domingo, 18 de março de 2018

MARIA BARROSO

A maior figura feminina do nosso século XX foi, a meu ver, Maria Barroso.
Tem o seu lugar na história da democracia e do feminismo em Portugal e tem, igualmente, um lugar muito especial no coração do Povo, conquistado, sobretudo, pela forma como as pessoas se sentiram, de facto, representadas por ela como a "primeira" das portuguesas não a" primeira dama"- que só as poderia representar através da legitimidade eletiva de outrém... - mas alguém que viram justamente, como personagem principal, como exemplo de inteligência, de cultura e de cidadania da mulher do seu tempo. Alguém que estava tão à vontade a receber ou a visitar os mais famosos e os mais poderosos, como a relacionar-se fraternalmente com o cidadão comum.
A imagem popular de Maria Barroso construiu-se a partir das origens de um admirável percurso de luta revolucionária, um percurso próprio, bem anterior ao encontro de destinos com Mário Soares, mas foi sedimentada durante "os anos de poder" ao lado do Primeiro Ministro e Presidente da República - anos em que conseguiu, como sempre conseguiu, ser ela mesma, numa afetiva cumplicidade com o marido, que não escondia as naturais diferenças, a sua absoluta singularidade e independência de espírito, numa vida que, por isso, nunca ficou na sombra de um grande homem...
Foi no momento em que se despedia da Drª Maria Barroso, surpreso e comovido, que o País redescobriu - ou descobriu - a inteira dimensão da sua personalidade, o pleno significado de uma longa e variada trajetória, que atravessou épocas e regimes, sempre norteada pela coerência de valores cívicos e humanistas. Uma infinidade de testemunhos, de comentários, de artigos, de reportagens, de entrevistas, acabou por dar uma ideia mais exata da excecionalidade da sua ação durante mais de sete décadas.
Foi a jovem que ousou querer ser atriz, integrou o elenco do Teatro Dona Maria II e fez do seu desempenho ou da declamação de poemas bem escolhidos uma arma de luta pela liberdade. - o que, em ditadura, lhe cortou uma brilhante carreira artística, e, depois, também, a segunda carreira profissional, a docência, Foi a resistente, que suportou a prisão e o exílio, primeiro, do pai, e, em seguida, do marido e soube ser mulher e mãe, corajosamente. Foi a militante socialista, única mulher a falar e a intervir, com a força mobilizadora da palavra nos prncipais palcos da política, antes e após o 25 de Abril, deputada eleita à Assembleia da República, parte ativa no movimento que levou Mário Soares a São Bento e a Belém.
Depois, a sua história retoma um curso a que impõe prioridades próprias, que não passam pela intervenção nas instituições do Estado nem pela atividade partidária .É a primeira mulher a presidir à Cruz Vermelha Portuguesa. Distingue-se à frente de uma exemplar instituição de ensino privado.Torna-se, a nível da sociedade civil, no domínio que escolhe para afirmar os valores humanistas, que gostamos de situar no território comum do socialismo democrático e do fraternalismo cristão, uma individualidade cada vez mais admirada e consensual. A conversão, emotiva e sincera, ao catolicismo, vem naturalmente, reforçar o seu sentido de missão, e acrescentar o número dos seus companheiros de projetos, que, para além de Portugal, encontrou, também internacionalmente, em Roma, na esfera da lusofonia (não esqueçamos, em especial, o seu papel no processo de pacificação em Moçambique), como no universo da Diáspora, que percorreu, presidindo, nas 7 partidas do mundo, aos "Encontros para a Cidadania - a igualdade entre mulheres e homens".(entre 2005 e 2009, uma parceria com o governo e várias ONG’S, para a prossecução das políticas de género e cidadania na emigração, a que, octogenária cheia de vigor e entusiasmo, deu a modernidade do seu pensamento e a força da sua palavra, deixando, como podemos testemunhar todos os que com ela participámos nessa saga, um horizonte de esperança num novo relacionamento, mais próximo, mais afetivo entre as pessoas, as gerações e o País.
Na visão de Maria Barroso, na sua luta pela dignidade de cada ser humano, não havia favoritos - :portugueses, africanos, timorenses, refugiados, imigrantes, velhos, jovens, mulheres, homens... Não foi por acaso que deu à sua Fundação, onde levou a cabo um trabalho notável e multifacetado, a felicíssima denominação de PRO DIGNITATE.
Nesta causa cabem todas as que atualmente constituem desafios maiores no novo milénio - os combates por um mundo sem guerras, sem violênciam,sem perseguições políticas e religiosas, sem a miséria provocada por chocantes desníveis de desenvolvimento, de acesso à educação. à livre a expressão da cidadania, ao diálogo sobre um futuro de tolerância e de paz, a partir de uma diversidade de heranças culturais, que se descobrem e aceitam mutuamente. Maria Barroso era um símbolo vivo destes combates. Era e continuará a ser!
O mais admirável foi, assim, um trabalho incessante, concreto, prático, em todas as áreas em que constantemente a solicitavam. Fez de cada dia, um dia de labor sem fim, a resolver problemas, a ajudar, com ação imediata, com uma palavra de encorajamento, um sorriso, com tempo para todos e para tudo...Os compromissos da sua agenda eram quase sempre excessivos, mas Maria Barroso tinha dificuldade em dizer "não" – parte da sua maneira nigualável de estar com ou outros, de corresponder a pedidos, a gestos de amizade. Estava sempre em movimento, plenamente envolvida no presente, com a sabedoria dos que não envelhecem intelectualmente´. Mantinha o interesse na evolução da sociedade, atenta e interveniente, capaz de agir sempre mais e melhor.
Fez tanto e fez tão bem tudo o que assumia como cumprimento da sua ética e do seu gosto de viver na família, na profissão, nas instituições públicas, no puro voluntariado, desde muito jovem até ao último dia que passou entre nós.!
Maria Barroso será lembrada como uma personalidade vanguardista, também, no novo século, como uma Mulher que nos deixou um legado de cidadania verdadeiramente intemporal.
Maria Manuela Aguiar
Agosto 2015-08-30

LEMBRANDO MÁRIO LAGES

Com que satisfação dou a minha pequena contribuição para este livro, que é um ponto de encontro das memórias de cada um de nós sobre histórias passadas com Mário Lages. Um livro que é, assim, uma "viagem de descoberta" de um ser humano admirável, dotado de muitos e variados talentos, alguns insuspeitados...Em cada depoimento esperamos surpresas, sempre boas, porque há na sua vida uma essencial coerência de ideias e de ações. Homem de causas e, igualmente, de imensa energia e generosidade concreta. Comunicativo, alegre e cheio de sentido de humor, embora muito discreto. Um militante do humanismo no quotidiano, um cristão verdadeiro, de quem, depois de partir do nosso convívio, poderemos, em definitivo, dizer que "passou por esta terra fazendo o bem" Conheci-o há quase 50 anos, na Casa de Portugal da Cidade Universitária de Paris. no início do ano académico, que se seguia a maio 68. Tornou-se, desde então, a figura central de um grupo de jovens portugueses, (estudantes, bolseiros, investigadores em diferentes áreas , quase todos a viverem uma primeira experiência fora do país), graças a um dom natural de convivialidade, ao seu gosto de partilha, que começava na partilha de informações utilíssimas - sobre como lidar com a burocracia local, onde obter livros com descontos para estudantes, onde fazer refeições económicas fora do perímetro da "Cité"... Mas também partilha de ideias, de preocupações sociais, de envolvência cívica. Os ventos políticos que agitavam a França e Portugal, embora de origem e direção diversa, convidavam igualmente à participação. Um duplo convite a que dissemos "sim". Resolvemos começar ali mesmo, na Casa de Portugal - com eleições, naturalmente! Uma das regras inovadoras que maio de 68 tinha imposto na "Cité", era o "droit d' affichage" - um passo largo no sentido da co-gestão.... No exercício desse direito, sem consulta ou pedido de autorização ao Diretor da Casa (que, nessa altura, pertencia à Fundação Gulbenkian), afixámos a respetiva convocatória, apresentámos listas, realizámos e vencemos o ato eleitoral. Digo "nós", porque estive entre os proponentes, juntamente com Mário Lajes e muitos dos que constituiriam o grupo de amigos, que se consolidou a partir daí, e ainda existe. Não me recordo já dos nomes que compunham essa lista, para além do presidente da assembleia de estudantes, o Luís Galvão Teles. O desenlace eleitoral não agradou ao Diretor que o contestou, de imediato, afixando um aviso em que acusava "uma trintena de residentes" de terem desencadeado aquele processo, à margem dos estatutos da instituição. Pas de "droit d' afichage"! O ato eleitoral foi repetido, nós afastámo-nos, de vez, desse campo de ensaio democrático incompleto, não guardando da contenda mágoas ou ressentimentos, mas apenas o rótulo de "católicos progressistas" e a vontade de assumir essa pertença. Passámos, sem mais, à preparação de combates futuros, pelo debate e reflexão no interior do grupo e, o que não foi menos importante, pelo ameno e constante convívio, em que se teceram laços de afecto indestrutíveis. Gostei de saber, agora, há pouco, por acaso, em conversa, que também Mário Lages falava sempre dessa estada na " Cité", como um tempo muito feliz. Qual de nós não diz o mesmo? Tudo, então, era pretexto para festas e celebrações - os aniversários, por exemplo. Uma trintena de aniversários! Nos tempos livres, visitávamos catedrais e museus, frequentávamos cinemas, livrarias, cafés, sobretudo no "Quartier Latin", e discorríamos sobre mil e um assuntos, infindavelmente! E, assim, nesta perfeita junção das vertentes de tertúlia e de reflexão cívica se construiu uma comunidade coesa, em terra estrangeira, como tantas outras em que os expatriados recriam um espaço nacional, sem rejeição do que o circunda - emigrantes "temporários", com uma situação bem diferente da maioria dos trabalhadores portugueses que, em massa, demandavam Paris, mas nem por isso inibidos de exprimir, do mesmo modo, a solidariedade entre pessoas na adaptação a um mundo novo. Compartilhávamos valores, saberes, lazer, como uma grande família no interior de um lugar pequeno - como numa aldeia portuguesa em que todos são parentes, para não dizer "como numa república de Coimbra", porque acho que nos faltava completamente o toque boémio. Com as nossas diferenças, mas sem conflitos, nem cisões, entre iguais, porque havia uma liderança espontânea, não imposta, não declarada e nem sequer assumida, e, nem por isso, menos decisiva. Responsável, em primeira linha, pela harmonia reinante foi a personalidade de Mário Lages. Disponibilidade constante, simpatia, e bom senso, conselho dado de um modo simples e direto, faziam dele um improvável, até porque involuntário, mas autêntico "primus inter pares". Era sensível aos problemas de cada um, com a perfeita inteligência das situações e das pessoas. Um Homem de Ciência, ou melhor, no plural, de ciências - teologia, sociologia, etnografia... - . já com um brilhante doutoramento em Roma e outro em curso, ali, em Paris. Um Homem voltado para as Artes, a escrita, a música (cantava, tocava órgão e outros instrumentos), a fotografia. Um amador de todas estas e de outras Artes, exímio em tudo o que empreendia, facilmente superando os profissionais. Foi ele quem, na altura, fotografou as telas de Nadir Afonso para uma sumptuosa edição das suas obras. Nadir, outro inesquecível personagem da Casa de Portugal, em fins da década da década mítica de sessenta Um génio da pintura, com um esfuziante sentido de humor, faceta que o terá aproximado de Mário Lages. Tenho pena de não ter gravado os divertidíssimos momentos que passei a ouvi-los... Com Nadir não tínhamos contacto diário, tal como com outros amigos que moravam fora da "Cité", mas que nos faziam visitas muito apreciadas e se integravam perfeitamente no nosso círculo de conversação, como o Padre Januário Torgal Ferreira (trazido pelo Mário) ou o Alfredo de Sousa, compadre da Eduarda Cruzeiro. Ainda sobre o tema fotografia, devo acrescentar que Mário Lages não se limitava a tirar retratos com uma máquina "topo de gama", pois se comprazia a completar o ciclo criativo, revelando as suas próprias fotos, num pequeno laboratório de uma das residências bem perto da nossa - não me lembro exatamente qual (a da Suiça, suponho). Sempre pronto a ensinar, convidou-nos para uma espécie de curso prático e logo viu crescer o número de discípulos aplicados, entre os quais me contava. Os meus álbuns ainda hoje exibem algumas dessas fotos, em muito bom estado de conservação, sinal da competência do mestre. Outro terreno em que se distinguiu: o automobilismo, condução, corridas! Ao volante transformava-se por completo, como pudemos testemunhar depois que comprou um Austin mini. O tranquilo e erudito professor que media as palavras e não era dado a qualquer tipo de radicalismo, abria aqui uma exceção e fazia autênticos ralis, por entre as filas de trânsito parisiense, onde vale (quase) tudo, inclusive ultrapassar pela esquerda e pela direita. Ninguém o conseguia seguir. Era normal tomar a dianteira e desaparecer lá à frente, num ápice. Por isso, nos passeios dominicais, em excursão de várias viaturas, traçávamos um plano prévio, com, paragens e destino final pré- definidos... E uma vez em que não o fizemos, em viagem para Portugal, no verão de 1969, perdemo-lo praticamente à saída da "Cité" , no "péripherique", para nunca mais o vermos. Ia eu no Volkswagen da Eduarda Cruzeiro, (por acaso, também excelente condutora, mas não tanto!) e ela, quase até chegar à fronteira portuguesa, insistia em almoçarmos em esplanadas junto à estrada, na esperança de o reencontrar, com o seu "equipa". Esperança vã, antes da invenção do telemóvel Aliás, as peripécias com o famoso "mini" começaram cedo, na "rodagem", completada numa ida e volta a Amsterdão (1000 km de boa estrada plana). Chegado à chamada Veneza do norte, com dois ou três colegas, decidiu estacionar junto ao primeiro canal que lhes oferecia uma vista pitoresca e aparentemente singular. Daí, seguiram todos a pé para o centro, onde jantaram. Pelo caminho, atravessaram pontes, trechos parecidos, mas isso não os preocupou. O problema surgiu, na hora do regresso, para localizar o "mini", numa densa rede de canais, excessivamente semelhantes na sua beleza pitoresca. Foram horas de deambulação... Depois, em Paris, não raramente, à noite, quando a visibilidade o permitia, passava sinais vermelhos - o que os franceses designam, aliás benignamente, por "bruler les rouges". Era rápido e ágil na argumentação e na condução automóvel, como no desporto, que praticávamos, quando as condições meteorológicas deixavam, nos campos de jogos situados convenientemente em frente à Casa de Portugal. Os relvados que a separam da vizinha Casa do Brasil eram um espaço tranquilo, onde descansávamos dos exercícios atléticos, ou, onde, em dias de sol, nos sentávamos à conversa, após tomarmos um cafezinho brasileiro. Mas café ótimo, delicioso era o que Mário nos brindava, muitas vezes. Café arménio, que ele sabia preparar a preceito, numa cafeteira própria, de metal, com uma base larga, remexendo o pó na água fervente. Como eu era a maior apreciadora dessa bebida exótica (em que o líquido se mistura com o pó, quando não o deixamos assentar), deu -me uma cafeteira igualzinha à sua, que eu conservo como inestimável lembrança de animadíssimas discussões "à volta de uma chávena de café" -muito embora não saiba usá-la. Aquele café oriental era uma raridade, sem dúvida, e, sobretudo, era mais uma evidência de como o nosso Amigo passava dos estudos arménios ao relacionamento fraterno com pessoas concretas e adotava, desenvolto, os seus costumes. Tinha colegas arménios, de quem falava com entusiasmo, do mesmo modo que nos descrevia avanços na investigação académica. A típica cafeteira não seria o único presente que dele recebi. Os outros foram livros, a que dei muito frequente utilização. " Le Nouveau Testament", traduzido para o francês, sob a direção da Escola Bíblica de Jerusalém (na sequência de muitas conversas sobre religião - no meu caso, então, realmente, em busca de respostas para uma crise de fé...), um álbum de arte africana, "um pocket book" de PG Wodehouse, por sinal um dos mais hilariantes da série de Blandings Castle (PG tornar-se-ia o meu autor favorito!) e, por fim, o seu ensaio etnológico sobre "Vida/Morte e Diafania do Mundo na História da Carochinha", que é absolutamente fascinante, tanto do ponto de vista científico como literário. Livros que abrem horizontes. Uma das grandes missões da sua vida... Tantas e tão boas recordações! Hoje também já o é a única que podia não ter sido: um 14 de julho, que comemorávamos pacificamente numa esplanada do "Quartier", De repente, sem razão aparente, eis que irrompe a polícia no alto da rua, que era íngreme e estreita, varrendo os turistas à bastonada! Logo se formou um tropel de criaturas vindas de os lados, ruela abaixo, em que ficámos irremediavelmente separados uns dos outros. A Eduarda e eu conseguimos correr no pelotão da frente e, ao virar de uma esquina, entrámos por um portão, que estava oportunamente aberto, e fomos recolhidas, com palavras amáveis dos donos da casa (pareciam-nos gente muito habituada a recolher passantes em fuga). Foi, pois, com eles, que, do alto de uma janela, assistimos à cena de inusitada violência de que foram vítimas alguns dos nossos queridos compatriotas, entre eles, o Mário. Um susto enorme, que se saldou, do mal, o menos, apenas nuns "galos" na cabeça de respeitáveis cidadãos. Foi o mais próximo que eu estive de uma das "bagarres" do pós Maio 68, numa França ainda não recomposta de múltiplas formas de sobressalto. Regressados a Portugal, tentámos lutar contra a dispersão na geografia lisboeta, continuámos a reunir, com frequência, por alguns anos. Contudo, no meu caso, (como no de outros), as ocupações, as ausências constantes de Lisboa, do país, levaram-me a perder a ligação assídua com "o meu grupo de Paris", durante mais de três décadas. A data da homenagem prestada a Mário Lages, aquando da sua jubilação, que foi s jeguida de um jantar de homenagem em que o reencontrei assim como à Luísa e ao António e conheci a Ana Costa Lopes (rimos tanto, que me parecia estar de volta a Paris, à "Cité", à nossa cidade dentro da cidade !). Recomecei a participar em convívios, já não de uma "trintena", mas de uma dezena de bons amigos. Reatámos o diálogo, à volta do Mário, como nos velhos tempos, como se não tivesse havido hiatos. Com o mesmo contentamento, a mesma espontaneidade. Acho que só não esculpimos um boneco de neve e não arremessamos bolas de neve uns aos outros, porque nos faltava a matéria prima... Tão iguais ao que fomos, apesar dos cabelos brancos. Os verdadeiros amigos têm, sempre, a idade com que os conhecemos. E, para nós, nunca morrem. Maria Manuela Aguiar
SINTO-ME BRASILEIRA 1 - Se o Presidente Marcelo pudesse ainda surpreender-me pela positiva, te-lo-ia conseguido ao afirmar, no Rio de Janeiro: "Sou Presidente de Portugal, mas sinto-me brasileiro". Não adivinhava esta completa identidade de sentimentos com o nosso presidente, no que ao Brasil respeita e foi, evidentemente, uma alegria constata-lo. Alegria e, igualmente, grande vontade de indagar o "porquê". Se um dia o reencontrar, não perderei a oportunidade de fazer a pergunta. Sabemos que lá, do outro lado do Atlântico, viveram, durante algum tempo, os seus Pais, vive, atualmente, o seu filho, nasceram os seus netos, que são luso-brasileiros. Visita-os com frequência, naturalmente, e "está por dentro" das realidades locais .Muitos serão levados a concluir que este quadro familiar é a causa da sua especial sensibilidade para a compreensão das afinidades entre os dois países, Possivelmente é, mas outras razões, não menos determinantes, poderão coexistir... Penso no meu próprio caso. Como quase toda a gente, no norte, e, nomeadamente, na região do Porto, tenho inúmeras ligações ao Brasil, por onde andaram antepassados diretos, tanto do lado materno como paterno. Contudo, os únicos protagonistas dessas aventuras com quem convivi foram a Avó materna, Maria Aguiar, e os irmãos mais velhos da minha mãe, alguns deles nascidos mesmo no centro histórico do Rio de Janeiro, na Rua 7 de Setembro. A Avó passou pouco mais de uma década nessa cidade, entre 1910 e 1922 - segundo nos contava, os anos mais felizes da sua vida com o marido tão prematuramente perdido, já depois do regresso definitivo a Gondomar. Dos trópicos só trouxe boas recordações, que partilhava connosco em narrativas nostálgicas, sublinhando sempre as belezas naturais do Rio, que descrevia como o paraíso terreal. Na sua "casa de brasileiro", no centro de Gondomar (sem palmeiras, mas com variadas árvores de frutos tropicais) reunia uma sempre crescente descendência em festas animadas, onde a música que se tocava e cantava era brasileira, a gastronomia, em larga medida também (até no Natal!) e o chá preferido era o mate. Nascida e criada nesta casa, com a sua assumida marca brasileira, olhava o Brasil com imensa simpatia, mas como uma realidade fascinante, exótica e, por isso mesmo, definitivamente alheia. 2 - Uma visão em tudo semelhante à que imperou no imaginário popular, através de séculos, e que levou, por sugestão das "estórias" que se ouviam e da convivência com as experiências (e as fortunas...) trazidas no vai-vem das migrações, ao êxodo de populações de regiões inteiras, sobretudo das terras de Entre o Douro e Minho, que o Estado, em vão, tentou travar. Era a diferença - de dimensão, de clima e paisagens, de oportunidades, de futuro - o que mais atraía, irresistivelmente, a nossa gente, intelectuais e analfabetos, pobres e ricos, homens e mulheres. Para os que são apaixonados pelas crónicas das "bandeiras" paulistas ou da expedição amazónica de Pedro Teixeira e da escrita de Guimarães Rosa ou Érico Veríssimo , como eu, ou para simples e ingénuas moças da aldeia, como aquela de que vou falar, a mensagem que fica do grande país da lusofonia tem, afinal, a mesma aura de grandiosidade e de encantamento, a mesma força afetiva... A Avó Maria relatava , com detalhes e muita graça, o episódio que sintetizo em duas palavras. Um verão do início dos anos 30, foi, como era habitual, com os sete filhos para a praia, durante o mês de agosto, e levou, para tomar conta dos meninos, uma jovem empregada, recém chegada do interior. A rapariga não cabia em si de contente, porque ver o mar era o seu maior sonho. Mas, no dia em que tinha, enfim, todo o Atlântico diante de si, era a viva imagem da tristeza e desapontamento. A Avó, espantada perguntou-lhe: "Então, não gostas, das ondas, deste mar tão bonito? E ela respondeu, simplesmente:"Gosto, mas não vejo o Brasil do outro lado". 3 - "O Brasil do outro lado do mar". Ela não estava destinada a contempla-lo, nunca. Eu, sim, tive essa sorte. E uma grande surpresa logo à chegada, no aeroporto do Galeão, que serve o Rio de Janeiro - nada de especial, de facto, é apenas um aeroporto, como tantos. Contudo, mal pus o pé no chão e respirei a primeira golfada do ar quente de um outono tropical (era abril de 1980), senti-me brasileira - antes mesmo de ser saudada, por uma numerosa comitiva de homens, quase todos falando com sotaque carioca (tal com cá, lá é enorme variedade de sotaques)... Foi, pois, mais a terra do que a língua comum, o que logo me "naturalizou"!... Ia em missão oficial, a primeira de muitas, a que obrigava o estar no Governo, à frente do pelouro da emigração. A sensação de estar em casa, de pertencer àquele País era tão forte, que só estranhava as distâncias. Tomar o avíão, em viagens que duravam 5 ou 6 horas, até Manaus ou Belém, idem para aterrar, depois, em Porto Alegre ou S Paulo causou-me, então, nesse périplo pioneiro uma espécie de vertigem de irrealidade. Depois, fui-me habituando. Não sei explicar o ocorrido, assim, tão de repente. E não sou caso único. Uma vez à conversa, por puro acaso, com uma antiga deputada e ilustre jurista, Margarida Salema - a irmã de Helena Roseta - descobri que lhe sucedeu precisamente o mesmo, sob o sol tropical, na mesmíssima terra escaldante do Galeão. Porém, nem todos são assim abençoados... Quantos portugueses habitam anos e anos, ou uma vida inteira no Brasil, gostam da gente, dos costumes, da sociedade, em que são tratados como iguais, e não se sentem tão brasileiros como eu, que sempre lá fui de passagem... Mistérios que o coração tece, com a história, conhecida ou desconhecida, das famílias e dos povos em singular mistura.

terça-feira, 13 de março de 2018

UM POEMA DE ADELAIDE VILELA

Dª. Maria Antónia Um beijo e um sorriso Como me traz feliz seu nome, Mas por causa de uma graça Linda, e igual à sua também, Meu coração navega num mar Onde o farol se apagou Deixando-me despida de amor Mas enlaçado a belas recordações. Dª. Maria Antónia, oh! que beleza! Vista de energia cada alvorada, Neste mundo que lhe dá guarida, Inspirando cada vez mais o século Que se aproxima confiante, Descalço de tristeza mas caloroso E cheio de alegria de viver! Sra. Dª. Maria Antónia que prazer Ao deixar-lhe um abraço sereno Enlaçado em amor, sorrisos E candura; mas que vontade De cantar a Deus Gratidão Por saber que está bem com A sua Manuela, filha amiga, Exemplar e companheira bela! Na partilha do abraço Aqui deixo mil afetos E o sonho de poder cantar: Parabéns à Dª. Maria Antónia No dia em o menino século chegar. Transformaremos todos os momentos Em pensamentos de amor só para si: Minha querida Dª. Maria Antónia! Um beijinho da Adelaide Antónia Ramos Vilela
DE MARIA RUTH DOS SANTOS A RUTH ESCOBAR Ruth Escobar foi, porventura, no Brasil, a mais destacada mulher portuguesa da sua geração. Nome célebre na cultura, na política - ativista de direitos humanos, voz indomável contra a ditadura, feminista tardia mas convicta, pioneira na vida política brasileira, primeira mulher eleita deputada, em dois sucessivos mandatos, à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, Maria Ruth dos Santos, na pré-história de Ruth Escobar, foi uma emigrante comum. Aos 16 anos acompanhou a mãe numa partida, de onde não haveria retorno. Invulgar era, sim, o facto de ser uma aventura no feminino, de uma mulher solteira e da sua filha única - a menina rebelde que estava destinada a convolar o modesto projeto de futuro, com o ímpeto da sua ambição e o fulgor da sua personalidade, num trajeto épico de permanentes rupturas e incríveis desafios, em rota da continuada transcendência do seu "eu", no cenário movente de novas fronteiras físicas e culturais. O seu saber é todo "de experiência feito" - as viagens pela geografia, pelas alteridades culturais, são fonte de conhecimentos avidamente absorvidos e inspiradores de ação. Ousada e vanguardista, fará dessa mundividência em progressão uma arma para mudar o mundo, e, com ela,om ela haveria de revolucionar a realidade e o devir do teatro brasileiro. Através de todas as metamorfoses, Maria Ruth será, porém, sempre a portuguesa do Porto, nascida em Campanhã, criada na rua do Bonjardim, no coração da cidade que levou consigo, em gratas recordações, A sua autobiografia, desde o primeiro parágrafo, é uma história portuense, começa num calcorrear de ruas e praças familiares, nas festas do São João, nas sessões de cinema do Rivoli, nas excursões de elétrico até à Foz, quando chegava o verão, ou até aos jardins do Palácio de Cristal, e, também, nos longos dias de aulas no Carolina Michaellis, onde se inicia na arte dramática, a representar, ao som dos primeiros aplausos, todos os diabos dos autos de Gil Vicente... Nas suas próprias palavras: "quando embarquei para o Brasil, no Serpa Pinto, com a minha mãe, levava também a certeza de um destino, pois soube que tudo o que sucedeu na minha vida, mesmo antes do meu nascimento, estava moldado por uma força universal, cósmica, transcendente". Na esteira dessa certeza, a sua vida avançará, vertiginosamente. No "Roosevelt" , mal acabara de chagar, a sua graça em palco, encarnando, de novo, os diabos de Gil Vicente logo, granjeia-lhe o prémio oficial de "rainha" do colégio. Passa os exames, sem dificuldade. Todavia, logo troca os estudos pelo trabalho, a vender a "Revista das Indústrias". É um sucesso, já ganha mais do que a mãe, mas depressa dá um passo em frente, angariando apoios na comunidade portuguesa para criar e vender a sua própria revista, "Ala Arriba". Tem apenas 18 anos. Na sua nova veste, apercebe-se das ameaças que se desenham sobre a presença portuguesa na Índia e propõe-se defende-la à volta do planeta. Corria o ano de 1954 e, uma vez mais, com o patrocínio dos compatriotas de S Paulo, a improvisada jornalista, ainda "teenager", vai ombrear com os melhores correspondentes de imprensa internacional, entrevistando uma longa lista de celebridades, como Foster Dulles e Christian Pinaud, Bulganin e Krushev, o Principe Norodan Sihanouk, o presidente das Filipinas, os primeiros-ministros da Turquia e da Tailândia, o mítico Nasser (a única a ter esse privilégio, no meio de quinhentos jornalistas presentes no Cairo!), e entre compatriotas, os governadores de Macau e da Índia e até Salazar. Os seus exclusivos são disputados por revistas como a "Life" e por prestigiados jornais de S, Paulo e Lisboa, É um primeiro vislumbre de fama.... Convidada a integrar a comitiva do Presidente Craveiro Lopes na visita oficial a Moçambique, acaba expulsa por ato considerado subversivo - a revelação perante os "media" nacionais e internacionais de um trágico acidente aéreo, que a propaganda do regime queria ocultar. Será o primeiro de muitos gritos de liberdade, pelos quais não hesitará nunca em arriscar tudo, Na casa dos seus vinte anos, lança-se como empresária e produtora teatral, depois como atriz. Constrói um teatro com o seu nome, na cidade de São Paulo, e e faz história com a fundação, em 1963, do Teatro Nacional Popular, que leva ao povo das periferias do Estado, a muitos milhares de pessoas, espetáculos de qualidade (Martins Pera, Suassuna...) no palco improvisado num velho autocarro. Não é menos arrebatadora é a sua vida fora de cena, com quatro filhos de três casamentos (o primeiro anterior a esta década, o segundo com o poeta e dramaturgo Carlos Escobar, o terceiro com o arquiteto Wladimir Cardoso, que viria a ser o cenógrafo das suas peças de enorme êxito artístico - como "Cemitério de automóveis" de Arrabal, com montagem do argentino Vitor Garcia, e encenação dela mesma: Uma dupla que, em 1969, com "O balcão" de Jean Genet, venceria todos os prémios, no Brasil. Os trinta anos de Ruth são passados no tempo conturbado de repressão e de medo em que se afunda o país, a partir de 1964. O seu teatro converte-se em palco de luta pela liberdade de expressão, Sucedem-se as ameaças, as pressões, os ataques de comandos para-militares, a violência sobre os próprios atores. Na sua autobiografia, Ruth Escobar diz-nos que perdeu a conta ao número de ameaças, de prisões e interrogatórios, aos quais ia respondendo sempre com desafios a rondar o excessivo, como reconhecerá, retrospetivamente. De uma das vezes, é Cacilda Becker, sua referência, mentora e grande amiga, que intervém junto do Prefeito de São Paulo para conseguir liberta- la: "Prefeito, temos de tirar a Ruth, aquela portuguesa vai pôr fogo no quartel, é um serviço que o Senhor vai prestar às Forças Armadas, tire-a de lá quanto antes". E ele tirou... É nesta sua década que traz a Portugal alguns dos maiores sucessos, "Missa leiga" e "Cemitério de automóveis" , logo proibida em Lisboa, mas não em Cascais, onde, pelo visto, a censura supunha ser inacessível a camadas populares... É então que conhece as três Marias, lê as " Novas cartas portuguesas", Simone de Beauvoir, e se converte ao feminismo, uma metamorfose que contribuirá para a conduzir aos hemiciclos da intervenção parlamentar, onde volta a fazer história como pioneira, no universo masculino e fechado da política brasileira (ao abrigo do Tratado de Igualdade de Direitos entre Portugueses e Brasileiros, visto que nunca teve outra nacionalidade além da portuguesa). Como feminista, torna-se a primeira Presidente do "Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres" e, durante muitos anos, a Representante do Brasil nas Nações Unidas para o acompanhamento da Convenção contra a discriminação das Mulheres. Entretanto, tinha casado, uma última vez, e tido o seu quinto filho. Em 1974, organizara o primeiro Festival Internacional de Teatro. Ela que, aos 19 anos, fora de São Paulo explorar as riquezas culturais do mundo, traz, então, a São Paulo, o mundo das artes cénicas - o que de melhor se apresentava nas grandes capitais. Em 1976, igual iniciativa teria a mesma força renovadora no panorama da arte dramática brasileira. Depois de quase uma década nos palcos políticos de um Brasil democrático, regressa, nos anos noventa, aos palcos do teatro, como atriz e como empresária e como promotora de festivais, em novos moldes, porventura menos elitistas, mas mais abrangentes de outras artes , Conheci-a em 82, num jantar na residência do nosso Cônsul- Geral de São Paulo, em que estávamos lado a lado e, como toda a gente, não fiquei imune ao seu carisma, que era feito de espontaneidade e de extroversão, de inteligência e de humor, de uma vivacidade incomparável. Do que falámos? Do Porto, é claro, da sua e da minha cidade, que nos uniu em afinidades imediatas. Era evidente que ela permanecera portuguesa e portuense, e sempre, assim, se sentira parte do Brasil. A sua herança teatral, enraizada no Gil Vicente da juventude, e no vanguardismo em que projetou o seu talento ao longo de décadas, mudou para sempre a face do moderno teatro brasileiro . A sua última produção - a que, por sorte, pude assistir - pôs em cena "Os Lusíadas" , bem no centro de São Paulo, e, depois, em Portugal. Em vida, Ruth recebeu as mais altas condecorações brasileiras. a Legião de Honra da França. E até também Portugal a distinguiu, com a Ordem do Infante Dom Henrique. Fica a faltar o Porto. Mas, talvez, agora que ela nos deixou, o Porto a queira reclamar, bem viva na sua memória e na toponímia da cidade