terça-feira, 25 de julho de 2023

FUTEBOL FEMININO A LONGA MARCHA PARA A IGUALDADE 1 – Desde criança que o desporto foi a minha paixão - o desporto jogado e o desporto espetáculo. E, precisamente porque era tão importante na minha vida, tive desde muito cedo a consciência das barreiras que se erguiam às mulheres para a sua prática. Eu podia, em meados do século XX, romper com muitos tabus, podia estudar, tirar um curso universitário, ter uma profissão liberal, ou ser funcionária pública, viajar sozinha pelo mundo, fazer política… Tudo aparentemente, em condições de igualdade com os rapazes da minha família e geração. Durante a ditadura, é certo que me era vedada a carreira diplomática, a magistratura e me restava, no setor público, o acesso às carreiras de Notariado e Registos…), mas a partir de 1974, todos os obstáculos legais caíram, de repente…. A Cultura, a Ciência, a Política, abriam as suas portas às mulheres, com o Estado obrigado pela Constituição a promover ativamente a igualdade de facto. Não assim no Desporto, em geral e no futebol em particular. Como muitas raparigas pude, no meu tempo de juventude, testar a minha aptidão nos exames do liceu e da universidade, mas nunca saberei até onde poderia ter ido no relvado de um estádio de futebol. Claro que dei os meus pontapés na bola, mas não fui longe. Comecei por conseguir jogar com rapazes nas ruas de São Cosme de Gondomar. Foi o meu Primo Ernesto, o grande "craque" da equipa, que me impôs, contra a vontade geral. Não queriam meninas, a pretexto de que choravam ao menor encontrão. O Ernesto foi perentório: "A minha prima não chora!" Promessa cumprida. Surgiram frequentes queixas, mas não nesse capítulo. Contra as preconceituosas previsões, eu era muito rápida, muito determinada e sarrafeira. Mais tarde, no Colégio do Sardão, tornei-me organizadora e interveniente de partidas de futebol. O Colégio, para além das virtudes pedagógicas que faziam a fama das Doroteias, tinha condições admiráveis para o exercício físico. "Indoors", com um ginásio enorme e bem equipado (com pouca utilização…), e "outdoors" com "court" de ténis, ringue de patinagem, e campo de jogos polivalente para vólei, basquete e andebol - tudo no cenário idílico de uma formosa quinta. Os meus torneios eram clandestinos, embora disputados no retângulo de terra batida, à luz do dia, durante o recreio. Havia uma vigilante, dempre mais concentrada na leitura de um livro edificante do que nas nossas correrias, o que explicará que, numa longa história de infração e reincidência, só tenha sido denunciada uma vez. Coisa séria...fui chamada à Mestra-Geral e preparava-me para um pesado castigo. Talvez escrever 500 vezes "o futebol não é para meninas" num caderninho, ou, muitíssimio pior, perder a habitual saída de fim de semana. Tive uma boa surpresa. A Mestra-Geral limitou-se a lembrar, em tom benigno, que o "O futebol, como sabes, não é um jogo apropriado para meninas", terminando com uma rara nota de humor: "Em todo o caso, como sei que gostas muito de futebol, vou abrir uma exceção - tu podes jogar, as outras não”. 2 – Nos anos cinquenta do século passado, não somente a Diretora do meu Colégio pensava assim, mas o mundo inteiro! Todos os desportos estavam ao alcance dos homens, enquanto as mulheres tinham acesso restrito aos que eram “apropriados” para elas. A “natureza” feminina, na visão de época, servia de fundamentação para quaisquer limitações impostas pelas autoridades, instituições, famílias, ou pelos costumes. E assim este domínio se tornou, em sociedades democráticas, a última fronteira de uma cultura de desigualdade de género! É, de facto, muito devagar, palmo a palmo, modalidade a modalidade, que o real desempenho feminino em antigos desportos “proibidos” vai conseguindo arrasar falaciosos preconceitos. Sendo a natureza imutável, o que mudou foi, é claro, a sua perceção... O mais impressionante exemplo, neste domínio, será o dos jogos olímpicos da era moderna. Relançados em 1896 por Pierre de Coubertin, foram, tal como na Grécia antiga, vedados a mulheres. Cedendo aos protestos feministas, o Comité Olímpico Internacional (COI), em 1900, permitiu a participação feminina nas duas modalidades “apropriadas” a senhoras de sociedade: o ténis e o golfe. Em 1912, a COI juntou-lhes a natação. De alargamento em alargamento, cem anos depois, seria a vez do boxe! A partir de 1991, a luta contra a discriminações faz o seu curso, só admitindo novas modalidades abertas, por igual, aos dois sexos. Em 1996, a Carta Olímpica consagra expressamente a promoção da igualdade de género. E em 2022, a COI apresenta, finalmente, uma composição igualitária (50% de cada sexo). Em 2024, nos Jogos Olímpicos de Paris anuncia que a participação de desportistas, mulheres e homens, será rigorosamente paritária e as provas femininas transmitidas, também, em horário nobre… 3 – O futebol anda muito longe do ideal olímpico da criação de condições para a igualdade de género, de estatuto, de oportunidades. É desporto e é negócio (de biliões, que a Arábia Saudita, esse paraíso da misoginia, eleva a alturas jamais imaginadas). Ora desporto e negócio são forças que têm jogado em sentido contrário. No retângulo desportivo, os progressos do futebol feminino são extraordinários, como testemunha este campeonato do mundo, que decorre nas antípodas. Porém, na esfera do Poder, (FIFA, UEFA, Federações nacionais, coletividades), tudo como dantes... A “colonização” do futebol feminino pelas instituições, dirigentes, clubes e interesses do futebol masculino é evidente e está para durar. Quando se olha o panorama português, esta asserção é menos chocante do que em outros cenários, porque há ainda um ostensivo desnível no futebol jogado por um e outro sexom assim como no número de praticantes, consequência do descaso do Governo, das escolas, das famílias e, "last but not least", do desinteresse da esmagadora maioria dos clubes portugueses, pequenos, médios e grandes. Devemos reconhecê-lo, saudando os clubes- exceção (o pioneiro Boavista, o SCP, o SLB, o Braga...), e, sobretudo, as “navegadoras”, que, logo na 1ª jornada, tão bem se bateram contra uma das potências europeias e foram derrotadas por um golo isolado e bastante duvidoso … Além disso, embora não acompanhe de perto as competições nacionais femininas, parece-me que a noss Federação "acordou", finalmente, para o problema e tem tido um papel positivo nos avanços registados. Há, todavia, outros países do mundo onde a relação de qualidade do jogo jogado por mulheres e homens é a inversa. E aí a “colonização”, de que eu falei, assume foros de escândalo. É o caso paradigmático dos EUA (equipa campeã do mundo e 1º lugar no ranking feminino, enquanto no masculino ocupa um modesto 11º, sem pretensão a títulos) e do Canadá (7º no ranking femnino e 47º no masculino...). E é, em tons um pouco menos contrastantes, a realidade da Austrália (10ª no ranking feminino, 27º no masculino) e da Nova Zelândia (onde os homens estão no fundo da lista, no 103º lugar e as mulheres ao nível mediano de Portugal, no 22º). Neste 1º grupo, em que as jogadoras mais se destacam e são mais populares, estão países onde o futebol (ou "soccer") está muito longe de ser o desporto-rei. Talvez aqui possamos agregar a China (14º em mulheres, 80º em homens) Japão (11º e 20º...). Num 2º grupo, que também, de algum modo, já começa a apontar para a injustificada dependência ou subalternização do desporto feminino, incluirei aqueles onde o “ranking” do futebol de ambos os sexos é semelhante, ou equilibrado: a Inglaterra (4º lugar nos dois rankings), a Alemanha (2º no feminino e 15º no masculino, mas antiga campeã da Europa e do mundo, que pode vir a sê-lo, de novo), os Países Baixos (9º nas mulheres, 7º nos homens), os países nórdicos, o Brasil. Ou, longe do topo da classificação, as Filipinas (136º/135º). Não podemos negar que o futebol feminino é, historicamente, tardio, nascido do futebol masculino (como uma Eva da improvável costela de Adão...), mas é tempo de traduzir a importância que efetivamente foi ganhando, em participação nas estruturas federativas, na composição das equipas técnicas, no estatuto das e dos atletas, dos treinadores e treinadoras...No que a estes respeita, os números atuais revelam o grau de discriminação: em 32 seleções presnetes no Mundial só 12 são treinadas por mulheres (Brasil, Inglaterra, Alemanha, Canadá, Suíça, Itália, Costa Rica, RAS, Noruega, Nova Zelândia, Irlanda e China). Na 1ª Copa feminina, em 1991, havia apenas uma. O ritmo tem aumentado vagarosamente e, apesar disso, nas oito anteriores edições do Mundial há, (por feliz acaso?), uma perfeita paridade de vitórias - quatro de selecionadoras (duas da Alemanha, duas dos EUA) e quatro de selecionadores. Neste aspeto, há um desempate à vista. Ainda não me atrevo a fazer prognósticos. Nesta primeira jornada, o destaque vai para as sumptuosas goleadas das brasileiras de Pia Sundhage (com uma estreante, Myr Borges, a fazer história com um “hat-trick”) e das alemãs de Martina Voss- Tecklenburg. Para já, remeto-me a deixar uma sugestão: se gostam de futebol, sem preconceitos de género, não percam, os jogos, ou, ao menos, os resumos no canal 9.