terça-feira, 25 de outubro de 2022

AS POLÍTICAS DE DESAPOIO AOS PENSIONISTAS 1 – Neste ensombrado mês de setembro de 2022 assistimos a um ataque, com precedentes na substância, mas sem precedente na forma e no estilo, aos rendimentos dos pensionistas. Estamos habituados à cíclica aparição do fantasma da sustentabilidade da segurança social, que serve de pretexto aos Governos para o corte de pensões, que é uma redistribuição de riqueza entre gerações, em prejuízo dos mais fracos – que são aqueles que, regra geral, não têm meios para recuperar do prejuízo. (não podem voltar ao mercado de trabalho, nem emigrar e não têm sindicato que os defenda). O que para além do mais, significa um esbulho, (com todas as letras, um roubo) a todos aqueles que tiveram uma carreira contributiva, com princípio, meio e fim. Para só falar de tempos recentes, do primeiro quartel do século XXI, podemos começar por José Sócrates, que cortou aos mais velhos a possibilidade de concorrer ao mercado de trabalho – penalizando-os com proibições radicais ou cortes de pensões. O que, a meu ver, é uma discriminação inconstitucional. Se o montante da pensão é a contrapartida de descontos feitos ao longo da vida profissional, com que direito pode o Estado impor novas condições para o pagamento a que se obrigou? O que diríamos de o mesmo fizesse a entidade que contratou um seguro privado? Mas, se assim é, porque poderá a autoridade pública permitir-se expedientes que seriam considerados aberrantes para os privados? Sócrates merece, pois, ser situado como o verdadeiro precursor de uma infamante “capitis diminutio” dos mais velhos na história da segurança social no nosso país. O seu sucessor, Passos Coelho ira transportar a novos patamares a discriminação ”idadista” (há que acrescentar o termo ao revisor de texto do computador, rejeitando, firmemente, as alternativas que nos aconselha desde “ida .dista”, que não sei o que seja, a “sadista”, que é, por sinal, bem adequada para adjetivar a intenção governamental). Todos estamos lembrados de como, em flagrante atentado à Constituição, (relevado pelo Tribunal Constitucional de então, com honestos votos contrários) lançou sobre esta categoria de cidadãos, o “imposto extraordinário de solidariedade”, levando como oferenda à toda poderosa “troika” uma grossa fatia das pensões. Não era, porém, uma exigência externa, dentro da austeridade global, mas uma opção muito portuguesa, muito PSD/CDS (ou Passos Coelho/ Paulo Portas). Aqui ao lado, na Espanha, um governo não menos conservados ou direitista (o de Rajoy), e também intervencionado em nome do desequilíbrio das contas públicas, fez questão de honra de salvaguardar e proteger, em especial, os reformados e até de aumentar pensões, nem que fosse simbolicamente, com um euro – das pensões mais baixas às mais altas! Confesso que, na altura, nada me chocou mais do que este contraste ibérico. Em termos de “idadismo”, esse tinha sido, até à data, o período mais negro – quem pode esquecer que um dirigente do PSD falou, sem vergonha e sem sanção, dos velhos como “a peste grisalha”. Sem castigo, sem pública reprovação no interior do partido - que não no eleitorado … De facto, o CDS deixou de ser, para sempre, o “partido dos reformados”, antes mesmo de desaparecer do Parlamento. E o PSD perdeu, (não sabemos ainda se para sempre), esse importante, cada vez mais importante num país envelhecido, esse segmento do universo eleitoral. E quedou-se, ano após ano, por votações muito abaixo da sua média. Terá agora, face ás inusitadas medidas do Governo PS, uma oportunidade de recuperar o “voto grisalho”? Muito vai depender do que Luís Montenegro pretende acordar com António Costa… 2 – A golpada discursiva em que germinou o anúncio do que pode vir a ser o mais brutal corte de pensões é coisa inédita, pelo menos, em democracia… No primeiro ato desta comédia trágica, surge o Primeiro Ministro a confirmar o que outras vozes do seu Governo já haviam aventado nos media: o maior aumento de pensões jamais concedido em Portugal. Meia pensão, oferecida de mão beijada, já em outubro e grandes aumentos a consagrar no orçamento para 2023 e nos seguintes. Eis o aliciante pacote para reformados, elevado à condição de equivalente a um outro pacote para famílias e para trabalhadores com rendimentos abaixo de certos limites. O ufanismo governamental era de tal ordem, o “slogan”, aparentemente traduzido em número de euros tão dilatado (se abstrairmos, claro, de uma tremenda inflação…), e toda a trama tão bem urdida que tinha tudo para dar certo, num país onde os grandes “media” costumam ser excelentes câmaras de eco. Bem podiam os especialistas questionar, esmiuçar, desmascarar a solução em todas as suas consequências futuras. Não tinham acesso ao mesmo vasto palco, não usavam a mesma linguagem primária, linear, a única que, na convicção do Governo, o cidadão comum entende. As probabilidades de Costa levar a melhor, com a costumeira benevolência presidencial eram colossais, mas para meu espanto (e, suponho, para espanto dos governantes também, aconteceu o inesperado. As oposições da extrema esquerda à extrema direita, por uma vez na vida, falaram em uníssono e explicaram a coisa tão bem que todos perceberam. As medidas para famílias e trabalhadores uma tentativa, ainda que insuficiente, de combater a inflação, de que os reformados são os únicos excluídos. Receberam uma mão cheia de nada (uma mera antecipação em outubro, de uma só vez, do que lhes era devido a partir de janeiro) e a certeza do decréscimo e erosão de pensões futuras. Fica como mancha indelével no currículo deste Governo a mais cínica e despudorada comunicação de um corte de pensões sofisticadamente disfarçado de benefício! 3 – Os reformados sabem doravante com quem não podem contar… (e será que podem contar com algum partido político da área do Poder?). O PS, com a sua larga maioria e os cofres cheios de impostos, agora por efeito do processo inflacionário ´não tem desculpa alguma, nem externa, nem interna para um tal dislate. Dirão alguns que já não há geringonça. Eu penso que sim, mas dentro do partido. Há um PS que escolhe sacrificar os reformados e poupar os lucros excessivos das grandes empresas. E há um outro que faria, com certeza o contrário…

terça-feira, 18 de outubro de 2022

LÁ LONGE, A NAÇÃO CONSTRUÍDA SEM ESTADO 1 - Ao longo das últimas quatro décadas, participei em inúmeros colóquios e debates sobre a emigração portuguesa mas, quando olho para trás, consigo apenas recordar alguns, e raras vezes na integralidade. O processo seletivo da memória permanece um mistério. Há certas frases, minhas ou dos interlocutores que resistem, intactas, talvez por serem mais insólitas ou curiosas. Como é óbvio, recordo, com mais precisão, nas suas traves mestras, o discurso inspirado na realidade das migrações e nas políticas então desenvolvidas. Aliás, não me faltam para o relembrar, recortes de imprensa, artigos e publicações de época. Foi o associativismo e o seu papel na construção das comunidades portuguesas o tema que abordei em Ovar, numa tarde de Agosto de 83 ou 84, num encontro não muito diferente de tantos outros, que o simples comentário de um jovem jornalista tornou inesquecível. Disse-me: "A Senhora Doutora fala como se não fosse do Governo". O tom da afirmação não pretendeu ser crítico, negativa ou positivamente, mas sim factual. Ou assim me pareceu. E a afirmação era pertinente, porque eu acabava de descrever o universo das comunidades portuguesas da Diáspora, que deve a sua existência às instituições criadas e mantidas pelos cidadãos, não ao Governo. Assim se formou o que alguns chamam o "outro Portugal", nascido e preservado fora do território - fantástico espaço cultural, hoje, enfim, visto como parte da Nação. A Nação, sociedade civil sem Estado, que aí não teve o menor mérito e nem sequer deu pela sua importância, até data bem recente. Vários ilustres pensadores, (como Vitorino Magalhães Godinho, o General Eanes ou Sá Carneiro, por exemplo), no período pós revolução, vieram relacionar tão justo como tardio reconhecimento à perda do Império, que deixou um vazio, logo preenchido pela "descoberta" da Diásspora. Afinal, na geografia do antigo Império, o que desapareceu, de vez, foi o domínio do Estado, o projeto estatal, não a presença perene corporizada pelos emigrantes nos territórios onde, ao longo de séculos, escolheram viver. 2 - O caso do Brasil é, sem dúvida, o exemplo mais completo e elucidativo, porque foi, antes e depois da independência, e até meados do século XX, o destino favorito da esmagadora maioria da nossa gente. Todos os que partíam não eram demais para a colonização de um domínio tão extenso, mas o êxodo constante foi quase sempre considerado excessivo para um país com a nossa diminuta dimensão populacional. O despovoamento do território pátrio assustava os poderes públicos, que tentaram restringir os caudais migratórios, por todos os meios, nomeadamente uma vasta e ineficaz legislação proibitiva. Os homens faziam da Lei letra morta, e iam clandestinamente, (se necessário). E nem a independência brasileira, em 1822, travou o imparável movimento, antes pelo contrário... Na verdade, a emigração portuguesa foi, e é, na essência, uma aventura individual (ou familiar), multiplicada por milhões, e este seu carater voluntário, espontâneo, que a marginalizou face ao Poder, explica o singular relacionamento humano que a uniu a outros povos, numa convivência de igual para igual As únicas políticas públicas neste sector são as tentativas (falhadas) de controlar as saídas, através de regulamentação quase sempre limitativa. As pessoas persistiam no abandono a terra de origem, por razões económicas, mas levavam o país no coração e souberam unir-se para fundar e dar continuidade a comunidades organizadas à imagem e semelhança daquelas que conheciam no país, suprindo as omissões governamentais, no campo social (com uma rede de sociedades mutualistas e beneficentes) e cultural (com os gabinetes de leitura, as agremiações literárias, as escolas, os grupos de folclore, de teatro, os centros de convívio, os clubes desportivos...).. Isso aconteceu por todo o lado, com destaque para o Brasil, onde. ainda hoje, em diversos Estados da República Federativa os hospitais das Beneficências lusas são dos melhores, os mais modernos (o do Recife continua a ser, suponho, o maior de toda a América Latina), o mesmo se podendo afirmar dos clubes recretivos e desportivos, dos lares de idosos, dos "Gabinetes", com grandiosas sedes e bibliotecas (só a do Rio de Janeiro possui mais de 300.000 volumes e muitas edições raras!...). E o fenómeno repetiu-se onde quer que os portugueses se radicaram, sempre com extraordinário pendor associativo, que não cessa de nos maravilhar e supreender. Mas ainda agora, conhecemos melhor as histórias de vida dos emigrantes do que a história de vida das instituições geradoras de autênticas comunidades, que permanecem de geração em geração. 3 - Em Ovar, como fiz em tantas outras cidades (e ainda faço, se tenho oportunidade...), limitei-me a dar testemunho daquele universo, com um "saber de experiência feito". Quando, em janeiro de 1980, iniciei o trabalho no setor da emigração, conhecia casos concretos, antigos (na minha própria família) e mais recentes (residi em Paris, no final dos anos 60...). Nos primeiros três meses procurei não só compulsar os "dossiers" recebidos do meu antecessor (Mário Neves, notável jornalista e diplomata), e apresentados pelos serviços, como preparar projetos legislativos inovadores, como a criação do Conselho das Comunidades, e a estudar a história das nossas migrações. Nada disso me preparou para o "descobrimento" da Nação extra-territorial, através de contactos diretos com as comunidades das Américas, África e Europa. As minhas visitas centravam-se nesse nosso novo mundo, e, por isso, nem chegava a sentir-me no estrangeiro - regressava de um Portugal ao outro, com a fantástica sensação de ter percorrido milhares de quilómetros de voo, sem ultapassar as fronteiras humanas e culturais do meu país! Aprendi a ver o fenómeno associativo com outros olhos - lá fora, primeiro, e, depois, cá dentro também. Ganhei a consciência da importância do associativismos de cada terra. Sei que, por exemplo, Espinho não seria o que é, nem poderia manter as suas tradições, , o seu espírito e identidade sem o esplêndido conjunto de instituições de solidariedade, cultura, desporto e recreio de que tanto pode orgulhar-se. Exatamente como acontece com a presença portuguesa a que um forte movimento associativo deu, e dá, visibilidade em todos os continentes do mundo, à margem de quaisquer apoios do Estado. Se os governantes, em outras áreas, reconhecem os erros do passado e apresentam às vítimas, pedidos de desculpa, porque não ensaia-lo também no campo da emigração, constatado o abandono a que os compatriotas foram votados lá fora, desde tempos remotos? E mais: porque não reconhecer, também, que, apesar dos progressos registados desde a década de setenta, estamos ainda longe de tratar, em condições de igualdade, não só os cidadãos, individualmente, como o movimento associativo no estrangeiro? Nunca hesitei em fazê-lo, por dever de justiça. E não só... Como pressentiu o perspicaz jornalista de Ovar, também por gosto, por afetiva adesão a uma sociedade sem Estado... utopia obviamente irrealizável dentro do território onde o Estado deve exercer a sua soberania.