quarta-feira, 8 de novembro de 2023

1920 NOTAS PARA A BREVE HISTÓRIA DE MINHA MÃE


1 - 1920 -  NA MARGEM NORTE DO DOURO, EM GONDOMAR

Maria Antónia, que viria a ser a Musa do  Poeta e a sua Mulher por mais de meio século, nasceu em Gondomar, a 28 de agosto de 1920, pouco depois de ele ter festejado os seus dois anos no lugar do Paço, em Avintes, do outro lado do rio.

A Vila Maria. (a casa grande que fez parte da sua vida, com estatuto de afetos e pertença, como se fosse um membro da família),  estava ainda em  construção. Era coisa imponente, cuja evolução a vila acompanhava de perto. Os mais afoitos entravam e vinham contar o que viam, causando especial espanto a enorme sala de banho do último andar ocupava a parte de trás da casa a norte, sul e poente..com sete janelas panorâmicas em todas as direções.



Os pais, Maria e António Aguiar, preparavam o regresso do Brasil. António, com quase 30 anos de estrangeiro, Maria com uma década, pontuada por constantes viagens a Portugal. Na última travessia transoceânica, estava grávida. Nesse estado tinha vindo três vezes a São Cosme, para que os filhos fossem gondomarenses de naturalidade. A menina que, invisível, trazia consigo na primeira classe de um paquete de luxo. O marido era extremamente seletivo, não arriscava cruza o Atlântico em qualquer navio, escolhia sempre  os melhores, mesmo que, para isso, tivesse de adiar a partida. Maria Antónia, nunca teria oportunidade de fazer o percurso de retorno, mas considerava-se tão brasileira, como os três irmãos dados à luz na radiosa cidade do Rio de Janeiro, no centro, na Rua 7 de Setembro, onde nasceu Carolina, a primeira filha, depois em Santa Teresa. O pai manteria o vai-vem solitário, por mais algum tempo, a fechar os negócios, onde se tinha feito um homem rico, ou, como se dizia, em fins do século XX, durante  o "cavaquismo", um empresário de sucesso", com joalharia na Rua do Ouvidor. e, nessa década de 20, com o projeto de integrar uma sociedade bancária, que a morte prematura iria inviabilizar. Fez a derradeira travessia no paquete Lipari, da companhia "Chargeurs Réunis",.em 17 de fevereiro de 1926. 
De Gondomar partira aos 16 anos, Era dos mais novos de 15 irmãos e aceitou o conselho do irmão João Pereira de Aguiar, um dos mais velhos, já  solidamente estabelecido no Rio. Anos depois, casaria com Judith, uma formosa brasileira de "boas famílias", que, a partir de 1910, seria a melhor amiga da cunhada Maria. Quem se une com brasileira, como João, não volta mais. Tendo procurado noiva portuguesa, António  para Gondomar voltou, já na casa dos quarenta, preparado para  recomeçar, tranquilamente, um percurso empresarial, investindo em Portugal.  
Embora descrevesse o Rio como um paraíso e os anos aí passados como os mais felizes da sua vida, Maria Aguiar sentia saudades dos pais e amigos. O exotismo tropical era interessante para  experimentar intensa, mas brevemente. Incomodava-o calor excessivo, durante dois a três meses no verão austral mudava-se para Teresópolis, com os meninos, a gozar a frescura serrana, e o marido deambulava, para lá e para cá, sempre que  os compromissos de negócios o chamavam.  Arrendava casa, na montanha, como na cidade, não investia em aquisições. Comprar propriedades é, para um português emigrado, regra geral, sinal que aponta à integração. Dos dois irmãos, só João mandou construir um belo palacete na Rua de Payssandú. A fotografia da elegante mansão foi por ele enviada à família, exatamente como muitas outras vezes lhes oferecia as suas próprias fotos.



Os filhos continuaram no mundo dos negócios, ou enveredaram pela política e pela diplomacia. Eles, e toda a descendência direta, são brasileiros, depois da morte da geração mais velha, sem ligação  com as origens lusas - excetuando na década de cinquenta, o curto período em que José Augusto, o quarto filho de António e Maria, e um dos naturais do Rio, aí viveu, antes de reemigrar, com passaporte brasileiro, para  Nova York. Retomou, então, por poucos anos. uma relação familiar com elegantes e simpáticas primas, hoje provavelmente já desaparecidas.
O casarão de António seria em Gondomar. A sua intenção era comprar um solar do século XVI e a quinta, onde há umas décadas se instalou o colégio dos Frades Franciscanos. A Mulher não quis. Para ela, a quinta era isolada e sombria. O seu sonho era uma vivenda ampla e moderna, no coração da vila, perto de todos e de tudo. E foi feita a sua vontade, não obstante ser de mais difícil concretização. O centro de São Cosme, atravessado por uma estrada principal, do Souto a Quintã, era ainda uma vila de caminhos estreitos, pinhais e campos a perder de vista, desde o Monte Crasto. e de  grandes casas de lavoura de pedra e cal, com amplos pátios, exemplos de uma arquitetura tradicional, sólida e harmoniosa. Os campos não estavam à venda. Pertenciam a lavradores abastados, com orgulho em proclamar que "não vendiam terras, compravam". Acabaram por vender ao amigo António, a preço alto e por especial favor, o espaço onde se implantou a única imponente mansão de "brasileiro" de São Cosme, com os seus jardins circundantes e, atrás, uma quinta agrícola, que, embora o fosse, nunca deu por esse nome. Ao gosto da época, chamou-se ao conjunto, simplesmente, "Villa Maria".



Situada na rua principal, a dois passos do Souto, preenchia os requisitos postos por uma jovem mãe de família grande e que crescia. A última filha, Maria Madalena, já nasceria aí, em 1926, apenas 3 mese antes da morte do pai. No ano de 1920, era ainda o sogro, o tabelião Joaquim Mendes Barboza, quem, por procuração, ultimava os contratos de aquisição da propriedade, que incorporava  várias parcelas, desenhadas em longas linhas retas, como as recentes fronteiras de África. 

2 - GONDOMAR, TERRA BENDITA
  Maria Antónia viveu os primeiros dias de vida na casa dos Avós, Joaquim, que o roteiro profissional trouxera de Paredes, e da Avó Carolina, gondomarense de várias gerações - como ela mesma  teria sempre orgulho em se afirmar  Do lado materno, como do paterno, as suas raízes profundas eram  dali, daquele lugar, cuja beleza os seus antepassado tinham celebrado, em prosa e verso. Seu tio José Barbosa Ramos, era o Autor da letra do hino de Gondomar, com  música composta por José Moura ( que viria a ser o seu  primeiro professor de piano).
"Gondomar, terra bendita
Rincão formoso e fecundo
O nosso Crasto frondoso
Não tem, não, rival no mundo.
Filigranas delicadas,
Verdes prados cinge a serra.
Cantam fontes e avezinhas
Eis os dons
Da nossa terra.
Gondomar é o nosso berço
Beija-o a brisa fagueira
Cantemos por Gondomar, 
É divisa da bandeira
Cantar, cantar,
A linda terra de Gondomar".

 Na geração seguinte, seu irmão Manuel glosou o tema, num convívio de amigos dos seus verdes anos, em pleno Monte Crasto. Um jornalista registou-o nas páginas do "Correio de Gondomar"  de 17-3-34 (e a Maria Antónia guardou o recorte nas suas gavetas, onde foi encontrado já depois de ter partido).
"E o Castro
Belo e frondoso
Erguendo-se majestoso
Na terra que nos foi mãe,
No sino da igreja além, 
Trindades oiço tocar
Como é linda a minha terra
Como é linda a verde serra
Como é lindo Gondomar!"

Os poemas têm assinatura, mas retratam o estado de alma de uma família inteira, a olhar quotidianamente, com orgulho incontido, as belezas naturais de São Cosme. O chamado progresso do cimento e do betão vedou aos vindouros essa comunhão com a gentileza de um  meio ambiente, hoje definitivamente  perdida (nem mesmo o Monte Crasto, último bastião, que resiste, é tão frondoso quanto era nessa idade de ouro.. ). Perdeu-se também, na populosa "cidade-dormitório do Porto", a dimensão de uma comunidade autêntica e  convivial, quando os dias corriam devagar e todos fruíam dos recantos rurais, todos se conheciam, nos clubes e tertúlias, na partilha de tradições, de um pesado sotaque nortenho e uma fala com as singularidades, em que o "povo-povo" facilmente superava as elites letradas. Nos apontamentos de Maria Antónia, excelente aluna a Geografia e História, desde sempre muito dada a recolhas cripto etnográficas, vocação em que não parece ter tido precedentes no círculo próximo, nem mestres no colégio (coisa inteiramente sua), anota lugares, que faziam os seus encantos (o Barroco, a represa  de Cascaneira, entre a Gândra e Ramalde, Bouça Cova, Azenha, Ermentão, Rio Carreiro, Fontela, Ponte Real, São Miguel, Pevidal, Santo André...), e, também, expressões populares, nomes e alcunhas, que lhe despertavam a curiosidade, como Pojeiras, Restivos, Cabaças, Jeque-Jeque,  Tarré, Fome Negra, Caga Troços, Carriças, Pilha Galinhas, Patacas, Pirabeca, Arregalados, Folhetas, Estabões, Bagulho, Parraxila, Chasco, Varetas, Melros, Pisco, Choco, Pimpão, Pinguinhas, Pombalinos, Toca- certo... Menos invulgar o nome de Isidro Izidoro, que, todavia, fez sensação, quando deixou dito que, nas exéquias, queria levar um cravo vermelho na lapela. Maria Antónia, criança pequena, conseguiu que a levassem a vê-lo, talvez uma benigna criada, deixando a mãe da menina na ignorância da escapadela.
A família materno, tal como a paterno se encontravam afortunadamente livres de qualquer alcunha, fosse ela trocista ou amável, embora as antepassadas da bisavó Carolina, que pareciam  algumas das formidáveis figuras femininas do universo ficcional de Agustina, ficassem conhecidas como "as Alexandras". Nome bonito,  adotado,  aliás, também no masculino, ainda hoje. em sextas ou sétimas gerações dos seus descendentes, que, contudo, não aparece nas pesquisas genealógicas do século XIX.  Há, sim, entre tias e primas, alguns outros de ressonância greco-latina, como Lavínia, Leocádia, Violante, Blandina ou germânica, como Guiomar...
No dicionário de palavras esquisitas, em voga nas camadas populares, apontou, dando sempre o sinónimo, palavras ou expressões como: vasculho (malandro), paspalhão (desajeitado), dar uma topada (tropeçar), encatrapiada (aleijada), pimpineira (aldrabice), pixote (pequenino). "embaçado" (envergonhado). ou ditos antigos, por exemplo:  "estás a olhar para ontem, que já lá vai", ou "estás a ver navios" (distração): "Deus nos dê  muito e nos abone com pouco": "estreminguei um pé" (torci) "vim da outra banda" (do outro lado) "estou triste como a noite"...
Tudo o que era, ou. pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe parecia dar a certeza de estar onde e com quem mais queria. Ligavam-na à longa herança de ancestrais, que certezas semelhantes tinham enraízado ali, mesmo quando, como aconteceu com seu pai, se aventuravam, por muitos anos para além das fronteiras do concelho, do país, ou do mar... Sempre sem perder a vontade de voltar à melhor de todas as vilas e cidades erguidas no planeta - a vila de Gondomar, dos Mendes Barboza, dos Ferreira Ramos e dos Pereira de Aguiar...

3 - OS MENDES BARBOZA E OS FERREIRA RAMOS
O único forasteiro foi esse avô de porte aristocrático, JOAQUIM MENDES BARBOZA, vindo de um norte não muito longínquo, natural de Santa Maria Madalena de Paredes, filho de António Mendes e de Joaquina Roza Coelho Barboza, Estudara no seminário, que depressa trocaria pelo ensino das Leis. Veio a ser o primeiro tabelião de Gondomar. A secretária onde trabalhava ainda ali existe, na casa de uma bisneta chamada Maria Madalena.




 Em 2 de maio de 1870, aos 30 anos, casou na capela de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em São Cosme, com CAROLINA FERREIRA RAMOS. A noiva. de 26 anos teve por madrinha a irmã Joanna, outra das lindas e voluntariosas filhas de Anna Pereira  (cujos pais, José Pereira e Thereza d' Almeida, eram ambos oriundos de São Cosme) e de Joaquim Ferreira Ramos, (filho de Francisco Ferreira Ramos e de Catharina Alves, de Valbom). De Francisco e de Catharina, não se sabe coisa alguma. 






Do filho, JOAQUIM FERREIRA RAMOS  supõe-se ter sido um abastado comerciante, ou não teria podido comprar, aquando da mudança de Valbom para São Cosme, a quinta da Bela Vista e a sua casa apalaçada. De ANNA PEREIRA há uma única fotografia, num traje de lavradeira rica, de chapéu preto e lenço de seda, ignorando- se o foi, de verdade - podia estar fantasiada para o entrudo, então muito festejado. O pormenor de estar de livro aberto na mão, apontará, porém, para a primeira hipótese, assim como a lenda das "Alexandras", ligada a heranças e ambição de terras, e a uma avó que queria vizinho rico para a filha, quase sequestrada em casa para não casar com rapaz mais pobre do que ela, até ao dia em que, ajudada pelos criados e pelo pároco,  escapou de manhã cedo para a Igreja, e casou, apressadamente, com a benção de Deus, mas não com a da mãe.  Esta suspeitando do que se passava ( a filha levara-lhe à cama, ela própria,  bandeja do pequeno almoço, mas não fora ouvida nem vista depois de não ter vindo recolher a bandeja), também correu para o templo, mas chegou tarde demais e, em incontrolada fúria, restou-lhe apedrejar o cortejo nupcial, já de saída, a atravessar o adro...






De Joaquim, seu marido, também há um só retrato, em idade já avançada. Nele vemos um senhor distinto, de olhos claros, e uma extraordinária parecença com o que terá sido o mais bonito e brilhante dos seus bisnetos, Manuel Joaquim, legatório de uns cristalinos olhos azuis e do seu nome próprio, que era, também o do avô minhoto, o eterno enamorado de Carolina. Este não teria, segundo o registo chegado até nós, de início, sido muito bem recebido na Quinta da Bela Vista  - nada de apedrejamentos, é certo, no mais brando meio de uma burguesia comercial. Educação, boas maneiras e  ascendência ainda não contavam tanto, todavia, como haveres materiais, em que o jovem notário, era parco... Belo rapaz, letrado, amável, romântico, encantou Carolina, que não desistiu da sua escolha, na melhor tradição das "Alexandras". Rapidamente, porém, o adorariam, só faltando pô-lo altar, eles e toda a sociedade gondomarense. Tanto as  memórias das filhas, como a monografia do Concelho de Gondomar, escrita pelo seu amigo Camilo de Oliveira, o apresentam do mesmo modo, que se pode sintetizar numa palavra: um senhor exemplar! O cidadão, o profissional, o homem de família. Foi longo e feliz o casamento  com Carolina, elegante jovem e, depois de oito vezes grávida ( a última das quais já quase na casa dos 50 para dar à luz Maria da Conceição)  imponente matriarca e, em caráter e temperamento, comedida das temíveis antepassadas. Há um pequeno episódio (e são poucos e fragmentados os diálogos concretos que a narrativa oral trouxe até nós), pequeno mas revelador de uma permanente vontade  e facilidade de concórdia na vida do casal: num tempo em que os apelidos dados aos recém nascidos eram de livre escolha de quem os registava, os quatro primeiros rapazes nascidos daquela união perfeita receberam apenas os do pai (Mendes Barboza). Só quando estava à espera do quinto, Carolina se deu conta disso e comentou: "Os meus filhos não têm o meu nome!". Não ocorrera ao marido, que sempre a tratava carinhosamente por "mamã", ter isso especial relevância para ela.. Daí em diante, não só reparou a omissão, como tratou de colocar  o apelido da mulher no último lugar - no nosso sistema português, o comummente dominante. Os quatro filhos mais novos são, portanto, Barboza Ramos...
Homem realizado na vila onde se converteu em figura central, discreto e confiável, dando de si, nas muitas fotografias em que perdura, a imagem da pessoa serena e gentil, que sempre foi, para os mais poderosos como para os mais pobres e mais fracos.  








 "Um santo!", nas palavras da filha Rozaura (Barboza Ramos). O seu nome, que se distingue pela raridade, foi  escolhido por ele. Quando a  menina nasceu. acabava de ler um romance de  amor entre uma heroína assim chamada e um ilustre fidalgo, com o longo título de "Retiro de Cuidados e Vida de Carlos, e Rozaura". 352  densas páginas de uma elaborada escrita antiga, dificultando  ás novas gerações a sua leitura. Começa auspiciosamente  numa madrugada ( "Rompia a aurora..." , continua na infindável narrativa de guerras, conflitos e  mil e um obstáculos à união dos jovens, só alcançada no final feliz, com a etnográfica descrição do cortejo nupcial em direção à Igreja: "levando a Marqueza Rozaura da mão e Dom Manrique a Carlos ao lado direitto e assistiao ao seu recebimento e quando voltaram por quantas ruas passarao choviam infinitas flores das janelas, com repetidos vivas. Cedo com sua espoza Rozaura para Rezzo virao. Laus Deo".
 Rozaura Barboza Ramos não teria tão vistoso casamento, nem iria para Rezzo,  ficar-se- ia  por Gondomar, também feliz, com um viúvo chamado Manuel Marques, tendo recebido o pesado livro de capas de couro como presente, que legaria a sua afilhada Maria Antónia, diligente guardadora de quaisquer preciosidades de valor afetivo..
Joaquim Mendes Barboza, o cultor de histórias de cavalaria, monárquico regenerador e dedicado homem de família, com as origens (Bitarães. Penafiel, Paredes), parece ele ter mantido escassos contactos. É provável que os pais tivessem já falecido, em 1970. Certo é que deles não há presença em crónicas de família, com a exceção de um sobrinho, que era Visconde de Paredes (ou um dos filhos do Visconde) e namorou a filha mais nova, Maria da Conceição. Vinha, garboso e galante, a cavalo, namoravam no mirante, mas ela, após alguma hesitação, preferiu o "brasileiro" António Carlos, que, segundo disse muitas vezes, a admirava com uns grandes e expressivos olhos verdes, como jamais vira outros.
Os demais antepassados de Maria Antónia têm, invariavelmente, raízes antigas e fundas em Gondomar, a (então) pacata vila que recebera, antes da fundação do reino de Portugal,  o nome de um rei godo. Do lado paterno, os Pereira e Aguiar da Gandra, do materno, os bisavós Anna e Joaquim, da Quinta da Bela Vista, (quinta na geração seguinte, vendida a estranhos, não se sabe ao certo quando, mas largas décadas antes da sua demolição, durante a presidência do Major Valentim Loureiro, que terá manobrado no sentido de a "desclassificar" pela retirada do selo protetor de património de interesse público)
Alguns dos numerosos irmãos de Carolina, seguiram as pisadas do pai, e, com a sua vocação empresarial, enriqueceram,  caso de  MANUEL GUEDES (Ferreira Ramos), que dá o nome à praça do Município em Gondomar, e ANTÓNIO FERREIRA RAMOS, emigrado para o Brasil, onde lançou com um Salgado Zenha (decerto antepassado do que ficou na história da nossa democracia) uma sociedade próspera, a "Ramos e Zenha". Desse Tio gostava muito a Maria da Conceição (que viria a ser Maria Aguiar). Com ele manteve correspondência assídua e trocou retratos, seguindo o seu percurso e o dos filhos, que ocupam várias páginas num gracioso álbum de capa de veludo arroxeado. Este António casou com Carolina Silveira Martins, (irmã do notável Governador do Rio Grande do Sul, que se notabilizou nos primeiros anos da República brasileira). e tornou-se um verdadeiro patriarca. A sua descendência é incontável e está hoje espalhada pelo sul do Brasil, de Bagé, onde morou, a São Paulo, e aos confins do Uruguai.





 Desses inúmeros primos que, separados pelo oceano, se desconhecem, só dois se encontrariam, um dia, em fins do século XX, em Brasília, os primos Maria Manuela Aguiar, Vice-Presidente da Assembleia da República Portuguesa, e Sá Azambuja, Senador da República Federativa do Brasil, ambos descendentes diretos, e no mesmo grau, de Anna e Joaquim..
Um outro ANTÓNIO FERREIRA RAMOS era filho de Manuel Guedes, e foi também muito próximo da prima direita Maria da Conceição. A vida levou-o para longe, embora um longe menos longínquo,  (Lisboa), depois do casamento com uma filha de Ramalho Ortigão, de quem descendem todos os Ortigão Ramos, Foi, entre outras coisas, proprietário do teatro que é hoje o São Luís e, tal como o pai, um benfeitor da terra mátria. Camilo de Oliveira, nas memórias de Gondomar, lembra que instituiu bolsas de estudos, em igual quantidade e montante para rapazes e raparigas. A instrução feminina foi uma das causas republicanas, defendida pelo movimento feminista, mas, em boa verdade,  também por muitos homens, companheiros de crenças revolucionárias, como este gondomarense, genro de Ramalho.
. Manuel Guedes ficou conhecido pelo republicanismo militante, e, embora não chegasse a ver o fim do regime monárquico, o seu nome não foi esquecida, tendo sido  dado, nos alvores do novo regime, à Praça onde tivera, antes de se fixar no Porto, uma loja comercial, no casarão, de azulejos, que ainda lá está, em frente à Câmara - o que, infelizmente, se não pode dizer da Vila Maria, ou da Quinta da Boavista, da qual resta um pequeno lago de pedra, transplantado para junto da capela do Monte Crasto, a crer numa história contada, no café do Castro, num dia de sol em que uma Joana do século XXI fez a comunhão solene, por um simpático velhinho anónimo, que se gabava de ter frequentado a propriedade.
Os filhos de Carolina e Joaquim afastaram-se do mundo de atividades empresariais, que tinha feito a fortuna de avós e parentes.Tal como o pai enveredaram, quase todos, por carreiras do funcionalismo público, os três mais velhos, Alberto, António e Alexandre e o mais novo, José Barbosa Ramos, advogado e deputado pelo Porto, que acabaria por ingressar na magistratura judicial.  Em vez de servir o Estado, AMÉRICO dedicou-se ao serviço de Deus, e foi um padre muito bondoso e querido dos paroquianos. Temperamentalmente, com certeza, o mais próximo do pai....



ALEXANDRE MENDES BARBOZA começou como Secretário da Administração e, mais tarde, seria Administrador do Concelho. Sempre envolvido na vida cultural de São Cosme, esteve entre os fundadores do Clube Gondomarense e pertenceu aos seus executivos, Era alto, bonito e elegante, apreciador de teatro, assíduo frequentador do Sá da Bandeira e das tertúlias da "Brasileira". E, ocasionalmente, poeta, também, embora dos seus versos, só uma quadra tenha sido conservada pela sobrinha Maria Antónia:

"Morre um afeto, outro nasce
Passa um desejo, outro vem
Depois de um sonho, outro sonho
De tantos que a vida tem"

Afetos femininos não lhe terão faltado na juventude, era, entre os seus elegantes irmãos, o mais bem parecido...







Casou com HERMÍNIA, uma senhora alegre e recatada, que aceitava, de bom grado, a sua constante intervenção cívica e cultural. Um só grande desgosto na vida a dois, a morte da única filha, ainda pequenina. Ambos gostavam muito de crianças  e dedicaram-se aos sobrinhos, filhos da irmã/cunhada Maria, que tão cedo enviuvou, sobretudo, à mais nova, Maria Madalena, com apenas 3 meses quando o pai morreu. Foi criada mais com eles do que com a própria mãe. O convívio era facilitado por morarem em frente à Vila Maria. O ambiente de concórdia e serenidade do seu lar, de tal modo moldou o espírito da pequena Madalena e o seu modo de estar na vida, que nem se diria parte do grupo dos buliçosos irmãos e irmãs Barbosa  Aguiar. Parecia realmente filha da Tia Hermínia, na sua postura sereníssima  e até na sua dedicação a todos os animais, em geral, e a gatinhos, em especial.
Deste tio falecido pouco depois de acabar a 2ª Grande Guerra, mal se lembram os sobrinhos netos, mas conhecem o insólito da sua conversão. ou reconversão, à fé católica, na hora de partir. Um cancro de pulmão. doença de fumadores inveterados, como ele, dava.lhe a certeza de que o fim estava próximo. Mandou chamar o pároco e com ele ficou longamente, em confissão e em conversa. Foi o Abade Andrade que ouviu as suas últimas palavras. Saiu do quarto, comovido, e disse à família ali reunida . "Acaba de morrer um santo". Os amigos republicanos, como foi, e laico, como fora até aos momentos derradeiros, diriam o mesmo, de outra forma. Talvez: "morreu um justo". Os sobrinhos Aguiar  choravam a partida do seu segundo pai
 Igualmente republicano, mas mais revolucionário no campo da luta, era António, o anarquista, que foi, várias vezes, preso no Aljube, e, durante o consulado de Sidónio, esteve degredado em Angola. O degredo foi, porém, não só uma pausa nas escaramuças políticas, como oportunidade de conhecer outras paisagens e costumes, com os quais se deu bem, e até de se lançar em negócios razoavelmente rentáveis. Que ramo de negócios? Lá não se sabe, cá, após o retorno, parece ter investido num "café - concerto", onde terá falhado a aventura empresarial.




Voltou a um emprego de funcionário... e continuou frequentador  do meio, onde recrutava as companheiras espanholas, a última das quais, Teresita, lhe sobreviveu.




. Também ALBERTO MENDES BARBOZA esteve preso no Aljube, ainda rapaz solteiro.
Casou com a simpática ZARITA,  (Maria do Rosário) foi um mais pacato pai de família - pai de um médico e sogro de um pintor, Mário Ferreira, casado com a sua linda e inteligente filha Maria Isabel (Mimi), grande amiga da prima Maria Aguiar, de quem era apenas alguns anos mais nova.



Mimi teve uma única filha, Maria Laura, que casaria com Luís Aragão,  um homem encantador, que foi despachante da Alfândega do Porto, quando esse cargo estava no seu  auge. Dois filhos, a lindíssima Anabela (Bebinha) e o Luís. Ficaram famosas as festas que davam em sua casa no Porto, e onde as primas Aguiar nunca faltavam .

JOSÉ BARBOSA RAMOS casou com senhora de ilustres famílias beirãs, CELESTINA MESQUITA DE ABREU, a tia Celestina, de perfil não muito diverso do da tia Hermínia, a cunhada minhota, também ela de boas famílias (aluna interna de colégios de freiras porque o pai enviuvara quando ela era menina). Tiveram dois filhos, José Joaquim (Zé Quim) e Celestina (Tininha)  Mesquita d' Abreu Barbosa.. Viviam na casa que fora dos antepassado Carolina e Joaquim, perto da Praça Manuel Guedes e foram sempre companheiros de brincadeira dos primos Barbosa Aguiar, A Tininha será a primeira mulher da família com curso universitário (Farmácia) e exerceu, como dirigente e proprietária de uma Farmácia em Valongo e o Zé Quim, licenciou-se em Histórico - Filosóficas e foi Bibliotecário da Universidade de Coimbra.


Na geração anterior, o pai distinguira-se, como político, à frente de um jornal de intervenção e como deputado pelo Porto, como advogado e, seguidamente, como Juiz. Fez, na Magistratura, um percurso fulgurante, e acabaria aposentado compulsivamente do Supremo Tribunal de Justiça, onde era o mais jovem Conselheiro de sempre.




 Américo era monárquico regenerador, como o pai e as irmãs. Rozaura, Glória e Maria da Conceição (de Carolina, a mãe, se ignoram, de facto, as convicções políticas, embora não custe admitir que fosse monárquica, como tendiam a ser as mulheres, mais do que os homens.... Ideologicamente divididos em campos opostos, mas afetivamente unidos, nunca deixaram que isso interferisse na boa relação quotidiana.. Nos anos 30, várias vezes António se refugiou, onde a polícia do regime nunca se lembraria de o procurar, na "Vila Maria" junto da irmã que dava o nome à Vila e era uma cidadã acima de toda a suspeita, catolicíssima e dirigente local da "Obra das Mães". Às criadas dizia:  "Daquele Senhor, que está lá em cima, não se fala a ninguém". E elas não falaram. Nas últimas vezes, esteve ele acompanhado da sua companheira espanhola, a Teresita, e de um cãozinho. Era viúvo já, mas da falecida mulher nada consta - à sua memória mais se  associa a ex-bailarina espanhola e o cão que, no seu funeral (civil, exatamente como quis) ficou sentado no chão, durante o velório, ao lado de um busto da República. Nenhuma das irmãs acompanhou o cortejo fúnebre até ao cemitério. Ficaram a chorar a sua morte, dentro de casa, de portas e janelas fechadas. Um enterro laico era, para aquela geração, uma morte eterna pior do que a morte terrena. Ainda não viam Deus como suficientemente justo para receber nos céus um bom ateu, como hoje  crescentemente se acredita, tanto ou mais do que num Deus concreto...
Das filhas de Carolina e Joaquim só GLÓRIA BARBOZA RAMOS  quis continuar estudos. Os rapazes seguiram, um para o seminário, todos os outros para os colégios, embora só um se formasse na Universidade de Coimbra. Para as meninas, estudar era facultativo - depois da escolaridade primária, podiam ter, em casa, aulas de línguas, de piano, sem grande rigor ou obrigação e  aprendiam as artes de bordar, a cozinhar... Glória terminou, com facilidade, o curso do Magistério na Escola Normal, tornando-se uma pioneira na família. Contudo, não chegou a exercer o cargo de professora - a tuberculose levou-a aos 21 anos. Do Porto teria trazido o diploma e a doença incurável. Escolheu ficar em casa, não ir para um sanatório de montanha, como quem vai para o exílio. Rozaura, a irmã mais velha, quis trata-la dedicadamente, como faria, anos depois, com o irmão, o bondosíssimo Padre Américo, que morreu com aura de santo entre os paroquianos.

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Glória, ao contrário de Rozaura, era uma rapariga moderna, de uma formosura exuberante. Não hesitava em passear, na modesta vila de São Cosme, os seus vestidos citadinos, levando com ela, lado a lado, igualmente alta e chique, Maria, e, atrás, consumida e vigilante, a mana mais baixinha e modesta, com nome de heroína de romance. Paravam os moços de Gondomar, espantados para as ver pisar terra batida como quem caminha em passadeira vermelha e atiravam às meninas piropos e galanteios, a, que, às vezes, horror dos horrores, elas ripostavam (ou melhor, no singular, ripostava Glória, ria Maria, discretamente, e quase chorava a mais conservadora, com o despropósito). Seria a jovem professora "feminista"? Dir-se.ia que sim, fica a dúvida -  as manas não desvendariam o mistério. apenas contaram que era excelente amazona e namorava um primo Lobão. São muitas fotografias que dela nos dão uma imagem de beleza e de  auto-confiança, a coincidir com a opinião transmitida pelas irmãs. Um seu retrato de grandes dimensões, que dominava a galeria dos retratos de casa da irmã Maria, foi muitas vezes emprestado, tal como o piano, para as récitas e peças de teatro da Ala Nuno Álvares, como decoração em palco de salas de visitas, dominadas por imponentes quadros de parede...(incrível a cedência do pesadíssimo piano alemão, "Riese", que fazia o curto trajeto para o Souto em carro de bois, segundo os relatos de Maria Antónia, ela própria executante musical e atriz de várias comédias, que divertiam a boa sociedade Sãocosmense,...).




ROZAURA BARBOZA RAMOS, a incansável enfermeira dos dois irmãos, não tinha podido evitar o contágio...  Mas não ficaria a ser tratada em casa -  decisão sua (para poupar mais contágio no círculo próximo) ou dos próprios pais, cada vez mais crentes na solução hospitalar? Resta a dúvida. Partiu para o sanatório do Caramulo, onde ficou por muitos meses. Aí viveria a grande paixão da sua vida, com um médico que lhe retribuiía o sentimento, o Dr Manso, também ele já atingido pela tuberculose. A doença os reuniu e os acabaria por separar, porque ela curou-se e ele não, pelo menos, nessa fase. Guardou numa caixinha, atadas com uma fita de seda  as cartas que ele lhe escreveu, deixando dito que queria que fossem enterradas com ela, E assim seguiram com ela, para o seu jazigo em São Cosme, sem que ninguém ousasse abri-las e lê-las.




 A Gondomar regressou, pois, saudável, tendo resistido a dietas espantosas, (que incluíam uma dúzia de ovos por dia) e fazendo muitas amigas, sobretudo do sul do país, meninas da alta burguesia, igualmente arrancadas à morte certa  pela competência do Dr Manso. Com elas se correspondia e, por várias vezes, visitou as melhores amigas nas suas quintas dos arredores de Lisboa. Estava num solar de Benfica, em 1908, aquando do regicídio, e  pode assistir, com a sua anfitriã, às exéquias do Rei D Carlos e do Principe Real Luís Filipe, muito formoso e loiro no caixão, com os vestígios mal disfarçados da bala que lhe atravessou a têmpora. Se monárquica já era, mais intransigente se sentiu. Contudo, o Dr Manso era republicano, amigo de Afonso Costa, que, um dia, lhe apresentara durante um passeio na serra, em que aquele político acompanhou um seleto grupo de convidados, doentes já no bom caminho da cura. Desses passeios frequentes há imagens muito bonitas, junto a quedas de águas. Algumas até foram encaixilhadas e chegaram já bastante sumidas ao presente. Em nenhuma delas, porém, se vê o famoso Afonso. Certo é que a jovem de Gondomar terá tido uma intensa vida social, entre os tempos de repouso forçado, naquela verdadeira "Suiça portuguesa", de que falava com entusiasmo.         . 
 Sobreviveu, rija e saudável, até ao ano em que completaria o seu centenário (1979), Casou, anos mais tarde, já com mais de 30 anos, com um viúvo, funcionário da Contrastaria, MANUEL MARQUES, homem muito amável, com quem foi feliz.










 Do primeiro casamento tinha ele um filho já adulto, Armando, de quem todos gostava, mas com quem conviviam pouco. Morava, talvez em Braga, de onde, tal como o pai, era natural. De Braga, ficou famosa nos Natais de Gondomar uma receita regional de "formigos" ou "mexidos", doce delicioso, à base de pão, mel, pinhões e passas, que ninguém fazia tão bem como a Tia Rozaura  - artista incomparável, tanto na cozinha, como nas rendas e bordados, que saiam das sua mãos. Aos 95 anos, terminou uma enorme colcha em crochet, da mais alta complexidade técnica! - e mais teria empreendido, se a família não a dissuadisse, porque exagerava no andamento do trabalho, com receio de morrer e deixar a obra inacabada...
Foi uma velhinha encantadora, com uns olhos vivos e perspicazes, gostava de falar por aforismos e provérbios, e até de usar um "calão" ligeiro, (que escandalizava a irmã e afilhada Maria, incapaz de dizer uma palavra imprópria) . Eram radicalmente diferentes, Maria sempre pronta a sair, a passear, a conviver, a liderar iniciativas e a influenciar o seu círculo social e familiar, enquanto Rozaura de bom grado se quedava em casa, tricotando, conversando e lendo (nomeadamente jornais, analisados de ponta a ponta, vendo televisão, sempre recatada e serena,  embora pudesse fazer comentários certeiros e  ácidos, a quem, perante ela, caía no ridículo ou a quem conseguia  desmascarar jogadas de intriga ou oportunismo,  
Numa pessoa tão prudente, hábil e sábia se estranha a decisão mais errada que tomou na vida e de que haveria de se arrepender: - um segundo casamento, já quase sexagenária,  com um "brasileiro" de torna-viagem. MANUEL LIMA. Revelou-se  homem de mau feitio, que a sua serenidade foi suportando, até que se viu viúva, de novo, e em pior situação financeira, depois da dispendiosa doença que levou o falecido. Com muito sentido prático,  hábitos antigos de poupança e o apoio de uma criada dedicadíssima e competente, Maria da Conceição Póvoas, atravessou aqueles tempos em que não existia segurança social, vendendo apenas uma pequena quinta  muito bonita, "a Passagem". Conservou tudo o resto, todas as "relíquias de família", de que era legatária -  móveis, loiças, jóias, bordados, linhos e "bibelots" - contando à afilhada Maria Antónia, a história longa de cada peça.  E com a afilhada, no Porto e, depois, em Espinho, passaria, os últimos trinta anos, sempre uma companhia agradável para várias gerações de sobrinhos, que escutavam as suas histórias. Consigo trouxe recordações, pertences do maior valor afetivo e uma criada fiel, já não a velha Maria, mas uma  sucessora, chamada Olívia Pessegueiro (mais outro traço distintivo entre irmãs,  saber ou não manter o pessoal doméstico, que na Casa da Pedreira ficava décadas e na Villa Maria mudava constantemente)
Três irmãs com sorte tão diferente...A que mais parecia querer fazer com o seu futuro, a que ousou estudar na grande cidade (ir para o Porto seria, então, quase como ir para o estrangeiro), havia de partir tão cedo de uma vida que parecia ter tudo para lhe dar - vemo-la, com os pais, como a menina dileta nos retratos, elegante nas festas e piqueniques no Castro, com alegres grupos de amigos e parentes, sempre com predominância da componente feminina... Sabemos que cavalgava o cavalo que o pai comprara não só por desporto e para recreio, mas para se deslocar em serviço  fora de São Cosme (gostava de animais, ficou conhecida  a sua ligação a um cão grande, chamado Diu, que o acompanhou na velhice e surge, tranquilo, em muitas fotos de família. E até que não queria dar aulas na escola.
A tragédia da sua morte foi muito sentida, Glória não era só a filha do prestigiado tabelião  e de gente com tradições na terra, brilhava com luz própria, pela cultura e pela beleza. Chegou às páginas dos jornais de então, guardados, sem indicação do título e ficou para sempre na memória da família.
"Gondomar, 25  -Falleceu hontem, na primavera da vida, quando tudo lhe sorria, com a idade de 21 anos, a Srª D. Glória Mendes Barbosa, gentil e adorada filha do digno tabelião destre concelho Sr Joaquim Mendes Barbosa.Era uma menina simpática, prendada e de finas qualidades de educação. Aos seus pais, que a adoravam, e aos irmãos Alexandre Mendes Barbosa, secretário da administração deste concelho e Américo Barbosa, abbade de Gondalães e a restante família enlutada os nosso profundos sentimentos. O seu enterro realiza-se amanhã, à 9.00, na Paroquial igreja de Gondomar".
Era a mais ousada das raparigas, e parece, ter sido, realmente, especial -  "adorada", como diz e repete o periodista.. Mais determinada, mais intelectual e mesmo mais bonita do que as suas bonitas irmãs. Mulher pensante e atuante, admirada e querida. O namorado dedicava-lhe inspirados poemas. Era o centro de um grupo alegre de jovens, de que os irmãos faziam parte. Um seleto círculo, ou, como diriam então, "a fina flor" da vila
 Para a irmã Rozaura, a mesma doença que a vitimou por pouco não lhe abriria as portas de um destino  bem mais glamoroso do que o que lhe veio a caber em sorte -, ao lado de um médico muitíssimo atraente, com fortuna e influência social, semelhantes às que MARIA DA CONCEIÇÃO iria encontrar no casamento com ANTÓNIO CARLOS PEREIRA DE AGUIAR, vivido um e outro lado do mar Atlântico
Não surpreende, assim, o facto de ser Rozaura, nos recortes de jornais, que se conservaram nos baús de recordações, a menos citada, não obstante o peso que manteve, no círculo familiar e a popularidade de que gozava entre irmãos, cunhados e sobrinhos, à medida que avançava nos anos, até ao ano do seu centenário.
E, na verdade, as senhoras, são mencionadas, quase sempre, apenas, como "mulheres dos seus maridos". ou "mães dos seus filhos", até nas colunas sociais. Assim surge a matriarca Carolina, a propósito de uma simples festa:
"Passou no último domingo o aniversário natalício da Srº D. Carolina Ramos Barbosa, esposa do estimado e bemquisto notário local, Sr Joaquim Mendes Barbosa. Por esse motivo vieram a esta vila seu filho, Sr Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e ilustre director e proprietário do semanário local "O Progresso de Gondomar" e o Sr Deolindo Oliveira, collaborador do mesmo periódico".
A formatura desse filho José merecera, aliás, pouco antes, destaque semelhante. 
"Estiveram domingo último nesta vila os nossos conterrâneos Camilo Martins de Oliveira, António Barbosa , Thomaz Pessoa e César de Moura, do Porto, que vieram assistir a um lauto jantar "offerecido, pelo novo bacharel dr José Barbosa Ramos, festejando a conclusão recente da sua formatura em direito.
Escusado será dizermos que o jantar decorreu no meio da mais franca e eloquente cordialidade e com immenso enthusiasmo. Ao jantar, além dos cavalheiros citados assistiu a família do novo bacharel, que partilhou a alegria da festa. Assistiu mais ao jantar o nosso patrício António Pereira de Aguiar, antigo companheiro da vida escolar do sr dr José ramos Barbosa".
A pequena notícia oferece-nos o colorido da celebração de um feito, então, relativamente raro, como era uma formatura coimbrã... De menor interesse etnográfico. mas muito mais interessante para a reconstituição do mosaico de relacionamentos familiares é o facto de salientar a presença de um ilustre "patrício" (forma, porventura, de designar, um expatriado no Brasil...) António Aguiar, que tinha sido companheiro de escola do novo jurista. Um dado novo, que, por um lado, nos mostra como, já então, o jovem emigrante no Rio era considerado figura grada da vila e nela mantinha, em férias certamente frequentes, uma rede de contactos com pessoas e instituições. E deixa-nos a dúvida: seria nesse jantar que primeiramente conversou com Maria, ou foi convidado, não como colega de José, dos bancos da escola, mas já como namorado da futura mulher?
 As famílias Barbosa Ramos e Aguiar não teriam sido íntimas, anteriormente, mas já houvera, pelo menos, um outro romance (que, porém, não terminou no altar), entre Alexandre e uma irmã de António Carlos, (Florinda?), muito engraçada e, segundo esse tio disse à Maria Antónia, quando jovem parecidíssima com ela. 
Difícil na única fotografia coletiva existente da família Pereira de Aguiar, um retrato de dezenas de figurantes, entre pais, filhos, noras e genros e criadas, reconhecê-la e avaliar a semelhança de traços. Nesse ano, ainda António Carlos não tinha partido para o Brasil, mas já estaria  a fazer as malas, o que situa a fotografia em 1895 ou 1896..
 Maria casaria com ele, já homem de fortuna e cultura acima da média, nas vésperas da revolução republicana,  
OS AGUIAR  -  SOB O SIGNO DA DIVERSIDADE
De diversidade se pode falar, a seu propósito, em diversos sentidos .Desde logo, num confronto com o outro lado da família. Enquanto nos Barboza e nos Ferreira Ramos há uma memória que os traz até nós, com a marca de uma acentuada homogeneidade  não só de classe social, de fortuna ou profissão (com predominância de funcionários públicos, professores, médicos, advogados, que se irá acentuando nas novas gerações)  mas também de intervenção cívica, para além das fissuras ideológicas, nos Aguiar encontramos uma espantosa diversidade. Os 15 filhos do casal Rosa Pereira e Manuel de Aguiar, que chegaram à idade adulta (não havendo qualquer indício de que outros terão desaparecido em crianças, como então era comum)  distinguiam-se mais pelas diferenças do que pelas parecenças e tiveram destinos também muito distintos... Maria, a mãe de Maria Antónia, dizia que nunca vira família que, nesse aspeto, se comparasse aquela.
A ascendência de Rosa Pereira  é a que está melhor estudada, ao longo de mais de 300 anos, graças a um ilustre primo Maia, professor catedrático e especialista de genealogia, descendente direto de um segundo casamento de Anna Pereira, a mãe de Rosa. São, surpreendentemente, 300 anos de enraizamento em Gondomar!  Mas deles só se conhecem o grau e os nomes,com  apelidos vários. Alguns desses antepassados ter-se-iam dedicado à arte que põe no mapa a vila de Gondomar - a ourivesaria. Numa imprecisa  crónica destaca-se a vaga memória de uma parente, que foi a primeira mulher de Camilo Castelo Branco, e de um Bispo, figura ainda mais nebulosa.
De Manuel Aguiar. a longa lista de avoengos está por investigar. O pai,  Miguel Aguiar e as gerações imediatamente anteriores eram, provavelmente, também, dali.






O casal vivia a sul de São Cosme, na Gândra, num casarão de pedra à face da estrada, com extenso jardim nas traseiras. Aí brincou essa prole numerosa, crianças engraçadas e alegres, com certeza, porque a vivacidade e a extroversão são as qualidades mais comuns aos Aguiar que se mantiveram no nosso círculo de convivência, levando a supor, que os demais fossem assim também. Um valor que parece ter resistido em família tão marcada pelas clivagens de fortuna e infortúnio é a solidariedade que levou uns a valerem, fraternalmente, aos outros. Conhecem-se vários exemplos: Augusto que, ao ficar, em partilhas, com a casa da Gândra, manteve sempre a irmã solteira Guiomar e a irmã  xx  casada com Camilo no confortável rés do chão da casa grande; João e António, que, no Rio, tentaram, em vão, dar modo de vida ao boémio Alberto (talvez Alberto, nem o nome é certo...); ou na geração seguinte, os  sete Aguiar Saraiva, que, tendo ficado órfãos e empobrecidos, quando uns eram muito jovens e os outros ainda crianças, se uniram, os mais velhos ajudando a bem educar os mais novos, recuperando, todos, o estatuto social e o nível de vida que fora o dos pais.
Não foi bem assim entre os mais numerosos PEREIRA DE AGUIAR  e, se é certo, que também eles procuraram ajudar-se mutuamente, não pode negar-se que a história da sua família se fez e transmitiu com acento tónico nos ricos, e dos fracos praticamente  não reza  
Dois dos mais velhos, João e Augusto, o mais mais novo, António Carlos, e uma só das raparigas, Amélia. terão tido o "toque de Midas" .E  Gracinda casou com homem rico. Dos outros, ficou pouco mais do que o nome...
JOÃO fez-se um homem alto e elegante, embora não propriamente bonito, mas já então se dizia que um homem pode prescindir desse atributo, que ele, certamente, compensava com a sociabilidade e simpatia. Não se sabe a idade com que partiu para o Brasil, se aí tinha parentes ou conterrâneos que o apoiassem, nem como afrontou os primeiros tempos, quase sempre os mais difíceis em qualquer trajetória de emigração
Ajudou-o, com certeza, numa carreira meteórica.  introduziu-o na sociedade que frequentava. Talvez o tenha também incentivado a valorizar-se pela cultura, pois ele mesmo prezava esse lado da vida, tanto ou mais os aspetos mais materiais, com que o comum do emigrantes dessa época se contentaria. Frequentava os meios portugueses, o seu nome consta, pelo menos, entre os associados do Real Gabinete de Leitura do Rio de Janeiro, então já uma instituição florescente e prestigiada, que acolhera a novel Academia Brasileira de Letras na sua sede, e possui, ainda hoje, a segunda maior biblioteca do Brasil, não só valiosa como uma das mais belas do mundo. Contudo, foi com uma brasileira que casou - Judith, jovem encantadora, da fina burguesia carioca, que viria a ser, a partir de 1910, a melhor amiga da cunhada Maria.



 Se tinham como aparenta nos retratos  mais ou menos a mesma idade, o matrimónio terá sido celebrado poucos anos antes da chegada de Maria, provavelmente, cerca de 1906/1908 , o que faria do marido um quarentão. Se algum dia ele alimentara um projeto de retorno às origens, o amor por uma brasileira radicou-o lá, definitivamente lá.
Os filhos de Judith e João aparecem em muitas fotografias com os tios e primos portugueses. Os homens enveredaram pelos negócios, pela política (houve entre eles, segundo as memórias de Maria Antónia vários senadores e deputados) e pela diplomacia - escolhas que se terão continuado na geração seguinte. Com Portugal não mantiveram ligações. Maria e Judith, mesmo depois de separadas pelo Atlântico, trocaram correspondência a vida inteira. O contacto perdeu-se nas novas gerações, só retomado no período breve em que José Augusto, um dos filhos brasileiros de Maria e António, morou no Rio de Janeiro. Tirou muitas fotos com elegantes primas Aguiar, todas lindas e com traços fisionómicos que por generalização (excessiva, evidentemente) se atribuem aos Aguiar - morenas cheias de graça, com olhos grandes e claros... 
AUGUSTO teria  quase a mesma idade de João e, tal como ele, altíssimo. Talvez o mais parecido com o pai, era um belo homem loiro, com olhos azuis.  sorriso fácil, invariavelmente bem disposto, Tal como João e António, era joalheiro, estabelecido na emblemática Rua das Flores. O negócio prosperou e ele podia e gostava de viver bem. Sempre  com os seus fatos impecáveis, rosas frescas na lapela, frequentava tertúlias e teatros portuenses. Melómano, quis que as filhas  do seu casamento com Leonor, Aurora, Lucinda  e Leonor estudassem nos melhores colégios e no Conservatório do Porto.. Uma quarta menina morreu tuberculosa. Maria Antónia não a conheceu, e nem do nome se lembrava, só  de ouvir dizer como era linda,
Leonor (Nucha) terminou brilhantemente o curso do Conservatório, mas não fez carreira artística, Casou cedo, passou a dar aulas particulares de piano e foi professora das primas, Maria Antónia, Glória (Lolita) e Madalena, todas bastantes mais novas. 
Do Tio Augusto Maria Antónia guardava as melhores recordações. Visitavam-no muitas vezes na casa da família, na Gandra, que ele tinha remodelado e mobilado luxuosamente. Do jardim há uma única fotografia em que vê a mãe Rosa Pereira com 3 pequenos netos não identificados e, em primeiro plano, o filho António à conversa com um irmão, (que não é Augusto) ou um amigo. O jardim teria sido, tal como a edificação antiga modificado ou o roseiral já existiria no tempo dos pais? A sua paixão por rosas pode ter sido herdade dos pais, pois era compartilhada pelo irmão António..


Segundo Maria Antónia na meia idade o Tio Augusto era gordo e verdadeiramente imponente, uma figura semelhante ao Rei Dom Carlos, mas com olhos espantosos e pestanas muito longas, que impressionavam as sobrinhas, crianças, no meio das quais era imensamente popular, por ser um tio muito e generoso.
Augusto Aguiar teve negócios com o Brasil, para onde exportava por intermédio dos irmãos emigrados, sem nunca se deixar atrair pela emigração..Já a filha Lucinda morou lá, mas por poucos anos, com o marido, Homero Figueiredo, que era farmacêutico e foi dono de uma Farmácia no Porto "naquela rua que vai da Sé para a Batalha, passando pelo antigo Governo Civil", nas palavras da Maria Antónia, que lá passava muitas tardes, feliz porque Lucinda, sua madrinha de batismo, lhe dava quantidades enormes dos bolos e doces. Às vezes, tinha a companhia de uma criança da mesma idade, Fernando Figueiredo, sobrinhos de Homero, que viria a ser seu médico e grande amigo.. 
 ALBERTO, outro dos irmãos mais velhos e doe emigrantes no Brasil, para onde possivelmente partiu na companhia de João, é figura enigmática. Não se ficou pela cidade, sumia no interior, com paradeiro incerto, ele próprio muito incerto. Casado ou não, teve vários filhos, um dos quais foi recolhido e educado pelos irmãos, frequentando bons colégios. Ele aparecia, de longe a longe, com um aspeto que desgostava a família e ficava por pouco tempo.. Perdida a paciência, João e António desistiram de tentar salvá-lo. A sua mais persistente protetora era a cunhada Maria. Por sua intercessão, António mandava-o comprar fatos apresentáveis e alojava-o em casa. Um dia, disse adeus e não voltou mais. O filho que cresceu no Rio,foi empregado de confiança do Tio António que, quando começou a preparar o regresso a Portugal, com ausências mais prolongadas o deixou a gerir os seus empreendimentos, com as mais inesperadas e dramáticas consequências.. Seria , então, um homem de vinte e muitos anos, quando a primogénita dos Barbosa Aguiar era criança de sete ou oito anos-
AMÉLIA é a única Aguiar da sua geração que permanece como figura lendária, pela força de caráter e por riqueza ganha em domínios onde nenhum antepassado se terá aventurado antes: estaleiros de barco, frota pesqueira...  E uma frase, a única que ficou para a posteridade, revela, em sínteses perfeita, um percurso feminino extraordinário "Deus castigou-me com saúde, filhos e dinheiro" Tudo teve em abundância. Supõe-se que nos favores divinos incluiria um marido discreto, cujo nome se conseguiu desvendar numa pequena notícia da imprensa - o Sr Oliveira Aguiar. Seria um primo ou parente ou uma coincidência num apelido não muito comum,. como Pereira ou Silva, mas nem por isso propriamente raro? Mais provável é o parentesco, mas não está provado.
Uma fotografia do espólio de Maria Aguiar, amarelada e riscada (estrago atribuído a um dos seus imparáveis meninos, que espalhavam o terror e destruição à sua volta...), tem no centro uma senhora alta e forte, bem vestida, de rosto determinado, rodeada de adolescentes e crianças, será a única imagem que possuímos (se for ela...). É a matriarca dos Aguiar de Matosinhos, com a sua aura de mando e prosperidade possivelmente merecida, mas com os quais se perderam laços de relacionamento familiar. A migração de Amélia para Matosinhos, embora interna e próxima, produziu, neste aspeto, efeitos não muito diferentes dos da à emigração brasileira de João e Alberto.
 ANTÓNIO CARLOS , o pai de Maria Antónia, era o mais novo, o benjamim. Nasceu em 11 de fevereiro de 1988. Muito bonito, baixinho, esperto e bom aluno. sempre cuidadoso  com a roupa e a apresentação, ambicioso, sem ser agressivo ou egocêntrico, era determinado, como provou ao emigrar com 16 anos, respondendo ao convite de João, um dos irmãos mais velhos, então já lançado em altos voos no Rio de Janeiro. Dos seus primeiros anos, não há episódios que tenha transmitido à descendência. Pela ligação que cultivou, muito para além do círculo familiar, com amigos de infância e com a terra, a sua atualidade e progresso, ou falta dele, é a imagem daquele género de emigrante, que, como dizia Jaime Cortesão, leva a Pátria consigo. Cruzava, com regularidade, o Atlântico, para vir passar férias em São Cosme. É por recortes de jornal, não por relatos orais, que tomámos conhecimento de que não faltava na época da caça - desporto que, aparentemente, o entusiasmava mais em Gondomar do que no Rio, certamente porque ali tinha os melhores companheiros para caçadas e convívios. Muito  provavelmente, misturava prazer e trabalho, pois manteriam negócios de exportação/importação com o irmão Augusto, joalheiro, no Porto, como ele r João no Rio de Janeiro 
Terá começado tão rápida ascensão empresarial, certamente na joalharia de João, com quem aprendeu os segredos de a bem gerir. A diferença de idades era substancial,  relação foi, decerto, mais do que fraterna, quase paternal/filial. Acolhido em sua casa, terá sido, muito provavelmente, por ele encorajado a lançar empresa própria, alguns anos depois. Independente, no mesmo ramo, não se sabe se depois de alguma forma de parceria. Talvez, por essa altura, João, casado com uma brasileira de família abastada, se dedicasse já a outros empreendimentos.
 Com cerca de 28 anos, na altura em que se terá enamorado da futura mulher, António era um homem  extremamente rico. Onde e quando se iniciou o romance?
 Por uma pequena nota na coluna social de um periódico gondomarense apercebemo-nos da sua presença no jantar de formatura em Direito do futuro cunhado José Barboza Ramos. A notícia comprova que nesse ano (1908?) já era figura grada na vila, pois é um dos poucos nomes em destaque, na festa que reuniu a família e numerosos amigos do homenageado. Aí se menciona ainda que ele e José tinham sido colegas de estudos. Este dado tanto nos permite aventar um anterior convivido com a pequena Maria, dez anos mais nova, (contas feitas, menina de 6 anos quando ele emigrou...), como, pelo contrário, imaginar que a tivesse encontrado nesse jantar convivial, onde  terá brilhado pelo seu invariável bom humor e cordialidade e, assim, chamado a atenção da lindíssima irmã do novo doutor e sido, ele próprio, atraído pela sua graça e desenvoltura de rapariga moderna, chique. 
Suposições, apenas... Maria Aguiar teria respondido, mas a pergunta não lhe foi feita... Gostava de falar do passado, conversas longas de que se perdeu a riqueza de infinitos pormenores deixando impressões vagas de de ambientes, situações, pessoas.... Do período inicial de namoro, uma pequena confidência indicia que ele era, então, o mais apaixonado. Na primeira despedida, depois de ficarem noivos, ficou e vê-la afastar-se, desolado pela separação de tantos meses em perspetiva e ela foi em frente, rindo ao lado de Rozaura. Por um gesto de ombros, António Carlos julgou que ela chorava e apressou-se a  segui-la, para a consolar, prolongando ou reiniciando a despedida (gesto em que os portugueses de todos os tempos são useiros). Não a viu em lágrimas, que não havia para ver, e a surpreendida Maria terá  discretamente atenuado os sinais de boa disposição. Era um episódio que contava com aquele riso brando e ligeiramente irónico dos Barboza, rino de si própria, menina e moça...Não tinha, decerto, aos 20 anos, muita pressa de subir ao altar, sabendo que se seguia uma separação da família inteira do outro lado do mar, ainda que  junto a um homem dedicado e generoso, que lhe oferecia uma vida na alta sociedade da mais maravilhosa cidade do mundo  e todas as viagens que quisesse para  reencontros de férias na terra-mãe.  Achava-o amável e divertido, para além  de bonito, com as suas feições perfeitas e sorriso fácil nos olhos muito claros, muito grandes, verdes, os mais fascinantes que jamais vira. Alguns filhos e netos herda-los-iam, contudo sempre um pouco àquem dos dele.." Os olhos são o espelha da alma", dizia muitas vezes. Também a impressionava o seu caráter, que a levava, e bem como o futuro provou, a acreditar no que lhe prometia, e a sua cultura, ou "ilustração", palavra que usava mais, Todavia, o grande amor veio depois, em crescendo, num convívio, em que até os momentos piores, como a morte de Augustinho, (o quinto filho, o mais encantador de todos, que não resistiu a uma pneumonia aos oito meses) serviu sempre  para unir, Discordâncias pequenas também as houve, mas em conversas em que não se  alterava o tom de voz, Foi, essencialmente, um homem calmo e cordato, dentro e fora de casa. Com a mulher, o desagrado manifestava-se, geralmente, em silêncio, numa expressão mais fechada, ou indiretamente, em mensagens subtis, a avaliar por um dos casos mais curiosos, confidenciada pela (já então) Avó Maria à neta favorita, (que era eu...), no meio de sorrisos, entre trocistas e melancólicos , a revelar, passado tanto tempo, uma notória falta de arrependimento... Acabava de chegar ao Rio a moda dos cabelos curtos, a acompanhar a altura dos vestidos, e Maria, já senhora de quase trinta anos, sentiu-se tentada a cumprir a moda, cortou os seus longos e grossos cabelos castanhos, muito curtos e com uma franja a cobrir a testa alta. Passou, de seguida, por um atelier de fotografia, a tirar um retrato, muito chique, de fato escuro, flor ao peito, raposas cruzadas no regaço, anéis de brilhantes nos dedos, sem mais jóias ostensivas, apenas um um broche a fechar o vestido rente ao pescoço. Encomendou uma dúzia de exemplares e partiu, satisfeita, para mansão de Santa Teresa. O marido não se mostrou deslumbrado pela modernidade do visual, não fez grandes comentários. Algum tempo depois, já Maria recolhera as fotos encomendadas, já as enviara por cartas para a família de Gondomar, quando foi preparar malas para mais uma viagem e encontrou, na mala do marido, um pacote com doze, precisamente doze, fotografias dele, alardeando um ar bastante crispado. Era a resposta aos seus doze retratos, de cabeleira drasticamente reduzida por tesoura de mestre. E a cara que António exibia naquelas imagens, era, evidentemente, a que não tinha querido revelar face a face, no dia em que terá sofrido desgosto de monta...Como as fotos não eram assim tão más, não se deitaram fora e ainda existem, até em álbuns de família. 
No Rio, correu célere uma década feliz, depois do casamento, celebrado na Igreja de São Cosme, em 10 de setembro de 1910..
A festa foi íntima, informa uma pequena notícia da imprensa local, que volta a evidenciar a proximidade mantida por António com a gente e a terra, (como se nem residisse num longínquo país das Américas, a sua condição de expatriado não é mencionada...), assim como o estatuto da família da noiva, medido pelos cargos dos  parentes masculinos
 A notícia, de 12 de setembro, tem por t título "Consórcio" : "Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração, e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar".
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes, .Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo". O recorte não permite identificar o periódico -  certo é que não se trata de "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor.."O Progresso" obviamente também noticiou,talvez mais destacadamente, mas não se achou vestígio dele
Porquê um festa íntima? E porque não há fotografias da cerimónia? Haveria luto ainda recente numa das famílias? É uma hipótese...
 O retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada bastante inepta... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo com pormenores, ficou, coisa rara, zangado (ignora-se se a criada terá conseguido arrepiar caminho para continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso arranjar um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. Logo depois,, novo motivo de irritação. Maria Aguiar era muito alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele subisse a um banquinho disfarçado nas dobras do vestido nupcial. Sugestão recebida pelo noivo, com indignação. Tanta, que nem ele, nem ela, conseguiriam recuperar o sorriso, como, a rir-se, retrospetivamente, contaria. E, assim, a imagem não espelha a autêntica alegria daquele sábado, 10 de setembro, data em que,décadas decorridas, haveriam de nascer, um neto e uma bisneta..
A lua de mel, começada no norte, continuou em Lisboa, onde passaram alguns dias num excelente hotel, o Franqueforte do Rossio (há muito desaparecido), e durante aa travessia do oceano, rumo ao Brasil, em paquete de luxo, Nos primeiros dias, ondas alterosas retiveram a maioria dos passageiros nas cabines. Ambos "bons marinheiros", resistentes à intempérie, Maria e António foram companhia constante na mesa do comandante, com quem fizeram amizade.. 
Foi, porém, uma lua de mel por alguns históricos momentos, agitada, porque coincidiu, na capital do Reino de Portugal, com os últimos dias da Monarquia e os primeiros da República.. Em Lisboa, no Franqueforte do Rossio (cerca do edifício da posteriormente famosa pastelaria Suiça), estavam, precisamente, a 5 de outubro. Uma bala atravessou a janela do quarto, sem lhes causar dano, para além do susto (bala guardada como macabro troféu, por um casal de monárquicos, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). Infelizmente, o cozinheiro do hotel foi atingido e morreu. Que ambiente para dois monárquicos deixarem o país, na incerteza do destino da revolução indesejada e temendo pela sorte de todos os que ficavam, numa família dividida entre os dois lados da contenda, que de Lisboa  chegaria o norte.
Os postais e as cartas sucediam-se, mas as noticias eram sempre apenas de dias passados....
A primeira morada no Rio era no centro, na Rua 7 de Setembro, próxima da Joalharia Aguiar, no nº 3 da Rua do Ouvidor, Rua elegante, onde Maria e Judith faria, compras e tomariam o seu chá da tarde, e, muitas vezes, jantariam nos melhores restaurantes, com os maridos.
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década muito feliz.
Cruz Vermelha italiana
      
Sobre o marido, traçava o retrato de um homem bom, sociável, alegre, feliz porque a adorava e adorava a sua numerosa família, 8 filhos em 16 anos de casamento... e mais teriam sido se não tivesse morrido, quando ela ia nos 36 anos e a última filha nos 3 meses. Talvez não  ficassem longe dos 15 ... Impensável, hoje, mas a qualidade de vida, então, era outra. Não faltavam criadas para todo o serviço e "babás" para os meninos, que viajavam sempre com eles na 1ª classe dos navios. Os meninos eram terríveis, corriam pelo convés e conseguiam atirar à água tudo o que estivesse à mão, como almofadas de cadeiras...
 Os Aguiar ricos não hesitam em gastar largamente o dinheiro bem ganho, -  em casas enormes ( como a casa do Tio João, da Rua de Payssandú, a da Gandra, herdada dos pais e remodelada e remobilada  luxuosamente pelo Tio Augusto, a Villa Maria dos Barbosa Aguiar, ou, na geração seguinte, as de alguns dos Aguiar Saraiva Maria, na Foz do Porto ou na Lapa em Lisboa). Investiam, todos, em conforto no dia a dia, em roupas, em viagens, em festas. Eram generosos com os empregados e solidários com os familiares menos afortunados, e, alguns, dados a causas e a beneficência. António, por exemplo. à cunhada Rozaura, agradecia a infinita paciência com que, tantas vezes, se encarregava de entreter e controlar os seus irrequietos filhos, oferecendo jóias valiosas, anéis e brincos de diamantes.
Contudo, daquelas descrições da avó para a filhos e netos (sobretudo a netas),  construímos mais um estereótipo do que o homem real  - o do emigrante de "torna viagem", com fortuna rápida e honesta, embora não o preocupasse só o lado material do destino (com que a maioria se contenta), e se tivesse refinado, ganho mundo, cosmopolitismo. Nas vindas a Portugal, aproveitava para viajar pela Europa e, talvez, também pelo médio Oriente, onde terá comprado a carpete persa do pavão azul, que se conservou no centro da sala de visitas, sob os passos de várias gerações de descendentes.
É em pequenos pormenores que conseguimos vislumbrar a pessoa, hábitos adquiridos em outras paragens, sob céu com outras estrelas, como tomar diariamente duches frios ou  nadar pela manhã num tanque com dimensão de piscina, em água gelada. e tomar, de seguida, invariavelmente  um pequeno almoço de frutas variadas. E excentricidades, Uma das suas engraçadas e inofensivas" era quebrar a  loiça toda nas romarias. Uma mania muito popular entre as feirantes. Logp que  o avistavam, as vendedoras de cântaros e vasos desatavam numa gritaria: "Senhor Aguiar, venha aqui partir a minha louça!".(em São Cosme não se dizia "loiça") E ele lá ia, varrer com vigorosas bengaladas, uma das tendas, pagando principescamente, os estragos.. Restam ainda muitas das bengalas de castão de prata ou ouro, com que executava o ato.


António Carlos Pereira de Aguiar.
Nasceu no dia 11 de Fevereiro de 1880, em Gondomar. Há 129 anos!
Hoje, ao fim do dia, enquanto passeava, em Espinho, à beira mar, pensava nele.
Nas vezes, sem conta, que atravessou este oceano, aproximando-se da "terra amada", como diria Camões, ansioso por abraçar os seus - uma multidão de joviais "Aguiares", entre os pais e mais de uma dúzia de irmãos, para além de afins, e sobrinhos, e amigos e, depois, a namorada Maria...
Quantas vezes partiu, saudoso, mas, como todos os expatriados jovens e bem sucedidos, pronto para retomar o fio dos negócios e enfrentar interessantes desafios no grande país tropical das oportunidades sem fim. E na mais bela cidade do mundo, que era o Rio de Janeiro, no início do século passado (assim pensava a Avó Maria, certamente de pleno acordo com ele).
E quantas viagens, já depois de casados, em cada nova travessia com um menino mais, porque a família crescia, crescia...
Vinham e iam, claro, na 1ª classe dos melhores paquetes (incluindo a "bábá" dos meninos).
Sei que gostavam da vida a bordo, que dançavam nas festas que se sucediam, feericamente, e faziam amigos, com facilidade. Formavam um belo casal - ela bastante mais alta, mas ele sem complexos e orgulhoso da sua graça e distinção, ainda que um pouco ciumento ...
Os meninos eram encantadores, como mostram as fotos (o que as fotos não revelam, "hélas", é as suas diabruras: as almofadas e outras possessões móveis do navio, que eles atiravam pela borda fora...). Enfim, havia formas de diversão para todas as idades!
Como não pensar, também , na casa construida por esse Avô - que não pudemos conhecer, por ter desaparecido, subitamente, com 46 anos, apenas.
A "Villa Maria". A casa dele, a nossa casa!
Os jardins com as belíssimas rosas, que ele cultivava, por suas mãos, e levava a concursos (ganhou vários prémios!). As árvores, de todos os frutos. Os mirantes e recantos, feitos para o convívio da família e dos amigos...
Um presente, que deixou a várias gerações. Através das recordações, que a simples memória desse "espaço Aguiar" nos traz, ele continua vivo.
As histórias do génio empresarial deste "Avô brasileiro", assim como do seu bom gosto, da sua cultura, da sua generosidade, do seu sentido de humor, chegaram, até nós, nos relatos da Avó Maria,
Pela memória se vive, e, por isso, ele não vai morrer nunca.








































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AMÉLIA PEREIRA DE AGUIAR
A única das mulheres desta geração que permanece como lenda, figura lendária, com um "toque de Midas", em domínios onde nenhum antepassado se terá aventurado . estaleiros de barco, frota pesqueira,  E uma frase, a única que ficou para a posteridade e que é a sínteses perfeita de um percurso feminino extraordinário "Deus castigou-me com saúde, filhos e dinheiro" Tudo teve em abundância. Supõe-se que nos favores divinos incluiria um marido discreto, cujo nome se conseguiu desvendar numa pequena notícia da imprensa - o Sr Oliveira Aguiar. Seria um primo ou parente  ou uma coincidência num apelido nem raro, nem muito comum? Mais provável o parentesco, mas não provado.
Uma velha fotografia amarelada, do espólio de Maria Aguiar, que tem no centro uma senhora alta e forte,bem vestida, de rosto firme  determinado,  rodeada de meninos, será a única imagem que possuímos (se for ela...). É a matriarca dos Aguiar de Matosinhos, que conservam uma aura de prosperidade possivelmente merecida, mas com os quais se perderam laços de relacionamento e amizade. A migração de Amélia para Matosinhos, embora interna e próxima, produziu, neste aspeto, efeitos semelhantes à emigração brasileira de João e Alberto,

GRACINDA  AGUIAR SARAIVA (Saraiva, apelido do marido), teve sete filhos, como a cunhada Maria. Amigas, comadres, Maria e António eram os padrinhos de batismo de António Aguiar Saraiva. A madrinha tinha-o em grande estima, dizia que ele era mais parecido com o padrinho do que qualquer dos seus filhos! O cunhado Saraiva, foi grande empresário, mas atravessou altos e baixos, num percurso muito acidentado  e morreu, novo ainda, num dos pontos mais baixos, deixando a viúva e os órfãos em péssima situação. Só o celebrado "espírito solidário dos Aguiar permitiu, não só a alguns, mas a todos, subirem, a pulso, até ao nível mais alto dos tempos do pai, onde souberam permanecer o resto das suas vidas..No princípio foram as irmãs mais velhas, raparigas de uns  20 antes, se tanto, a procurar empregos (dando explicações, ou como precetoras, num círculo social onde tinham relações de amizade, lembrando novelas inglesas oitocentistas) para dar educação aos  irmãos, alguns andavam ainda na escola primária. Uma história que terminou coletivamente  bem. Eram inteligentes, trabalhadores e bafejados por um instinto empresarial certeiro, que os levou em frente e para cima, invariavelmente. Sem complexos, sem marcas de passadas dificuldades, num regresso ao mundo de onde vinham, como paradigmas de sociabilidade, sentido de humor, extroversão. Morenos e atraentes, com os olhos luminosos, em geral claros, sempre expressivos, que traziam no ADN, capazes de uma boa gargalhada e de um humor cortante, mas temperado de um pendor diplomático, que era em alguns muito acentuado. Facilmente faziam amigos em todas as categorias sociais.
 De uma multidão de parentes Aguiar, da sua geração, foi sobretudo  com estes que conviveram intimamente em Gondomar e no Porto. e Maria Antónia seria a que com eles foi mantendo pela vida fora um relacionamento constante - com todos, e mais ainda com a Cristina e a Belita, mesmo depois de Cristina ter ido para a Alemanha e Belita para  Lisboa, ambas com maridos alemães. Também com António, empresário importador de máquinas e material de escrita e de fotografia - canetas Monblanc, rolos de filme Adox, uma marca germânica, há muito desaparecida dos mercados. Empregava  sempre vendedores alemães, que, a seu ver, tinham melhor aceitação junto dos clientes do que os naturais do burgo.aumentando a aceitação e a venda dos produtos (nessa época, os estrangeiros rareavam e a sua presença era notada e desejada, sobretudo se fossem obviamente diferentes, muito loiros. A irmã, CRISTINA FERNANDA AGUIAR SARAIVA, era a gerente. "public relations" e acabaria por casar com um desses profissionais promissores, Ernst Lamb, jovem que cumpriria as promessas, e seria, logo nos anos 70, a diretor da Zeiss (e, seguidamente, da Rodenstock), levando a encantadora Cristina para Wiesbaden, e, depois, para uma pequena,  bem traçada, arrumadinha cidade de Aalen (perfeita para postais turísticos e monótona para morar), não longe de Estugarda. Lá viveu, com um marido que a adorava e por quem ela se deixava, melancolicamente adorar, sempre pouco apreciadora de uma certa rigidez e conservadorismo daquela mini sociedade germânica. Na verdade, não é coisa natural um mulher que gosta da sua carreira voltar a um reduto de dona de casa e mulher, Frau Lamb. E pior ainda na tradução alemã, não só linguística mas também sociológica, "Hausfrau". num meio geográfico e humano  que sentia avesso.Mostrar há  Morreu, durante uma visita a Munique,( cidade grande e festiva, católica e quase latina, onde se sentia mais  à vontade) com um enfarte de miocárdio" como o Tio António e com a mesma idade
Ernst era um homem encantador, do meu ponto de vista. Falava um português excelente, tinha estado no Brasil, antes de vir para o Porto, gostava de música, em particular de ópera, de fotografia, de futebol e, no tempo da revolução, acompanhava o PREC lisboeta, apaixonadamente. Não nos faltavam temas de conversa divertida, Sem ser germanicamente loiro ou particularmente formoso, tinha uma caraterística comum a quase todos os compatriotas que conheci de perto. - aceitam muito bem qualquer estrangeiro, desde que lhes pareça, digamos, igual a eles (ou quase), fazendo as mais triviais coisas do quotidiano exatamente como eles fazem. IA mim, não me custa nada - gosto da língua, da gente e das suas peculiaridades, de vinho do Reno, de salsichas, bifes tártaros e peixe cru. Na família Aguiar Saraiva não havia mais ninguém de quem se pudesse dizer o mesmo, pelo que eu para ele era a a pessoa mais popular da família e passei repetidas e felizes férias com eles.
A Cristina reconhecia o seu brilho intelectual e profissional, contudo, por muito que gostasse dele, sempre me pareceu que achar excessiva a sua dedicação e sentir-se enclausurada num magnífico andar com varandas amplas, quais jardins suspensos da Babilónia, cheias de belas plantas, que cuidava com prazer. Viajava bastante, mas sempre na mesma companhia (a dele), ela que era tão expansiva e tinha um enorme círculo de amizades do Porto ao Alto Minho. Só um mês por ano vivia a seu modo, na vinda, sozinha, a Portugal , aproveitando uma das longas ausências do marido no Japão e outros mercados do Extremo-Oriente. Eram 30 dias de movimentação imparável, almoçava e jantava  no seu roteiro  de afetos, Porto, Espinho, Vila do Conde, Póvoa, Cerveira. Lisboa. A sede da campanha de visitas era a sua velha casa da Rua Santa Catarina, onde continuavam os irmãos solteiros, Rosinha e Manuel, um apartamento acolhedor, cheio de antiguidades e móveis confortáveis, o oposto das simetrias e do conforto modernista do seu lar germânico. De qualquer modo, não parava um minuto, não podia perder um minuto daquela breve e esplêndida  liberdade. 
Na verdade, não era aquela competentíssima "relações públicas", tão extrovertida, bem pensante e bem falante (mais noutras línguas do que em alemão, aprendido à pressa, por necessidade), que podia ajustar-se ao perfil exigido por Ernst, de esposa doméstica para executivo de multinacional em ascensão. Er hatte eine hausfrau heiraten wollen...Ou, em alternativa ter feito carreira, embora menos meteórica, em terras portuguesas, onde ela melhor escaparia ao seu cerco tendencialmente obsessivo, numa sociedade, onde sempre seria figura preponderante, pelo seu espírito, graça e simpatia 
BELITA AGUIAR SARAIVA SCHMIDT teve com Walter Heinz Karl Schmidt, história que a coloca quase nas antípodas daquela irmã.. Walter era outro tipo de alemão, de famílias da alta burguesia, impressionantemente alto (quase dois metros), muito bonito, em traços nórdicos - podia ser um vicking gentil e elegante. E também um exemplo de tolerância - o pai, finda a guerra, em 45, apenas porque era diretor na função pública, foi internado num campo de concentração russo e aí morreu. A família ficou sem nada, ajudou-os uma criada ucraniana. Walter, que era moderadamente conservador, centro-direita, nunca manifestava sentimentos ant-russos, mas tinha um declarada simpatia por tudo o que era ucraniano. O seu lema, era certamente, o de valorizar mais o o bom do que o mau, nas memórias, como no seu dia a dia. Inteligente, mostrava discretamente um sentido de humor, que costuma acompanhar essa qualidade, sem nunca ser mordaz. Um dia em que comíamos, num jantar ligeiro, em família, salsichas (alemãs de origem certificada), eu disse, no meu alemão rudimentar, "wurste", à maneira de Estrasburgo, ao que ele replicou: "Oh, a Manuela agora até já fala alemão com sotaque regional".
Prosperaram no ramo das importações (da Alemanha, é claro), desde máquinas pesadas a lápis, viviam num privilegiado recanto da Lapa lisboeta, e nos tempos do PREC passeavam, perigosamente, de Jaguar pelas ruas da capital em fúria. Um dia em que me deram boleia para o Ministério do Trabalho, ele perguntou-me se  não serai arriscado levar-me até à porta naquele veículo capitalista, mas eu disse que não e sobrevivi ao desafio. 
A Belita nunca foi uma "Hausfrau" - tinha criadas, no plural, para as artes doméstica e era uma associada da empresa familiar, onde fazia a parte de contabilidade, aproveitando experiência dos anos em que trabalhou no Porto, valendo a irmãos mais novos. Depois do choque da morte do Walter, doze anos mais novo, celebrou os 101 anos, bonita e lúcida, impecavelmente penteada e vestida. Como a prima Maria Antónia, que, porém, não chegaria a festejar os 99 - muito interessada em questões da política, mas de uma direita muito mais centrista. Influência do Walter? Maria Antónia, pelo contrário, não acompanhava a moderação social-democrata do marido...Foi a primeira mulher da família a inscrever-se num partido (o PPM), subscreveu a candidatura à presidência do General Kaúlza de Arriaga e votou sempre no CDS. Todavia, era admiradora confessa de Mário Soares e das suas famosas presidências abertas (com o seu "quê" de régio, a motivá-la), e detestava Donald Trump, como um nazi gordo de melenas alaranjadas e Bolsonaro, como homem perigosamente inculto.

ANTÓNIO CARLOS PEREIRA DE AGUIAR, o pai de Maria Antónia, era um dos mais novos, talvez mesmo o mais novo. Nasceu em 11 de fevereiro de 1988. Muito bonito, baixinho, sempre bom aluno. cuidadoso  com a roupa e a apresentação, determinado, sem ser agressivo ou egoísta, era  ambicioso, como provou ao emigrar com 16 anos, aceitando o desafio de João, um dos irmãos mais velhos, então já bem estabelecido no Rio de Janeiro. Dos seus primeiros anos, não há episódios que tenha transmitido aos filhos. Pela ligação que cultivou, muito para além do círculo familiar, com amigos de infância e com a terra, a sua atualidade e progresso, ou falta dele, é a imagem daquele tipo de emigrante, que, como dizia Jaime Cortesão, leva a Pátria consigo. Atravessava frequentemente o Atlântico, para vir passar férias em São Cosme. É por recortes de jornal, não por relatos orais, que tomámos conhecimento de que não faltava na época da caça - desporto que, aparentemente, o entusiasmava mais em Gondomar do que no Rio, certamente porque ali tinha os melhores companheiros para caçadas e convívios. É muito  provável que misturasse prazer e trabalho, que mantivesse negócios de exportação/importação com o irmão Augusto, pois ambos eram joalheiros, este no Porto, ele no Rio, tal como João. 
Como terá começado uma tão rápida ascensão empresarial? Obviamente como empregado na joalharia de João, com quem terá aprendido os segredos de bem gerir um empreendimento. A diferença de idades era substancial, a relação deve ter sido mais do que fraterna, quase paternal/filial. Foi certamente acolhido em casa do irmão e encorajado por ele a lançar a sua própria empresa, alguns anos depois. No mesmo ramo, mas independente, não mero associado. Talvez, por essa altura, João, casado com uma brasileira de família abastada, se dedicasse já a outros negócios. Com cerca de 28 anos, na altura em que se terá enamorado da futura mulher António era um homem  extremamente rico. Ignora-se onde e quando se iniciou o romance. É por uma pequena nota na coluna social de um periódico da terra que nos apercebemos da sua presença no jantar de formatura em Direito do futuro cunhado José Barboza Ramos. A notícia comprova que nesse ano (1908?) António Aguiar já era figura grada em Gondomar, pois é um dos poucos nomes em destaque, numa festa que reuniu a família e numerosos amigos do homenageado. Aí se menciona ainda que ele e José tinham sido colegas de estudos. Este simples dado permite-nos aventar um anterior convivido com a pequena Maria, dez anos mais nova, (contas feitas, ela tinha apenas 6 anos quando ele emigrou...), ou, pelo contrário imaginar que a tivesse encontrado nesse jantar convivial, onde  ele terá brilhado pela graça e simpatia e chamado a atenção daquela jovem lindíssima. E que a beleza dela (o porte -  a desenvoltura de rapariga moderna, chique) o cativasse, de imediato. 
Suposições...
Maria Aguiar teria respondido, se a pergunta lhe tivesse sido feita. Não foi... Gostava de falar do passado, mas o que deixou dito, não foi anotado, perderam-se pormenores, sobrevivem impressões vagas de conversas longas havidas com as netas a quem histórias antigas encantavam. Do período inicial de namoro, uma pequena confidência indicia claramente que ele era, então, mais apaixonado. Despediu-se, triste pela separação de tantos meses que tinham pela frente e ela foi em frente, rindo com a irmã. Por um gesto de ombros, António Carlos julgou que ela chorava e apressou-se a  segui-la, para a consolar, prolongando a despedida. Não a viu em lágrimas, mas Maria terá  discretamente atenuado os sinais de boa disposição. Achava-o interessante, com uns  olhos muito claros, muito grandes, verdes, os mais fascinantes que jamais vira. Segundo dizia, nenhum dos olhos bonitos dos seus filhos e netos se lhes podia  comparar  Impressionava-, também, a sua cultura, ou "ilustração", palavra que usava mais. O amor terá ido em crescendo, no noivado e, sobretudo, nos 16 anos de uma união fácil e feliz, com algumas discordâncias, inevitáveis na vida de um casal, mas nunca expressas, num alterar do tom de voz. Terá sido, essencialmente, um homem calmo e cordato, dentro e fora de casa 
Casaram na Igreja de São Cosme, em 10 de setembro de 1910.. No dia 12, um dos jornais de Gondomar noticiava,  com o título "Consórcio":
"Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar"
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes, 
Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo"
 O recorte, que sobrevive há mais de um século, não permite identificar o periódico - fica a saber-se que não se trata, com certeza, "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor.  Terá, provavelmente, dado igual ou superior relevo ao evento, mas o eco perdeu-se para a posteridade...
Perdidas andarão também as fotos da cerimónia, porque o retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada um pouco descuidada... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo com pormenores, ficou i, coisa ra, zangado (ignora-se se a criada terá conseguido arrepiar caminho para continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso arranjar um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. De seguida, novo motivo de irritação. Maria Aguiar era muito alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele se colocasse num banquinho disfarçado nas dobras do vestido. Sugestão recebida pelo noivo, com indignação. Tanta, que ele não conseguiria recuperar o sorriso da praxe. E ela também não, como, a rir-se, retrospetivamente, contaria. E, assim, a imagem não espelha a autêntica felicidade daquele 10 de setembro.
A lua de mel terá começado no norte e continuou em Lisboa, onde passaram uns dias num excelente hotel, o Franqueforte do Rossio (há muito desaparecido), e de seguida,na travessia do oceano para o Brasil, em paquete de luxo, Nos primeiros dias, ondas alterosas retiveram a maioria dos passageiros nas cabines. Ambos "bons marinheiros", resistentes à intempérie, Maria e António foram companhia constante na mesa do comandante, com quem fizeram amizade.. 
Foi uma lua de mel com história, na capital do Reino de Portugal - pois aí viveram os noivos os últimos dias do Reino e os primeiros da República.. Em Lisboa, no Rossio, estavam, precisamente, a 5 de outubro. Uma bala atravessou a janela do quarto, sem lhes causar dano (bala guardada como macabro troféu, por um casal de monárquicos, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). Infelizmente, o cozinheiro do hotel foi atingido e morreu. Que ambiente para deixarem o país... na incerteza de  uma revolução por ambos indesejada, e temendo pela sorte de todos os que .
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década muito feliz.
Cruz Vermelha italiana
      
Sobre o marido, traçava o retrato de um homem bom, sociável, alegre, feliz porque a adorava e adorava a sua numerosa família, 8 filhos em 16 anos de casamento... e mais teriam sido se não tivesse morrido, quando ela ia nos 36 anos e a última filha nos 3 meses. Talvez não  ficassem longe dos 15 ... Impensável, hoje, mas a qualidade de vida, então, era outra. Não faltavam criadas para todo o serviço e "babás" para os meninos, que viajavam sempre com eles na 1ª classe dos navios. Os meninos eram terríveis, corriam pelo convés e conseguiam atirar à água tudo o que estivesse à mão, como almofadas de cadeiras...
 Os Aguiar ricos não hesitam em gastar largamente o dinheiro bem ganho, -  em casas enormes ( como a casa do Tio João, da Rua de Payssandú, a da Gandra, herdada dos pais e remodelada e remobilada  luxuosamente pelo Tio Augusto, a Villa Maria dos Barbosa Aguiar, ou, na geração seguinte, as de alguns dos Aguiar Saraiva Maria, na Foz do Porto ou na Lapa em Lisboa). Investiam, todos, em conforto no dia a dia, em roupas, em viagens, em festas. Eram generosos com os empregados e solidários com os familiares menos afortunados, e, alguns, dados a causas e a beneficência. António, por exemplo. à cunhada Rozaura, agradecia a infinita paciência com que, tantas vezes, se encarregava de entreter e controlar os seus irrequietos filhos, oferecendo jóias valiosas, anéis e brincos de diamantes.
Contudo, daquelas descrições da avó para a filhos e netos (sobretudo a netas),  construímos mais um estereótipo do que o homem real  - o do emigrante de "torna viagem", com fortuna rápida e honesta, embora não o preocupasse só o lado material do destino (com que a maioria se contenta), e se tivesse refinado, ganho mundo, cosmopolitismo. Nas vindas a Portugal, aproveitava para viajar pela Europa e, talvez, também pelo médio Oriente, onde terá comprado a carpete persa do pavão azul, que se conservou no centro da sala de visitas, sob os passos de várias gerações de descendentes.
É em pequenos pormenores que conseguimos vislumbrar a pessoa, hábitos adquiridos em outras paragens, sob céu com outras estrelas, como tomar diariamente duches frios ou  nadar pela manhã num tanque com dimensão de piscina, em água gelada. e tomar, de seguida, invariavelmente  um pequeno almoço de frutas variadas. E excentricidades, Uma das suas engraçadas e inofensivas" era quebrar a  loiça toda nas romarias. Uma mania muito popular entre as feirantes. Logp que  o avistavam, as vendedoras de cântaros e vasos desatavam numa gritaria: "Senhor Aguiar, venha aqui partir a minha louça!".(em São Cosme não se dizia "loiça") E ele lá ia, varrer com vigorosas bengaladas, uma das tendas, pagando principescamente, os estragos.. Restam ainda muitas das bengalas de castão de prata ou ouro, com que executava o ato.


António Carlos Pereira de Aguiar.
Nasceu no dia 11 de Fevereiro de 1880, em Gondomar. Há 129 anos!
Hoje, ao fim do dia, enquanto passeava, em Espinho, à beira mar, pensava nele.
Nas vezes, sem conta, que atravessou este oceano, aproximando-se da "terra amada", como diria Camões, ansioso por abraçar os seus - uma multidão de joviais "Aguiares", entre os pais e mais de uma dúzia de irmãos, para além de afins, e sobrinhos, e amigos e, depois, a namorada Maria...
Quantas vezes partiu, saudoso, mas, como todos os expatriados jovens e bem sucedidos, pronto para retomar o fio dos negócios e enfrentar interessantes desafios no grande país tropical das oportunidades sem fim. E na mais bela cidade do mundo, que era o Rio de Janeiro, no início do século passado (assim pensava a Avó Maria, certamente de pleno acordo com ele).
E quantas viagens, já depois de casados, em cada nova travessia com um menino mais, porque a família crescia, crescia...
Vinham e iam, claro, na 1ª classe dos melhores paquetes (incluindo a "bábá" dos meninos).
Sei que gostavam da vida a bordo, que dançavam nas festas que se sucediam, feericamente, e faziam amigos, com facilidade. Formavam um belo casal - ela bastante mais alta, mas ele sem complexos e orgulhoso da sua graça e distinção, ainda que um pouco ciumento ...
Os meninos eram encantadores, como mostram as fotos (o que as fotos não revelam, "hélas", é as suas diabruras: as almofadas e outras possessões móveis do navio, que eles atiravam pela borda fora...). Enfim, havia formas de diversão para todas as idades!
Como não pensar, também , na casa construida por esse Avô - que não pudemos conhecer, por ter desaparecido, subitamente, com 46 anos, apenas.
A "Villa Maria". A casa dele, a nossa casa!
Os jardins com as belíssimas rosas, que ele cultivava, por suas mãos, e levava a concursos (ganhou vários prémios!). As árvores, de todos os frutos. Os mirantes e recantos, feitos para o convívio da família e dos amigos...
Um presente, que deixou a várias gerações. Através das recordações, que a simples memória desse "espaço Aguiar" nos traz, ele continua vivo.
As histórias do génio empresarial deste "Avô brasileiro", assim como do seu bom gosto, da sua cultura, da sua generosidade, do seu sentido de humor, chegaram, até nós, nos relatos da Avó Maria,
Pela memória se vive, e, por isso, ele não vai morrer nunca.






































DO RIO DE JANEIRO Á VILA MARIA
Maria e António Aguiar casaram a 10 de setembro de 1910. No dia 12, um dos jornais de Gondomar noticiava,  com o título "Consórcio":
"Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar"
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes, 
Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo"
 O recorte, que sobrevive há mais de um século, não permite identificar o periódico - fica a saber-se que não se trata, com certeza, "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor.  Terá, provavelmente, dado igual ou superior relevo ao evento, mas o eco perdeu-se para a posteridade...
Perdidas andarão também as fotos da cerimónia, porque o retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada um pouco descuidada... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo com pormenores, ficou furioso (ignora-se se a criada terá conseguido arrepiar caminho para continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso arranjar um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. De seguida, novo motivo de irritação. Maria Aguiar era muito alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele se colocasse num banquinho disfarçado nas dobras do vestido. Sugestão recebida pelo noivo, com grande indignação. Tanta, que ele não conseguiria recuperar o sorriso da praxe. E ela também não, como, a rir-se, retrospetivamente, contaria a filhos e netos. E, assim, a imagem não espelha a felicidade real daquele 10 de setembro.
A lua de mel terá começado no norte e continuou em Lisboa, onde passaram uns dias no belo Hotel Franqueforte do Rossio (que há muito desapareceu), e depois, num paquete de luxo, em direção ao Brasil. Uma lua de mel com história, na capital do Reino de Portugal - nos últimos dias do Reino e nos primeiros da República.. De facto estavam lá, precisamente a 5 de outubro. Uma bala atravessou a janela do quarto, sem causar dano (bala guardada como macabro troféu, por um casal de monárquicos, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). E o cozinheiro do hotel foi atingido e morreu. Foi nesse ambiente incerto e amargo, que deixaram o País.
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década muito feliz.
      s.Os breves anos em que habitou na Vila Maria, foram anos memoráveis.
Movimento de amigos - mesa e cadeiras verdes - laranjas amargas
Tratamento cerimonioso com a Mulher - o caso do corte de cabelo
Na travessia mesa de comandante - não enjoavam, dança com Chaby Pinheiro
Eramos felizes sem saber
  A Vila Maria era, na meia década de 20 um pequeno mundo, de fronteiras traçadas geometricamente entre propriedades dos vizinhos (os que haviam vendido toda aquela boa porção de terra ao amigo António Carlos Aguiar). Nele cresciam as rosas, as árvores, as crianças... Cumpriam-se os sonhos do casal Maria e António Carlos.
 Mariazinha, a sexta das crianças, era suficientemente pequena, quando a família se instalou na Vila Maria, para não se lembrar de ter habitado qualquer outro lugar. E do Pai não guardou muitas recordações - lembra-se do dia em que ele colheu morangos numa bonita cesta, e a mandou leva-los para a sua madrinha (a Tia Rozaura), na companhia de uma criada. Lembra-se de colherem e comerem fruta no quintal, o Pai, ela e a irmã Lolita (Glória Doroteia). E de diálogos jocosos, em que ele chamava à Lolita, tão morena como ele, a sua "molequinha". Ao que ela respondia: "O Papá é o meu molequinho". A mais viva recordação é, porém, a da sua morte trágica, súbita, (de enfarte do miocárdio, aos 46 anos...) Estranhou vê-lo, na sala de visitas, naquela caixa estreita, imóvel, de olhos fechados, e, quando o tocou na face, sentiu-o gelado, tentou acordá-lo, sem conseguir. Estava horrorizada. Quando vieram buscar o caixão para iniciar o cortejo fúnebre. o filho Manuel  deitou-se por cima, para os impedir de levar o Pai. Foi preciso tratar dele primeiro.
Do funeral sabe-se mais pelas notícias de jornais, do que por testemunhos da família, sempre mais focada as memórias da sua vida.
A "Ordem"; escreve  "faleceu o Snr António d' Aguiar, opulento e estimado capitalista, nosso amigo e assinante de "A Ordem". Contava 46 anos e  faleceu repentinamente na manhã do dia 10 do corrente. Teve um funeral muito concorrido , celebrando missa de corpo presente o rev Manuel Coelho.. O extinto gosava de geral estima  e porisso o seu falecimento foi muito sentido, (...)
A sombra da cruz
"Inesperadamente, quando parecia ainda ter longa vida, pois era bastante novo, faleceu na p assada semana o nosso querido amigo e assinante Snr António Carlos Barbosa Aguiar. Depois duma viagem recente  que fez ultimamente ao Brazil. a sua saúde ficou de tal  maneira abalada que d' ahi resultou quase repentinamente a sua morte. Deixou imersa na mais amarga saudade a sua ex-ma esposa  e filhinhos. O seu funeral que foi excecionalmente concorrido, realizou-se no passado domingo, ma Igreja desta vila, organisando-se vários turnos durante o percurso. (...)
O título do jornal não está anotado no recorte. Curioso erro é a inclusão do apelido da mulher (Barbosa) no nome de António Carlos Pereira de Aguiar.
Outra constatação interessante é ser do jornal " A voz de Gondomar" (republicano). o mais completo obituário, um artigo de quase página inteira  sobre um conhecido monárquico, (ainda que cunhado de alguns dos mais interventivos republicanos do concelho)..
"Mais um bom que desapareceu do scenario tumultuoso da vida ungido da recordação saudosa de todos os que o conheceram  e chorado pela dor angustiosa e percuciente da família que estremeceu e idolatrou, António Aguiar, o saudoso e querido amigo que sacrificou a mocidade ao trabalho para conquistar a independência de que usufruia; o lutador austero e persistente que, quási criança ainda, abandonava a Pátria, e com a Pátria a família, para, em terras distantes e pisando o doloroso trilho do "struggle for life" , onde as ambições se entrechocam, consolidar no trabalho a garantia do seu futuro e a dos seus, acaba de tombar, sacudido pela crueldade brutal de uma "angina pectoris", que desapiedadamente o arrancou de um lar que era todo o seu enlevo (...)
Espírito de eleição consagrado ao culto da família, a que lega o inapreciável tesouro dum nome digno como poucos e o exemplo salutar duma vida impoluta,António Aguiar soubera impor-se à admiração e à amizade sincera de quantos com ele privaram, pela intensidade dos sentimentos afetivos  em que vibrava a sua alma e pela galharda afabilidade do seu trato em que se espelhava toda a nobreza de um carácter nobre e honrada. Era um justo, de quem pode dizer-se que desceu à vala fria do cemitério sem uma única inimizade a empanar-lhe o brilho suave da sua chorada memória".
O funeral do saudoso extinto, que se celebrou na matriz desta vila em 10 do corrente, foi bem uma demonstração imponente da consternação provocada pelo seu desaparecimento  e uma grandiosa homenagem de sagração póstuma tributada às suas  virtudes e à sua memória  pelos muitos amigos de antónio Aguiar , que os possuía em todas as classes sociais.
Na última parte da notícia são mencionados os turnos, em que os amigos se revezaram no transporte da urna entre a Vila Maria e a igreja matriz. Vale a pena transcrever a listagem, porque nela estão os familiares mais próximos, os amigos que eram presença constante de uma casa.sempre aberta, sempre cheia de visitas, de convívios e festas. ou os companheiros de um associativismo local, a que dava generosa contribuição.
1.º turno - António e Alberto Mendes Barbosa, o irmão Augusto Aguiar, José e Damião de Oliveira Aguiar (sobrinhos?) e Saúl Fonseca e Sousa
2.º. - Mário Ferreira (sobrinho, casadao com Isabel - Mimim - Barbosa), Adelino Garrido, Manuel Martins dos Santos, Camilo de Olivaira (o escritor e autor da monografia do Concelho de Gondomar), Alberto Martins de Moura e Artur Cabral Borges
3.º Manuel Ribeiro de Almeida, Vicente Gaspar Vieira, Doutor Agostinho de Sousa Pinto, José Coelho das Neves Junior, José de Sousa Santos e Manuel Coelho das Neves
4.º - José Marques dos Santos, Avelino Martins da Silva, António Coelho da Silva, Manuel Martins de castro Neves, Joaquim Martins Rosas e Abílio Ferreira da Costa.
5.º -Membros do Club Gondomarense, de que o finado era sócio
6.º - Sócios do Club de Caçadores, a que o extinto também pertencia.
7.º -  Bombeiros Voluntários de Gondomar e João Pereira, criado do extinto.
8. - º (no percurso da Igreja para o cemitério) - Dr António Ribeiro Seixas, Dr Manuel Nunes Pereira, José Ribeiro Borges da Cunha, Eduardo Kock, Serafim Rosas e Francisco Herculano Novais de França
Um outro registo significativo é o das coroas fúnebres, colocadas junto ao ataúde: "Club Gondomarense, última homenagem", "Último adeus de Maria Irmínia Barbosa e Alexandre Mendes Barbosa; "Útimo adeus de Rozaura Barboza Marques e Manuel Marques"; Saudades de José Martins das Neves e família"; "Saudade eterna e último beijo de tua esposa"; "Último adeus de sua irmã Amélia Aguiar e esposo": Sentida saudade de seu tio João Moreira dos Santos e Maria Gomes Bessa";"Último adeus de seus cunhados Maria Celestina de Abreu Mesquita Barbosa e José barbosa Ramos";"Eterna saudade de seus filhos": "último adeus de seu amigo Dr Agostinho Emílio de Sousa Pinto".
Pela notícia, que termina apresentando condolências "à desolada viúva, Ex.ma Srnª D Maria Barbosa Aguiar e a seus filhinhos", sabemos ainda que a chave do caixão foi entregue ao Ex.mo Snr Dr José Barbosa Ramos.
Comoção no ambiente familiar e em toda a Vila de Gondomar, onde era, como transparece nos jornais, uma pessoa muito querida, das elites e do povo. A essa sua forma de estar e de viver, devemos, sem dúvida, a imagem que perdura dos Aguiar como exemplos de extrema dedicação à família, de  franqueza, de generosidade espontânea, quase a parecer excessiva. e de alegria de viver. E até de uns laivos de excentricidade, em que , porém, seria ultrapassado pelos cunhados Barbosa. (criam-se, assim, "estereótipos dos "Aguiar" e dos "Barbosa", nos quais mal se enquadram muitos dos que levavam ou levam esses nomes...).
Tinha seis anos, a Lolita quatro. (a mais nova, Madalena, apenas seis meses). Não entendiam o significado do que se passava, viam mãe, vestida de preto, caída em depressão e prantos, cada vez mais ausente nas devoções da igreja. Um dos rapazes, o terceiro mais velho, António Maria. com apenas 10 ou 11 anos, deixou-nos em versos simples, de criança, testemunho único de um sentir certamente partilhado dentro das paredes da Vila Maria:

Meu Pai?
"Quem te levou, meu Pai?!... Quem te levou?
Para esse mundo assim tão azulado.
Responde...sim. Teu filho, um desgraçado
Para quem a tua ausência já chegou

Para esse mundo sem fim, quem te arrastou?
Partiste!... Fiquei só! Desventurado
Pede a Deus a quem por ti tenho rogado,
 embora infeliz.., para quem tudo se quebrou.

Partiste, morreu tudo neste mundo...
E minha Mãe, oh Pai, sempre a chorar
E eu choro, desde o dia em que, moribundo, 

Te segurei... morreste Pai... Agora, então,
Depois de tudo, me vês, sempre a chorar,
Chorará eternamente, Senhor, meu coração!"

Terá sido o primeiro a encontrar o pai. agonizante? Talvez, não se sabe. Desses dias de velório e funeral, a única história insólita é o da segundo filho, Manuel, (doze anos?) que se deitou sobre o caixão, desesperado, para impedir que levassem o pai da sala de casa...)
Tudo mudou, tudo continuou, mas a mãe,  a senhora alegre e mundana, divertida e compassiva,  transformava-se, a pouco e pouco, numa líder severa e enérgica, dentro e fora de casa, entregue tanto às tarefas de educar sete filhos, (não muito fáceis...), como às boas causas na paróquia e na terra (os pobres, os doentes, os presos e a sua família, não raras vezes, intercedendo ou dando emprego a ex.presidiários -  pequenos ladrões, alguns dos quais não perdiam hábitos velhos, apesar de ela acreditar sempre neles - levando criancinhas ao batismo e promovendo casamentos em sólidas "uniões de facto"...). A Vila Maria era visitada, quase quotidianamente, por padres e seminaristas. as freiras que passavam por São Cosme eram suas hóspedes, como se fosse o prolongamento da residência paroquial... Também a organização de festejos religiosos era ali programada, e executadas tarefas várias  como a fabricação, em massa, de flores de papel para os andores das procissões ou para os carros alegóricos, ou o ensaio de grupos corais, reunidos à volta do piano. Passou a ser assim, no tempo dos filhos e nos dos netos.
Apesar das profundas marcas que a partida do pai provocara no ambiente famíliar, Maria Antónia sempre se sentiu protegida e feliz dentro da Vila Maria. Eram muitos, eram naturalmente alegres e divertidos, O Tio Alexandre, foi para os meninos órfãos, um segundo pai, para a viúva, o mais amigo dos irmãos, o mais próximo, e não só porque era vizinho, Uma sua filha única tinha morrido bébé, anos antes...  A Leninha ocupou esse vazio -  praticamente vivia em casa dos Padrinhos, Hermínia e Alexandre, embora a Mãe não a deixasse nunca pernoitar lá. Todos os outros o viam, igualmente como figura tutelar. - bom, generoso e divertido. Nele a irmã tinha um conselheiro (exceto para as coisas da igreja, mas foi sempre em vão que ele, republicano e laico, tentou moderar os seus impulsos beneméritos e oferendas, que considerava excessivos, para as obras da paróquia....). 
Presença constante, já nos tempos do cunhado e, do mesmo modo depois, era a da irmã Rozaura, casada, sem filhos, com  Armando Marques, um Tio.também ele muito dedicado a todos o meninos Aguiar, e, em particular,l à afilhada, Maria Antónia. Moravam a menos de 10 minutos minutos de caminhada, por caminhos rústicos e lindos, num lugar chamado "a  Pedreira" .A "casa da Pedreira" de tão boas memórias para a Mariazinha!. Ali ela era especial e única, não tinha de repartir atenções, com mais seis. E, entre os seus escritos, há pouco descobertos, há um que lhe é dedicado. 
A CASINHA DA PEDREIRA
Queria voltar a ver
as camélias a florir,
as laranjas a crescer.

Queria voltar a ter 
na minha mão pintaínhos 
acabados de nascer

Queria voltar a ver
o jardim, a capoeira,
a horta - querida Maria - 
que se enchia de canseira

Limonete ao fim da escada
Alecrim pro's ramos bentos
toda uma festa, a ramada
a casinha, tão modesta,
com o nicho e a cantareira...

Na comparação com a "Vila Maria", a "Casa da Pedreira" era modesta, mas pequena não era. Teria pertencido a uma antiga quinta, com um grande portão e um átrio espaçoso de pedra. O piso de baixo era de terra batida, servia de adega, de casa da lenha, de arrumação. As escadas de acesso ao patamar superior eram de pedra, assim como as outras duas que davam, numa extremidade da casa, para as salas e, e, na outra, para a cozinha. O primeiro andar tinha quartos enormes, ao todo oito divisões. Salas e os quartos de dormir e a sala de jantar, com mobílias muito antigas, muitas de casas dos pais (era afilha mais conservadora). A cozinha, sim,  era pequena e escura, um absoluto contraste com a da Vila Maria. A criada era a Maria Póvoas, que cozinhava muito bem e tinha tempo para tudo, até para cultivar a horta e tratar das galinhas e das flores.
As janelas de guilhotina, na parte cimeira eram verdadeiros vitrais coloridos, e davam para o Largo da Pedreira, onde havia um imponente tanque comunitário, constantemente ocupado por grupos ruidosos de lavadeiras e, do outro lado, casinhas térreas, de ourives que trabalhavam filigrana de portas abertas. A casa, por certo, completamente alterada, ainda existirá... Não assim a Vila Maria. A sua vida, por desleixo e descaso de quem manda no município, foi relativamente curta, do início doa anos 20 ao fim do século, quando foi permitida a sua demolição (uma barbaridade, porque a casa com o terreno circundante teria tido fácil utilização para turismo, a mais evidente, ou para uma clínica ou um Museu, até para um centro comercial, ou condomínio de luxo, se soubessem aproveitar o enorme espaço que ladeia o edifício de época, em construções a que o ligassem harmoniosamente). Comprada por um pato bravo que faliu está hoje transformada em parque de estacionamento. Dizem. Nem a mãe nem eu o vimos com os nossos olhos, porque os fechávamos, firmemente, sempre que passávamos pelo local
A casa ficava dentro do jardim, distantes uns 30 metros da rua principal e separada de roseirais simétricos um metro mais altos e bordejados a granito, por um caminho largo, que permitia fazer à sua volta gincanas com os carros, como as que algumas vezes se organizaram. Ladeando o portão de ferro as japoneiras, de camélias cor-de-rosa. No extremo norte, à face da estrada, o mirante (que chamávamos o mirante da frente para o distinguir do mirante que ficava no outro extremo, dava, então, para um caminho de terra batida, onde agora é uma escola). Ao lado, espalhando os ramos sobre o mirante e o muro, um enorme diospireiro, A sul, também à face da estrada, o “chalet”, que fora destinado a cavalariça ou garagem, e, depois da morte do Avô, acabou arrendado a vizinhos tranquilos, gente respeitável da terra.
A simetria dos canteiros (elevados um metro acima do nível do portão e do largo espaço de acesso à casa), terminava  face à entrada principal e ao seu terraço - de lado do mirante, prolongava-se até a pequena "casa do forno e à área em que  o pomar confinava com as vinhas. Do lado do chalet, em frente ao grande vitral da parede sul, começava o pomar, por trás do qual se escondia, num retângulo fechado por muros de granito, a pocilga.. Vista de fora, sem porcos à vista, dir-se.ia uma longa   casa térrea, discretamente avistada entre muitos troncos e ramos das árvores de frutos. Havia sempre dois porcos e, quando chegava o dia da matança, as meninas eram fechadas na sala, tão longe quanto possível, para não ouvirem os gritos do tenebroso ato sacrificial. Ouviam, mesmo longe ouviam, e recordaram o horror dos sons, sem imagem. Quem vinha executar o ritual era o dono do talho, negociante próspero e homem simpático. pai da Felismina, que era amiga das meninas e, como elas, aluna de piano da prima Nucha. Depois, era dia de comer rojões, esquecendo a sua origem trágica.. 
A carne de porco sobrante era guardada em arcas, antes cuidadosamente limpas com areia e, depois, cheia de quilos e quilos de sal. A mãe conhecia bem a arte de conservar produtos, frutos, por exemplo:  mandava colocar as laranjas em areia, numa grande arca de castanho, ou os dióspiros, embrulhados em papel, em gavetões fechados. 
Do círculo de amigas e colegas das lições de pianos d pequena Mariazinha faziam parte as "Paciências", encantadoras filhas de um dos vendedores das terras onde se implantou a Vila Maria, e as irmãs Maria Amélia e a Madalena da Estrela. Não era apelido, mas alcunha -  o pai tinha construído um palacete original, em  forma de... estrela.. (Antecipando o futuro em alguns anos, poderá, desde já dizer-se que há muitas fotografias do casamento de estadão da Maria Amélia, com quem, depois, perderam contacto. porque foi viver para Viana. Madalena uniu o destino a um rapaz de Avintes, contra um coro de opiniões adversas. Gostava dele, e não quis saber de mais nada. Não se conhece o desfecho, pois também lhe perderam o rasto. A Felismina viria a ser uma rapariga bonita, alta e loira e a primeira a casar, com um Ramos, a quem chamavam o "Ramitos". Contou às colegas das, pormenores pedagógicos sobre a noite de núpcias, e deixou um conselho: "Não vale a pena gastarem dinheiro na camisa de noite de núpcias. Não vale mesmo a pena...).
Ao longo da divisória com  o terreno do Monteiro ficavam as ramadas com suporte  em bardos,  ocupando metade da quinta agrícola, desde a casa da eira ao mirante do fundo do terreno. Entre as vinhas, havia americano preto e, junto à eira, americano branco (nunca foram cortadas, escaparam ao massacre imposto por lei) e à esquerda, o "Chance la rose", que era reservado para a Avó Maria, grande apreciadora,
Os primeiros bardos eram de moscatel de Hamburgo.
O piso térreo da casa era ocupado por lojas, garrafeira e adega. Do interior, descendo a escada víamos, em frente, a garrafeira, e, passando uma porta verde, a enorme adega, com o lagar e as pipas de vinho.  A Mãe recordava os homens a pisar as uvas, e, no fim do trabalho,  a comer na cozinha, enormes pratos de bacalhau e carne de porco.
A mais famosa história ligada à garrafeira, aconteceu numa visita Pascal, quando era Pároco o Abade Andrade, pessoa muito discreta e cerimoniosa. Foi o Tio Serafim quem abriu as garrafas de vinho branco e de champanhe recém chegadas da garrafeira.  A primeira não saiu com o estrondo habitual, parecia ter perdido força. Outras foram circulando, mas ninguém parecia ter a habitual vontade de beber. Alguém comentou "É fraquinho, perdeu a força". Quando já os hóspedes se haviam retirado, a Avó Maria decidiu fazer a prova dos vinhos e descobriu que em quase todos a percentagem de pura água era elevada - adicionada pelos filhos para substituir o original, que tinham partilhado em noites de paródia secreta com amigos...Imagine-se o sermão materno que se seguiu - dirigido mais a uns do que a outros, conforme o grau de suspeição. O Tio Zé batia de longe os demais...Uma prole sempre difícil de controlar.  Eles e elas. Assim, por exemplo, das filhas só Lina a acompanhava na visitação dos doentes. M A recusava-se, firmemente e não consta que Lola e Lena fossem muito assíduas