quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O MEU VERÃO EM ESPINHO 1 - Tenho saudades do verão em Espinho, nos anos da minha infância. Esse verão, essa cidade (que ainda não o era), tinha a sua mítica Avenida bordejada de palmeiras gigantes, sempre cheia de multidões cosmopolitas, nos seus trajes de passeio, sentadas em mesas coloridas nas esplanada dos cafés, ou desfilando num vaivém infindável, vagaroso, quase solene. Tinha quiosques graciosos - daqueles que Maluda gostava de pintar - , e onde eu, desde que aprendi as primeiras letras, comprava, às terças e sextas, "O Mosquito", e mais a sul, diariamente, chocolates. Chocolates sorteados...Éramos convidadas a perfurar a superfície de papelão de bonitas caixas retangulares, libertando bolinhas de cores, que tombavam, em baixo, num mostrador de vidro. A cada cor correspondia um diferente tamanho da mesma marca. Uma espécie de máquinas de jogo para crianças - o nosso doce casino... Minha irmã acertava, muitas vezes, no prémio maior, que correspondia à pequena esfera dourada. Eu jamais! Ao Casino, é claro, só íamos ver cinema, alternando com as sessões do Teatro São Pedro. Ambas as salas de espetáculos eram enormes, esplêndidas, e ofereciam um filme por dia - o que elevava a programação mensal a uns fabulosos 60 títulos! O cartaz era divulgado quinzenalmente, em mini- livrinhos colecionáveis, que se desfolhavam como livros de contos - com sínteses de guiões muito chamativas. Ainda tenho vários, guardados como relíquias. Felizmente, os pais e os avós eram cinéfilos declarados, pelo que, em Espinho, raro era o dia em que, ou uns ou outros, não nos levavam ao seu e nosso entretimento favorito. Semanalmente, pelo menos uma vez (talvez à 4ª ou 5ª-feira, já não tenho a certeza), o Casino oferecia um bónus extraordinário, num dos dois intervalos mediante um ligeiro aumento do preço do bilhete: a exibição de um cantor ou cantora dos mais famosos do País - dos que, habitualmente, davam concertos nos seus salões. Recordo-me bem, por exemplo, de Tony de Matos ou das rivais Madalena Iglésias e Simone de Oliveira, ainda em início de carreira, mas já famosos e com vozes fantásticas... Os intervalos eram obrigatórios, para ir ao barzinho tomar uma bebida, comer um bolo, porque os baldes de pipocas ainda não tinham sido inventados. E, no casino - que era um edifício claro, luminoso, de bela traça, luminoso - - até podíamos vir às varandas gozar a maresia e olhar, do alto, o movimento da Avenida.. 2 - No que respeita à cronologia da minha agenda de férias espinhenses, devo dizer que comecei pelo meio, ou mesmo pelo fim, porque tanto os passeios no que alguns chamavam “o picadeiro” (termo que em minha casa não se usava). como as sessões da Sétima Arte ou eram noturnas, ou, quando muito, as “matinées” das 15.00. A alternativa era uma corrida de bicicletas ou um jogo de dominó ou damas nos cafés – o Café Palácio, ou o Costa Verde, os nossos favoritos. O Chinês já não existia – era ainda do tempo de juventude dos pais, não do nossa. Mas a tradição das tertúlias e do jogo no café, estavam bem vivas! Pedíamos uma limonada e uns pasteis, mais um tabuleiro de damas…nada de Coca-cola, note-se, que fora banida pelo “Estado Novo” salazarista… De manhãzinha, com bom ou mau tempo, o destino era a Praia Azul, com as barracas de riscas azuis e brancas, à FCP. Ainda mantenho o prazer de nadar com sol ou chuva - tanto me faz. Água por baixo, e água caindo do céu ligam bem – cedo aprendi isso com meu pai. Não que chuva fosse coisa frequente, em agosto ou setembro. A ventania, sim, todavia, as mais das vezes, só levantava a partir do princípio da tarde. E o “nosso mar” nem sempre se mostrava hospitaleiro, mas quando se encrespava em vagas altas, e a corrente arrastava demais, à hora do banho íamos à piscina, que era a quinta essência da modernidade. Para os frequentadores habituais, com preços convidativos (lembro-me de comprar senhas de entrada em pacotes), e, em qualquer caso, nunca lhe faltava uma abundante e sofisticada clientela. Não tinha, ainda, a concorrência da verdadeira “piscina natural”, que é a praia da baía, formada mais tarde pelo novo paredão, um mais eficiente quebra-mar… No plano atmosférico, Espinho continua obviamente na mesma – com um clima que é, para mim, uma das suas simpáticas invariáveis, porque detesto o excessivo calor estival do nosso interior - e, neste aspeto, o interior começa a poucos quilómetros da costa. E à vista, à superfície, havia o comboio, que chegava a apitar e atravessava o centro da vila com as suas máquinas negras, lançando nuvens de fumo para o ar. Os comboios de passageiros paravam, todos, na estação, e logo seguiam viagem, mas os comboios de mercadorias, não poucas vezes, sabe-se lá porquê, na Rua 7, suspendiam a marcha e bloqueavam a passagem para a praia por tempo indeterminado, o que nos levava, com juvenil imprudência, a atravessar as carruagens, pelo corredor de uma das extremidades, saltando em andamento, quando necessário.. Ponte sobre a linha férrea só havia na Rua 19 – e bem pitoresca! Adorava os comboios, como quase todas as crianças e muitos adultos, entre os quais me conto ainda… Imaginava Espinho, com uma série se pontes, sobre a linha, entre o Rio Largo e o bairro piscatório – pontes de desenho variável, que poderiam tornar-se um original cartaz de paisagem urbana, fazendo da nossa cidade, digamos, uma Veneza ou uma Paris “ferroviária”. Por baixo, em vez do rio, corria o comboio… Um amigo arquiteto, a quem eu, já muito depois de consumado o fatal enterramento da linha, descrevia o meu projeto mirabolante, disse-me que não era tão mirabolante como eu julgava, e que teria, de facto, sido equacionado por uma minha alma gémea… 3 -Com o meu olhar nostálgico sobre outra época, não pretendo sequer esboçar um julgamento da evolução que nos trouxe ao presente. Compreendo que Espinho se transformou, em larga medida, como parte de um todo, (o país, o mundo...). Esteve na vanguarda do turismo balnear, quando oferecia tudo quanto o veraneante esperava dos areais, do mar, de distrações lúdicas. O próprio conceito entretanto mudou, deslocando geograficamente a massa de visitantes, os mais e menos ricos, por igual, para os “paraísos” de sol escaldante e águas tépidas. E, assim, até os mais bairristas dos espinhenses natos, no verão, rumam aos Algarves, tal como o comum dos nortenhos – coisa que eu só faria por penitência!. Contudo, Espinho permanece uma terra perfeita para residir e não como “cidade-dormitório, mas como verdadeira comunidade, que mantém o seu caráter identitário, com os costumes populares, as tradições de convivialidade, o comércio, o admirável tecido associativo e institucional e, com ele, uma vida cultural invejável, que anima a rede de excelentes infraestruturas, públicas e privadas – de que são “ex-libris”, nomeadamente, a programação musical, os festivais de cinema, o ballet, o teatro, a Academia de Música, as Escolas, a Universidade Sénior, o desporto, que nos trazem outro perfil de visitantes… Nesta vertente cultural devo, porém, apontar a mais estranha e injustificável das lacunas: a falta de sessões regulares de cinema, apesar da existência de duas salas, que são das melhores do país - a do Casino e a do Multimeios. Não se lhes pede que abram quotidianamente as portas para oferecer 60 filmes por mês… só o mínimo de quatro, um por semana! Na verdade, da terra do Cinanima e do FEST, quase só tenho de sair para o Porto ou Gaia em demanda de cinema, em centros comerciais onde são exíguas as instalações e grandes as escolhas… Maria Manuela Aguiar...

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