimento de solidão, a tentar levar por diante a política de Sá carneiro, sem Sá Carneiro. Porque nela acreditava e acredito e usei para a defender, os meios ao meu alcance - para além da valorização do CCP, como órgão para a co-participação nas política das emigração, uma visão que privilegiava a colaboração com as instituições das próprias comunidades, porque sem elas não há comunidades orgânicas(uma visão bastante “institucionalista”, que é a minha, não obstante a tendência inata para o individualismo…). E, também, a defesa da dupla nacionalidade, de plenos direitos políticos, as campanhas para o recenseamento e a participação efectiva, que, hoje em dia, decresce lamentavelmente, em cada novo acto eleitoral.
No tempo de Sá Carneiro, o afrontamento com o Presidente Eanes e com o Conselho da Revolução passou, em larga medida pelo MNE. Pela política externa e da emigração. Para mim, que reajo sempre gostosa e fortemente a afrontamentos, isso não me custou nada. Pelo contrário, estive, como voluntária, na linha da frente! Falava-se de “diplomacia paralela”: o MNE de Eanes era Melo Antunes, o seu Ministro da Emigração, Victor Alves. Claro, com Victor Alves, mantive alguns “braços de ferro” que muito me regalaram e a Sá Carneiro também… Sei que, então, a minha imagem em Belém era péssima… Curiosamente, em governos seguintes, quando comecei a falar pessoalmente com o General Eanes (sobretudo nas longas cerimónias da entrega de credenciais de Embaixadores, a que Jaime Gama se furtava quando tinha bom pretexto) o relacionamento mudou muito. Mudei a minha opinião acerca dele, e julgo que a recíproca também é verdadeira. Não há nada como boas oportunidades de diálogo, com homens inteligentes e com sentido de humor… Mas em 1980, nenhum dos lados da contenda instalada estava com disposição para tanto…




Sobre se esquerda ou direita faz sentido, hoje:

Para mim, faz, como sempre fez. No Portugal do "Estado Novo" não havia que duvidar. O regime era de direita, a oposição era de esquerda. O salazarismo era, dentro da direita, a direita pior, anti-democrática, repressiva, nacionalista e colonialista, paternalista e misógina… Um anacronismo, no extremo da Europa... Por contraste, a esquerda era a imagem da modernidade, da inteligência do seu tempo, do inconformismo perante a desigualdade e a injustiça reinantes, da coragem, da utopia criativa. As coisas hoje não se colocam num quadro tão maniqueísta. É evidente que há muitas direitas e muitas esquerdas, uma ou várias direitas com vocação democrática e marcadas preocupações sociais, esquerdas revolucionárias e não revolucionárias, estas últimas em alguns aspectos próximas da direita "centrista"... Haverá uma fronteira mais nítida entre revolucionários e reformistas.

Olhemos os partidos portugueses com representação parlamentar. Em 74 e 75, do PS para a sua direita, todos se apresentaram como mais esquerdistas do que eram... Modismo ou auto-defesa...
"Partido socialista, partido marxista" era um dos slogans das grandes "arruadas" do PS.
O PPD, do alto da sua proclamada ideologia social-democrata tudo fez para ser aceite na "Internacional Socialista"e não foi por oposição do PS. (é mau demais que, anos depois de deixar, por razões nunca devidamente explicadas, a internacional "Liberal e Reformista" esteja agora no PPE da Srª Merkl...).
O CDS dizia-se "rigorosamente ao centro". (actualmente, em termos europeus, é parceiro do PSD no PPE).
Sempre me considerei "centro-esquerda", social-democrata “à sueca”.
Não tendo mudado de posicionamento, nem de "causas", já fui vista como mulher de direita e como mulher de esquerda, dependendo das épocas e do ponto de vista do observador... Há domínios em que acho que sou mais de esquerda (direitos das mulheres, dos estrangeiros, da nacionalidade, abertura de fronteiras, tolerância de costumes...), outros em que serei mais "centrista", (mais "sociedade civil", mais iniciativa privada, mais "personalismo cristão, Estado "qb" dentro do paradigma do "Welfare State"...) Sou do PSD, mas pouco ortodoxa. Melhor dizendo, sou Sá Carneirista e desde que Sá Carneiro morreu, sempre tive muitas discordâncias com quase todas as lideranças partidárias. É natural. Não posso exigir um partido à minha medida...
Na Assembleia do Conselho da Europa sentia-me bem no Grupo Liberal, onde, por definição e por praxis, cada qual era livre para tomar as suas posições - e a minha sintonia com o Presidente, Russel Johnston, foi uma constante. No PPE, aconteceu precisamente o contrário, Tinha pouco a ver com eles, desde as questões de refugiados à da guerra do Iraque... O presidente Van der Linden, que depois foi presidente da Assembleia Parlamentar, chegou a votar contra relatórios meus. Eu paguei na mesma moeda.



Esquerda e direita nas políticas de emigração


A emigração, os direitos dos emigrantes, a especificidade da sua situação face aos países a que se sentem ligados, acabaram por se tornar questões que me interessam, muito para além daquilo que foi exigência de exercício de cargos, no governo, no parlamento e no Conselho da Europa. Mas este é um campo em que nem sempre é evidente o que é ser de esquerda ou de direita... Por exemplo: no que respeita à aceitação de dupla nacionalidade e a da dupla participação política, no país de origem e no da residência. Eu sempre fui a favor. O PSD, também, assim como o CDS, pelo menos no tempo da AD, quando a Lei da nacionalidade foi alterada neste sentido. O PS e o PCP eram contra.
Contra a abertura de recenseamento por 60 dias no estrangeiro (foi a única votação que a AD perdeu em S. Bento, no ano de 1980...). Contra o direito de voto dos emigrantes na eleição para o Presidente da República. Contra o aumento do número de deputados pela emigração.
Contra o voto dos portugueses residentes fora da UE para o Parlamento Europeu...Significa isto uma definitiva conotação direita e esquerda destas posições? Com a esquerda a ser aberta ao exercício da cidadania no país de residência, mas menos quando está em causa o país de origem (o que se verificará, de algum modo, igualmente em termos europeus).
Ou outros factores, como um previsível desfavorecimento ou favorecimento pelo voto dos expatriados, jogarão um papel, mais determinante do que a pura ideologia? Factores culturais, também, isso é evidente no contexto europeu - os países nórdicos, e sobretudo a Alemanha, são militantemente contra a dupla cidadania... Entretanto, em Portugal, as coisas mudaram muito: o Bloco de Esquerda veio mostrar que, nesse quadrante, é possível defender, com igual empenho, os direitos políticos dos imigrantes no país onde vivem e os dos emigrantes na Constituição e nas leis do país de origem. E eis que eu me vejo - evidentemente que só nesta área... - em perfeita consonância com o BE! Direitos iguais para os portugueses dos estrangeiros, mas também direitos iguais para os estrangeiros em Portugal (aqui, não me parece que o PSD me acompanhe, incondicionalmente - e o PS também não...).Defendo o direito de todos os que nascem no território à nacionalidade. Automaticamente, sem quaisquer restrições ("jus solis", puro e duro, ainda que combinado com o "jus sanguinis", como se exige num país de emigrção e de diáspora). E, também o direito dos estrangeiros à habitação social, à educação e à participação cívica e política (neste último caso, após um tempo de permanência, obviamente). Defendo a proibição da pena acessória de expulsão do país para os emigrantes que aqui vivem desde crianças e para os que aqui residem há largos anos (acima de uma década, digamos)...Defendo o direito à ligação cultural e afectiva ao país de origem. Fico estarrecida com recentes declarações de Sarkozy ou David Cameron a negá-lo, em nome de uma ideia de coesão nacional. Não é assim que a vão conseguir, bem pelo contrário...Conversão à força, só sob a meaça de novas inquisições...



Evocação de alguns políticos

Há os que eram amigos muito antes de serem políticos. Os meus professores de Coimbra, por exemplo - Mota Pinto, Barbosa de Melo, Figueiredo Dias, Xavier de Basto... Em Coimbra o convívio era fácil à mesa dos cafés, nos cinemas, num passeio pelas ruas da "baixa", nos "Gerais"...
Não sei se há uma predisposição "social-democrata" , para a convivialidade com os mais novos. Pode até ser mera coincidência, mas todos os que considerava mais próximos e mais "descontraídos"antes do 25 de Abril, aderiram, logo depois, ao PPD! Nesse tempo, como lhe disse, tinha acabado de regressar a Coimbra, para dar aulas na Universidade. Foi na hora certa! As conversas tinham agora novos tópicos, que nasciam a velocidade vertiginosa. O país fervilhava, mais em Lisboa do que em Coimbra, claro, e eles passavam muito tempo por lá, estavam por dentro do que acontecia na governação ou desgovernação - e no partido. Quantas histórias, algumas bem divertidas, sobretudo de personagens como Vasco Gonçalves, Pinheiro de Azevedo - sem dúvida os mais extravagantes, que nunca cheguei a ver de perto, mas que imaginava, através desses relatos saborosos, para além do que a todo o país abundantemente mostrava a TV...De Sá Carneiro, os meus amigos de Coimbra não eram incondicionais admiradores como eu... Sobre isso, não há sombra de dúvida. Todos, uns mais cedo outros mais tarde, deixaram o partido, do lado de lá do Sacarneirismo - embora, depois tenham regressado (com a excepção do Prof Figueiredo Dias). Eu não tinha ficha no PPD, nem queria ter, mas era simpatizante assumida e tive muita pena daquelas irremediáveis dissensões... Não escondia o meu Sácarneirismo . o grande "ismo"
político da minha vida. Mas não conhecia Sá Carneiro. (Se calhar, isso era uma vantagem, pensava depois de ouvir a argumentação de tão ilustres oponentes, os citados e muitos outros, de menor nomeada na altura - assistentes como eu). Quando, em 1980, fui ao encontro de Sá Carneiro, já 1º Ministro, no gabinete da Gomes Teixeira, o meu maior temor era o de não simpatizar com ele, como pessoa, o que destruiria a atracção e o "mistério" do "mito". Com o crónico pessimismo de que sofro nestas matérias, achava mesmo que isso era o mais provável.
Enganei-me, fiquei encantada! Ele irradiava entusiasmo, carisma (à sua contida e aristocrática maneira). Lembro sempre a 1ª impressão, o olhar, o sorriso... Se me perguntarem como era o gabinete, a secretária, o seu fato, a cor da gravata, não sei. Não fixei nada, para além da figura, da expressão, da cortesia, das palavras, que ainda ouço, na memória...Quando o cumprimentei como " Senhor 1º Ministro", disse-me de imediato: "Não me chame 1ª Ministro". Ao que respondi: "Desculpe, mas vou sempre chamar-lhe 1º Ministro, porque esperei tempo demais para lhe poder chamar assim!"
E assim sempre fiz.





Uma longevidade política acidental



Ainda hoje estranho ter andado tanto tempo na política nacional.
Quase 3 décadas, entre 1978 e 2005, com um único hiato, durante os 5 meses do Executivo Pintasilgo, logo em 79. Fui ficando, dia após dia, ano após ano. Quando vai havendo um fio de meada, é difícil cortar o fio. Acho que as situações, os trabalhos, se foram encadeando e só isso explica uma longevidade política que, à partida não entrava nos planos (planos que foram sempre pouco detalhados – baseados na preferência genérica por qualquer tipo de investigação ou assessoria técnico-jurídica – nada de competição feroz, de luta pela chefia...Não queria mandar em ninguém… Sentia-me perfeitamente realizada quando terminava um artigo, uma recensão para a revista do Centro de Estudos, quando revia o articulado de um projecto de decreto-lei no gabinete do 1º andar da Praça de Londres, que partilhava com o Carlos Branco, ou quando, anos depois, despachava os processos que me cabia informar no Serviço do Provedor de Justiça, na 5 de Outubro, onde dividia o gabinete com a Branca Amaral. E depois, livre de toda e qualquer preocupação, ia à sessão das 18.00 a um dos cinemas que então proliferavam em Lisboa (quase todos os dias da semana!). Em casa, na Av, do Uruguai (a partir de 1970), tudo estava em ordem. Tinha "governanta" - uma velha amiga, que era mais do que família, tinha andado com a minha Mãe ao colo!
Cozinhava muito bem, tomava todas as decisões domésticas. Gostava muito de animais, tal como eu, e, por isso, aventurei-me a comprar uma cadelinha lindíssima, um dia, a um vendedor de jornais, (e, nesse dia, também de uma grande ninhada de cachorros...) em plena Praça dos Restauradores, junto ao Palácio Foz. Bem vistas as coisas, foi um dos tempos mais felizes da minha vida.
Tinha acabado de me separar, judicialmente, do meu ex-marido, logo depois do regresso de Paris, onde passei dois anos (que já tinham sido de separação de facto...). Encarei, pois, muito bem o desenlace, sem fazer dramas. Não havia razão para tanto. Ele foi sempre um homem amável, gostava de cinema e de animais, como eu. Escrevia, desenhava e pintava talentosamente. Mas foi um estudante cabula e boémio - logo por aí devia ter adivinhado que tinha uma filosofia de vida completamente diferente da minha. Em tempo de namoro, não se dá importância a coisas dessas... Enfim, perdi o marido, mas não o amigo.

Paris 68...

Parêntesis, para dizer que vivi em Paris entre Outubro de 68 e Julho de 70, com uma bolsa da Gulbenkian, e com o beneplácito do meu Centro de Estudos. Fiz uma pós graduação em sociologia.
Um tempo que deixou saudades! Residia na Cidade Universitária, primeiro na Casa de Portugal, depois na da Argentina - integrei-me logo num grupo de gente interessante, que os outros chamavam "os católicos progressistas" (ainda que alguns de nós não fossem muito católicos e outros só fossem muito progressistas no sentido de serem democratas num país ainda em ditadura...) e, depois, no 2º ano foi como se tivesse emigrado para o sul da América do Sul. Fiquei pró -Argentina para o resto da vida...

Voltando à política:

Fui para o governo Mota Pinto, sem ter, como disse, prévia experiência de qualquer forma de “mando”… E, coisa determinante da disponibilidade, sabendo que seria por pouco tempo. Exactamente como quando fui para Coimbra, dar aulas. Levada pela curiosidade, para experimentar coisa nova e ver se, como os outros pareciam pensar, eu dava conta do recado. Procurando fazer o melhor que me fosse possível (isso foi sempre claro, porque num mundo de homens, uma feminista não deve falhar, sob pena de pôr em causa a progressão futura de outras mulheres, por aqueles caminhos...). Mas não queria subir muitos degraus na política, como não queria passar anos e anos fechada num gabinete a preparar uma infindável tese de doutoramento em Direito. (investigação, pareceres, sim, mas em dose curta…).
Estas duas intromissões em universos alheios, que não sentia como verdadeiramente meus, estão, aliás, interligadas. Nunca teria aceite um cargo público, um palco de exposição tamanha, se não tivesse passado antes pelo palco um pouco mais resguardado da docência... O contacto com multidões de alunos funcionou como um estágio de formação para o contacto com outras multidões. Além disso, não posso esquecer que entrei na política pela mão dos professores com quem colaborava na universidade.



A universidade, sem problemas, em tempos agitados...


A relação com os alunos correu sempre muito bem - não me lembro de ter tido com eles o mais pequeno problema, nem na "Católica, onde de aulas práticas de sociologia como assistente de Álvaro Melo e Sousa, pouco depois do regresso de Paris. em 1970, nem na Faculdade de Direito de Coimbra (74-76), nem depois, nos anos 90, no mestrado de Relações Interculturais, onde regi um curso sobre Políticas e Estratégias para as Comunidades Portuguesas.
Bem vistas as coisas, foi do que mais gostei de fazer.
Há vários políticos entre os meus ex-alunos. caso de Marques Mendes, Júlio Meirinhos, José Ribeiro...


Mas a política também teve poder de atracção, com o seu lado ético, a par do tal lado lúdico, de que falava Sá Carneiro. Boa parte do tempo, deu-me gozo tomar as decisões que pude tomar, (às vezes em guerra com os ministros ou o governo inteiro…), estabelecer pontes com pessoas, associações, governos estrangeiros. Estar em movimento constante, de continente em continente. Falar em nome de portugueses quase sempre os mais esquecidos, como são os emigrantes. Tentar mudar alguma coisa, ao nível a que estava - que nunca foi o mais alto nível.
Às vezes dizia para mim própria, só continuo por aqui, por falta de concorrência… As dificuldades são tantas, as batalhas contra o muro da indiferença geral, que tornam a pasta ingrata – e não dá para muita “progressão na carreira” porque há não visibilidade bastante…. Quem trabalha com a emigração acaba por ser tão marginalizado como os emigrantes…Quase todos estiveram pouco tempo e não quiseram repetir.
Comigo foi o oposto: saí dos lugares políticos, mas não do “lugar afectivo” da emigração (parece exagero sentimental, mas é verdade…).

Do ponto de vista muito pessoal - que, evidentemente, não é o que mais interessa, mas como estou a falar de mim, porque não dizê-lo? - o trabalho na emigração deu-me ilimitadas oportunidades de me surpreender a mim mesma (no futebol diria "margem de progressão"...).
Não imaginava que iria habituar-me a viver dias e noites inteiros dentro de aviões, como quem está em solo firme... A falar em público, horas a fio - certamente uma praga, para quem tinha de me ouvir... A fazer tantos amigos, que, noutras circunstâncias não encontraria... A conhecer por dentro tantas comunidades do estrangeiro, que são insolitamente mais portuguesas do que Portugal.
Incrível a sensação de atravessar continentes inteiros, parando aqui e ali, sempre em ambientes familiares, nossos, como se não tivesse saído das fronteiras!
Depois, a gente habitua-se, mas nem por isso este mundo é menos estimulante, porque é cheio de dinâmica, ainda quando procura sobretudo "conservar" (costumes, tradições, músicas, sabores... uma graça!). Um mundo de feição muito masculino - nessa ânsia de preservar a essência das coisas, guardando todo o preconceito de “género”! As mulheres sempre nos bastidores, de onde começaram a sair, mas devagar.
Surpresa das surpresas: o aceitaram-me tão bem. Ainda não terminara a 1ª visita às comunidades e já me apercebia de que o facto de ser mulher era uma vantagem. Disse-mo, no ano seguinte, um jornalista de San Diego, depois de uma entrevista, num descontraído almoço (eu a saborear uma posta de tubarão frito, porque não resisto a experimentar pratos “exóticos” e quase sempre gosto). Segundo ele, Secretários de Estado populares na Califórnia, só o João Lima e eu. Ficou um minuto silencioso, olhou para mim e continuou: "mas bem vistas as coisas, ele até tem mais valor. Para ele foi mais difícil, porque é homem e socialista"
Socialista é óbvio - na América desqualifica seriamente e desperta “fantasmas”, porque Mc Carthy deixou larga descendência espiritual. O "género" não pareceria tão óbvio. Mas concordo com ele. ( vox populi…).
Não é difícil a uma mulher exercer estas funções, difícil é chegar lá, através dos labirintos do poder, mesmo que apenas de um poder pequeno… Fiz o meu quinhão normal de inimigos, mas nunca senti que fosse em razão do sexo. Era antipatia pela pessoa, ou pela minha posição política – não necessariamente em quadrantes opostos, às vezes dentro de facções do próprio partido - ataques maldosos, pretextos obtusos para o “deita abaixo”, que começaram logo na fase seguinte à morte do Dr. Sá carneiro.
Visto retrospectivamente, não foi nada demais, era de esperar. A luta partidária é assim mesmo. Estava, internamente, na oposição (como anti-balsemista que era), e não tinha raízes no PSD. Oficialmente, tinha assinado a ficha, porque quis, ninguém me pressoinou, quando aceitei a pasta da emigração ("ubi commoda, ibi incommoda", julguei eu…).Nada demais que os “balsemistas” achassem que era a hora de correr comigo, primeiro do governo, depois do parlamento. Do governo foi fácil, na 1ª remodelação, em Agosto de 1981. (primeiro o MNE chegou a convidar-me para continuar com ele, no barco onde já vínhamos a navegar, depois, com algum desconforto, teve de me dizer que Balsemão não queria, insistia num dos seus fieis - nada mais nada menos do que o José Vitorino, que aspirava ao Turismo, ou às Pescas e teve de contentar-se com as Comunidades em vez de Raquel lhe deram Lia, e com ela, ao contrário de Labão se contentou...). veio o episódio no jornal Tempo, com o título "o desconvite"...
Da AR, em 1983, não foi, apesar de ainda terem sido eles a fazer as listas, num tempo em que Mota Pinto já era o futuro imediato. O meu caso discutiu-se durante horas, à mistura com uma interpretação dos regimentos. De um lado, Alberto João Jardim, a terçar armas por mim, do outro o inevitável Mota Amaral,e mais algumas figuras gradas do clã Balsemista. Curiosamente, assim divididos os dois presidentes das regiões! Vencedor absoluto: AJJ. Estou a vê-lo, na sua veste de advogado da “desprotegida”… Depois disso (essa era a hora H!), tornou-se muito mais complicado removerem-me… Saí, pelo meu pé, com o lugar disponível para a continuação no círculo de Fora da Europa, 24 anos depois!
A paciência, que foi preciso ter! E que até tive, alternando com muitas irrupções de irritação… No calor da batalha, nem sempre poupei as palavras, e quantas vezes terei exagerado… Sabe bem quem me viu em acção… Não foi um grande percurso ascensional – mas também, da minha parte, não fiz muito para que fosse. Comecei pelo Governo (alguns diriam “assentei praça em general”), daí passei ao Parlamento e, abandonada, aos 62 anos, a política no plano nacional, vi-me aliciada para a participação ao nível autárquico. Vereadora da Câmara de Espinho (aonde há décadas resido). Só me falta a experiência numa junta de Freguesia, para correr, no sentido inverso, é claro, todos os degraus de uma carreira política.
Na transição do Governo para a AR um candidato do PRD, um castiço, chamado Laceiras, durante um debate numa rádio meio pirata (belo tempo esse das rádios livres, em Paris, como em Portugal!) comentava: Não se percebe o que ela vem fazer aqui. Está no governo e quer concorrer para a AR. Quer passar de cavalo para burro! A “cabeça de lista” que era um modelo de comportamento ético, de contenção verbal, de boas maneiras a Teresa Santa Clara Gomes, ficou lívida, sem palavras!
Mas a verdade é que eu nunca vi as coisas “à Laceira”. Todos os cargos são equivalentes, dependendo do que lhes conseguimos dar, que é mais importante do que aquilo que nos dão,
Ainda sobre o governo Mota Pinto:

O cargo de SET era politicamente "resguardado". As luzes de cenacentravam-se no Ministro. Convinha-me o "low-profile" - detestava dar entrevista~s e não dei, com uma excepção aberta para um jornal desportivo (A Bola); limitei ao mínimo as intervençoes públicas. Privilegiei o trabalho de gabinete. Mesmo assim, algumas intervenções deixaram o público perplexo, sobretudo as respeitantes a mulheres. Eu dizia-me abertamente "feminista" e o termo espantava, sobretudo vindo de um membro de um governo visto como "de direita". de resto, aproveitei para dar andamento a um projecto que dormia nas gavetas: uma proposta da Comissão da Condição Feminina, para a criação de uma instância de defesa das trabalhadores. Nomeei rapidamente uma comissão, dei-lhe um prazo curto, que foi cumprido, sob a presidência de um jurista o que julguei preferível para passar a mensagem de que estas questões de género também envolvem os homens. Escolhi, cuidadosamente, um jovem esclarecido, isto é, "feminista", brilhante, enérgico, o meu colega do SPJ Dr. João Caupers. Foram ouvidos sindicatos e associações patronais, foi tomado como modelo inspirador o "ombudsman" para igualdade e a sua máxima (em condições iguais, preferência ao sexo subrepresentado na profissão. Não se foi tão longe, mas a CITE, com a sua composição tripartida(governo, sindicatos, assoc patronais) ainda hoje existe e foi, na altura, considerado um avanço, em termos euroeus. Não houve tempo de o publicar no tempo de vida daquele governo, porque "encalhau" no pacote laboral daquele governo, a que o seguinte não deu andamento. Mas eu fui falar com o meu sucesor, expliquei-lhe a singularidade daquele diploma e convenci-o à sua excelência. Ele foi um bom camarada - era um dissidente do PPD, muito simpático (dissidência àparte) e teve arte de levar a piblicação a bom termo - e tal qual vinha do antecedente, com a assinatura do Doutor Mota Pinto, em pleno consulado da Engª Pintasilgo. Um autêntico milagre...
Nem todas as batalhas foram ganhas. Não consegui barrar as PRT (Portarias de Regulamentação de Trabalho com salários de grande disparidade para tarefas definidas como masculinas ou femininas. É que encontrva oposição dos sindicatos, para além da dos patrões...
Mas consegui nomear a 1ª mulher para chefiar uma delegação distrital do Ministério (em Aveiro) e também as primeiras mulheres Inspectoras do Trabalho (várias, de uma assentada).
Uma única entrevista: sobre transferência de jogadores de futebol para o estrangeiro, que eu autorizei, por considerar inconstitucional a PRT que o proibia. Entendi que violava o princópio da liberdade de circulação dos cidadãos, o seu "direito à emigração". Foi o fim do mundo!...(uma espécie de antecipação da decisão BOSMAN à portuguesa). Os jovens jogadores que beneficiaram da minha teimosia eram todos do SCP, que vendeu os passes a um clube americano de Boston (os Tea men?) por somas à época extrordinárias - o Keita, o Jordão e outros... Acusaram-me de por em causa o futuro do futebol nacional e de outras horrorosas consequências de uma decisão inesperada, nenhuma das quais, como eu antevia, aconteceu. Mantive completa inflexibilidade, como é meu costume em termos de princípios. Aliás, seria um contrasenso arrostar com o desconforto de estar na política e não aproveitar para mudar as coisas que precisavam de ser mudadas...
Na altura não era normal uma mulher ocupar o pelouro do Trabalho. Surpreendia, mesmo em termos europeus. Estive em duas ou tr~es reuniões internacionais e os interlocutores perguntavam invariavelmente: È Secretária de estado do Trabalho Feminino? E, quando eu respondia: "Não. Do Trabalho, ponto final." manifestavam espanto: "Com a negociação com so sindicatos?".
Nem sei porque pensavam assim. Não tive nenhum problema com os sindicatos pelo facto de ser mulher - mais por causa da cor do governo. O período era de grande instabilidade, com greves em sectores chave - como o sector portuário, as comunicações. mas sobrevivemos e eu até ganhei uma aura de "resistente", sem fazer nada demais. apercebi-me de que tinha ganho essa fama na 1ª conversa com o Dr. Sá Carneiro. Eu achava que o pelouro da emigração era demais para mim e ele só me dizia: "Mas a Srª Drª foi Secretária de Estado do Trabalho" (o tom era de quem considerava que aí residia a dificuldade máxima e parece-me que achou que eu fazia graça, quando retorqui: Oh, Não! Isso foi fácil! Eram quase sempre questões técnicas, despachava tudo num instante, deixava a secretária livre de papéis ao fim do dia...")
Era verdade. Dominava tecnicamente as matérias, a política do governo era clara, não havia que enganar nas decisões políticas. Fazia o meu melhor nas negociações ea mais não era obrigada. O gabinete e os funcionários dos serviços eram óptimos. Qunado havia que falar aos "media", havia um Ministro sempre pronto a responder. O que mais poderia desejar?
Sá Carneiro não podia saber a fobia que eu tinha de dar entrevista, de falar em público sem papel. E até para mim era óbvio que a pasta da Emgração obrigaria a isso, constantemente. E a viagens, também - e eu tinha um medo tremendo de andar de avião. Excepto num pequena excursão a Marrocos, nunca tinha atravessado um oceano pelos ares e não queria experimentar... Era como para o comum cidadão ser metida num Foguetão a caminho do espaço.
Bem! Aprendi que tudo isso só custa a 1ª vez. A 2ª já é como beber um copo de àgua...
É o que em linguagem religiosa se diz a "graça de estado". É coisa em que acredito piamente!
Houve mulheres no Governo desde o 25 de Abril (e até antes, com Caetano, uma Subsecretária de estado no domínio da assistência, salvo erro - Mª Teresa Lobo). Pintasilgo foi Ministra dos Assuntos Sociais logo no 1º Governo Provisório, creio. Mas eram a excepção. O argumento usado para me convencera aceitar o posto.


Sobre se esquerda ou direita faz sentido, hoje:

Para mim, faz, como sempre fez. No Portugal do "Estado Novo" isso era
meridianamente claro. O regime era de direita, a oposição era de
esquerda. O salazarismo era, dentro da direita, a direita pior, anti-
democrática, repressiva, "patrioteira", colonialista, paternalista,
misógena, absolutamente anacrónica . .. Por contraste, a esquerda era a
imagem da modernidade, da inteligência do seu tempo, do inconformismo
perante a desigualdade e a injustiça reinantes, da coragem, da utopia
criativa.
As coisas hoje não se colocam num quadro tão manicaísta. É evidente que
há muitas direitas e muitas esquerdas, uma ou várias direitas com vocação
democrática e marcadas preocupações sociais, esquerdas revolucionárias e
não revolucionárias, estas últimas em alguns aspectos próximas da direita
"centrista"... Haverá uma fronteira mais nítida entre revolucionários e
reformistas.
Olhemos os grandes partidos portugueses. Em 74 e 75, do PS para a sua
direita, todos se apresentaram como mais esquerdistas do que eram, na
realidade... "Partido socialista, partido marxista" era um dos slogans
das grandes "arruadas" do PS. O PPD , do alto da sua proclamada ideologia
social-democrata tudo fez para ser aceite na "Internacional Socialista" e
não foi por oposição dp PS. (é mau demais que, anos depois de deixar, por
razões nunca devidamente explicadas, a internacional "Liberal e
Reformista" esteja agora no PPE da Srª
Merkl...) O CDS dizia-se "rigorosamente ao centro". (actualmente, em
termos europeus, é parceiro do PSD no PPE).
Sempre me considerei "centro-esquerda", social democrata à sueca. Não
tendo mudado de posicionamento, nem de "causas", já fui vista como mulher
de direita e como mulher de esquerda, dependendo das épocas e do ponto de
vista do observador... Há domínios em que acho que sou mais de esquerda
(direitos das mulheres, dos estrangeiros, da nacionalidade, abertura de
fronteiras, tolerância de costumes...) outros em que sou mais
"centrista", (mais "sociedade civil", mais iniciativa privada, mais
"personalismo cristão, Estado qb dentro do paradigma do "Welfare
State"...) Sou do PSD, mas pouco ortodoxa. Melhor dizendo, sou Sá
Carneirista e desde que Sá Carneiro morreu, sempre tive muitas
discordâncias com quase todas as lideranças. partidárias. É natural. Não
posso exigir um partido à minha medida...
Na Assembleia do Conselho da Europa
sentia-me bem no Grupo Liberal, onde, por definição e por praxis, cada
qual era livre para tomar as suas posições - e a minha sintonia com o
Presidente, Russel Johnston, foi uma constante. No PPE, aconteceu
precisamente o contrário, Tinha pouco a ver com eles, desde as questões
de refugiados à da guerra do Iraque... O presidente Van der Linden, que
depois foi presidente da Assembleia chegou a votar contra relatórios
meus. Eu paguei na mesma moeda.



Esquerda e direita nas políticas de emigração


A emigração, os direitos dos emigrantes, a especificidade da sua situação
face aos países a que se sentem ligados, acabaram por se tornar questões
que me interessam, muito para além daquilo que foi exigência de
exercício de cargos, no governo, no parlamento e no Conselho da Europa.
Mas este é um campo em que nem sempre é evidente o que é ser de esquerda
ou de direita. .. Por exemplo: no que respeita à aceitação de dupla
nacionalidade e a da dupla participação política, no país de origem e no
da residência.
Eu sempre fui a favor. O PSD, também, assim como o CDS, pelo menos no
tempo da AD, quando a Lei da nacionalidade foi alterada neste sentido.
O PS e o PCP eram contra. Contra a abertura de recenseamento por 60 dias
no estrangeiro (foi a única votação que a AD perdeu em S. Bento, no ano
de 1980...). Contra o direito de voto dos emigrantes na eleição para o
Presidente da República. Contra o aumento do número de deputados pela
emigração. Contra o voto dos portugueses residentes fora da UE para o
Parlamento Europeu...
Significa isto uma definitiva conotação direita e esquerda destas
posições? Com a esquerda a ser aberta ao exercício da cidadania no país
de residência, mas menos quando está em causa o país de origem (o que se
verificará, de algum modo, igualmente em termos europeus).
Ou outros factores, como um previsível desfavorecimento ou favorecimento
pelo voto dos expatriados, jogarão um papel, mais determinante do que a
pura ideologia? Factores culturais, também, isso é evidente no contexto
europeu - os países nórdicos, e sobretudo a Alemanha, são militantemente
contra a dupla cidadania...
Entretanto, em Portugal, as coisas mudaram muito: o Bloco de Esquerda
veio mostrar que, nesse quadrante, é possível defender, com igual
empenho, os direitos políticos dos imigrantes no país onde vivem e os dos
emigrantes na Constituição e nas leis do país de origem. E eis que eu me
vejo - evidentemente que só nesta área... - em perfeita consonância
com o BE!
Direitos iguais para os portugueses dos estrangeiros, mas também direitos
iguais para os estrangeiros em Portugal (aqui não me parece que o PSD me
acompanhe, incondicionalmente - e o PS também não...).
Defendo o direito de todos os que nascem no território à nacionalidade.
Automaticamente, sem quaisquer restrições. O direito de todos os
estrangeiros à habitação social, à educação e à participação cívica e
política (neste último caso, após um tempo de permanência, obviamente).
Defendo a proibição da pena acessória de expulsão do país para os
emigrantes que aqui vivem desde crianças e para os que aqui residem há
largos anos (acima de uma década, digamos)....
Defendo o direito à ligação cultural e afectiva ao país de origem.
Fico estarrecida com recentes declarações de Sarkozy ou David Cameron a
negá-lo, em nome de uma ideia de coesão nacional. Não é assim que a vão
conseguir, bem pelo contrário...


Evocação de alguns políticos

Há os que eram amigos muito antes de serem políticos. Os meus professores
de Coimbra, por exemplo - Mota Pinto, Barbosa de Melo, Figueiredo Dias,
Xavier de Basto... Em Coimbra o convívio era fácil à mesa dos cafés, nos
cinemas, num passeio pelas ruas da "baixa", nos "Gerais"...
Não sei se há uma predisposição "social-democrata" , para a
convivialidade com os mais novos. Pode até ser mera coincidência, mas
todos os que considerava mais próximos e mais "descontraidos"
antes do 25 de Abril , aderiram, logo depois, ao PPD!
Nesse tempo, como lhe disse, tinha acabado de regressar a Coimbra, para
dar aulas na Universidade. Foi na hora certa! As conversas tinham agora
novos tópicos,que nasciam a velocidade vertiginosa. O país fervilhava,
mais em Lisboa do que em Coimbra, claro, e eles passavam muito tempo por
lá, estavam por dentro do que acontecia na governação
- ou desgovernação - e no partido. Quantas histórias, algumas bem
divertidas, sobretudo de personagens como Vasco Gonçalves, Pinheiro de
Azevedo - sem dúvida os mais extravagantes, que nunca cheguei a ver de
perto, mas que imaginava, através desses relatos saborosos, para além do
que a todo o país abundantemente mostrava a TV...
De Sá Carneiro, os meus amigos de Coimbra não eram incondicionais
admiradores como eu... Sobre isso, não há sombra de dúvida. Todos, uns
mais cedo outros mais tarde, deixaram o partido, do lado de lá do
sacarneirismo - embora, depois tenham regressado (com a excepção do Prof
Figueiredo Dias ). Eu não tinha ficha no PPD, nem queria ter, mas era
simpatizante assumida e tive muita pena daqueles irremediáveis
dissensos...
Não escondia o meu Sácarneirismo . o grande "ismo" político da minha
vida. Mas não conhecia Sá Carneiro. (Se calhar, isso era um avantagem,
pensava depois de ouvir a argumentação de tão ilustres oponentes, os
citados e muitos outros, de menor nomeada na altura - assistentes como
eu). Quando, em 1980, fui ao encontro de Sá Carneiro , já 1º Ministro,
no gabinete da Gomes Teixeira, o meu maior temor era o de não simpatizar
com ele, como pessoa, o que destruiria a atracção e o "mistério" do
"mito". Com o crónico pessimismo de que sofro nestas matérias, achava
mesmo que isso era o mais provável.
Enganei-me, fiquei encantada! Ele irradiava entusiamo, carisma (à sua
contida e aristocrática maneira). Lembro sempre a 1ª impressão, o olhar ,
o sorriso... Se me perguntarem como era o gabinete, a secretária, o seu
fato, a cor da gravata, não sei. Não fixei nada, para além da figura, da
expressão, da cortesia, das palavras, que ainda ouço, na memória...
Quando o cumprimentei como " Senhor 1º Ministro", disse-me de
imediato: "Não me chame 1ª Ministro" . Ao que respondi: "Desculpe, mas
vou sempre chamar-lhe 1º Ministro, porque esperei tempo demais para lhe
poder chamar assim!"
E assim sempre fiz.
Ainda hoje estranho ter andado tanto tempo na política nacional. Quase 3 décadas, entre 1978 e 2005, com um único hiato, durante os 5 meses do Executivo Pintasilgo, logo em 79. Fui ficando, dia após dia, ano após ano. Quando vai havendo um fio de meada, é difícil cortar o fio. Acho que as situações, os trabalhos, se foram encadeando e só isso explica uma longevidade política que, à partida não entrava nos planos (planos que foram sempre pouco detalhados – baseados na preferência genérica por qualquer tipo de investigação ou assessória técnico-jurídica – nada de competição feroz, de luta pela chefia...Não queria mandar em ninguém…
Sentia-me perfeitamente realizada quando terminava um artigo, uma recensão para a revista do Centro de Estudos, quando revia o articulado de um projecto de decreto-lei no gabinete do 1º andar da Praça de Londres, que partilhava com o Carlos Branco, ou quando, anos depois, despachava os processos que me cabia informar no Serviço do Provedor de Justiça, na 5 de Outubro, onde dividia o gabinete com a Branca Amaral. E depois, livre de toda e qualquer preocupação, ia à sessão das 18.00 a um dos cinemas que então proliferavam em Lisboa (quase todos os dias da semana!). Em casa, na Av, do Uruguai (a partir de 1970), tudo estava em ordem. Tinha "governanta" - uma velha amiga, que era mais do que família, tinha andado com a minha Mãe ao colo! Cozinhava muito bem, tomava todas as decisóes domésticas. Gostava muito de animais, tal como eu, e, por isso, aventurei-me a comprar uma cadelinha lindíssima, um dia, a um vendedor de jornais, (e, nesse dia, também de uma grande ninhada de cachorros...) em plena Praça dos Restauradores, junto ao Palácio Foz. Bem vistas as coisas, foi um dos tempos mais felizes da minha vida. Tinha acabado de me separar, judicialmente, do meu ex-marido, logo depois do regresso de Paris, onde passei dois anos (que já tinham sido de separação de facto...). Encarei, pois, muito bem o desenlace, sem fazer dramas. Não havia razão para tanto. Ele foi sempre um homem amável, gostava de cinema e de animais, como eu. Escrevia, desenhava e pintava talentosamente. Mas foi um estudante cabulão e boémio - logo por aí devia ter adivinhado que tinha uma filosofia de vida completamente diferente da minha. Em tempo de namoro, não se dá importância a coisas dessas... Enfim, perdi o marido, maas não o amigo.
Parentesis, para dizer que vivi em Paris entre Outubro de 68 e Julho de 70, com uma bolsa da Gulbenkian, e com o beneplácito do meu Centro de Estudos. Fiz uma pós graduação em sociologia. Um tempo que deixou saudades! Residia na Cidade Universitária, primeiro na Casa de Portugal, depois na da Argentina - integrei-me logo num grupo de gente interessante, que os outros chamavam "os católicos progressistas" (ainda que alguns de nós não fossem muito católicos e outros só fossem muito progressistas no sentido de serem democratas num país ainda em ditadura...) e, depois, no 2º ano foi como se tivesse emigrado para o sul da América do Sul. Fiquei pró -Argentina para o resto da vida...

Voltando à política: fui para o governo Mota Pinto, sem ter, como disse, prévia experiência de qualquer forma de “mando”… E, coisa determinante da disponibilidade, sabendo que seria por pouco tempo. Exactamente como quando fui para Coimbra, dar aulas. Levada pela curiosidade, para experimentar coisa nova e ver se, como os outros pareciam pensar, eu dava conta do recado. Procurando fazer o melhor que me fosse possível (isso foi sempre claro, porque num mundo de homens, uma feminista não deve falhar, sob pena de pôr em causa a progressão futura de outras mulheres, por aqueles caminhos...). Mas não queria subir muitos degraus na política, como não queria passar anos e anos fechada num gabinete a preparar uma infindável tese de doutoramento em Direito. (investigação, pareceres, sim, mas em dose curta…). Estas duas intromissões em universos alheios, que não sentia como verdadeiramente meus, estão, aliás, interligadas. Nunca teria aceite um cargo público, um palco de exposição tamanha, se não tivesse passado antes pelo palco um pouco mais resguardado da docência... O contacto com multidões de alunos funcionou como um estágio de formação para o contacto com outras multidões. Além disso, não posso esquecer que entrei na política pela mão dos professores com quem colaborava na universidade.
A relação com os alunos correu sempre muito bem - não me lembro de ter tido com eles o mais pequeno problema, nem na "Católica, onde de aulas práticas de sociologia como assistente de Álvaro Melo e Sousa, pouco depois do regresso de Paris. em 1970, nem na Faculdade de Direito de Coimbra (74-76), nem depois, nos anos 90, no mestrado de Relações Interculturais, onde regi um curso sobre Políticas e Estratégias para as Comunidades Portuguesas. Bem vistas as coisas, foi do que mais gostei de fazer.
Mas a política também teve poder de atracção, com o seu lado ético, a par do tal lado lúdico, de que falava Sá Carneiro. Boa parte do tempo, deu-me gozo tomar as decisões que pude tomar, (às vezes em guerra com os ministros ou o governo inteiro…), estabelecer pontes com pessoas, associações, governos estrangeiros. Estar em movimento constante, de continente em continente. Falar em nome de portugueses quase sempre os mais esquecidos, como são os emigrantes. Tentar mudar alguma coisa, ao nível a que estava - que nunca foi o mais alto nível. À vezes dizia para mim própria, só continuo por aqui, por falta de concorrência… As dificuldades são tantas, as batalhas contra o muro da indiferença geral, que tornam a pasta ingrata – e não dá para muita “progressão na carreira” porque há não visibilidade bastante…. Quem trabalha com a emigração acaba por ser tão marginalizado como os emigrantes…Quase todos estiveram pouco tempo e não quiseram repetir. Comigo foi o oposto: saí dos lugares políticos, mas não do “lugar afectivo” da emigração (parece exagero sentimental, mas é verdade…).
Do ponto de vista muito pessoal - que, evidentemente, não é o que mais interessa, mas como estou a falar de mim, porque não dizê-lo? - o trabalho na emigração deu-me ilimitadas oportunidades de me surpreender a mim mesma. Não imaginava que iria habituar-me a viver dias e noites inteiros dentro de aviões, como quem está em solo firme... A falar em público, horas a fio - certamente uma praga, para quem tinha de me ouvir... A fazer tantos amigos, que, noutras circunstâncias não encontraria... A Conhecer por dentro tantas comunidades do estrangeiro, que são mais portuguesas do que Portugal.
Incrível a sensação de atravessar continentes inteiros, parando aqui e ali, sempre em ambientes familiares, nossos, como se não tivesse saído das fronteiras! Depois, a gente habitua-se, mas nem por isso este mundo é menos estimulante, porque é cheio de dinâmica, ainda quando procura sobretudo "conservar" (costumes, tradições, músicas, sabores... uma graça!). Um mundo de feição muito masculino - nessa ânsia de preservar a essência das coisas, guardando todo o preconceito de “género”! As mulheres sempre nos bastidores, de onde começaram a sair, mas devagar. Surpresa das surpresas: o aceitaram-me tão bem. Ainda não terminara a 1ª visita às comunidades e já me apercebia de que o facto de ser mulher era uma vantagem. Disse-mo, no ano seguinte, um jornalista de San Diego, depois de uma entrevista, num descontraído almoço (eu a saborear uma posta de tubarão frito, porque não resisto a experimentar pratos “exóticos” e quase sempre gosto). Segundo ele, Secretários de Estado populares na Califórnia, só o João Lima e eu. Ficou um minuto silencioso, olhou para mim e continuou: "mas bem vistas as coisas, ele até tem mais valor. Para ele foi mais difícil, porque é homem e socialista"
Socialista é óbvio - na América desqualifica seriamente e desperta “fantasmas”, porque Mc Carthy deixou larga descendência espiritual. O "género" não pareceria tão óbvio. Mas concordo com ele. ( vox populi…) l Não é difícil a uma mulher exercer estas funções, difícil é chegar lá, através dos labirintos do poder, mesmo que apenas de um poder pequeno… Fiz o meu quinhão normal de inimigos, mas nunca senti que fosse em razão do sexo. Era antipatia pela pessoa, ou pela minha posição política – não necessariamente em quadrantes opostos, às vezes dentro de facções do próprio partido - ataques maldosos, pretextos obtusos para o “deita abaixo”, que começaram logo na fase seguinte à morte do Dr. Sá carneiro. Visto retrospectivamente não foi nada demais, era de esperar. A luta partidária é assim mesmo. Estava, internamente, na oposição (como anti-balsemista que era), e não tinha raízes no PSD. Oficialmente, tinha assinado a ficha, porque quis, ninguém me pressoinou, quando aceitei a pasta da emigração (ubi commoda, ibi incommoda, julguei eu…).Nada demais que os “balsemistas” achassem que era a hora de correr comigo, primeiro do governo, depois do parlamento. Do governo foi fácil, na 1ª remodelação, em Agosto de 1981. Da AR, em 1983, não foi, apesar de ainda terem sido eles a fazer as listas, num tempo em que Mota Pinto já era o futuro imediato. O meu caso discutiu-se durante horas, à mistura com uma interpretação dos regimentos. De um lado, Alberto João Jardim, a terçar armas por mim, do outro o inevitável, , Mota Amaral,e mais algumas figuras gradas do clã Balsemista. Curiosamente, assim divididi os dois presidentes das regiões! Vencedor absoluto: AJJ. Estou a vê-lo, na sua veste de advogado da “desprotegida”… Depois disso (essa era a hora H!), tornou-se muito mais complicado removerem-me… Saí, pelo meu pé, com o lugar disponível para a continuação no círculo de Fora da Europa, 24 anos depois!
A paciência, que foi preciso ter! E que até tive, alternando com muitas irrupções de irritação… No calor da batalha, nem sempre poupei as palavras, e quantas vezes terei exagerado… Sabe bem quem me viu em acção… Não foi um grande percurso ascensional – mas também, da minha parte, não fiz muito para que fosse. Comecei pelo Governo (alguns diriam “assentei praça em general”), daí passei ao Parlamento e, abandonada, aos 62 anos, a política no plano nacional, vi-me aliciada para a participação ao nível autárquico. Vereadora da Câmara de Espinho (aonde há décadas resido). Só me falta a experiência numa junta de Freguesia, para correr, no sentido inverso, é claro, todos os degraus de uma carreira política.
Na transição do Governo para a AR um candidato do PRD, um castiço, chamado Laceiras, durante um debate numa rádio meio pirata (belo tempo esse das rádios livres, em Paris, como em Portugal!) comentava: Não se percebe o que ela vem fazer aqui. Está no governo e quer concorrer para a AR. Quer passar de cavalo para burro! A “cabeça de lista” que era um modelo de comportamento ético, de contenção verbal, de boas maneiras a Teresa Santa Clara Gomes, ficou lívida, sem palavras!
Mas a verdade é que eu nunca vi as coisas “à Laceira”. Todos os cargos são equivalentes, dependendo do que lhes conseguimos dar, que é mais importante do que aquilo que nos dão, em título…

Sem comentários:

Enviar um comentário