sexta-feira, 1 de março de 2024

MARIA LAMAS

Maria Lamas é uma mulher verdadeiramente intemporal, que tem um lugar ímpar na história portuguesa do jornalismo e das Letras, da luta contra a violência de uma longa Ditadura e do movimento feminista do século XX. Protagonista maior, em todos estes campos, sujeito de um destino heróico num tempo concreto, que lhe exigiu vencer mil obstáculos, preconceitos e perseguições, que a levou, muitas vezes à prisão e, por fim, a um exílio de muitos anos. Intemporal como exemplo de cidadania vivida audaciosa e apaixonadamente, com uma visão clara do futuro, uma crença na força criativa e subversiva do seu sexo para mudar o velha Ordem, e o velho mundo, sempre, sempre, com uma infinita generosidade. Foi pioneira no jornalismo, que era ofício de homens. Continuadora das tradições e dos valores humanista do feminismo republicano, à frente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, expressão máxima desse associativismo revolucionário, que começou com Adelaide Cabete e suas companheiras e acabou justamente com ela, ao ser extinta pela brutal discricionariedade do regime. E autora de romances, de inúmeros escritos, que foram, nas suas mãos, armas inteligentes de combate estratégico e que culminam na obra monumental "As Mulheres do meu Pais". Não menos admirável foi a sua vida privada, com dois casamentos, seguido de divórcios, que na sociedade de então, eram atos de grande coragem. Sozinha educou as duas filhas, influenciou e inspirou as netas e os netos, através de cujos testemunhos sobre a Avó Maria, ficamos a conhecer melhor o seu encanto como pessoa, a sua beleza de rosto e de espírito, a constante preocupação para com os outros, o seu temperamento afável e bondoso. Nos anos de exílio, em Paris, tornou-se a mãe ou a Avó Maria de um sem número de expatriados, que nela encontravam, invariavelmente, ajuda e amizade

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

AS NOSSAS LEIS E OS SEUS INTÉRPRETES 1 - As leis foram o meu ofício, mas há muito deixaram de ser, Formei-me em Direito na Universidade de Coimbra, no distante ano de 1965. A escolha do curso e da cidade foram, insólitamente, fruto de dois equívocos literários. Ou seja, da leitura de escritores que me fascinaram. O primeiro foi americano Erle Stanley Gardner, o criador de Perry Mason, advogado das causas impossíveis, que fazia justiça contra a (in)justiça do sistema, graças aos seus dotes de investigação criminal e ao poder da sua argumentação na sala do tribunal. O segundo foi o português Trindade Coelho, com a sua obra (autobiográfica) "In illo tempore", o livro de relatos das mais divertidas aventuras e desventuras de uma brilhante e turbulenta geração de estudantes coimbrãos. Eu temia que aquela Coimbra mítica já não existisse, tal qual fora, mas tinha esperança de ainda encontrar, da sua lúdica glória, alguns vestígios. E, de algum modo, encontrei, entre bons e maus, por mais entendendo os excessos da "praxe", em todo o caso muito menos brutais do que hoje vemos em universidades de fresca data, sem genuínas tradições. O que jamais encontrei foram oportunidades de emular Perry Mason, pois os crimes, que preencheram o meu estágio e os primeiros anos de advocacia, no Palácio de São João Novo, não passaram da defesa de pequenos larápios, desavenças de vizinhos ou acidentes de trânsito. Dois dois citados "equívocos literários" nasceu, afortunadamente, a escolha certa, e eu "adorei" (como no meu tempo de juventude se usava dizer) o curso, sobretudo as cadeiras de Direito Civil, e a cidade, "a velha academia", que ainda cantava o fado, em serenatas pela noite fora. Uma das minhas matérias preferidas foi "Teoria Geral do Direito", onde aprendi as regras de interpretação das Leis, assim como a conviver com a eventual inevitabilidade de diferentes interpretações, todas baseadas em bem fundamentada argumentação... . No meu caso, em breve, abandonaria a advocacia de barra em favor de trabalho jurídico de gabinete (estudos, pareceres, legiferação...) e, mais tarde, do ensino universitário em Coimbra, na "minha" Faculdade, e Lisboa. E, por fim, embora a contragosto, me vi em cargos políticos, que aceitei como temporários e se tornaram definitivos, e onde, sempre me preocupei em respeitar Lei, tão bem interpretada e aplicada, quanto me era possível... 2 - Assim sendo, confesso, o meu espanto e incompreensão, pela forma como tantos ilustres juristas, nessa veste ou outra (a de políticos, (juristas e políticos com os quais não posso nem pretendo sequer comparar-me), tomam as leis em mãos e as viram para onde querem ou para onde lhes convém. Não haverá melhor exemplo disso do que o do constitucionalista e Presidente da República, que, logo no ato da posse a um Governo maioritário, informou o Primeiro Ministro que não permitiria a sua substituição no cargo, pois quem ganhara a eleição não fora o seu partido, mas ele individualmente. Ora o que, inequivocamente, dispõe a nossa lei é que quem ganha as eleições legislativas são os partidos. Na verdade, a esse nível nem há hipótese de formação de listas independentes - só permitidas a nível autárquico. Uma tal “personalização” de eleições nos líderes partidários, mesmo sabendo o seu peso real no contexto eleitoral, é completamente abusiva. Neste momento, está a custar ao país o preço de uma descabida convocação de novas eleições. Para que o prejuízo não seja maior, resta-nos esperar que. a 10 de março, os resultados tragam nova maioria (improvável) ou uma solução de respeito pelo vencedor das eleições, com a viabilização de um Governo minoritário, pela simples abstenção do opositor principal, como nos ensina a lição dos grandes políticos que marcaram décadas de uma democracia, a celebrar já o seu cinquentenário Mas há mais e ainda mais chocantes interpretações desviantes da lei, por parte de Tribunais (começando pelo próprio STJ!) e das magistraturas judiciais. Um caso recente chocou o país: a detenção por 21 dias dos três famosos arguidos da Madeira, o ex Presidente da Câmara do Funchal – “ex” porque, instaurado o processo, se demitiu de imediato - e dois empresários, à ordem de um juiz, que, aliás, 21 dias depois, lhes não aplicou qualquer medida de coação. Ora, o prazo que a lei dá ao juiz para tomar tal decisão é de dois dias, (isto é, quarenta e oito horas…. Em outros países com uma jurisprudência rigorosa dos mais altos tribunais, prazos semelhantes são rigorosamente cumpridos. Quem vê as séries muito realistas do Fox Crime, ou Star crime, sabe bem que o Ministério Público, na Grã-Bretanha, nos EUA, na França e, em qualquer outro “Estado de Direito” não pode levar os arguidos a um juiz, para recolher as provas depois. Aqui, por vezes, como na Madeira parece ter sucedido, em vez de apresentar provas dá-se “espetáculo de pesquiza” de dados ou indícios. A “operação Funchal”, com dois aviões militares, 200 ou 300 investigadores policiais e uns quantos magistrados (mais os jornalistas que chegam sempre primeiro, chamados sabe-se lá por quem…) foi puro espetáculo, dir-se-ia a saída de uma reportagem da guerra colonial, encomendada pelo regime. A “guerra” possível no império que resta (um “império dos pequenitos”, com as ilhas atlânticas e a zona marítima exclusiva, que não é pequena herança. O mar, muito à portuguesa, não se explora, é claro, e para as Ilhas manda-se um “Governador Geral”, que não se chama assim, e que não tendo sido eleito por ninguém, faz as vezes, como última sobrevivência colonial… 3 – De má interpretação e má aplicação das leis está a nossa República cheia! E as consequências do espetáculo midiático, centrado no mundo da política, está à vista de todos, como um rastilho de incêndio que, se continuado, ameaça tornar o sistema ingovernável. Ninguém escapa! De alto a baixo, estão todos sob suspeita… o Presidente, (num episódio luso-brasileiro rocambolesco, e sem pés para andar), o Primeiro-Ministro (ouvido numa suposta escuta, que pode ter sido só um engano no nome, pois Costas há vários?), um Presidente de Governos Regional, e uma infindável fileira de autarcas. Os processos podem até “morrer na praia” .... veja-se o recentíssimo desfecho do processo de Caminha, ou do supremamente aberrante processo de Matosinhos (em que foi posta em causa a prerrogativa da Presidente de Câmara escolher, livremente, o seu chefe de gabinete, como se esse cargo não fosse, por natureza, de confiança pessoal!). Pouco importa, o mal está feito, é irreversível. Para já, vimos mais alto magistrado da Nação ser enxovalhado, o Primeiro Ministro cair, e, com ele, o Governo e a Assembleia da República, o Presidente do Governo Regional da Madeira cair também), arrastando, ou não, o Governo e a Assembleia Regional, e os autarcas tombarem, um atrás de outro. E não tinha que ser assim!... Há que resistir à força intimidatória da suspeita que pode, a qualquer momento, recair sobre um cidadão exemplar, envolvido, ou não, na “res publica”. É absolutamente crucial que se dê o menor significado possível à figura de arguido, assim procurando restituir, na vida coletiva e na opinião pública, o pleno significado à velha e, pelo visto, desvalorizada “presunção de inocência”! Os titulares de cargos, estando de consciência tranquila, têm o dever de não se demitirem, neste novo contexto de ameaça à durabilidade de governos e assembleias, legitimados por maiorias. Sigam o exemplo de dois sucessivos presidentes da Câmara do Porto, Rui Moreira e Rui Rio (este arguido oito vezes, durante os seus mandatos autárquicos, manteve-se no posto até ao fim e saiu com o curriculum impecável) Esperemos que, também, o Senhor Presidente deixe de colaborar, ativamente, no abate de assembleias e governos, sustentados por maioria. Pode começar por poupar a Assembleia Regional da Madeira a eleições antecipadas, ao contrário do que fez no País. É uma forma de dizer “mea culpa”, em relação ao passado, e de diminuir, futuramente, os efeitos prematuros e precipitados da ação da Justiça sobre a Política, deixando ambas seguir, até à decisão final dos processos, um curso paralelo. Para a estabilidade do sistema, e tranquilidade do povo, muito contribuirá, assim, a sua própria não interferência política... Poupe-se e poupe-nos, Senhor Presidente!

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Nota Introdutória PARA REVER 1 - Para olhar o nascimento do “Conselho” à distância de quarenta anos, privilegiarei a data da sua primeira reunião mundial, realizada em Lisboa, de seis a dez de abril de mil, novecentos e oitenta e um, e não a da promulgação do diploma jurídico pelo qual foi criado (DL nº 373/80 de 12 de setembro) porque, na minha perspetiva, esta lei pode considerar-se uma declaração de intenções, uma esperançosa expetativa com futuro incerto, entregue ao poder fático da reunião constituinte. Crucial é o momento de passagem da esfera normativa do Direito à realidade da vida das pessoas ou das instituições, e no caso do CCP, esse trânsito foi muito além da boa aplicação da lei, pelo facto de ser, à partida, uma lei a rever, para melhor se ajustar à vontade dos destinatários, um convite a que eles próprios a reformulassem, nela vertendo, porventura, outros conteúdos. É nessa procura de reconfiguração, no ponto de equilíbrio de vontades e estratégias, que se corporiza o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP). Este segundo tempo foi, assim, o que contou mais. O Governo, na sua primeira consulta, convidou os Conselheiros a uma livre ponderação de alternativas às linhas do modelo institucional para que apontava originariamente. Não colocou obstáculos a deslocar o seu centro de gravidade da interlocução da Diáspora para a da emigração recente, dando espaço ao debate dos problemas prementes do quotidiano. E com isso entrou o Conselho num domínio que, continuando a ser de reencontro pelo diálogo, não mais escaparia à turbulência e à confrontação, verbalmente violenta, que marcou a segunda década de setenta e os primeiros anos de oitenta, em Portugal. Tempos ainda próximos da dinâmica e das contradições da revolução de 1974, que, já então, entrara numa via reformista, apoiada por larga maioria constitucional e popular, mas entre profundos conflitos Maria Manuela Aguiar | pag. 14 sociais e choques político-partidários. Saindo da área da dominante cultural (com a sua facilidade de consensos naturais, já que a Cultura é sempre o máximo denominador comum) o CCP avançava em terreno aberto às arrebatadas pulsões que agitavam a sociedade portuguesa, dentro e fora de fronteiras por igual - quando não mais ainda em algumas das comunidades do estrangeiro do que no País. Naqueles poucos dias da Reunião Mundial do Palácio Foz, o Conselho mudaria de natureza, de vocação, de estilo, e consequentemente, de destino. 2 – O manifesto eleitoral da Aliança Democrática, em 1979, tratava com o mesmo relevo, mas em rubricas autónomas, a “Emigração”, com referência a políticas públicas de apoio social e jurídico aos emigrantes e aos seus descendentes, e as “Comunidades Portuguesas no Mundo”, com a ênfase colocada na preservação dos laços históricos e culturais ao País, na criação de um “Conselho das Comunidades Portuguesas no Mundo”, onde estas se fariam representar. No que concerne às políticas públicas para as migrações de saída e regresso apostava-se na continuação de esforços iniciados em 1974, visando sobretudo, a melhoria de meios e a sua eficiência. No que respeita às “Comunidades”, a principal promessa eleitoral era inovadora, encarava de frente uma das falhas mais extraordinárias que, bem vistas as coisas, a sociedade civil partilhava com o Estado: a inexistência de uma plataforma internacional de união entre os portugueses no estrangeiro. No panorama europeu, note-se, esta constatação convertia-nos em caso raro entre países de emigração, mesmo entre aqueles cuja tradição migratória se não podia, quantitativa e qualitativamente, comparar com o peso e significado da nossa. Em todos esses países encontramos, desde fins do século XIX, ou inícios do século passado, movimentos federativos das associações atuantes nas diversas regiões do mundo da sua imigração, maioritariamente O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 15 oriundos da iniciativa privada, nalguns casos apoiados ou enquadrados num organismo de cúpula governamental. A lacuna é tanto mais de estranhar, quanto se sabe que a propensão associativa dos emigrantes portugueses foi enorme, nas várias épocas e latitudes. Da parte do Estado, o descaso não poderá surpreender-nos, sabido que as primeiras medidas de apoio aos emigrantes datam de meados do século passado e se limitam ao acompanhamento da viagem de ida, em travessias transoceânicas realizadas em condições de grande risco, ficando depois os cidadãos entregues a si próprios. Face a essa total e multissecular “ausência do Estado” nas comunidades da emigração, nasceu e cresceu, enraizado em fortes laços de entreajuda e solidariedades, um impressionante associativismo, no domínio social e cultural, que tanto refletia a relação afetiva com a terra originária como ajudava a integração no país de acolhimento. Poucos foram, no passado, os governantes ou os académicos que se aperceberam da dimensão do fenómeno associativo enquanto esteio de comunidades estruturadas e perenes. Os que podemos apontar como exceção (caso de Afonso Costa) atribuem-lhe um caráter fugaz ou transitório, identificando-o como forma de combater o sentimento de isolamento e a saudade por parte de uma emigração temporária. Porém, ao contrário do que previa (e queria) o Estado, grande número de indivíduos e famílias escolheram o não retorno, mantendo essa vontade de pertença coletivamente expressa no grupo nacional. Neste contexto, que apresenta traços comuns a outras migrações europeias, cumpre indagar quais os motivos, as circunstâncias, as eventuais especificidades que contiveram, então e ainda hoje, o nosso associativismo dentro dos limites de cada um dos países de destino, como se fossem desconhecedores ou desinteressados da existência dos demais. Esperamos de futuras investigações, o aprofundamento da compreensão das caraterísticas de um Maria Manuela Aguiar | pag. 16 associativismo português fechado dentro de fronteiras e das causas que porventura o condicionaram ou acantonaram. A larga predominância, ao longo de séculos, da emigração para o Brasil (país imenso, um mundo em si, uma sociedade aberta e acolhedora, onde a língua e a cultura tornavam mais fácil as relações sociais e o enraizamento) surge como hipótese de trabalho. No Brasil se situam as mais grandiosas manifestações do espírito associativo português, em número e em dimensão sem paralelo em quaisquer outras comunidades - os “Gabinetes de Leitura”, os Hospitais e os Lares das “Beneficências”, os clubes sociais, as agremiações desportivas... Aí existe uma importante Federação das Associações Portuguesas e Luso-brasileiras, que representa as nossas maiores instituições no mundo, sem, contudo, ter pretendido transpor as fronteiras do Brasil. 3 – Ao longo dos últimos dois séculos, registamos somente um conseguido ensaio de agregação das comunidades de língua e cultura portuguesas por iniciativa do Prof. Adriano Moreira, à frente da Sociedade de Geografia, na década de sessenta do século passado. Foi o primeiro a compreender a importância dos laços que a História tecera (não apenas a História do Império em declínio, mas a do êxodo sem fim dos portugueses que consigo levaram e expandiram a fala e a cultura em todo o planeta), e a mostrar capacidade de agir, reunindo em congresso mundial os representantes dessas comunidades de língua, cultura e afeto. O primeiro Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa teve Lisboa como palco, o segundo, Moçambique, o terceiro estava projetado para o Brasil. Seria, porém, adiado sine die, porque o regime, que, de uma forma mais ou menos neutral, aceitara o avanço deste movimento da sociedade civil, se fechou, em definitivo, após a ascensão de Marcelo Caetano ao poder. As atas do 1º e do 2º Congressos foram publicadas pela Sociedade de Geografia em seis volumes e documentam o espantoso e O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 17 pioneiro trabalho levado a cabo. Ao lê-las, mais de meio século depois, constatamos que não foram as últimas manifestações de saudosismo colonial, na sua 25ª hora, mas o prenúncio de uma CPLP ainda informe e distante - não a que mornamente subsiste, no novo século, mas a que sonhou José Aparecido de Oliveira. Ao grande político brasileiro, como a Adriano Moreira, os meandros da Política e da História não deram tempo de levar a obra por diante. E não houve, a meu ver, até hoje, quem a soubesse retomar com a mesma visão da lusofonia policêntrica e universalista. 4 - A revolução de 1974 tardou sete anos a convocar os expatriados ao diálogo e à cooperação global no Conselho das Comunidades Portuguesas. Desta feita, a iniciativa pertenceu ao Estado. Os representantes de organizações da sociedade civil foram chamados ao encontro com o Governo, num exercício de democracia que revestiu a forma de proposta à coparticipação na definição das políticas para as comunidades do estrangeiro. O Conselho foi, desde o início, concebido como instância consultiva do Governo da República e dos Governos Regionais e como órgão representativo dos seus eleitores, dotado, consequentemente, do direito de iniciativa. Comparando o movimento da Sociedade de Geografia e o CCP instituído pelo Governo da Aliança Democrática, poderemos concluir que coincidiam no objetivo fundamental de federalizar o movimento associativo das comunidades do estrangeiro, igualmente se aproximando no propósito de colocar o foco na área da cultura e nos laços afetivos. Todavia, o momento político em que o diploma criador do Conselho foi trabalhado exigiu atenção a outros aspetos, que viriam a determinar o seu alargamento à vertente sócio laboral das migrações. O facto de o Governo anterior, no último mês do seu mandato, ter posto em marcha a organização de um Congresso das Comunidades Portuguesas (ao abrigo do Decreto-Lei nº Maria Manuela Aguiar | pag. 18 462/79 de 30 de novembro) colocou o VI Governo Constitucional perante o dilema de cumprir o seu próprio programa ou de o compatibilizar com os objetivos de projeto alheio. Não foi surpreendente a decisão de propor à Assembleia da República a ratificação do diploma de 30 de novembro, com o propósito de deslocar o Congresso da esfera de influência presidencial para a do executivo e de impor o seu adiamento para 1981. O cancelamento dos preparativos no ano de 1980 provocou fortes reações nas comunidades em áreas onde a oposição partidária era mais forte (sobretudo em França, onde o movimento associativo estava bastante politizado) e terá contribuído para o ambiente conturbado em que se gerou o CCP, e, em resposta, levou a uma tentativa de conciliar o «Conselho de Diáspora», previsto no Programa da AD, com a ideia de um «Conselho de Emigrantes», que o governo anterior visava criar no contexto do seu Congresso. O articulado do Decreto-Lei nº 373/80 de 12 de setembro era suficientemente flexível para abarcar a problemática das migrações antigas e recentes, e, de facto, o CCP encontraria a sua identidade servindo ambas as vertentes. O pedido de ratificação do Decreto-Lei nº 462/79 pelo Governo da AD e o atraso na publicação do diploma que instituía o CCP, implicaram o adiamento de ambos os eventos, no ano de 1980. Seria, por isso, o VII Governo Constitucional que, no começo do ano seguinte, dinamizou o processo de constituição das “Comissões de País” por áreas consulares, e através delas, da eleição dos seus representantes à 1ª Reunião Mundial do CCP. A reunião foi organizada por Secções onde seriam debatidos, em profundidade, os pareceres ou recomendações ao Governo, e por Plenários, onde estes seriam submetidos a votação final. À lista de Secções resultantes de prévia consulta aos eleitos, o Governo acrescentou uma Secção destinada à análise do articulado do Decreto-Lei nº 373/80, um espaço de diálogo em que as suas disposições podiam ser repensadas e reajustadas, como foram, e O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 19 não de uma só vez, mas por consensos alcançados nas sucessivas etapas, em que se foi moldando a instituição. 5 – Houve, à partida, a preocupação de delinear um diploma jurídico abrangente e flexível que pudesse ser a plataforma jurídica onde os representantes das comunidades iriam protagonizar a aventura irrepetível de criar a instituição - um complexo e exigente processo de procura e de consecução de consensos bastantes para a alicerçar, através de pontes lançadas entre posições políticas, geografias e tipos de emigrações muito diversos, que se desconheciam e, por se ignorarem, se antagonizavam - a Europa contra o resto do mundo, migrações recentes contra as migrações antigas, mais os descontentes com o adiamento do 1º Congresso do Governo Pintasilgo e os simpatizantes do novo Governo Sá Carneiro. Por fim, na mútua aceitação de opostos sedimentou-se uma instituição abrangente e original. O grupo de trabalho que preparou a legislação foi buscar inspiração a um modelo estrangeiro do único país onde funcionava, já com largos anos de existência, um órgão governamental de audição de emigrantes - a França, o “Conseil Supérieur des Français de l’ Étranger” (CSFE). Comparemos o CSFE com o CCP: um e o outro estavam sediados no Ministério dos Negócios Estrangeiros e eram presididos pelo Ministro. Neles tinham assento membros natos, membros eleitos (por um colégio eleitoral associativo) e membros nomeados. No caso do CCP, estes últimos foram escolhidos numa lógica bastante mais restritiva dos poderes discricionários do Ministro, visto que os representantes sindicais e patronais eram indicados pelas respetivas centrais. Os peritos escolhidos pelo Governo constituíam um reduzido núcleo e sempre desempenharam de forma extremamente discreta a sua missão de apoio técnico. O Decreto-Lei nº 373/80 era um documento sintético, assente em arquitetura minimalista. Não especificava, por exemplo, os diferentes papéis de cada uma das três categorias referidas. Maria Manuela Aguiar | pag. 20 Todavia, a sua prática não deu margem a quaisquer dúvidas: os membros natos - Governo da República, Governos das Regiões Autónomas, Deputados – promoviam simplesmente a audição dos eleitos. Face a face, em diálogo, ficavam os detentores do poder público e os eleitos da sociedade civil, delegados das associações e “observadores” da Comunicação Social (aceites como iguais, na sua veste representativa e consultiva). Mais difícil de definir, antes de tudo por ser menos óbvia numa leitura literal do diploma, era a função dos “membros nomeados” - representantes dos sindicatos e do patronato e especialistas convidados pelo governo. A chamada das centrais sindicais e associações patronais tanto podia significar a aposta numa instância tripartida de concertação, porventura inspirada na CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego, criada no ano anterior) caso em que seriam um segundo patamar de auscultação, somando-se à vertente principal (a da Emigração e Diáspora), ou, como veio a acontecer, remeter-se a uma função coadjuvante no debate (de suporte técnico e jurídico à formulação de recomendações e pareceres). Os “delegados” dos parceiros sociais (que o eram, na realidade, apesar de o despacho de nomeação caber ao MNE) fizeramse ouvir mais a esse nível, nos bastidores e nos “media” que lhes eram afetos – sobretudo a CGTP/Intersindical, perante a mais discreta atuação da UGT e a invisibilidade quase total dos representantes das associações patronais. “Conselheiros” eram, pois, os dirigentes associativos que integravam as “Comissões de País” e os “Observadores” da Comunicação Social. A presença dos “membros natos”, não só nas sessões solenes de abertura e de encerramento, como em muitas das reuniões de trabalho, foi garantia de acessibilidade a parceiros de diálogo. E, por isso, paradoxalmente, o primeiro Conselho seria, mais do que o segundo (1996/2021), um espaço de interlocução direta O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 21 entre os Conselheiros e os responsáveis políticos. E quer o CCP “associativo”, quer o CCP refundado em 1996, se ergueram sobre uma legitimidade democrática – no primeiro alicerçada no voto de um colégio eleitoral, formado por representantes do movimento associativo; no segundo em processo de sufrágio direto, secreto e universal dos portugueses pertencentes a um determinado universo cuja dimensão foi variando - de princípio, coincidia com os cadernos de inscrição consular (mais de dois milhões de cidadãos nacionais), depois, viu-se circunscrito aos cadernos eleitorais dos círculos de emigração, então com pouco mais de 170.000 recenseados e, em data mais recente, cresceu de novo enormemente pela via do recenseamento automático dos expatriados detentores do cartão de cidadão (cerca de 1.500.000 eleitores). 6 - Do ponto de vista de funcionamento do Conselho, comparando os dois modelos que se sucederam - o que constituía um fórum presidido pelo Ministro dos Negócios e o que atualmente forma um coletivo com presidência eletiva - constatamos que nas sessões em que o Governo está presente continua a assumir protocolarmente a sua direção. A diferença reside no facto de essa presença quase se limitar às solenidades de abertura e encerramento dos trabalhos. De facto, a presença do Governo no 1º CCP responsabilizava-o na dação de respostas e justificações, enquanto no Conselho atual se converteu em ritual de boasvindas e de despedida, libertando os governantes da pressão exercida numa relação direta. E, como temos visto, em alguns casos, até da necessidade de abordar a problemática contida nas Recomendações caídas em semiesquecimento. Para isso também terá contribuído, no seu início, uma menor mediatização, face àquela de que gozou o Conselho associativo. Nos meios de comunicação social, eram menos as notícias sobre as reuniões, as propostas, a vida do CCP. Todavia, gradualmente, o Conselho tem vindo a afirmar-se, também, neste campo e com uma imagem pública muito mais positiva. Ainda aquém Maria Manuela Aguiar | pag. 22 do desejável, dirão alguns. Em qualquer caso, os progressos são inegáveis. Certo é que o CCP há muito deixou de ser um cenário privilegiado de confrontação, imagem de marca dos seus primeiros anos e causa mais provável do seu eclipse em 1990 (eclipse quase total, visto que, na sua segunda vida, que se prolongou até 1996, o “Conselho” modificado pela Lei nº 101/90 funcionou, essencialmente, a nível local). Em 1996, o Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Lello, relançou o Conselho, dando continuidade ao que tinham sido as suas formas de cooperação tradicionais. Embora eleito por sufrágio direto e universal, o atual CCP acolhe uma plêiade de dirigentes associativos – e estranho seria que assim não fosse, pois é, em regra, através da atividade cívica e do voluntariado no interior das comunidades que os cidadãos ganham prestígio e notoriedade entre os seus pares. Esse é um dos fatores que lhe tem permitido manter o seu perfil e espírito original. 7 - No balanço de 40 anos de vida desta instituição, tão sólida na vontade coletiva de existir e nas solidariedades que dela emergiram, avulta, no lado mais negativo, uma certa desvalorização do seu trabalho pela falta de resposta, assaz frequente, das Recomendações, assim como omissões, também frequentes, de consulta do Órgão em matérias de relevo para os cidadãos emigrados e para o futuro da Diáspora. Matérias que transcendem largamente o âmbito de uma Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, hoje desprovida dos meios de que dispunha até à década de noventa do século passado, o Instituto de Apoio à Emigração e às Comunidades Portuguesas (organismo dotado de autonomia administrativa e financeira, e o seu escol de técnicos, especialistas e dirigentes) e a Comissão Interministerial para a Emigração, à qual eram levadas as Recomendações dirigidas pelo Conselho a cada um dos departamentos da Administração Pública. O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 23 Que futuro para o CCP? Autonomia face ao Executivo e ligação preferencial ao Parlamento? Consagração constitucional? O poder discricionário do Governo no relacionamento com a instituição dele dependente marcou várias fases do seu percurso, chegando praticamente a neutralizá-lo entre 1988 e 1996. Quase dez anos decorreram entre a última reunião do “Conselho associativo”, em fins de 1987, e a primeira reunião do Conselho renascido em 1997. Este longo hiato de invisibilidade, a nível global, não correspondeu, é certo, à inexistência jurídica da instituição, mas ao incumprimento da legislação em vigor (caso da não convocação das reuniões anuais, entre 1988 e 1991) ou uma nova estrutura, que se revelou, em larga medida, inexequível, devido à fragmentação dos colégios eleitorais, consagrada na Lei nº 101/90 e à irregularidade de funcionamento dos Conselhos de País. No 40º ano da acidentada vida do Conselho das Comunidades Portuguesas, é hora de repensar as condições jurídicas e fáticas para o pleno aproveitamento do seu imenso potencial e de o reconhecer como a instituição que levou a democracia, ressurgida em 1974, às comunidades portuguesas no estrangeiro. Nesta coletânea de alguns escritos sobre esta temática, quer sobre a origem e a história dos mecanismos de representação de emigrantes em espaços transnacionais, quer sobre o CCP, dou conta de ocorrências e de reflexões pessoais, ancoradas no acompanhamento da sua vivência. Uma visão subjetiva (como Presidente do Conselho, na primeira fase, entre 1980 e 1987, e como Deputada da Emigração, de 1997 a 2005) à qual subjaz a crença nas suas virtualidades, a par de algum ceticismo, que o passado justifica, quanto à capacidade de as projetar inteiramente no atual quadro da dependência governamental. Foi esse moderado ceticismo que me levou a dar, na Assembleia da República, em 2004, um último contributo para a valorização do CCP, através da organização de um colóquio promovido pela Maria Manuela Aguiar | pag. 24 Subcomissão das Comunidades Portuguesas, a que presidia, sobre possíveis modelos alternativos ao Conselho atual. Nessa audição foi aventada, por alguns dos mais prestigiados juristas portugueses, a consagração constitucional do CCP, a fim de garantir a sua autonomia, com ou sem uma eventual transição para a órbita da Assembleia da República. Um passo em frente no seu trajeto, para cumprir a vocação originária de ser uma assembleia verdadeiramente representativa e influente, o grande fórum da Diáspora e da emigração portuguesas. Espinho, 6 de abril de 2021 Maria Manuela Aguiar

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

REVIVER MARIA ARCHER - Olga Archer Moreira

Reviver Maria Archer Senhora Dra. Manuela Aguiar, Senhora Professora Doutora Isabel Henriques de Jesus, Senhoras e Senhores, Apresento os meus agradecimentos ao Círculo Maria Archer na pessoa da Sra. Dra. Manuela Aguiar, pela organização do ciclo de colóquios “Maria Archer Eu e Elas- Mulheres que irromperam no mundo dos homens”. Ao imaginar como vos deveria apresentar Maria Archer recordei-me de um Inquérito às Mulheres Portuguesas que o semanário O Diabo, dirigido por Ferreira de Castro, corria o ano de 1935, lançou. Penso que nada será mais autêntico do que reencontrarmo-nos com Maria Archer através das suas próprias palavras. Permitam-me, então, que vos recorde alguns dos considerandos de Maria Archer sobre questões, ainda e sempre, tão actuais como “A mulher, o feminismo–O trabalho feminino – A época em que a mulher foi mais feliz”. “Fala a escritora Maria Archer Maria Archer, escritora e jornalista, respondendo ao nosso inquérito, começa por nos manifestar as suas impressões sobre a dificuldade de se dar uma resposta concisa e genérica a determinadas perguntas que é costume fazer-se em relação à vida espiritual das mulheres. E diz: MA -As aspirações da Mulher são muitas: a maior parte delas, porém, não se confessa. Acima de tudo a Mulher deseja o reconhecimento da sua categoria de criatura socialmente humana. É que, presentemente a mulher é ainda um animal doméstico. O Diabo - Quanto ao feminismo… qual a sua maior preocupação? MA - A de conseguir para a mulher a independência em todos os seus aspectos. O Diabo - Que impressões possui sobre o trabalho feminino? MA - O trabalho é sempre um meio de subsistência. Para a mulher, entretanto, não chega a ser isso. No futuro, o trabalho será aquilo que havemos de ver quando o futuro fôr presente. O Diabo – Houve alguma época da existência da humanidade em que a mulher tivesse sido feliz? MA – Uma: a do matriarcado. O Diabo – Efeitos do desenvolvimento intelectual da mulher? MA – De princípio, um mal, porque a mulher, por seu intermédio, perde a faculdade de admirar os homens. Em relação ao lar, esses efeitos são mínimos: o lar é um campo mais próprio para manifestações afectivas do que manifestações intelectuais. Perante os filhos a intelectualidade da mãe deve forçosamente manifestar-se benéfica. Na vida social, depende do carácter dela.” E como afirmou Maria Teresa Horta, no prefácio à reedição do livro Ela é apenas Mulher: “Tudo o que Maria Archer dizia, era proibido.” Assim vos apresentei Maria Archer, a irreverente, de seu nome Maria Emília Archer Eyrolles Baltasar Moreira. Nasceu em 4 de janeiro de 1899, em Lisboa. Foi a mais velha de uma prole de seis. Um rapaz e 5 raparigas. A sua vida juvenil passou-a quase toda em África. No longínquo ano de 1910 aportou em Moçambique. Maravilhou-se com a paisagem que diariamente lhe inundava o imaginário e apelidou-a de “ilha de coral branco” (Archer, 1940). Aí “fascinada com o encanto da sua alma oriental” (Archer, 1940) publicou o seu primeiro artigo no jornal O Ocidental em 1913. Em 1916 rumou até à Guiné, “a verdadeira África maravilhosa” (Archer,1940). Aqui viveu durante dois anos. Em 1990, Leopoldo Amado na comunicação A Literatura Colonial Guineense afirmou que «as condições nas duas primeiras décadas do século XX não eram propícias ao florescimento literário, pelo que se exceptuarmos a actividade jornalística que esporadicamente publicava alguns poemas saudosista-coloniais, que saibamos, não foi publicada outra obra literária-colonial que não a de Maria Archer e Fernanda de Castro. Maria Archer apresenta-se-nos como a primeira literata-colonial e é reconhecida como a “poeta do exotismo”». Em agosto de 1921, e já em Faro, casou com Alberto Teixeira Passos, que tinha conhecido anos antes na ilha de Moçambique. Os primeiros cinco anos de vida do jovem casal e do filho de Alberto foram vividos em Ibo, Moçambique. O seu matrimónio resistiu 10 anos. Após a separação Maria Archer terá feito uma Carta Precatória para Depósito de Mulher Casada, informando que estava a viver em casa de família em Lisboa (Botelho,1994) e em 1931 encontrava-se já, oficialmente, separada do marido. Nesse ano navegou até Angola para viver com os pais e aí permaneceu até 1935. O seu primeiro livro foi editado em Angola, em 1935. Um livro de novelas e de contos intitulado, Três Mulheres, em parceria com Pinto Quartim. Aqui colaborou no Última Hora, no Pátria, no Comércio de Angola e no Angola Desportiva. Após o regresso a Portugal, e ainda no curso do ano de 1935, publicou o romance África Selvagem – a sua estreia na literatura colonial portuguesa. Sobre o romance África Selvagem escreveu Augusto Pinto no Diário de Notícias: “Há muito que não líamos em língua portuguesa livro que tanto nos agradasse” salientando, entre outros predicados da obra, a «linguagem rica, de uma perfeita plasticidade e de um colorido brilhante como só grandes escritores sabem utilizar» (Quartim, 1936). O Diário de Lisboa considerou Maria Archer “a revelação da literatura portuguesa de 1935” (Quartim, 1936). E Pinto Quartim assim enalteceu Maria Archer “Não foi preciso uma convivência demorada para me certificar de que estava em frente de mais um brilhantíssimo desmentido, não só a suposição idiota de que a Mulher é um ser sem cérebro, para quem só há duas condições: dona de casa ou cortezã, como também a essa baboseira tão repetida de que a Mulher inteligente e culta perde todo o seu modo de ser feminino….E reparei, ao mesmo tempo, que a essa mulher, intelectual e artista, não faltava nem a graça feminil, nem a garridice ou coquetterie própria do seu sexo…E relembrando o seu vivificante convívio intelectual, mais em mim se fortifica a convicção de que não há superioridade de um sexo sobre outro, mas apenas a superioridade de algumas individualidades sobre a massa.” (Quartim, 1936). Após o regresso de Angola participou em múltiplas conferências promovidas pela Sociedade de Geografia de Lisboa subordinada ao tema “Bárbaros no século XX”, no Ateneu Comercial de Lisboa, no Clube dos Fenianos no Porto, na Voz do Operário sobre o tema “Negros de Angola”, além das 20 conferências sobre Angola aos microfones da Emissora Nacional. Também nos Liceus Maria Archer marcou presença em palestras dirigidas aos alunos. Em Lisboa viveu, empenhada e militantemente, do seu trabalho de escrita para jornais e revistas e dos direitos de autor dos livros que publicou e que, amiúde, tanta polémica provocaram pela incomodidade causada ao pensamento dominante. O teatro esteve, também, presente na vida de Archer. Escreveu algumas peças, aventurou-se numa carreira teatral segundo nos confidenciou num artigo publicado no Suplemento Cultural do jornal O Estado de São Paulo de 16 de março de 1956, intitulado “Em prol do teatro brasileiro no Brasil”. Elucidou-nos, quase dez anos passados, que se afastou após contactos com grupos do meio artístico português por os considerar demasiado artificiais, o que não a satisfazia.” Mulher de ação pela palavra, pela escrita, sempre atenta ao que a envolvia, quer fora como dentro do próprio país, com uma compreensão rara das pessoas, dos ambientes e dos meios sociais, traduziu a experiência vivida em inúmeros escritos de grande interesse etnológico, sociológico e político. Escreveu sobre os seus ideais, sobre África, sobre a luta pela dignificação da mulher. Ainda hoje muitas lutas femininas se continuam a fazer para alcançar direitos iguais de participação política e cidadania, de acesso a educação e a profissões reservadas ou dominadas por homens. Ondina Braga, no artigo Maria Archer: o espírito lutando com as sombras, refere que João Gaspar Simões lhe teceu os maiores elogios: “Prosadora vigorosa, as suas histórias moldadas à maneira de Maupassant, num estilo mais másculo que feminino abordam problemas ousados nas relações da mulher com o homem e nas da situação daquela numa sociedade pouco afeita ainda a reconhecer direitos iguais aos dois sexos.”(as cited in Grande Dicionário da Literatura Portuguesa) e afirmou também “A escrita foi para Archer uma arma de combate político que Artur Portela refere como: "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante"(Diário de Lisboa, 5 de março 1953). Para João Gaspar Simões, citado por Ondina Braga no artigo Maria Archer: o espírito lutando com as sombras, “Maria Archer é um exemplo. Escreve, escreve sem desfalecimentos nem transigências, compreendida umas vezes incompreendida outras, mal compreendida quase sempre.” (João Gaspar Simões, 1951) Os seus livros sobre África são pontes para a meditação mágica, para a beleza. A densidade da escrita enleia-nos tal floresta tropical. A sua escrita é a conjugação da água e do fogo, a simbiose da terra e do mar. Foi a única mulher a escrever seis dos setenta títulos que integram a coleção Cadernos Coloniais, publicados entre 1935 e 1941. Maria posicionou-se no mundo dos homens. Em 1945 Maria Archer aderiu ao Movimento da Unidade Democrática (MUD). Em 1949 Archer apoiou a campanha do General Norton de Matos, nomeadamente através do artigo publicado no jornal Sol de 8 de janeiro com o título “O General Norton de Matos visto por Maria Archer”. Viveu a revolta de ver alguns dos seus livros apreendidos. No ano passado o jornal Público publicou alguns dos livros censurados, cerca de 21, e escolheu entre muitos, os dois livros de Maria Archer, Casa Sem Pão e Ida e Volta de uma Caixa de Cigarros. Viveu tempos onde sombra e luz dançaram ferozmente numa orquestra sensível… onde o compasso errado, podia impossibilitar o milagre da vida E, inconformada e perseguida, com dificuldade em subsistir pelo seu trabalho, obteve um visto temporário, o qual não lhe permitia trabalhar no Brasil, no Consulado Geral do Brasil em Lisboa com validade de 90 dias. E os 90 dias multiplicaram-se e foram 24 anos de vida de Maria Archer no Brasil. Partiu de Portugal em 5 de julho de 1955 viajando até ao Brasil onde no dia 15 de julho desembarcou no Porto de Santos. Na hora de embarcar dois amigos a acompanharam, Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro. Não nos olvidemos que Maria saiu de Portugal sozinha. E sozinha, sem família, trilhou o seu caminho no Brasil. À época as mulheres, de um modo geral, quando saiam do seu país era para acompanharem a família. Em 19 julho de 1957, segundo o Diário Oficial de São Paulo n.º 159, o deputado Cid Franco do Partido Socialista Brasileiro, defendera Maria Archer e dera-lhe voz, afirmando que Maria Archer não era comunista, mas sim uma grande escritora e deu a conhecer excertos da carta que Archer lhe escrevera onde reitera que “não possui nem possuiu a qualidade de ser filiada no Partido Comunista embora confesse o mais profundo respeito pelas heróicas pessoas que professam essa perseguida ideologia política”. Archer antecipou o futuro quando publicou no Brasil, em 1959, Os Últimos Dias do Fascismo Português, livro que relata o julgamento do capitão Henrique Galvão, deu ainda à estampa Terras onde se fala Português (1957), África sem Luz (1962) e Brasil, Fronteira da África (1963) e colaborou nos Jornais O Estado de S. Paulo, Semana Portuguesa e Portugal Democrático. A equipa que fundou o Portugal Democrático era marcada pela sua pluralidade política. O núcleo do Comité era formado pelos jornalistas Miguel Urbano Rodrigues, Carlos Maria de Araújo, Paulo de Castro, João Alves das Neves, João Santana Mota e Vitor da Cunha Rego, e tinha como presenças permanentes Adolfo Casais Monteiro, Fernando Lemos, Francisco Lopes, João Alves das Neves, Pedroso de Lima, João Santana Mota, João dos Santos Baleizão, João Sarmento Pimentel, Maria Archer, Miguel Urbano Rodrigues, Vítor da Cunha Rego e, do Recife, os matemáticos Alfredo Pereira Gomes e Manuel Zaluar Nunes. Maria Archer participou em diversas tarefas do jornal durante todo o seu período, até ao 25 de abril, e ao longo de anos organizou atividades de apoio a presos e exilados políticos e pelo fim da censura, em nome da União das Mulheres Portuguesas. A sua contribuição, através de escritos, foi mais efetiva entre 1956 e 1962. Maria Archer irrompeu, mais uma vez, no mundo dos homens. Já em Portugal o mesmo acontecera. Em 27 de maio de 1962, no Cine-Teatro Paramount, teve lugar o Ato público de solidariedade aos trabalhadores e aos povos de Espanha e Portugal. Nos ficheiros do Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) encontra-se a referência a este evento com as seguintes informações: “Levamos ao conhecimento dessa Chefia que, segundo nossos observadores, realizou-se na manhã de ontem dia 27, das 9:10 às 12:50 horas no Cine Teatro Paramount, à Av. Brigadeiro Luiz Antônio, o anunciado ato público de solidariedade aos trabalhadores e aos povos de Espanha e Portugal. Os trabalhos, que contaram com a presença de cerca de 900 pessoas (lotando a platéia e os camarotes), foram presididos pelo deputado Cid Franco, tendo ainda tomado à mesa, os seguintes elementos: dep. José da Rocha Mendes Filho; dep. Germinal Feijó; dep. Paulo de Tarso; dep. Jethero de Faria Cardoso, João Louzada, Gen. Humberto Delgado, Luiz Carlos Prestes, dr. Walter Dias, (advogado da Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Jales); e entre outros esteve presente Maria Archer (da União Brasileira de Escritores - UBE),….”. Uma vez mais Maria Archer invadiu o mundo dos homens. Maria Archer foi ainda assessora do deputado federal Ulysses Guimarães. Miguel Urbano Tavares num artigo publicado em 21 de abril de 2000 no Jornal de Notícias, com o título “Portugueses hostilizados numa terra fraterna” refere: “(…) Mas foi a partir do final dos anos 50 que a corrente dos exilados políticos adquiriu um volume torrencial. Ao Brasil chegaram em diferentes anos e na sequência de acontecimentos e perseguições políticas de natureza também diferente, muitos portugueses que, em permanências de longa ou breve duração, marcaram com a sua presença a vida brasileira (…). Outros nomes a lembrar são os escritores Adolfo casais Monteiro, Carlos Maria Araújo, Sidónio Muralha, Jorge de Sena, Castro Soromenho, Maria Archer, Mário Henrique Leiria (…).” De novo surge a menção a Maria Archer entre os homens exilados políticos. Em 1965 foi publicado, em Portugal, o livro Sarça Erótica de António Nobre e outros. São 13 os escritores presentes (António Nobre, Teixeira Gomes, Raúl Brandão, Justino de Montalvão, Henrique de Vasconcelos, António Patrício, Manuel Laranjeira, Leonardo Coimbra, Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, José Migueis, Maria Archer.) deles um apenas é mulher, chama-se Maria Archer e apresenta-nos a sua novela Eros e Psiché. No prefácio da obra Petrus diz-nos “ Fechar este ciclo de novelas, que é de certo modo um roteiro das várias tendências e possibilidades que neste campo, se tem revelado a partir do simbolismo, com uma história de feminina lavra é, por isso, um acto de justiça que reveste especial significado por reacender a gratidão de que é digna uma grande escritora expatriada, que com invulgar coragem e fina percepção dos profundos instintos humanos, enriqueceu a novelística nacional, com algumas obras primas, como essa extraordinária novela que se chama Uma Mulher como Outras, interditada inexplicavelmente pela nossa anacrónica Mesa Censória. Maria Archer não carece deste preito para ser uma grande escritora, mas é fora de dúvida que nela se encontra admiravelmente personificada e actual capacidade artística e psicológica da Mulher Portuguesa.” (Petrus,1965) Ao relembrarmos os seus livros que abordaram temas tão delicados e incómodos como a condição da mulher ou a ausência de liberdade no país da altura recordemos que, também os laços de sangue falaram pela pena de Maria Archer e essa união afetiva foi retratada no conto Eu vi o pelicano abrir o peito, de 1944, no livro Eu e Elas – Apontamentos de uma romancista (Archer, 1944) em que Maria Archer, através da sua pena, suplica justiça para um jovem que quer crescer e não tem meios. Aos 17 anos, o sobrinho prodígio vê vedada a possibilidade de frequentar a sonhada universidade. A mãe, em desespero, apela à irmã que, com a forte arma da palavra, comova “aqueles que poder têm para ajudar o sobrinho”. Hoje, aqui, no Porto, viemos ao encontro de Maria Archer escritora, jornalista, conferencista, tradutora, quarenta anos após a sua morte. E será que se mantem atual a obra de Maria Archer? Escutemos o que Guilherme Bordeira nos confidenciou sobre o livro Ela é Apenas Mulher: ” Perante um fresco tão significativo não só de personagens com histórias cruzadas, mas também revelador de um quotidiano do Portugal dos anos 40, apraz-nos pensar que bela série de época para televisão daria este livro.” (Bordeira, 2014). Curiosa esta confidência. Corriam os anos 80 do século XX quando uma revista portuguesa noticiava: “Telenovela Portuguesa em Preparação – Realizada por Ferrão Katzenstein, a primeira novela “made in Portugal” vai chamar-se Os Aristocratas e é uma adaptação da obra de Maria Archer. Trinta e seis episódios a cores com quarenta minutos cada, a iniciar no próximo ano, tal é o projecto que neste momento toma forma na RTP.” Mas foi Vila Faia, em 1982, a primeira telenovela “made in Portugal”. Recentemente, em 15 de março de 2021 foi publicado pelo Cinema Sétima Arte o seguinte artigo: Ukbar Filmes e RTP produzem 10 telefilmes realizados por mulheres. “Contado por Mulheres” é a nova aposta audiovisual da produtora Ukbar Filmes e da RTP1, em coprodução com a Krakow Film Klaster (Polónia), que pretende dar voz a dez realizadoras para criarem dez histórias baseadas em obras literárias de autores portugueses. Rodados entre abril e agosto deste ano (2021) em diversos locais da região Centro, com o apoio das respetivas Câmaras Municipais e candidato ao Fundo do Turismo e do Cinema. “10 livros, 10 realizadoras, 10 telefilmes, 10 espaços. Um mesmo universo.” é o mote do projeto que pretende ir aos calabouços da censura do Estado Novo e devolver ao grande público a força de Soeiro Pereira Gomes, Maria Archer, Bernardo Santareno, Carlos Oliveira até aos desafios dos nossos dias com Maria Judite de Carvalho, Teolinda Gersão, Ondjaki, Mário Zambujal e Mário de Carvalho. Contado por Mulheres é uma aposta em boas histórias, dos melhores autores portugueses procurando fazer chorar, rir, sentir dramas de épocas ou ir até aos sensíveis desafios morais da atualidade. Mas acima de tudo entreter com personagens inspiradoras.” Das dez mulheres convidadas para realizar os dez telefilmes: Anabela Moreira realizará Há-de Haver uma Lei, inspirado na obra de Maria Archer e adaptado por Manuel do Ó Pereira. As gravações do Há-de Haver uma Lei decorreram em Tomar, em julho de 2021. Os dez telefilmes estavam previstos estrear em horário nobre da RTP1 no último trimestre do ano de 2021.” Não foi o livro Aristocratas, não foi o livro Ela é Apenas Mulher, mas sim o Há-de Haver uma lei que sofreu uma adaptação para um telefilme. Ainda não o vimos. Maria estaria, certamente, orgulhosa. Em outubro de 1949 sobre o livro Há-de Haver uma Lei Maria Archer foi assim elogiada por João Gaspar Simões: “Disse que Maria Archer não era uma escritora – mas um verdadeiro escritor. (…) é perante um grande escritor português que nos encontramos, um dos maiores contistas que a nossa literatura tem conhecido (…) Em qualquer país civilizado a autora de Há-de Haver uma Lei… teria, pelo menos, meia dúzia de editores, e dos principais da nação, a disputá-la como seu best-seller. Entre nós, que vemos? Maria Archer … inscreve na capa do seu livro, ali onde costuma figurar a firma do editor, esta legenda que é um labéu para a nossa corporação de livreiros: «Edição da Autora – Lisboa, 1949»! Esperem o juízo do tempo, e verão! Quando em 2049 se celebrar o centenário do aparecimento de Há-de Haver uma lei… todos os editores portugueses dignos desse nome baixarão os olhos, envergonhados, ao ouvir esta tremenda efeméride: em 1949 Maria Archer, autora de duas dezenas de volumes, teve de publicar a expensas suas o seu livro de contos Há-de Haver uma lei… pois não havia então em Portugal um único editor capaz de perceber que este livro era uma colecção de obras-primas do conto português” (Simões, 1949). Fruto da força das suas convicções e ideais em que se empenhou de alma e coração várias foram as travessias dos oceanos que empreendeu. Destaquemos dois momentos. Um, em que, perseguindo o sonho da liberdade de pensamento e de escrita, navegou até ao Brasil onde viveu 24 anos; outro, quando cruzando, de novo, o oceano regressa ao País que a viu nascer e que nunca esqueceu, em 26 de abril de 1979, concretizando o seu desejo de morrer em Portugal, conforme artigo publicado no jornal A Luta de abril de 1977 com o título “Maria Archer quer morrer em Portugal” tendo por base uma carta do capitão Sarmento Pimentel publicada no Primeiro de Janeiro. Regressou doente, seis anos após ter obtido a anelada permissão do Professor Marcelo Caetano: “… Sra. D Maria Archer pode vir para Portugal quando quiser. Não será incomodada.” com um novo regime político. No regresso, vinte e quatro anos volvidos desde o dia em que deixou Portugal, dificilmente reconheceu as irmãs e os sobrinhos. No entanto, esta mulher de horizontes, viajada e ousada, admirada por muitos e silenciada por alguns, manteve, até ao fim, inalterada, apesar das agruras da vida, uma das suas características: a vaidade feminina. Foi no interregno dos seus silêncios que conheci Maria Archer. Tinha 80 anos. Vivia num mundo só seu, com as lágrimas da alma, vogando na brisa de abril. Partiu em 23 de janeiro de 1982 para a sua última viagem. Raul Rego (1982), no artigo “Maria Archer”, escrito dias após sua morte, sublinhou: “Ela era uma mulher livre, escritora de garra, senhora de si e impondo-se pelo talento”, o que na altura, não agradava a muitos, a ponto da sua obra Ida e volta de uma caixa de cigarros (1938) ser apreendida. A mulher que não se escondeu atrás de pseudónimos e que contraventos e marés perseverou em sonhar e lutar por um mundo melhor, por um mundo de e com liberdade, por um mundo onde homem e mulher são iguais, permanece viva na memória de Almada, Almodôvar, Amadora, Cascais, Faro, Ferreira do Alentejo, Oeiras e Seixal. Estas edilidades homenagearam-na, discretamente, num quase anonimato, entre 1975 e 2010, marcando, de forma perene, as ruas dos seus concelhos. Também esta iniciativa marcou e relembrou Maria Archer a mulher de mil rostos, a mulher que se metamorfoseou em testemunha rara, em memória crítica de um tempo português, espinhoso e cinzento, regulado por preconceitos e discriminações, por regras de jogo algo viciadas, que desmascarou, sem temor e cujo exemplo de inconformismo apela à militância cidadã. Ao Circulo Maria Archer que segundo Manuela Aguiar (2019) pretende, afinal, sobretudo, assegurar uma segunda vida a Maria Archer, projeto perfeitamente possível, porque, como dizia Pascoaes, existir não é pensar, é ser lembrado", muito obrigada. Olga Archer Moreira Aguiar, Manuela – A Modernidade de Maria Archer, Porto, 11 de outubro de 2019 Amado, Leopoldo (1990). A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP, 20-21, pp. 160-178 Archer, Maria (1940) Roteiro do Mundo Português, Edições Cosmos Archer, Maria (1945) Eu e Elas Apontamentos de Romancista, Editorial Aviz Archer, Maria O Estado de São Paulo de 16 de março de 1956 – p.10 Arquivo do Estado (seção Deops), São Paulo/SP, Arquivo DEOPS 41-E-5-14 Bordeira, Guilherme. (2014). Acerca de Maria Archer, p.52 Botelho, Dina – Ela é apenas Mulher – Universidade Nove de Lisboa – Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo Portugueses – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Lisboa – 1994 p.34 Diário Oficial Estado de São Paulo, Ano LXVII – n.º 159 – Sexta-Feira, 19 de julho de 1957 Horta, Maria Teresa (2001), prefácio ao Livro Ela é Apenas Mulher de Maria Archer, p. X O Diabo, Lisboa, 03/11/1935, Ano II, n. º71 O Estado de São Paulo, 16 de março de 1956, p.10 Quartim, Pinto (1936, janeiro). Maria Archer A revelação da literatura portuguesa de 1935. Ilustração de Angola Rego, R. (1982, fevereiro, 2) Maria Archer. Diário Popular, p.3 Sarça Erótica. Arte e Cultura, Porto. Edição da Petrus, 1965, p.16 Simões, João Gaspar (1949, outubro 30). Átomo, pp.15-16 Tavares, Miguel Urbano (2000, abril, 21). Jornal de Notícias https://www.cinema7arte.com/ukbar-filmes-e-rtp-produzem-10-telefilmes-realizados-por-mulheres/ (acedido em 20 de março de 2021) Palavras-Chave: Maria Archer Escritora, Exílio Feminismo Direitos das Mulheres Revelação

5 GOVERNOS

Maria Manuela Aguiar quarta, 5/10/2016, 23:46 para mim I - O GOVERNO MOTA PINTO (1978-79) I - No início de uma participação política em órgãos de soberania, que haveria de se prolongar por mais de vinte e cinco ano, esteve um convite do Prof. Mota Pinto para o seu governo (1978/79), o primeiro a que pertenci. Tinha a particularidade de ser formado por independentes - um dos chamados "governos de iniciativa presidencial", não menos constitucional do que os outros, já que o seu programa passara (sem ir a votos)na Assembleia da República. O anterior, chefiado por Nobre da Costa, objeto de uma moção de rejeição caiu, ao ver o seu programa rejeitado. Com eleições obrigatórias em Outubro de 1979, era, de qualquer modo, um executivo destinado a durar cerca de um ano e foi ainda mais breve, porque os partidos o derrubaram com a ameaça de uma moção de rejeição, perante a qual, Mota Pinto não esperou para apresentar um pedido de demissão, simplificando o processo. E não se manteve em gestão, porque o Presidente Eanes optou pela constituição de um terceiro governo, o último desta série, com uma duração estimada em três meses (embora tenha durado bastante mais), cujo fim era meramente organizar eleições. A maior surpresa foi ter escolhido uma mulher: Maria de Lurdes Pintasilgo. Curiosamente, depois dela, desde que todo o poder foi retomado pelos partidos, não houve mais nenhuma mulher. É obviamente mais difícil a ascensão feminina no puro quadro das maiorias parlamentares, pois os partidos são coutada de homens - eram, então, e continuam a ser, ao menos os tradicionais. Já lá vão 37 anos, quando Thatcher e Pintasilgo faziam história na Europa e não se vê, em Portugal, nenhuma Theresa May no horizonte. Lideranças masculinas nos grandes partidos, dão primeiros- ministros, no masculino, numa perfeita relação de causa e efeito - Quando me perguntam ( perguntam frequentemente....) a razão porque escolhi a política, respondo que não escolhi, de todo, fui convidada pela circunstância de não pertencer a qualquer partido. Para ser uma presença feminina num governo quase 100% masculino... Entrei na aventura,( que à partida seria breve e, como disse, o foi mais do que o previsto ), por me ser difícil dizer "não" ao Primeiro Ministro, que era um amigo de Coimbra e ao parceiro de equipa no Ministério do Trabalho, o João Padrão, um colega de curso (brilhantíssimo!), que se ocupava do Emprego. Hesitei, mas fui bastante pressionada, sobretudo pelo João. Ofereci-me como voluntária para a assessoria no seu gabinete, mas não consegui ser aceite nessa mais modesta, mas mais experimentada posição (desde os governos provisórios prestei serviço nessa qualidade). Tinha as minhas razões...Não queria ser chefe de ninguém, falta-me a paciência para esperar que outros façam as coisas, quando não fazem logo, logo. Não era essa a minha opção de vida - dar aulas na Faculdade ou pareceres num centro de estudos, na Provedoria de Justiça, fazia o meu sonho do presente e do futuro. Aí, melhor usaria o que a Universidade de Coimbra me ensinara, com tempo para o cinema, (quase todos os dias, pelas 18.00), o desporto nos fins de semana, o convívio com a família, as tertúlias de café, em Espinho. Para le e ouvir música (os meus velhos discos de vinil). Não me parecia que na vida política houvesse lugar para tudo isso. Pior ainda, era a convicção de que o mundo do trabalho perderia uma executante suficientemente competente e o mundo da política não ganharia nada com a troca. À mistura com o receio de falhar havia, porém, uma boa dose de curiosidade de conhecer o "outro lado", o lado do "poder" - neste caso, muito relativo e garantidamente efémero. Não sabendo como dizer "não", acabei Secretária de Estado do Trabalho. Fui para um Ministério que conhecia bem: ali mesmo, no arranha-céus da Praça de Londres, no início de 1967. tomara posse como assistente do Centro de Estudos, cerca de um ano depois de ter terminado o curso de Direito (com a média de curso exigida aos assistentes da faculdade ou daquele "centro de estudos - não bastava, como em Passárgada, ser amigo do rei...). Um lugar de boas memórias, onde tudo me era familiar, os assuntos, os problemas e até algumas das caras que via nos corredores. Apesar da mudança de regime, o que havia de bom no velho Ministério mantinha-se, antes de mais, a qualidade dos funcionários e dos serviços, com directores- gerais de carreira (à inglesa), que se distinguiam pela competência, bem mais do que por quaisquer tendências ideológicas. (por sinal, coube-me acolhe-los de volta à atividade, a eles e a muitos dezenas de dirigentes que tinham sido saneados, em 1974, e, depois, reintegrados por insuspeita decisão do Conselho da Revolução - foram todos colocados em funções técnicas, para sua tranquilidade´, já que a nossa era imperturbável). Quatro anos apenas depois da revolução, os gabinetes dos membros do governo eram pequenos, como mandava a lei - um chefe de gabinete, dois adjuntos, dois secretários, dois motoristas. E assim foi enquanto estive nos Executivos, até 1987. Depois, parece que as coisas foram mudando, através de expedientes para recrutar "boys" e "girls", com vencimentos "à la carte", sem limitações. Procurei, pois, compensar a minha falta de experiência com uma seleção, norteada pelo princípio da máxima competência possível, Desde já antecipo que resultou, pelo que recomendo a solução. Escolhi os dois adjuntos dentro da "casa" (uma mulher e um homem), trouxe para chefe de gabinete o Manuel Marcelino, colega do Serviço do Provedor de Justiça, uma sumidade na área do Direito Administrativo. As duas secretárias, formadas no ISLA, tinham longo curriculum de gabinetes. Ajudaram-me, de uma forma decisiva, a atravessar o tempo iniciático - uma equipa unida nos bons e maus momentos. E destes, houve alguns. Não tanto pelos conflitos sociais, negociações, greves... verdadeiros "braços de ferro", uma requisição civil, etc, etc. Com o "adversário exterior" lidávamos nós bem. Com o interno, nem sempre... Não foi sempre pacífico o relacionamento com o Ministro e o seu "staff". Vinham do sector privado, convencidos da sua superior eficácia (o ministro até era eficaz, muito melhor do que a "entourage", ao contrário do que se podia dizer da minha, que, por sinal, era 100% "funcionalismo público". A qualidade dos quadros do Ministério acabou por convencer o Dr Eusébio Marques de Carvalho, que fez lentamente a "estrada de Damasco" na Praça de Londres... Mais difícil de converter era o seu chefe de gabinete. Julgava-se o "chefe" dos chefes de gabinete dos Secretários de Estado. Ora não há vínculo hierárquico entre os gabinetes, embora haja entre o Ministro e cada um dos Secretários de Estado. Como explicar-lhe esta evidência? Foi impossível... Ingerência nos assuntos da "minha" gente eu não estava disposta a admitir - e não admiti. Invetivei-o muitas vezes, com palavras duras, que ele ouvia com resignação. Contudo, na primeira oportunidade, recomeçava a dar as suas ordens ao Manel Marcelino. O João Padrão foi o maior obreiro da paz, naquele 16º andar da Praça de Londres! Um homem encantador, com uns vivíssimos olhos azuis, um apurado sentido de humor e da relatividade das coisas. Muito inteligente, um diplomata e um grande amigo. Sempre que eu irrompia no seu gabinete, contíguo ao meu, a relatar um novo caso e a ameaçar demitir-me, oferecia-me um café, desdramatizava, entre sorrisos e amena conversa, e, assim, reduzia a dimensão do incidente... A esta distância, vejo que se tratava de uma falta de "savoir faire" do reincidente, que, aliás, era um homem de boas maneiras e agradável à vista. Não sei se no setor privado esse comportamento é aceitável, porque fui sempre funcionária pública e muito bem tratada! Os meus "chefes" foram, todos, verdadeiros "gentlemen". Ali, na Praça de Londres, o Dr Cortez Pinto, cerimonioso, educadíssimo, e o Doutor António Silva Leal, um sábio, um génio, exuberantemente cordial, descontraído, que se sentava nas escadas do corredor a apertar os atilhos dos sapatos - "para que não tenham a tentação de me fazer ministro", explicava, entre duas sonoras gargalhadas, Depois da Revolução, na Universidade de Coimbra (onde tomei posse a 24 de abril), o Doutor Boaventura Sousa Santos, o Doutor Rui de Alarcão, o Doutor Mota Pinto. Em Lisboa, no Governo, o Doutor Rui Machete, na Provedoria de Justiça, o Coronel Costa Bráz, em meados de 1976, e, poucos meses depois, tendo ido o Coronel para o Governo, organizar eleições livres, o incomparável Dr José Magalhães Godinho - que foi, para mim, o mais próximo e o mais querido de todos. Tinha uma memória fenomenal e muita graça a contar as histórias da História. Era generoso, solidário, carismático e acessível. O mesmo não se diria de Eusébio Marques de Carvalho, com o seu feitio impulsivo e impaciente, e, tal como eu, "estreante" em lides governativas. Acabou por me influenciar mais do que todos os antigos e tão estimados "superiores", tornou-se. em verdadeiro "role model"... Por um espontâneo mimetismo, dei por mim a tomar decisões rápidas e a exigir execução pronta. Com o que, sem que fosse esse o meu objectivo, se construiu a imagem que dei para o exterior "dama de ferro", na esteira daquele "homem de ferro". Imagem mais ou menos positiva, segundo a perspectiva do observador... Mas a essa imagem devo, com certeza, o convite seguinte, para a pasta da Emigração. O tempo era de guerra, de afrontamento e contraditório, na aprendizagem da democracia, a começar no MNE, em guerra aberta com a Presidência. Numa das primeiras conversas com o Doutor Freitas do Amaral, no Palácio das Necessidades, disse-lhe que já se murmurava pelos corredores que eu iria mudar tudo, que não deixaria "pedra sobre pedra". Ao que ele me respondeu que não me preocupasse, porque era um tipo de fama não prejudicava a acção concreta. Talvez fosse "mais a fama do que o proveito", mas é verdade que parti para a inovação possível, mantendo tudo o que encontrei bem, nas práticas ou nas pessoas. Trabalhara os anos suficientes na função pública, ou com a função pública, para acreditar, até prova em contrário, que as pessoas estão nos seus postos para cumprirem tarefas e não para fazerem espionagem ou conta-corrente, a mando de um partido. Suportei, logo na primeira experiência governativa, a pressão para despedir uma secretária, a Ana, que tinha transitado do gabinete do meu antecessor, supostamente comunista. A Ana era, aliás, oriunda do quadro da Presidência do Conselho de Ministros e tinha-me sido recomendada pelo Secretário de Estado, Doutor Xavier de Basto, como muito competente. "Durante duas semanas fez de chefe de gabinete e de secretária, foi formidável, mas agora chegaram as pessoas que eu já tinha convidado e não tenho vaga para ela", dizia-me ele. (ali no alto da presidência, também tinha de respeitar os limites quadro legal...). "Ela conhece bem esse ministério, secretariou o seu antecessor". "Isso é que é pior" - respondi - "o Ministro não quer, por perto, ninguém que tenha vindo dos anteriores gabinetes". O sigilo e a confidencialidade eram importantes, ali, onde se esperava conflitualidade, que veio a verificar-se. Contudo, como o meu amigo e professor de Coimbra, um homem particularmente perspicaz, a recomendava, contratei-a, de imediato. Mas, pouco depois, alguém a denunciou e foi-me sugerido o seu imediato despedimento. Recusei a sugestão, apesar do Ministro me prevenir, muito irritado: "No meu gabinete e no do Secretário de Estado do Emprego toda a gente é de absoluta confiança. Se houver uma fuga de informação é do seu gabinete. "Com certeza! Não vai haver problema!", tranquilizei-o. Isto é, não devo ter tranquilizado, mas, provou-se que tinha razão. Fuga de informação foi coisa que não houve. Nem Ministro nem mais ninguém jamais suspeitou que a Ana também tinha sido secretária e tradutora do Vasco Gonçalves! Imagino a reação, se descobrissem esse passado, aliás, nada secreto... Ela era simplesmente oriunda dos quadros da Presidência, estava a leste de todas as contendas políticas. Foi convidada por uma boa razão, a sua competência. A par do "segredo" estava apenas a outra secretária, a Maria de Lurdes. O que nós nos ríamos, a traçar cenários de pânico se o facto viesse a ser detetado...

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

1920 NOTAS PARA A BREVE HISTÓRIA DE MINHA MÃE


1 - 1920 -  NA MARGEM NORTE DO DOURO, EM GONDOMAR

Maria Antónia, que viria a ser a Musa do  Poeta e a sua Mulher por mais de meio século, nasceu em Gondomar, a 28 de agosto de 1920, pouco depois de ele ter festejado os seus dois anos no lugar do Paço, em Avintes, do outro lado do rio.

A Vila Maria. (a casa grande que fez parte da sua vida, com estatuto de afetos e pertença, como se fosse um membro da família),  estava ainda em  construção. Era coisa imponente, cuja evolução a vila acompanhava de perto. Os mais afoitos entravam e vinham contar o que viam, causando especial espanto a enorme sala de banho do último andar ocupava a parte de trás da casa a norte, sul e poente..com sete janelas panorâmicas em todas as direções.



Os pais, Maria e António Aguiar, preparavam o regresso do Brasil. António, com quase 30 anos de estrangeiro, Maria com uma década, pontuada por constantes viagens a Portugal. Na última travessia transoceânica, estava grávida. Nesse estado tinha vindo três vezes a São Cosme, para que os filhos fossem gondomarenses de naturalidade. A menina que, invisível, trazia consigo na primeira classe de um paquete de luxo. O marido era extremamente seletivo, não arriscava cruza o Atlântico em qualquer navio, escolhia sempre  os melhores, mesmo que, para isso, tivesse de adiar a partida. Maria Antónia, nunca teria oportunidade de fazer o percurso de retorno, mas considerava-se tão brasileira, como os três irmãos dados à luz na radiosa cidade do Rio de Janeiro, no centro, na Rua 7 de Setembro, onde nasceu Carolina, a primeira filha, depois em Santa Teresa. O pai manteria o vai-vem solitário, por mais algum tempo, a fechar os negócios, onde se tinha feito um homem rico, ou, como se dizia, em fins do século XX, durante  o "cavaquismo", um empresário de sucesso", com joalharia na Rua do Ouvidor. e, nessa década de 20, com o projeto de integrar uma sociedade bancária, que a morte prematura iria inviabilizar. Fez a derradeira travessia no paquete Lipari, da companhia "Chargeurs Réunis",.em 17 de fevereiro de 1926. 
De Gondomar partira aos 16 anos, Era dos mais novos de 15 irmãos e aceitou o conselho do irmão João Pereira de Aguiar, um dos mais velhos, já  solidamente estabelecido no Rio. Anos depois, casaria com Judith, uma formosa brasileira de "boas famílias", que, a partir de 1910, seria a melhor amiga da cunhada Maria. Quem se une com brasileira, como João, não volta mais. Tendo procurado noiva portuguesa, António  para Gondomar voltou, já na casa dos quarenta, preparado para  recomeçar, tranquilamente, um percurso empresarial, investindo em Portugal.  
Embora descrevesse o Rio como um paraíso e os anos aí passados como os mais felizes da sua vida, Maria Aguiar sentia saudades dos pais e amigos. O exotismo tropical era interessante para  experimentar intensa, mas brevemente. Incomodava-o calor excessivo, durante dois a três meses no verão austral mudava-se para Teresópolis, com os meninos, a gozar a frescura serrana, e o marido deambulava, para lá e para cá, sempre que  os compromissos de negócios o chamavam.  Arrendava casa, na montanha, como na cidade, não investia em aquisições. Comprar propriedades é, para um português emigrado, regra geral, sinal que aponta à integração. Dos dois irmãos, só João mandou construir um belo palacete na Rua de Payssandú. A fotografia da elegante mansão foi por ele enviada à família, exatamente como muitas outras vezes lhes oferecia as suas próprias fotos.



Os filhos continuaram no mundo dos negócios, ou enveredaram pela política e pela diplomacia. Eles, e toda a descendência direta, são brasileiros, depois da morte da geração mais velha, sem ligação  com as origens lusas - excetuando na década de cinquenta, o curto período em que José Augusto, o quarto filho de António e Maria, e um dos naturais do Rio, aí viveu, antes de reemigrar, com passaporte brasileiro, para  Nova York. Retomou, então, por poucos anos. uma relação familiar com elegantes e simpáticas primas, hoje provavelmente já desaparecidas.
O casarão de António seria em Gondomar. A sua intenção era comprar um solar do século XVI e a quinta, onde há umas décadas se instalou o colégio dos Frades Franciscanos. A Mulher não quis. Para ela, a quinta era isolada e sombria. O seu sonho era uma vivenda ampla e moderna, no coração da vila, perto de todos e de tudo. E foi feita a sua vontade, não obstante ser de mais difícil concretização. O centro de São Cosme, atravessado por uma estrada principal, do Souto a Quintã, era ainda uma vila de caminhos estreitos, pinhais e campos a perder de vista, desde o Monte Crasto. e de  grandes casas de lavoura de pedra e cal, com amplos pátios, exemplos de uma arquitetura tradicional, sólida e harmoniosa. Os campos não estavam à venda. Pertenciam a lavradores abastados, com orgulho em proclamar que "não vendiam terras, compravam". Acabaram por vender ao amigo António, a preço alto e por especial favor, o espaço onde se implantou a única imponente mansão de "brasileiro" de São Cosme, com os seus jardins circundantes e, atrás, uma quinta agrícola, que, embora o fosse, nunca deu por esse nome. Ao gosto da época, chamou-se ao conjunto, simplesmente, "Villa Maria".



Situada na rua principal, a dois passos do Souto, preenchia os requisitos postos por uma jovem mãe de família grande e que crescia. A última filha, Maria Madalena, já nasceria aí, em 1926, apenas 3 mese antes da morte do pai. No ano de 1920, era ainda o sogro, o tabelião Joaquim Mendes Barboza, quem, por procuração, ultimava os contratos de aquisição da propriedade, que incorporava  várias parcelas, desenhadas em longas linhas retas, como as recentes fronteiras de África. 

2 - GONDOMAR, TERRA BENDITA
  Maria Antónia viveu os primeiros dias de vida na casa dos Avós, Joaquim, que o roteiro profissional trouxera de Paredes, e da Avó Carolina, gondomarense de várias gerações - como ela mesma  teria sempre orgulho em se afirmar  Do lado materno, como do paterno, as suas raízes profundas eram  dali, daquele lugar, cuja beleza os seus antepassado tinham celebrado, em prosa e verso. Seu tio José Barbosa Ramos, era o Autor da letra do hino de Gondomar, com  música composta por José Moura ( que viria a ser o seu  primeiro professor de piano).
"Gondomar, terra bendita
Rincão formoso e fecundo
O nosso Crasto frondoso
Não tem, não, rival no mundo.
Filigranas delicadas,
Verdes prados cinge a serra.
Cantam fontes e avezinhas
Eis os dons
Da nossa terra.
Gondomar é o nosso berço
Beija-o a brisa fagueira
Cantemos por Gondomar, 
É divisa da bandeira
Cantar, cantar,
A linda terra de Gondomar".

 Na geração seguinte, seu irmão Manuel glosou o tema, num convívio de amigos dos seus verdes anos, em pleno Monte Crasto. Um jornalista registou-o nas páginas do "Correio de Gondomar"  de 17-3-34 (e a Maria Antónia guardou o recorte nas suas gavetas, onde foi encontrado já depois de ter partido).
"E o Castro
Belo e frondoso
Erguendo-se majestoso
Na terra que nos foi mãe,
No sino da igreja além, 
Trindades oiço tocar
Como é linda a minha terra
Como é linda a verde serra
Como é lindo Gondomar!"

Os poemas têm assinatura, mas retratam o estado de alma de uma família inteira, a olhar quotidianamente, com orgulho incontido, as belezas naturais de São Cosme. O chamado progresso do cimento e do betão vedou aos vindouros essa comunhão com a gentileza de um  meio ambiente, hoje definitivamente  perdida (nem mesmo o Monte Crasto, último bastião, que resiste, é tão frondoso quanto era nessa idade de ouro.. ). Perdeu-se também, na populosa "cidade-dormitório do Porto", a dimensão de uma comunidade autêntica e  convivial, quando os dias corriam devagar e todos fruíam dos recantos rurais, todos se conheciam, nos clubes e tertúlias, na partilha de tradições, de um pesado sotaque nortenho e uma fala com as singularidades, em que o "povo-povo" facilmente superava as elites letradas. Nos apontamentos de Maria Antónia, excelente aluna a Geografia e História, desde sempre muito dada a recolhas cripto etnográficas, vocação em que não parece ter tido precedentes no círculo próximo, nem mestres no colégio (coisa inteiramente sua), anota lugares, que faziam os seus encantos (o Barroco, a represa  de Cascaneira, entre a Gândra e Ramalde, Bouça Cova, Azenha, Ermentão, Rio Carreiro, Fontela, Ponte Real, São Miguel, Pevidal, Santo André...), e, também, expressões populares, nomes e alcunhas, que lhe despertavam a curiosidade, como Pojeiras, Restivos, Cabaças, Jeque-Jeque,  Tarré, Fome Negra, Caga Troços, Carriças, Pilha Galinhas, Patacas, Pirabeca, Arregalados, Folhetas, Estabões, Bagulho, Parraxila, Chasco, Varetas, Melros, Pisco, Choco, Pimpão, Pinguinhas, Pombalinos, Toca- certo... Menos invulgar o nome de Isidro Izidoro, que, todavia, fez sensação, quando deixou dito que, nas exéquias, queria levar um cravo vermelho na lapela. Maria Antónia, criança pequena, conseguiu que a levassem a vê-lo, talvez uma benigna criada, deixando a mãe da menina na ignorância da escapadela.
A família materno, tal como a paterno se encontravam afortunadamente livres de qualquer alcunha, fosse ela trocista ou amável, embora as antepassadas da bisavó Carolina, que pareciam  algumas das formidáveis figuras femininas do universo ficcional de Agustina, ficassem conhecidas como "as Alexandras". Nome bonito,  adotado,  aliás, também no masculino, ainda hoje. em sextas ou sétimas gerações dos seus descendentes, que, contudo, não aparece nas pesquisas genealógicas do século XIX.  Há, sim, entre tias e primas, alguns outros de ressonância greco-latina, como Lavínia, Leocádia, Violante, Blandina ou germânica, como Guiomar...
No dicionário de palavras esquisitas, em voga nas camadas populares, apontou, dando sempre o sinónimo, palavras ou expressões como: vasculho (malandro), paspalhão (desajeitado), dar uma topada (tropeçar), encatrapiada (aleijada), pimpineira (aldrabice), pixote (pequenino). "embaçado" (envergonhado). ou ditos antigos, por exemplo:  "estás a olhar para ontem, que já lá vai", ou "estás a ver navios" (distração): "Deus nos dê  muito e nos abone com pouco": "estreminguei um pé" (torci) "vim da outra banda" (do outro lado) "estou triste como a noite"...
Tudo o que era, ou. pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe parecia dar a certeza de estar onde e com quem mais queria. Ligavam-na à longa herança de ancestrais, que certezas semelhantes tinham enraízado ali, mesmo quando, como aconteceu com seu pai, se aventuravam, por muitos anos para além das fronteiras do concelho, do país, ou do mar... Sempre sem perder a vontade de voltar à melhor de todas as vilas e cidades erguidas no planeta - a vila de Gondomar, dos Mendes Barboza, dos Ferreira Ramos e dos Pereira de Aguiar...

3 - OS MENDES BARBOZA E OS FERREIRA RAMOS
O único forasteiro foi esse avô de porte aristocrático, JOAQUIM MENDES BARBOZA, vindo de um norte não muito longínquo, natural de Santa Maria Madalena de Paredes, filho de António Mendes e de Joaquina Roza Coelho Barboza, Estudara no seminário, que depressa trocaria pelo ensino das Leis. Veio a ser o primeiro tabelião de Gondomar. A secretária onde trabalhava ainda ali existe, na casa de uma bisneta chamada Maria Madalena.




 Em 2 de maio de 1870, aos 30 anos, casou na capela de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em São Cosme, com CAROLINA FERREIRA RAMOS. A noiva. de 26 anos teve por madrinha a irmã Joanna, outra das lindas e voluntariosas filhas de Anna Pereira  (cujos pais, José Pereira e Thereza d' Almeida, eram ambos oriundos de São Cosme) e de Joaquim Ferreira Ramos, (filho de Francisco Ferreira Ramos e de Catharina Alves, de Valbom). De Francisco e de Catharina, não se sabe coisa alguma. 






Do filho, JOAQUIM FERREIRA RAMOS  supõe-se ter sido um abastado comerciante, ou não teria podido comprar, aquando da mudança de Valbom para São Cosme, a quinta da Bela Vista e a sua casa apalaçada. De ANNA PEREIRA há uma única fotografia, num traje de lavradeira rica, de chapéu preto e lenço de seda, ignorando- se o foi, de verdade - podia estar fantasiada para o entrudo, então muito festejado. O pormenor de estar de livro aberto na mão, apontará, porém, para a primeira hipótese, assim como a lenda das "Alexandras", ligada a heranças e ambição de terras, e a uma avó que queria vizinho rico para a filha, quase sequestrada em casa para não casar com rapaz mais pobre do que ela, até ao dia em que, ajudada pelos criados e pelo pároco,  escapou de manhã cedo para a Igreja, e casou, apressadamente, com a benção de Deus, mas não com a da mãe.  Esta suspeitando do que se passava ( a filha levara-lhe à cama, ela própria,  bandeja do pequeno almoço, mas não fora ouvida nem vista depois de não ter vindo recolher a bandeja), também correu para o templo, mas chegou tarde demais e, em incontrolada fúria, restou-lhe apedrejar o cortejo nupcial, já de saída, a atravessar o adro...






De Joaquim, seu marido, também há um só retrato, em idade já avançada. Nele vemos um senhor distinto, de olhos claros, e uma extraordinária parecença com o que terá sido o mais bonito e brilhante dos seus bisnetos, Manuel Joaquim, legatório de uns cristalinos olhos azuis e do seu nome próprio, que era, também o do avô minhoto, o eterno enamorado de Carolina. Este não teria, segundo o registo chegado até nós, de início, sido muito bem recebido na Quinta da Bela Vista  - nada de apedrejamentos, é certo, no mais brando meio de uma burguesia comercial. Educação, boas maneiras e  ascendência ainda não contavam tanto, todavia, como haveres materiais, em que o jovem notário, era parco... Belo rapaz, letrado, amável, romântico, encantou Carolina, que não desistiu da sua escolha, na melhor tradição das "Alexandras". Rapidamente, porém, o adorariam, só faltando pô-lo altar, eles e toda a sociedade gondomarense. Tanto as  memórias das filhas, como a monografia do Concelho de Gondomar, escrita pelo seu amigo Camilo de Oliveira, o apresentam do mesmo modo, que se pode sintetizar numa palavra: um senhor exemplar! O cidadão, o profissional, o homem de família. Foi longo e feliz o casamento  com Carolina, elegante jovem e, depois de oito vezes grávida ( a última das quais já quase na casa dos 50 para dar à luz Maria da Conceição)  imponente matriarca e, em caráter e temperamento, comedida das temíveis antepassadas. Há um pequeno episódio (e são poucos e fragmentados os diálogos concretos que a narrativa oral trouxe até nós), pequeno mas revelador de uma permanente vontade  e facilidade de concórdia na vida do casal: num tempo em que os apelidos dados aos recém nascidos eram de livre escolha de quem os registava, os quatro primeiros rapazes nascidos daquela união perfeita receberam apenas os do pai (Mendes Barboza). Só quando estava à espera do quinto, Carolina se deu conta disso e comentou: "Os meus filhos não têm o meu nome!". Não ocorrera ao marido, que sempre a tratava carinhosamente por "mamã", ter isso especial relevância para ela.. Daí em diante, não só reparou a omissão, como tratou de colocar  o apelido da mulher no último lugar - no nosso sistema português, o comummente dominante. Os quatro filhos mais novos são, portanto, Barboza Ramos...
Homem realizado na vila onde se converteu em figura central, discreto e confiável, dando de si, nas muitas fotografias em que perdura, a imagem da pessoa serena e gentil, que sempre foi, para os mais poderosos como para os mais pobres e mais fracos.  








 "Um santo!", nas palavras da filha Rozaura (Barboza Ramos). O seu nome, que se distingue pela raridade, foi  escolhido por ele. Quando a  menina nasceu. acabava de ler um romance de  amor entre uma heroína assim chamada e um ilustre fidalgo, com o longo título de "Retiro de Cuidados e Vida de Carlos, e Rozaura". 352  densas páginas de uma elaborada escrita antiga, dificultando  ás novas gerações a sua leitura. Começa auspiciosamente  numa madrugada ( "Rompia a aurora..." , continua na infindável narrativa de guerras, conflitos e  mil e um obstáculos à união dos jovens, só alcançada no final feliz, com a etnográfica descrição do cortejo nupcial em direção à Igreja: "levando a Marqueza Rozaura da mão e Dom Manrique a Carlos ao lado direitto e assistiao ao seu recebimento e quando voltaram por quantas ruas passarao choviam infinitas flores das janelas, com repetidos vivas. Cedo com sua espoza Rozaura para Rezzo virao. Laus Deo".
 Rozaura Barboza Ramos não teria tão vistoso casamento, nem iria para Rezzo,  ficar-se- ia  por Gondomar, também feliz, com um viúvo chamado Manuel Marques, tendo recebido o pesado livro de capas de couro como presente, que legaria a sua afilhada Maria Antónia, diligente guardadora de quaisquer preciosidades de valor afetivo..
Joaquim Mendes Barboza, o cultor de histórias de cavalaria, monárquico regenerador e dedicado homem de família, com as origens (Bitarães. Penafiel, Paredes), parece ele ter mantido escassos contactos. É provável que os pais tivessem já falecido, em 1970. Certo é que deles não há presença em crónicas de família, com a exceção de um sobrinho, que era Visconde de Paredes (ou um dos filhos do Visconde) e namorou a filha mais nova, Maria da Conceição. Vinha, garboso e galante, a cavalo, namoravam no mirante, mas ela, após alguma hesitação, preferiu o "brasileiro" António Carlos, que, segundo disse muitas vezes, a admirava com uns grandes e expressivos olhos verdes, como jamais vira outros.
Os demais antepassados de Maria Antónia têm, invariavelmente, raízes antigas e fundas em Gondomar, a (então) pacata vila que recebera, antes da fundação do reino de Portugal,  o nome de um rei godo. Do lado paterno, os Pereira e Aguiar da Gandra, do materno, os bisavós Anna e Joaquim, da Quinta da Bela Vista, (quinta na geração seguinte, vendida a estranhos, não se sabe ao certo quando, mas largas décadas antes da sua demolição, durante a presidência do Major Valentim Loureiro, que terá manobrado no sentido de a "desclassificar" pela retirada do selo protetor de património de interesse público)
Alguns dos numerosos irmãos de Carolina, seguiram as pisadas do pai, e, com a sua vocação empresarial, enriqueceram,  caso de  MANUEL GUEDES (Ferreira Ramos), que dá o nome à praça do Município em Gondomar, e ANTÓNIO FERREIRA RAMOS, emigrado para o Brasil, onde lançou com um Salgado Zenha (decerto antepassado do que ficou na história da nossa democracia) uma sociedade próspera, a "Ramos e Zenha". Desse Tio gostava muito a Maria da Conceição (que viria a ser Maria Aguiar). Com ele manteve correspondência assídua e trocou retratos, seguindo o seu percurso e o dos filhos, que ocupam várias páginas num gracioso álbum de capa de veludo arroxeado. Este António casou com Carolina Silveira Martins, (irmã do notável Governador do Rio Grande do Sul, que se notabilizou nos primeiros anos da República brasileira). e tornou-se um verdadeiro patriarca. A sua descendência é incontável e está hoje espalhada pelo sul do Brasil, de Bagé, onde morou, a São Paulo, e aos confins do Uruguai.





 Desses inúmeros primos que, separados pelo oceano, se desconhecem, só dois se encontrariam, um dia, em fins do século XX, em Brasília, os primos Maria Manuela Aguiar, Vice-Presidente da Assembleia da República Portuguesa, e Sá Azambuja, Senador da República Federativa do Brasil, ambos descendentes diretos, e no mesmo grau, de Anna e Joaquim..
Um outro ANTÓNIO FERREIRA RAMOS era filho de Manuel Guedes, e foi também muito próximo da prima direita Maria da Conceição. A vida levou-o para longe, embora um longe menos longínquo,  (Lisboa), depois do casamento com uma filha de Ramalho Ortigão, de quem descendem todos os Ortigão Ramos, Foi, entre outras coisas, proprietário do teatro que é hoje o São Luís e, tal como o pai, um benfeitor da terra mátria. Camilo de Oliveira, nas memórias de Gondomar, lembra que instituiu bolsas de estudos, em igual quantidade e montante para rapazes e raparigas. A instrução feminina foi uma das causas republicanas, defendida pelo movimento feminista, mas, em boa verdade,  também por muitos homens, companheiros de crenças revolucionárias, como este gondomarense, genro de Ramalho.
. Manuel Guedes ficou conhecido pelo republicanismo militante, e, embora não chegasse a ver o fim do regime monárquico, o seu nome não foi esquecida, tendo sido  dado, nos alvores do novo regime, à Praça onde tivera, antes de se fixar no Porto, uma loja comercial, no casarão, de azulejos, que ainda lá está, em frente à Câmara - o que, infelizmente, se não pode dizer da Vila Maria, ou da Quinta da Boavista, da qual resta um pequeno lago de pedra, transplantado para junto da capela do Monte Crasto, a crer numa história contada, no café do Castro, num dia de sol em que uma Joana do século XXI fez a comunhão solene, por um simpático velhinho anónimo, que se gabava de ter frequentado a propriedade.
Os filhos de Carolina e Joaquim afastaram-se do mundo de atividades empresariais, que tinha feito a fortuna de avós e parentes.Tal como o pai enveredaram, quase todos, por carreiras do funcionalismo público, os três mais velhos, Alberto, António e Alexandre e o mais novo, José Barbosa Ramos, advogado e deputado pelo Porto, que acabaria por ingressar na magistratura judicial.  Em vez de servir o Estado, AMÉRICO dedicou-se ao serviço de Deus, e foi um padre muito bondoso e querido dos paroquianos. Temperamentalmente, com certeza, o mais próximo do pai....



ALEXANDRE MENDES BARBOZA começou como Secretário da Administração e, mais tarde, seria Administrador do Concelho. Sempre envolvido na vida cultural de São Cosme, esteve entre os fundadores do Clube Gondomarense e pertenceu aos seus executivos, Era alto, bonito e elegante, apreciador de teatro, assíduo frequentador do Sá da Bandeira e das tertúlias da "Brasileira". E, ocasionalmente, poeta, também, embora dos seus versos, só uma quadra tenha sido conservada pela sobrinha Maria Antónia:

"Morre um afeto, outro nasce
Passa um desejo, outro vem
Depois de um sonho, outro sonho
De tantos que a vida tem"

Afetos femininos não lhe terão faltado na juventude, era, entre os seus elegantes irmãos, o mais bem parecido...







Casou com HERMÍNIA, uma senhora alegre e recatada, que aceitava, de bom grado, a sua constante intervenção cívica e cultural. Um só grande desgosto na vida a dois, a morte da única filha, ainda pequenina. Ambos gostavam muito de crianças  e dedicaram-se aos sobrinhos, filhos da irmã/cunhada Maria, que tão cedo enviuvou, sobretudo, à mais nova, Maria Madalena, com apenas 3 meses quando o pai morreu. Foi criada mais com eles do que com a própria mãe. O convívio era facilitado por morarem em frente à Vila Maria. O ambiente de concórdia e serenidade do seu lar, de tal modo moldou o espírito da pequena Madalena e o seu modo de estar na vida, que nem se diria parte do grupo dos buliçosos irmãos e irmãs Barbosa  Aguiar. Parecia realmente filha da Tia Hermínia, na sua postura sereníssima  e até na sua dedicação a todos os animais, em geral, e a gatinhos, em especial.
Deste tio falecido pouco depois de acabar a 2ª Grande Guerra, mal se lembram os sobrinhos netos, mas conhecem o insólito da sua conversão. ou reconversão, à fé católica, na hora de partir. Um cancro de pulmão. doença de fumadores inveterados, como ele, dava.lhe a certeza de que o fim estava próximo. Mandou chamar o pároco e com ele ficou longamente, em confissão e em conversa. Foi o Abade Andrade que ouviu as suas últimas palavras. Saiu do quarto, comovido, e disse à família ali reunida . "Acaba de morrer um santo". Os amigos republicanos, como foi, e laico, como fora até aos momentos derradeiros, diriam o mesmo, de outra forma. Talvez: "morreu um justo". Os sobrinhos Aguiar  choravam a partida do seu segundo pai
 Igualmente republicano, mas mais revolucionário no campo da luta, era António, o anarquista, que foi, várias vezes, preso no Aljube, e, durante o consulado de Sidónio, esteve degredado em Angola. O degredo foi, porém, não só uma pausa nas escaramuças políticas, como oportunidade de conhecer outras paisagens e costumes, com os quais se deu bem, e até de se lançar em negócios razoavelmente rentáveis. Que ramo de negócios? Lá não se sabe, cá, após o retorno, parece ter investido num "café - concerto", onde terá falhado a aventura empresarial.




Voltou a um emprego de funcionário... e continuou frequentador  do meio, onde recrutava as companheiras espanholas, a última das quais, Teresita, lhe sobreviveu.




. Também ALBERTO MENDES BARBOZA esteve preso no Aljube, ainda rapaz solteiro.
Casou com a simpática ZARITA,  (Maria do Rosário) foi um mais pacato pai de família - pai de um médico e sogro de um pintor, Mário Ferreira, casado com a sua linda e inteligente filha Maria Isabel (Mimi), grande amiga da prima Maria Aguiar, de quem era apenas alguns anos mais nova.



Mimi teve uma única filha, Maria Laura, que casaria com Luís Aragão,  um homem encantador, que foi despachante da Alfândega do Porto, quando esse cargo estava no seu  auge. Dois filhos, a lindíssima Anabela (Bebinha) e o Luís. Ficaram famosas as festas que davam em sua casa no Porto, e onde as primas Aguiar nunca faltavam .

JOSÉ BARBOSA RAMOS casou com senhora de ilustres famílias beirãs, CELESTINA MESQUITA DE ABREU, a tia Celestina, de perfil não muito diverso do da tia Hermínia, a cunhada minhota, também ela de boas famílias (aluna interna de colégios de freiras porque o pai enviuvara quando ela era menina). Tiveram dois filhos, José Joaquim (Zé Quim) e Celestina (Tininha)  Mesquita d' Abreu Barbosa.. Viviam na casa que fora dos antepassado Carolina e Joaquim, perto da Praça Manuel Guedes e foram sempre companheiros de brincadeira dos primos Barbosa Aguiar, A Tininha será a primeira mulher da família com curso universitário (Farmácia) e exerceu, como dirigente e proprietária de uma Farmácia em Valongo e o Zé Quim, licenciou-se em Histórico - Filosóficas e foi Bibliotecário da Universidade de Coimbra.


Na geração anterior, o pai distinguira-se, como político, à frente de um jornal de intervenção e como deputado pelo Porto, como advogado e, seguidamente, como Juiz. Fez, na Magistratura, um percurso fulgurante, e acabaria aposentado compulsivamente do Supremo Tribunal de Justiça, onde era o mais jovem Conselheiro de sempre.




 Américo era monárquico regenerador, como o pai e as irmãs. Rozaura, Glória e Maria da Conceição (de Carolina, a mãe, se ignoram, de facto, as convicções políticas, embora não custe admitir que fosse monárquica, como tendiam a ser as mulheres, mais do que os homens.... Ideologicamente divididos em campos opostos, mas afetivamente unidos, nunca deixaram que isso interferisse na boa relação quotidiana.. Nos anos 30, várias vezes António se refugiou, onde a polícia do regime nunca se lembraria de o procurar, na "Vila Maria" junto da irmã que dava o nome à Vila e era uma cidadã acima de toda a suspeita, catolicíssima e dirigente local da "Obra das Mães". Às criadas dizia:  "Daquele Senhor, que está lá em cima, não se fala a ninguém". E elas não falaram. Nas últimas vezes, esteve ele acompanhado da sua companheira espanhola, a Teresita, e de um cãozinho. Era viúvo já, mas da falecida mulher nada consta - à sua memória mais se  associa a ex-bailarina espanhola e o cão que, no seu funeral (civil, exatamente como quis) ficou sentado no chão, durante o velório, ao lado de um busto da República. Nenhuma das irmãs acompanhou o cortejo fúnebre até ao cemitério. Ficaram a chorar a sua morte, dentro de casa, de portas e janelas fechadas. Um enterro laico era, para aquela geração, uma morte eterna pior do que a morte terrena. Ainda não viam Deus como suficientemente justo para receber nos céus um bom ateu, como hoje  crescentemente se acredita, tanto ou mais do que num Deus concreto...
Das filhas de Carolina e Joaquim só GLÓRIA BARBOZA RAMOS  quis continuar estudos. Os rapazes seguiram, um para o seminário, todos os outros para os colégios, embora só um se formasse na Universidade de Coimbra. Para as meninas, estudar era facultativo - depois da escolaridade primária, podiam ter, em casa, aulas de línguas, de piano, sem grande rigor ou obrigação e  aprendiam as artes de bordar, a cozinhar... Glória terminou, com facilidade, o curso do Magistério na Escola Normal, tornando-se uma pioneira na família. Contudo, não chegou a exercer o cargo de professora - a tuberculose levou-a aos 21 anos. Do Porto teria trazido o diploma e a doença incurável. Escolheu ficar em casa, não ir para um sanatório de montanha, como quem vai para o exílio. Rozaura, a irmã mais velha, quis trata-la dedicadamente, como faria, anos depois, com o irmão, o bondosíssimo Padre Américo, que morreu com aura de santo entre os paroquianos.

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Glória, ao contrário de Rozaura, era uma rapariga moderna, de uma formosura exuberante. Não hesitava em passear, na modesta vila de São Cosme, os seus vestidos citadinos, levando com ela, lado a lado, igualmente alta e chique, Maria, e, atrás, consumida e vigilante, a mana mais baixinha e modesta, com nome de heroína de romance. Paravam os moços de Gondomar, espantados para as ver pisar terra batida como quem caminha em passadeira vermelha e atiravam às meninas piropos e galanteios, a, que, às vezes, horror dos horrores, elas ripostavam (ou melhor, no singular, ripostava Glória, ria Maria, discretamente, e quase chorava a mais conservadora, com o despropósito). Seria a jovem professora "feminista"? Dir-se.ia que sim, fica a dúvida -  as manas não desvendariam o mistério. apenas contaram que era excelente amazona e namorava um primo Lobão. São muitas fotografias que dela nos dão uma imagem de beleza e de  auto-confiança, a coincidir com a opinião transmitida pelas irmãs. Um seu retrato de grandes dimensões, que dominava a galeria dos retratos de casa da irmã Maria, foi muitas vezes emprestado, tal como o piano, para as récitas e peças de teatro da Ala Nuno Álvares, como decoração em palco de salas de visitas, dominadas por imponentes quadros de parede...(incrível a cedência do pesadíssimo piano alemão, "Riese", que fazia o curto trajeto para o Souto em carro de bois, segundo os relatos de Maria Antónia, ela própria executante musical e atriz de várias comédias, que divertiam a boa sociedade Sãocosmense,...).




ROZAURA BARBOZA RAMOS, a incansável enfermeira dos dois irmãos, não tinha podido evitar o contágio...  Mas não ficaria a ser tratada em casa -  decisão sua (para poupar mais contágio no círculo próximo) ou dos próprios pais, cada vez mais crentes na solução hospitalar? Resta a dúvida. Partiu para o sanatório do Caramulo, onde ficou por muitos meses. Aí viveria a grande paixão da sua vida, com um médico que lhe retribuiía o sentimento, o Dr Manso, também ele já atingido pela tuberculose. A doença os reuniu e os acabaria por separar, porque ela curou-se e ele não, pelo menos, nessa fase. Guardou numa caixinha, atadas com uma fita de seda  as cartas que ele lhe escreveu, deixando dito que queria que fossem enterradas com ela, E assim seguiram com ela, para o seu jazigo em São Cosme, sem que ninguém ousasse abri-las e lê-las.




 A Gondomar regressou, pois, saudável, tendo resistido a dietas espantosas, (que incluíam uma dúzia de ovos por dia) e fazendo muitas amigas, sobretudo do sul do país, meninas da alta burguesia, igualmente arrancadas à morte certa  pela competência do Dr Manso. Com elas se correspondia e, por várias vezes, visitou as melhores amigas nas suas quintas dos arredores de Lisboa. Estava num solar de Benfica, em 1908, aquando do regicídio, e  pode assistir, com a sua anfitriã, às exéquias do Rei D Carlos e do Principe Real Luís Filipe, muito formoso e loiro no caixão, com os vestígios mal disfarçados da bala que lhe atravessou a têmpora. Se monárquica já era, mais intransigente se sentiu. Contudo, o Dr Manso era republicano, amigo de Afonso Costa, que, um dia, lhe apresentara durante um passeio na serra, em que aquele político acompanhou um seleto grupo de convidados, doentes já no bom caminho da cura. Desses passeios frequentes há imagens muito bonitas, junto a quedas de águas. Algumas até foram encaixilhadas e chegaram já bastante sumidas ao presente. Em nenhuma delas, porém, se vê o famoso Afonso. Certo é que a jovem de Gondomar terá tido uma intensa vida social, entre os tempos de repouso forçado, naquela verdadeira "Suiça portuguesa", de que falava com entusiasmo.         . 
 Sobreviveu, rija e saudável, até ao ano em que completaria o seu centenário (1979), Casou, anos mais tarde, já com mais de 30 anos, com um viúvo, funcionário da Contrastaria, MANUEL MARQUES, homem muito amável, com quem foi feliz.










 Do primeiro casamento tinha ele um filho já adulto, Armando, de quem todos gostava, mas com quem conviviam pouco. Morava, talvez em Braga, de onde, tal como o pai, era natural. De Braga, ficou famosa nos Natais de Gondomar uma receita regional de "formigos" ou "mexidos", doce delicioso, à base de pão, mel, pinhões e passas, que ninguém fazia tão bem como a Tia Rozaura  - artista incomparável, tanto na cozinha, como nas rendas e bordados, que saiam das sua mãos. Aos 95 anos, terminou uma enorme colcha em crochet, da mais alta complexidade técnica! - e mais teria empreendido, se a família não a dissuadisse, porque exagerava no andamento do trabalho, com receio de morrer e deixar a obra inacabada...
Foi uma velhinha encantadora, com uns olhos vivos e perspicazes, gostava de falar por aforismos e provérbios, e até de usar um "calão" ligeiro, (que escandalizava a irmã e afilhada Maria, incapaz de dizer uma palavra imprópria) . Eram radicalmente diferentes, Maria sempre pronta a sair, a passear, a conviver, a liderar iniciativas e a influenciar o seu círculo social e familiar, enquanto Rozaura de bom grado se quedava em casa, tricotando, conversando e lendo (nomeadamente jornais, analisados de ponta a ponta, vendo televisão, sempre recatada e serena,  embora pudesse fazer comentários certeiros e  ácidos, a quem, perante ela, caía no ridículo ou a quem conseguia  desmascarar jogadas de intriga ou oportunismo,  
Numa pessoa tão prudente, hábil e sábia se estranha a decisão mais errada que tomou na vida e de que haveria de se arrepender: - um segundo casamento, já quase sexagenária,  com um "brasileiro" de torna-viagem. MANUEL LIMA. Revelou-se  homem de mau feitio, que a sua serenidade foi suportando, até que se viu viúva, de novo, e em pior situação financeira, depois da dispendiosa doença que levou o falecido. Com muito sentido prático,  hábitos antigos de poupança e o apoio de uma criada dedicadíssima e competente, Maria da Conceição Póvoas, atravessou aqueles tempos em que não existia segurança social, vendendo apenas uma pequena quinta  muito bonita, "a Passagem". Conservou tudo o resto, todas as "relíquias de família", de que era legatária -  móveis, loiças, jóias, bordados, linhos e "bibelots" - contando à afilhada Maria Antónia, a história longa de cada peça.  E com a afilhada, no Porto e, depois, em Espinho, passaria, os últimos trinta anos, sempre uma companhia agradável para várias gerações de sobrinhos, que escutavam as suas histórias. Consigo trouxe recordações, pertences do maior valor afetivo e uma criada fiel, já não a velha Maria, mas uma  sucessora, chamada Olívia Pessegueiro (mais outro traço distintivo entre irmãs,  saber ou não manter o pessoal doméstico, que na Casa da Pedreira ficava décadas e na Villa Maria mudava constantemente)
Três irmãs com sorte tão diferente...A que mais parecia querer fazer com o seu futuro, a que ousou estudar na grande cidade (ir para o Porto seria, então, quase como ir para o estrangeiro), havia de partir tão cedo de uma vida que parecia ter tudo para lhe dar - vemo-la, com os pais, como a menina dileta nos retratos, elegante nas festas e piqueniques no Castro, com alegres grupos de amigos e parentes, sempre com predominância da componente feminina... Sabemos que cavalgava o cavalo que o pai comprara não só por desporto e para recreio, mas para se deslocar em serviço  fora de São Cosme (gostava de animais, ficou conhecida  a sua ligação a um cão grande, chamado Diu, que o acompanhou na velhice e surge, tranquilo, em muitas fotos de família. E até que não queria dar aulas na escola.
A tragédia da sua morte foi muito sentida, Glória não era só a filha do prestigiado tabelião  e de gente com tradições na terra, brilhava com luz própria, pela cultura e pela beleza. Chegou às páginas dos jornais de então, guardados, sem indicação do título e ficou para sempre na memória da família.
"Gondomar, 25  -Falleceu hontem, na primavera da vida, quando tudo lhe sorria, com a idade de 21 anos, a Srª D. Glória Mendes Barbosa, gentil e adorada filha do digno tabelião destre concelho Sr Joaquim Mendes Barbosa.Era uma menina simpática, prendada e de finas qualidades de educação. Aos seus pais, que a adoravam, e aos irmãos Alexandre Mendes Barbosa, secretário da administração deste concelho e Américo Barbosa, abbade de Gondalães e a restante família enlutada os nosso profundos sentimentos. O seu enterro realiza-se amanhã, à 9.00, na Paroquial igreja de Gondomar".
Era a mais ousada das raparigas, e parece, ter sido, realmente, especial -  "adorada", como diz e repete o periodista.. Mais determinada, mais intelectual e mesmo mais bonita do que as suas bonitas irmãs. Mulher pensante e atuante, admirada e querida. O namorado dedicava-lhe inspirados poemas. Era o centro de um grupo alegre de jovens, de que os irmãos faziam parte. Um seleto círculo, ou, como diriam então, "a fina flor" da vila
 Para a irmã Rozaura, a mesma doença que a vitimou por pouco não lhe abriria as portas de um destino  bem mais glamoroso do que o que lhe veio a caber em sorte -, ao lado de um médico muitíssimo atraente, com fortuna e influência social, semelhantes às que MARIA DA CONCEIÇÃO iria encontrar no casamento com ANTÓNIO CARLOS PEREIRA DE AGUIAR, vivido um e outro lado do mar Atlântico
Não surpreende, assim, o facto de ser Rozaura, nos recortes de jornais, que se conservaram nos baús de recordações, a menos citada, não obstante o peso que manteve, no círculo familiar e a popularidade de que gozava entre irmãos, cunhados e sobrinhos, à medida que avançava nos anos, até ao ano do seu centenário.
E, na verdade, as senhoras, são mencionadas, quase sempre, apenas, como "mulheres dos seus maridos". ou "mães dos seus filhos", até nas colunas sociais. Assim surge a matriarca Carolina, a propósito de uma simples festa:
"Passou no último domingo o aniversário natalício da Srº D. Carolina Ramos Barbosa, esposa do estimado e bemquisto notário local, Sr Joaquim Mendes Barbosa. Por esse motivo vieram a esta vila seu filho, Sr Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e ilustre director e proprietário do semanário local "O Progresso de Gondomar" e o Sr Deolindo Oliveira, collaborador do mesmo periódico".
A formatura desse filho José merecera, aliás, pouco antes, destaque semelhante. 
"Estiveram domingo último nesta vila os nossos conterrâneos Camilo Martins de Oliveira, António Barbosa , Thomaz Pessoa e César de Moura, do Porto, que vieram assistir a um lauto jantar "offerecido, pelo novo bacharel dr José Barbosa Ramos, festejando a conclusão recente da sua formatura em direito.
Escusado será dizermos que o jantar decorreu no meio da mais franca e eloquente cordialidade e com immenso enthusiasmo. Ao jantar, além dos cavalheiros citados assistiu a família do novo bacharel, que partilhou a alegria da festa. Assistiu mais ao jantar o nosso patrício António Pereira de Aguiar, antigo companheiro da vida escolar do sr dr José ramos Barbosa".
A pequena notícia oferece-nos o colorido da celebração de um feito, então, relativamente raro, como era uma formatura coimbrã... De menor interesse etnográfico. mas muito mais interessante para a reconstituição do mosaico de relacionamentos familiares é o facto de salientar a presença de um ilustre "patrício" (forma, porventura, de designar, um expatriado no Brasil...) António Aguiar, que tinha sido companheiro de escola do novo jurista. Um dado novo, que, por um lado, nos mostra como, já então, o jovem emigrante no Rio era considerado figura grada da vila e nela mantinha, em férias certamente frequentes, uma rede de contactos com pessoas e instituições. E deixa-nos a dúvida: seria nesse jantar que primeiramente conversou com Maria, ou foi convidado, não como colega de José, dos bancos da escola, mas já como namorado da futura mulher?
 As famílias Barbosa Ramos e Aguiar não teriam sido íntimas, anteriormente, mas já houvera, pelo menos, um outro romance (que, porém, não terminou no altar), entre Alexandre e uma irmã de António Carlos, (Florinda?), muito engraçada e, segundo esse tio disse à Maria Antónia, quando jovem parecidíssima com ela. 
Difícil na única fotografia coletiva existente da família Pereira de Aguiar, um retrato de dezenas de figurantes, entre pais, filhos, noras e genros e criadas, reconhecê-la e avaliar a semelhança de traços. Nesse ano, ainda António Carlos não tinha partido para o Brasil, mas já estaria  a fazer as malas, o que situa a fotografia em 1895 ou 1896..
 Maria casaria com ele, já homem de fortuna e cultura acima da média, nas vésperas da revolução republicana,  
OS AGUIAR  -  SOB O SIGNO DA DIVERSIDADE
De diversidade se pode falar, a seu propósito, em diversos sentidos .Desde logo, num confronto com o outro lado da família. Enquanto nos Barboza e nos Ferreira Ramos há uma memória que os traz até nós, com a marca de uma acentuada homogeneidade  não só de classe social, de fortuna ou profissão (com predominância de funcionários públicos, professores, médicos, advogados, que se irá acentuando nas novas gerações)  mas também de intervenção cívica, para além das fissuras ideológicas, nos Aguiar encontramos uma espantosa diversidade. Os 15 filhos do casal Rosa Pereira e Manuel de Aguiar, que chegaram à idade adulta (não havendo qualquer indício de que outros terão desaparecido em crianças, como então era comum)  distinguiam-se mais pelas diferenças do que pelas parecenças e tiveram destinos também muito distintos... Maria, a mãe de Maria Antónia, dizia que nunca vira família que, nesse aspeto, se comparasse aquela.
A ascendência de Rosa Pereira  é a que está melhor estudada, ao longo de mais de 300 anos, graças a um ilustre primo Maia, professor catedrático e especialista de genealogia, descendente direto de um segundo casamento de Anna Pereira, a mãe de Rosa. São, surpreendentemente, 300 anos de enraizamento em Gondomar!  Mas deles só se conhecem o grau e os nomes,com  apelidos vários. Alguns desses antepassados ter-se-iam dedicado à arte que põe no mapa a vila de Gondomar - a ourivesaria. Numa imprecisa  crónica destaca-se a vaga memória de uma parente, que foi a primeira mulher de Camilo Castelo Branco, e de um Bispo, figura ainda mais nebulosa.
De Manuel Aguiar. a longa lista de avoengos está por investigar. O pai,  Miguel Aguiar e as gerações imediatamente anteriores eram, provavelmente, também, dali.






O casal vivia a sul de São Cosme, na Gândra, num casarão de pedra à face da estrada, com extenso jardim nas traseiras. Aí brincou essa prole numerosa, crianças engraçadas e alegres, com certeza, porque a vivacidade e a extroversão são as qualidades mais comuns aos Aguiar que se mantiveram no nosso círculo de convivência, levando a supor, que os demais fossem assim também. Um valor que parece ter resistido em família tão marcada pelas clivagens de fortuna e infortúnio é a solidariedade que levou uns a valerem, fraternalmente, aos outros. Conhecem-se vários exemplos: Augusto que, ao ficar, em partilhas, com a casa da Gândra, manteve sempre a irmã solteira Guiomar e a irmã  xx  casada com Camilo no confortável rés do chão da casa grande; João e António, que, no Rio, tentaram, em vão, dar modo de vida ao boémio Alberto (talvez Alberto, nem o nome é certo...); ou na geração seguinte, os  sete Aguiar Saraiva, que, tendo ficado órfãos e empobrecidos, quando uns eram muito jovens e os outros ainda crianças, se uniram, os mais velhos ajudando a bem educar os mais novos, recuperando, todos, o estatuto social e o nível de vida que fora o dos pais.
Não foi bem assim entre os mais numerosos PEREIRA DE AGUIAR  e, se é certo, que também eles procuraram ajudar-se mutuamente, não pode negar-se que a história da sua família se fez e transmitiu com acento tónico nos ricos, e dos fracos praticamente  não reza  
Dois dos mais velhos, João e Augusto, o mais mais novo, António Carlos, e uma só das raparigas, Amélia. terão tido o "toque de Midas" .E  Gracinda casou com homem rico. Dos outros, ficou pouco mais do que o nome...
JOÃO fez-se um homem alto e elegante, embora não propriamente bonito, mas já então se dizia que um homem pode prescindir desse atributo, que ele, certamente, compensava com a sociabilidade e simpatia. Não se sabe a idade com que partiu para o Brasil, se aí tinha parentes ou conterrâneos que o apoiassem, nem como afrontou os primeiros tempos, quase sempre os mais difíceis em qualquer trajetória de emigração
Ajudou-o, com certeza, numa carreira meteórica.  introduziu-o na sociedade que frequentava. Talvez o tenha também incentivado a valorizar-se pela cultura, pois ele mesmo prezava esse lado da vida, tanto ou mais os aspetos mais materiais, com que o comum do emigrantes dessa época se contentaria. Frequentava os meios portugueses, o seu nome consta, pelo menos, entre os associados do Real Gabinete de Leitura do Rio de Janeiro, então já uma instituição florescente e prestigiada, que acolhera a novel Academia Brasileira de Letras na sua sede, e possui, ainda hoje, a segunda maior biblioteca do Brasil, não só valiosa como uma das mais belas do mundo. Contudo, foi com uma brasileira que casou - Judith, jovem encantadora, da fina burguesia carioca, que viria a ser, a partir de 1910, a melhor amiga da cunhada Maria.



 Se tinham como aparenta nos retratos  mais ou menos a mesma idade, o matrimónio terá sido celebrado poucos anos antes da chegada de Maria, provavelmente, cerca de 1906/1908 , o que faria do marido um quarentão. Se algum dia ele alimentara um projeto de retorno às origens, o amor por uma brasileira radicou-o lá, definitivamente lá.
Os filhos de Judith e João aparecem em muitas fotografias com os tios e primos portugueses. Os homens enveredaram pelos negócios, pela política (houve entre eles, segundo as memórias de Maria Antónia vários senadores e deputados) e pela diplomacia - escolhas que se terão continuado na geração seguinte. Com Portugal não mantiveram ligações. Maria e Judith, mesmo depois de separadas pelo Atlântico, trocaram correspondência a vida inteira. O contacto perdeu-se nas novas gerações, só retomado no período breve em que José Augusto, um dos filhos brasileiros de Maria e António, morou no Rio de Janeiro. Tirou muitas fotos com elegantes primas Aguiar, todas lindas e com traços fisionómicos que por generalização (excessiva, evidentemente) se atribuem aos Aguiar - morenas cheias de graça, com olhos grandes e claros... 
AUGUSTO teria  quase a mesma idade de João e, tal como ele, altíssimo. Talvez o mais parecido com o pai, era um belo homem loiro, com olhos azuis.  sorriso fácil, invariavelmente bem disposto, Tal como João e António, era joalheiro, estabelecido na emblemática Rua das Flores. O negócio prosperou e ele podia e gostava de viver bem. Sempre  com os seus fatos impecáveis, rosas frescas na lapela, frequentava tertúlias e teatros portuenses. Melómano, quis que as filhas  do seu casamento com Leonor, Aurora, Lucinda  e Leonor estudassem nos melhores colégios e no Conservatório do Porto.. Uma quarta menina morreu tuberculosa. Maria Antónia não a conheceu, e nem do nome se lembrava, só  de ouvir dizer como era linda,
Leonor (Nucha) terminou brilhantemente o curso do Conservatório, mas não fez carreira artística, Casou cedo, passou a dar aulas particulares de piano e foi professora das primas, Maria Antónia, Glória (Lolita) e Madalena, todas bastantes mais novas. 
Do Tio Augusto Maria Antónia guardava as melhores recordações. Visitavam-no muitas vezes na casa da família, na Gandra, que ele tinha remodelado e mobilado luxuosamente. Do jardim há uma única fotografia em que vê a mãe Rosa Pereira com 3 pequenos netos não identificados e, em primeiro plano, o filho António à conversa com um irmão, (que não é Augusto) ou um amigo. O jardim teria sido, tal como a edificação antiga modificado ou o roseiral já existiria no tempo dos pais? A sua paixão por rosas pode ter sido herdade dos pais, pois era compartilhada pelo irmão António..


Segundo Maria Antónia na meia idade o Tio Augusto era gordo e verdadeiramente imponente, uma figura semelhante ao Rei Dom Carlos, mas com olhos espantosos e pestanas muito longas, que impressionavam as sobrinhas, crianças, no meio das quais era imensamente popular, por ser um tio muito e generoso.
Augusto Aguiar teve negócios com o Brasil, para onde exportava por intermédio dos irmãos emigrados, sem nunca se deixar atrair pela emigração..Já a filha Lucinda morou lá, mas por poucos anos, com o marido, Homero Figueiredo, que era farmacêutico e foi dono de uma Farmácia no Porto "naquela rua que vai da Sé para a Batalha, passando pelo antigo Governo Civil", nas palavras da Maria Antónia, que lá passava muitas tardes, feliz porque Lucinda, sua madrinha de batismo, lhe dava quantidades enormes dos bolos e doces. Às vezes, tinha a companhia de uma criança da mesma idade, Fernando Figueiredo, sobrinhos de Homero, que viria a ser seu médico e grande amigo.. 
 ALBERTO, outro dos irmãos mais velhos e doe emigrantes no Brasil, para onde possivelmente partiu na companhia de João, é figura enigmática. Não se ficou pela cidade, sumia no interior, com paradeiro incerto, ele próprio muito incerto. Casado ou não, teve vários filhos, um dos quais foi recolhido e educado pelos irmãos, frequentando bons colégios. Ele aparecia, de longe a longe, com um aspeto que desgostava a família e ficava por pouco tempo.. Perdida a paciência, João e António desistiram de tentar salvá-lo. A sua mais persistente protetora era a cunhada Maria. Por sua intercessão, António mandava-o comprar fatos apresentáveis e alojava-o em casa. Um dia, disse adeus e não voltou mais. O filho que cresceu no Rio,foi empregado de confiança do Tio António que, quando começou a preparar o regresso a Portugal, com ausências mais prolongadas o deixou a gerir os seus empreendimentos, com as mais inesperadas e dramáticas consequências.. Seria , então, um homem de vinte e muitos anos, quando a primogénita dos Barbosa Aguiar era criança de sete ou oito anos-
AMÉLIA é a única Aguiar da sua geração que permanece como figura lendária, pela força de caráter e por riqueza ganha em domínios onde nenhum antepassado se terá aventurado antes: estaleiros de barco, frota pesqueira...  E uma frase, a única que ficou para a posteridade, revela, em sínteses perfeita, um percurso feminino extraordinário "Deus castigou-me com saúde, filhos e dinheiro" Tudo teve em abundância. Supõe-se que nos favores divinos incluiria um marido discreto, cujo nome se conseguiu desvendar numa pequena notícia da imprensa - o Sr Oliveira Aguiar. Seria um primo ou parente ou uma coincidência num apelido não muito comum,. como Pereira ou Silva, mas nem por isso propriamente raro? Mais provável é o parentesco, mas não está provado.
Uma fotografia do espólio de Maria Aguiar, amarelada e riscada (estrago atribuído a um dos seus imparáveis meninos, que espalhavam o terror e destruição à sua volta...), tem no centro uma senhora alta e forte, bem vestida, de rosto determinado, rodeada de adolescentes e crianças, será a única imagem que possuímos (se for ela...). É a matriarca dos Aguiar de Matosinhos, com a sua aura de mando e prosperidade possivelmente merecida, mas com os quais se perderam laços de relacionamento familiar. A migração de Amélia para Matosinhos, embora interna e próxima, produziu, neste aspeto, efeitos não muito diferentes dos da à emigração brasileira de João e Alberto.
 ANTÓNIO CARLOS , o pai de Maria Antónia, era o mais novo, o benjamim. Nasceu em 11 de fevereiro de 1988. Muito bonito, baixinho, esperto e bom aluno. sempre cuidadoso  com a roupa e a apresentação, ambicioso, sem ser agressivo ou egocêntrico, era determinado, como provou ao emigrar com 16 anos, respondendo ao convite de João, um dos irmãos mais velhos, então já lançado em altos voos no Rio de Janeiro. Dos seus primeiros anos, não há episódios que tenha transmitido à descendência. Pela ligação que cultivou, muito para além do círculo familiar, com amigos de infância e com a terra, a sua atualidade e progresso, ou falta dele, é a imagem daquele género de emigrante, que, como dizia Jaime Cortesão, leva a Pátria consigo. Cruzava, com regularidade, o Atlântico, para vir passar férias em São Cosme. É por recortes de jornal, não por relatos orais, que tomámos conhecimento de que não faltava na época da caça - desporto que, aparentemente, o entusiasmava mais em Gondomar do que no Rio, certamente porque ali tinha os melhores companheiros para caçadas e convívios. Muito  provavelmente, misturava prazer e trabalho, pois manteriam negócios de exportação/importação com o irmão Augusto, joalheiro, no Porto, como ele r João no Rio de Janeiro 
Terá começado tão rápida ascensão empresarial, certamente na joalharia de João, com quem aprendeu os segredos de a bem gerir. A diferença de idades era substancial,  relação foi, decerto, mais do que fraterna, quase paternal/filial. Acolhido em sua casa, terá sido, muito provavelmente, por ele encorajado a lançar empresa própria, alguns anos depois. Independente, no mesmo ramo, não se sabe se depois de alguma forma de parceria. Talvez, por essa altura, João, casado com uma brasileira de família abastada, se dedicasse já a outros empreendimentos.
 Com cerca de 28 anos, na altura em que se terá enamorado da futura mulher, António era um homem  extremamente rico. Onde e quando se iniciou o romance?
 Por uma pequena nota na coluna social de um periódico gondomarense apercebemo-nos da sua presença no jantar de formatura em Direito do futuro cunhado José Barboza Ramos. A notícia comprova que nesse ano (1908?) já era figura grada na vila, pois é um dos poucos nomes em destaque, na festa que reuniu a família e numerosos amigos do homenageado. Aí se menciona ainda que ele e José tinham sido colegas de estudos. Este dado tanto nos permite aventar um anterior convivido com a pequena Maria, dez anos mais nova, (contas feitas, menina de 6 anos quando ele emigrou...), como, pelo contrário, imaginar que a tivesse encontrado nesse jantar convivial, onde  terá brilhado pelo seu invariável bom humor e cordialidade e, assim, chamado a atenção da lindíssima irmã do novo doutor e sido, ele próprio, atraído pela sua graça e desenvoltura de rapariga moderna, chique. 
Suposições, apenas... Maria Aguiar teria respondido, mas a pergunta não lhe foi feita... Gostava de falar do passado, conversas longas de que se perdeu a riqueza de infinitos pormenores deixando impressões vagas de de ambientes, situações, pessoas.... Do período inicial de namoro, uma pequena confidência indicia que ele era, então, o mais apaixonado. Na primeira despedida, depois de ficarem noivos, ficou e vê-la afastar-se, desolado pela separação de tantos meses em perspetiva e ela foi em frente, rindo ao lado de Rozaura. Por um gesto de ombros, António Carlos julgou que ela chorava e apressou-se a  segui-la, para a consolar, prolongando ou reiniciando a despedida (gesto em que os portugueses de todos os tempos são useiros). Não a viu em lágrimas, que não havia para ver, e a surpreendida Maria terá  discretamente atenuado os sinais de boa disposição. Era um episódio que contava com aquele riso brando e ligeiramente irónico dos Barboza, rino de si própria, menina e moça...Não tinha, decerto, aos 20 anos, muita pressa de subir ao altar, sabendo que se seguia uma separação da família inteira do outro lado do mar, ainda que  junto a um homem dedicado e generoso, que lhe oferecia uma vida na alta sociedade da mais maravilhosa cidade do mundo  e todas as viagens que quisesse para  reencontros de férias na terra-mãe.  Achava-o amável e divertido, para além  de bonito, com as suas feições perfeitas e sorriso fácil nos olhos muito claros, muito grandes, verdes, os mais fascinantes que jamais vira. Alguns filhos e netos herda-los-iam, contudo sempre um pouco àquem dos dele.." Os olhos são o espelha da alma", dizia muitas vezes. Também a impressionava o seu caráter, que a levava, e bem como o futuro provou, a acreditar no que lhe prometia, e a sua cultura, ou "ilustração", palavra que usava mais, Todavia, o grande amor veio depois, em crescendo, num convívio, em que até os momentos piores, como a morte de Augustinho, (o quinto filho, o mais encantador de todos, que não resistiu a uma pneumonia aos oito meses) serviu sempre  para unir, Discordâncias pequenas também as houve, mas em conversas em que não se  alterava o tom de voz, Foi, essencialmente, um homem calmo e cordato, dentro e fora de casa. Com a mulher, o desagrado manifestava-se, geralmente, em silêncio, numa expressão mais fechada, ou indiretamente, em mensagens subtis, a avaliar por um dos casos mais curiosos, confidenciada pela (já então) Avó Maria à neta favorita, (que era eu...), no meio de sorrisos, entre trocistas e melancólicos , a revelar, passado tanto tempo, uma notória falta de arrependimento... Acabava de chegar ao Rio a moda dos cabelos curtos, a acompanhar a altura dos vestidos, e Maria, já senhora de quase trinta anos, sentiu-se tentada a cumprir a moda, cortou os seus longos e grossos cabelos castanhos, muito curtos e com uma franja a cobrir a testa alta. Passou, de seguida, por um atelier de fotografia, a tirar um retrato, muito chique, de fato escuro, flor ao peito, raposas cruzadas no regaço, anéis de brilhantes nos dedos, sem mais jóias ostensivas, apenas um um broche a fechar o vestido rente ao pescoço. Encomendou uma dúzia de exemplares e partiu, satisfeita, para mansão de Santa Teresa. O marido não se mostrou deslumbrado pela modernidade do visual, não fez grandes comentários. Algum tempo depois, já Maria recolhera as fotos encomendadas, já as enviara por cartas para a família de Gondomar, quando foi preparar malas para mais uma viagem e encontrou, na mala do marido, um pacote com doze, precisamente doze, fotografias dele, alardeando um ar bastante crispado. Era a resposta aos seus doze retratos, de cabeleira drasticamente reduzida por tesoura de mestre. E a cara que António exibia naquelas imagens, era, evidentemente, a que não tinha querido revelar face a face, no dia em que terá sofrido desgosto de monta...Como as fotos não eram assim tão más, não se deitaram fora e ainda existem, até em álbuns de família. 
No Rio, correu célere uma década feliz, depois do casamento, celebrado na Igreja de São Cosme, em 10 de setembro de 1910..
A festa foi íntima, informa uma pequena notícia da imprensa local, que volta a evidenciar a proximidade mantida por António com a gente e a terra, (como se nem residisse num longínquo país das Américas, a sua condição de expatriado não é mencionada...), assim como o estatuto da família da noiva, medido pelos cargos dos  parentes masculinos
 A notícia, de 12 de setembro, tem por t título "Consórcio" : "Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração, e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar".
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes, .Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo". O recorte não permite identificar o periódico -  certo é que não se trata de "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor.."O Progresso" obviamente também noticiou,talvez mais destacadamente, mas não se achou vestígio dele
Porquê um festa íntima? E porque não há fotografias da cerimónia? Haveria luto ainda recente numa das famílias? É uma hipótese...
 O retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada bastante inepta... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo com pormenores, ficou, coisa rara, zangado (ignora-se se a criada terá conseguido arrepiar caminho para continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso arranjar um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. Logo depois,, novo motivo de irritação. Maria Aguiar era muito alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele subisse a um banquinho disfarçado nas dobras do vestido nupcial. Sugestão recebida pelo noivo, com indignação. Tanta, que nem ele, nem ela, conseguiriam recuperar o sorriso, como, a rir-se, retrospetivamente, contaria. E, assim, a imagem não espelha a autêntica alegria daquele sábado, 10 de setembro, data em que,décadas decorridas, haveriam de nascer, um neto e uma bisneta..
A lua de mel, começada no norte, continuou em Lisboa, onde passaram alguns dias num excelente hotel, o Franqueforte do Rossio (há muito desaparecido), e durante aa travessia do oceano, rumo ao Brasil, em paquete de luxo, Nos primeiros dias, ondas alterosas retiveram a maioria dos passageiros nas cabines. Ambos "bons marinheiros", resistentes à intempérie, Maria e António foram companhia constante na mesa do comandante, com quem fizeram amizade.. 
Foi, porém, uma lua de mel por alguns históricos momentos, agitada, porque coincidiu, na capital do Reino de Portugal, com os últimos dias da Monarquia e os primeiros da República.. Em Lisboa, no Franqueforte do Rossio (cerca do edifício da posteriormente famosa pastelaria Suiça), estavam, precisamente, a 5 de outubro. Uma bala atravessou a janela do quarto, sem lhes causar dano, para além do susto (bala guardada como macabro troféu, por um casal de monárquicos, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). Infelizmente, o cozinheiro do hotel foi atingido e morreu. Que ambiente para dois monárquicos deixarem o país, na incerteza do destino da revolução indesejada e temendo pela sorte de todos os que ficavam, numa família dividida entre os dois lados da contenda, que de Lisboa  chegaria o norte.
Os postais e as cartas sucediam-se, mas as noticias eram sempre apenas de dias passados....
A primeira morada no Rio era no centro, na Rua 7 de Setembro, próxima da Joalharia Aguiar, no nº 3 da Rua do Ouvidor, Rua elegante, onde Maria e Judith faria, compras e tomariam o seu chá da tarde, e, muitas vezes, jantariam nos melhores restaurantes, com os maridos.
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década muito feliz.
Cruz Vermelha italiana
      
Sobre o marido, traçava o retrato de um homem bom, sociável, alegre, feliz porque a adorava e adorava a sua numerosa família, 8 filhos em 16 anos de casamento... e mais teriam sido se não tivesse morrido, quando ela ia nos 36 anos e a última filha nos 3 meses. Talvez não  ficassem longe dos 15 ... Impensável, hoje, mas a qualidade de vida, então, era outra. Não faltavam criadas para todo o serviço e "babás" para os meninos, que viajavam sempre com eles na 1ª classe dos navios. Os meninos eram terríveis, corriam pelo convés e conseguiam atirar à água tudo o que estivesse à mão, como almofadas de cadeiras...
 Os Aguiar ricos não hesitam em gastar largamente o dinheiro bem ganho, -  em casas enormes ( como a casa do Tio João, da Rua de Payssandú, a da Gandra, herdada dos pais e remodelada e remobilada  luxuosamente pelo Tio Augusto, a Villa Maria dos Barbosa Aguiar, ou, na geração seguinte, as de alguns dos Aguiar Saraiva Maria, na Foz do Porto ou na Lapa em Lisboa). Investiam, todos, em conforto no dia a dia, em roupas, em viagens, em festas. Eram generosos com os empregados e solidários com os familiares menos afortunados, e, alguns, dados a causas e a beneficência. António, por exemplo. à cunhada Rozaura, agradecia a infinita paciência com que, tantas vezes, se encarregava de entreter e controlar os seus irrequietos filhos, oferecendo jóias valiosas, anéis e brincos de diamantes.
Contudo, daquelas descrições da avó para a filhos e netos (sobretudo a netas),  construímos mais um estereótipo do que o homem real  - o do emigrante de "torna viagem", com fortuna rápida e honesta, embora não o preocupasse só o lado material do destino (com que a maioria se contenta), e se tivesse refinado, ganho mundo, cosmopolitismo. Nas vindas a Portugal, aproveitava para viajar pela Europa e, talvez, também pelo médio Oriente, onde terá comprado a carpete persa do pavão azul, que se conservou no centro da sala de visitas, sob os passos de várias gerações de descendentes.
É em pequenos pormenores que conseguimos vislumbrar a pessoa, hábitos adquiridos em outras paragens, sob céu com outras estrelas, como tomar diariamente duches frios ou  nadar pela manhã num tanque com dimensão de piscina, em água gelada. e tomar, de seguida, invariavelmente  um pequeno almoço de frutas variadas. E excentricidades, Uma das suas engraçadas e inofensivas" era quebrar a  loiça toda nas romarias. Uma mania muito popular entre as feirantes. Logp que  o avistavam, as vendedoras de cântaros e vasos desatavam numa gritaria: "Senhor Aguiar, venha aqui partir a minha louça!".(em São Cosme não se dizia "loiça") E ele lá ia, varrer com vigorosas bengaladas, uma das tendas, pagando principescamente, os estragos.. Restam ainda muitas das bengalas de castão de prata ou ouro, com que executava o ato.


António Carlos Pereira de Aguiar.
Nasceu no dia 11 de Fevereiro de 1880, em Gondomar. Há 129 anos!
Hoje, ao fim do dia, enquanto passeava, em Espinho, à beira mar, pensava nele.
Nas vezes, sem conta, que atravessou este oceano, aproximando-se da "terra amada", como diria Camões, ansioso por abraçar os seus - uma multidão de joviais "Aguiares", entre os pais e mais de uma dúzia de irmãos, para além de afins, e sobrinhos, e amigos e, depois, a namorada Maria...
Quantas vezes partiu, saudoso, mas, como todos os expatriados jovens e bem sucedidos, pronto para retomar o fio dos negócios e enfrentar interessantes desafios no grande país tropical das oportunidades sem fim. E na mais bela cidade do mundo, que era o Rio de Janeiro, no início do século passado (assim pensava a Avó Maria, certamente de pleno acordo com ele).
E quantas viagens, já depois de casados, em cada nova travessia com um menino mais, porque a família crescia, crescia...
Vinham e iam, claro, na 1ª classe dos melhores paquetes (incluindo a "bábá" dos meninos).
Sei que gostavam da vida a bordo, que dançavam nas festas que se sucediam, feericamente, e faziam amigos, com facilidade. Formavam um belo casal - ela bastante mais alta, mas ele sem complexos e orgulhoso da sua graça e distinção, ainda que um pouco ciumento ...
Os meninos eram encantadores, como mostram as fotos (o que as fotos não revelam, "hélas", é as suas diabruras: as almofadas e outras possessões móveis do navio, que eles atiravam pela borda fora...). Enfim, havia formas de diversão para todas as idades!
Como não pensar, também , na casa construida por esse Avô - que não pudemos conhecer, por ter desaparecido, subitamente, com 46 anos, apenas.
A "Villa Maria". A casa dele, a nossa casa!
Os jardins com as belíssimas rosas, que ele cultivava, por suas mãos, e levava a concursos (ganhou vários prémios!). As árvores, de todos os frutos. Os mirantes e recantos, feitos para o convívio da família e dos amigos...
Um presente, que deixou a várias gerações. Através das recordações, que a simples memória desse "espaço Aguiar" nos traz, ele continua vivo.
As histórias do génio empresarial deste "Avô brasileiro", assim como do seu bom gosto, da sua cultura, da sua generosidade, do seu sentido de humor, chegaram, até nós, nos relatos da Avó Maria,
Pela memória se vive, e, por isso, ele não vai morrer nunca.








































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AMÉLIA PEREIRA DE AGUIAR
A única das mulheres desta geração que permanece como lenda, figura lendária, com um "toque de Midas", em domínios onde nenhum antepassado se terá aventurado . estaleiros de barco, frota pesqueira,  E uma frase, a única que ficou para a posteridade e que é a sínteses perfeita de um percurso feminino extraordinário "Deus castigou-me com saúde, filhos e dinheiro" Tudo teve em abundância. Supõe-se que nos favores divinos incluiria um marido discreto, cujo nome se conseguiu desvendar numa pequena notícia da imprensa - o Sr Oliveira Aguiar. Seria um primo ou parente  ou uma coincidência num apelido nem raro, nem muito comum? Mais provável o parentesco, mas não provado.
Uma velha fotografia amarelada, do espólio de Maria Aguiar, que tem no centro uma senhora alta e forte,bem vestida, de rosto firme  determinado,  rodeada de meninos, será a única imagem que possuímos (se for ela...). É a matriarca dos Aguiar de Matosinhos, que conservam uma aura de prosperidade possivelmente merecida, mas com os quais se perderam laços de relacionamento e amizade. A migração de Amélia para Matosinhos, embora interna e próxima, produziu, neste aspeto, efeitos semelhantes à emigração brasileira de João e Alberto,

GRACINDA  AGUIAR SARAIVA (Saraiva, apelido do marido), teve sete filhos, como a cunhada Maria. Amigas, comadres, Maria e António eram os padrinhos de batismo de António Aguiar Saraiva. A madrinha tinha-o em grande estima, dizia que ele era mais parecido com o padrinho do que qualquer dos seus filhos! O cunhado Saraiva, foi grande empresário, mas atravessou altos e baixos, num percurso muito acidentado  e morreu, novo ainda, num dos pontos mais baixos, deixando a viúva e os órfãos em péssima situação. Só o celebrado "espírito solidário dos Aguiar permitiu, não só a alguns, mas a todos, subirem, a pulso, até ao nível mais alto dos tempos do pai, onde souberam permanecer o resto das suas vidas..No princípio foram as irmãs mais velhas, raparigas de uns  20 antes, se tanto, a procurar empregos (dando explicações, ou como precetoras, num círculo social onde tinham relações de amizade, lembrando novelas inglesas oitocentistas) para dar educação aos  irmãos, alguns andavam ainda na escola primária. Uma história que terminou coletivamente  bem. Eram inteligentes, trabalhadores e bafejados por um instinto empresarial certeiro, que os levou em frente e para cima, invariavelmente. Sem complexos, sem marcas de passadas dificuldades, num regresso ao mundo de onde vinham, como paradigmas de sociabilidade, sentido de humor, extroversão. Morenos e atraentes, com os olhos luminosos, em geral claros, sempre expressivos, que traziam no ADN, capazes de uma boa gargalhada e de um humor cortante, mas temperado de um pendor diplomático, que era em alguns muito acentuado. Facilmente faziam amigos em todas as categorias sociais.
 De uma multidão de parentes Aguiar, da sua geração, foi sobretudo  com estes que conviveram intimamente em Gondomar e no Porto. e Maria Antónia seria a que com eles foi mantendo pela vida fora um relacionamento constante - com todos, e mais ainda com a Cristina e a Belita, mesmo depois de Cristina ter ido para a Alemanha e Belita para  Lisboa, ambas com maridos alemães. Também com António, empresário importador de máquinas e material de escrita e de fotografia - canetas Monblanc, rolos de filme Adox, uma marca germânica, há muito desaparecida dos mercados. Empregava  sempre vendedores alemães, que, a seu ver, tinham melhor aceitação junto dos clientes do que os naturais do burgo.aumentando a aceitação e a venda dos produtos (nessa época, os estrangeiros rareavam e a sua presença era notada e desejada, sobretudo se fossem obviamente diferentes, muito loiros. A irmã, CRISTINA FERNANDA AGUIAR SARAIVA, era a gerente. "public relations" e acabaria por casar com um desses profissionais promissores, Ernst Lamb, jovem que cumpriria as promessas, e seria, logo nos anos 70, a diretor da Zeiss (e, seguidamente, da Rodenstock), levando a encantadora Cristina para Wiesbaden, e, depois, para uma pequena,  bem traçada, arrumadinha cidade de Aalen (perfeita para postais turísticos e monótona para morar), não longe de Estugarda. Lá viveu, com um marido que a adorava e por quem ela se deixava, melancolicamente adorar, sempre pouco apreciadora de uma certa rigidez e conservadorismo daquela mini sociedade germânica. Na verdade, não é coisa natural um mulher que gosta da sua carreira voltar a um reduto de dona de casa e mulher, Frau Lamb. E pior ainda na tradução alemã, não só linguística mas também sociológica, "Hausfrau". num meio geográfico e humano  que sentia avesso.Mostrar há  Morreu, durante uma visita a Munique,( cidade grande e festiva, católica e quase latina, onde se sentia mais  à vontade) com um enfarte de miocárdio" como o Tio António e com a mesma idade
Ernst era um homem encantador, do meu ponto de vista. Falava um português excelente, tinha estado no Brasil, antes de vir para o Porto, gostava de música, em particular de ópera, de fotografia, de futebol e, no tempo da revolução, acompanhava o PREC lisboeta, apaixonadamente. Não nos faltavam temas de conversa divertida, Sem ser germanicamente loiro ou particularmente formoso, tinha uma caraterística comum a quase todos os compatriotas que conheci de perto. - aceitam muito bem qualquer estrangeiro, desde que lhes pareça, digamos, igual a eles (ou quase), fazendo as mais triviais coisas do quotidiano exatamente como eles fazem. IA mim, não me custa nada - gosto da língua, da gente e das suas peculiaridades, de vinho do Reno, de salsichas, bifes tártaros e peixe cru. Na família Aguiar Saraiva não havia mais ninguém de quem se pudesse dizer o mesmo, pelo que eu para ele era a a pessoa mais popular da família e passei repetidas e felizes férias com eles.
A Cristina reconhecia o seu brilho intelectual e profissional, contudo, por muito que gostasse dele, sempre me pareceu que achar excessiva a sua dedicação e sentir-se enclausurada num magnífico andar com varandas amplas, quais jardins suspensos da Babilónia, cheias de belas plantas, que cuidava com prazer. Viajava bastante, mas sempre na mesma companhia (a dele), ela que era tão expansiva e tinha um enorme círculo de amizades do Porto ao Alto Minho. Só um mês por ano vivia a seu modo, na vinda, sozinha, a Portugal , aproveitando uma das longas ausências do marido no Japão e outros mercados do Extremo-Oriente. Eram 30 dias de movimentação imparável, almoçava e jantava  no seu roteiro  de afetos, Porto, Espinho, Vila do Conde, Póvoa, Cerveira. Lisboa. A sede da campanha de visitas era a sua velha casa da Rua Santa Catarina, onde continuavam os irmãos solteiros, Rosinha e Manuel, um apartamento acolhedor, cheio de antiguidades e móveis confortáveis, o oposto das simetrias e do conforto modernista do seu lar germânico. De qualquer modo, não parava um minuto, não podia perder um minuto daquela breve e esplêndida  liberdade. 
Na verdade, não era aquela competentíssima "relações públicas", tão extrovertida, bem pensante e bem falante (mais noutras línguas do que em alemão, aprendido à pressa, por necessidade), que podia ajustar-se ao perfil exigido por Ernst, de esposa doméstica para executivo de multinacional em ascensão. Er hatte eine hausfrau heiraten wollen...Ou, em alternativa ter feito carreira, embora menos meteórica, em terras portuguesas, onde ela melhor escaparia ao seu cerco tendencialmente obsessivo, numa sociedade, onde sempre seria figura preponderante, pelo seu espírito, graça e simpatia 
BELITA AGUIAR SARAIVA SCHMIDT teve com Walter Heinz Karl Schmidt, história que a coloca quase nas antípodas daquela irmã.. Walter era outro tipo de alemão, de famílias da alta burguesia, impressionantemente alto (quase dois metros), muito bonito, em traços nórdicos - podia ser um vicking gentil e elegante. E também um exemplo de tolerância - o pai, finda a guerra, em 45, apenas porque era diretor na função pública, foi internado num campo de concentração russo e aí morreu. A família ficou sem nada, ajudou-os uma criada ucraniana. Walter, que era moderadamente conservador, centro-direita, nunca manifestava sentimentos ant-russos, mas tinha um declarada simpatia por tudo o que era ucraniano. O seu lema, era certamente, o de valorizar mais o o bom do que o mau, nas memórias, como no seu dia a dia. Inteligente, mostrava discretamente um sentido de humor, que costuma acompanhar essa qualidade, sem nunca ser mordaz. Um dia em que comíamos, num jantar ligeiro, em família, salsichas (alemãs de origem certificada), eu disse, no meu alemão rudimentar, "wurste", à maneira de Estrasburgo, ao que ele replicou: "Oh, a Manuela agora até já fala alemão com sotaque regional".
Prosperaram no ramo das importações (da Alemanha, é claro), desde máquinas pesadas a lápis, viviam num privilegiado recanto da Lapa lisboeta, e nos tempos do PREC passeavam, perigosamente, de Jaguar pelas ruas da capital em fúria. Um dia em que me deram boleia para o Ministério do Trabalho, ele perguntou-me se  não serai arriscado levar-me até à porta naquele veículo capitalista, mas eu disse que não e sobrevivi ao desafio. 
A Belita nunca foi uma "Hausfrau" - tinha criadas, no plural, para as artes doméstica e era uma associada da empresa familiar, onde fazia a parte de contabilidade, aproveitando experiência dos anos em que trabalhou no Porto, valendo a irmãos mais novos. Depois do choque da morte do Walter, doze anos mais novo, celebrou os 101 anos, bonita e lúcida, impecavelmente penteada e vestida. Como a prima Maria Antónia, que, porém, não chegaria a festejar os 99 - muito interessada em questões da política, mas de uma direita muito mais centrista. Influência do Walter? Maria Antónia, pelo contrário, não acompanhava a moderação social-democrata do marido...Foi a primeira mulher da família a inscrever-se num partido (o PPM), subscreveu a candidatura à presidência do General Kaúlza de Arriaga e votou sempre no CDS. Todavia, era admiradora confessa de Mário Soares e das suas famosas presidências abertas (com o seu "quê" de régio, a motivá-la), e detestava Donald Trump, como um nazi gordo de melenas alaranjadas e Bolsonaro, como homem perigosamente inculto.

ANTÓNIO CARLOS PEREIRA DE AGUIAR, o pai de Maria Antónia, era um dos mais novos, talvez mesmo o mais novo. Nasceu em 11 de fevereiro de 1988. Muito bonito, baixinho, sempre bom aluno. cuidadoso  com a roupa e a apresentação, determinado, sem ser agressivo ou egoísta, era  ambicioso, como provou ao emigrar com 16 anos, aceitando o desafio de João, um dos irmãos mais velhos, então já bem estabelecido no Rio de Janeiro. Dos seus primeiros anos, não há episódios que tenha transmitido aos filhos. Pela ligação que cultivou, muito para além do círculo familiar, com amigos de infância e com a terra, a sua atualidade e progresso, ou falta dele, é a imagem daquele tipo de emigrante, que, como dizia Jaime Cortesão, leva a Pátria consigo. Atravessava frequentemente o Atlântico, para vir passar férias em São Cosme. É por recortes de jornal, não por relatos orais, que tomámos conhecimento de que não faltava na época da caça - desporto que, aparentemente, o entusiasmava mais em Gondomar do que no Rio, certamente porque ali tinha os melhores companheiros para caçadas e convívios. É muito  provável que misturasse prazer e trabalho, que mantivesse negócios de exportação/importação com o irmão Augusto, pois ambos eram joalheiros, este no Porto, ele no Rio, tal como João. 
Como terá começado uma tão rápida ascensão empresarial? Obviamente como empregado na joalharia de João, com quem terá aprendido os segredos de bem gerir um empreendimento. A diferença de idades era substancial, a relação deve ter sido mais do que fraterna, quase paternal/filial. Foi certamente acolhido em casa do irmão e encorajado por ele a lançar a sua própria empresa, alguns anos depois. No mesmo ramo, mas independente, não mero associado. Talvez, por essa altura, João, casado com uma brasileira de família abastada, se dedicasse já a outros negócios. Com cerca de 28 anos, na altura em que se terá enamorado da futura mulher António era um homem  extremamente rico. Ignora-se onde e quando se iniciou o romance. É por uma pequena nota na coluna social de um periódico da terra que nos apercebemos da sua presença no jantar de formatura em Direito do futuro cunhado José Barboza Ramos. A notícia comprova que nesse ano (1908?) António Aguiar já era figura grada em Gondomar, pois é um dos poucos nomes em destaque, numa festa que reuniu a família e numerosos amigos do homenageado. Aí se menciona ainda que ele e José tinham sido colegas de estudos. Este simples dado permite-nos aventar um anterior convivido com a pequena Maria, dez anos mais nova, (contas feitas, ela tinha apenas 6 anos quando ele emigrou...), ou, pelo contrário imaginar que a tivesse encontrado nesse jantar convivial, onde  ele terá brilhado pela graça e simpatia e chamado a atenção daquela jovem lindíssima. E que a beleza dela (o porte -  a desenvoltura de rapariga moderna, chique) o cativasse, de imediato. 
Suposições...
Maria Aguiar teria respondido, se a pergunta lhe tivesse sido feita. Não foi... Gostava de falar do passado, mas o que deixou dito, não foi anotado, perderam-se pormenores, sobrevivem impressões vagas de conversas longas havidas com as netas a quem histórias antigas encantavam. Do período inicial de namoro, uma pequena confidência indicia claramente que ele era, então, mais apaixonado. Despediu-se, triste pela separação de tantos meses que tinham pela frente e ela foi em frente, rindo com a irmã. Por um gesto de ombros, António Carlos julgou que ela chorava e apressou-se a  segui-la, para a consolar, prolongando a despedida. Não a viu em lágrimas, mas Maria terá  discretamente atenuado os sinais de boa disposição. Achava-o interessante, com uns  olhos muito claros, muito grandes, verdes, os mais fascinantes que jamais vira. Segundo dizia, nenhum dos olhos bonitos dos seus filhos e netos se lhes podia  comparar  Impressionava-, também, a sua cultura, ou "ilustração", palavra que usava mais. O amor terá ido em crescendo, no noivado e, sobretudo, nos 16 anos de uma união fácil e feliz, com algumas discordâncias, inevitáveis na vida de um casal, mas nunca expressas, num alterar do tom de voz. Terá sido, essencialmente, um homem calmo e cordato, dentro e fora de casa 
Casaram na Igreja de São Cosme, em 10 de setembro de 1910.. No dia 12, um dos jornais de Gondomar noticiava,  com o título "Consórcio":
"Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar"
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes, 
Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo"
 O recorte, que sobrevive há mais de um século, não permite identificar o periódico - fica a saber-se que não se trata, com certeza, "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor.  Terá, provavelmente, dado igual ou superior relevo ao evento, mas o eco perdeu-se para a posteridade...
Perdidas andarão também as fotos da cerimónia, porque o retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada um pouco descuidada... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo com pormenores, ficou i, coisa ra, zangado (ignora-se se a criada terá conseguido arrepiar caminho para continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso arranjar um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. De seguida, novo motivo de irritação. Maria Aguiar era muito alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele se colocasse num banquinho disfarçado nas dobras do vestido. Sugestão recebida pelo noivo, com indignação. Tanta, que ele não conseguiria recuperar o sorriso da praxe. E ela também não, como, a rir-se, retrospetivamente, contaria. E, assim, a imagem não espelha a autêntica felicidade daquele 10 de setembro.
A lua de mel terá começado no norte e continuou em Lisboa, onde passaram uns dias num excelente hotel, o Franqueforte do Rossio (há muito desaparecido), e de seguida,na travessia do oceano para o Brasil, em paquete de luxo, Nos primeiros dias, ondas alterosas retiveram a maioria dos passageiros nas cabines. Ambos "bons marinheiros", resistentes à intempérie, Maria e António foram companhia constante na mesa do comandante, com quem fizeram amizade.. 
Foi uma lua de mel com história, na capital do Reino de Portugal - pois aí viveram os noivos os últimos dias do Reino e os primeiros da República.. Em Lisboa, no Rossio, estavam, precisamente, a 5 de outubro. Uma bala atravessou a janela do quarto, sem lhes causar dano (bala guardada como macabro troféu, por um casal de monárquicos, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). Infelizmente, o cozinheiro do hotel foi atingido e morreu. Que ambiente para deixarem o país... na incerteza de  uma revolução por ambos indesejada, e temendo pela sorte de todos os que .
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década muito feliz.
Cruz Vermelha italiana
      
Sobre o marido, traçava o retrato de um homem bom, sociável, alegre, feliz porque a adorava e adorava a sua numerosa família, 8 filhos em 16 anos de casamento... e mais teriam sido se não tivesse morrido, quando ela ia nos 36 anos e a última filha nos 3 meses. Talvez não  ficassem longe dos 15 ... Impensável, hoje, mas a qualidade de vida, então, era outra. Não faltavam criadas para todo o serviço e "babás" para os meninos, que viajavam sempre com eles na 1ª classe dos navios. Os meninos eram terríveis, corriam pelo convés e conseguiam atirar à água tudo o que estivesse à mão, como almofadas de cadeiras...
 Os Aguiar ricos não hesitam em gastar largamente o dinheiro bem ganho, -  em casas enormes ( como a casa do Tio João, da Rua de Payssandú, a da Gandra, herdada dos pais e remodelada e remobilada  luxuosamente pelo Tio Augusto, a Villa Maria dos Barbosa Aguiar, ou, na geração seguinte, as de alguns dos Aguiar Saraiva Maria, na Foz do Porto ou na Lapa em Lisboa). Investiam, todos, em conforto no dia a dia, em roupas, em viagens, em festas. Eram generosos com os empregados e solidários com os familiares menos afortunados, e, alguns, dados a causas e a beneficência. António, por exemplo. à cunhada Rozaura, agradecia a infinita paciência com que, tantas vezes, se encarregava de entreter e controlar os seus irrequietos filhos, oferecendo jóias valiosas, anéis e brincos de diamantes.
Contudo, daquelas descrições da avó para a filhos e netos (sobretudo a netas),  construímos mais um estereótipo do que o homem real  - o do emigrante de "torna viagem", com fortuna rápida e honesta, embora não o preocupasse só o lado material do destino (com que a maioria se contenta), e se tivesse refinado, ganho mundo, cosmopolitismo. Nas vindas a Portugal, aproveitava para viajar pela Europa e, talvez, também pelo médio Oriente, onde terá comprado a carpete persa do pavão azul, que se conservou no centro da sala de visitas, sob os passos de várias gerações de descendentes.
É em pequenos pormenores que conseguimos vislumbrar a pessoa, hábitos adquiridos em outras paragens, sob céu com outras estrelas, como tomar diariamente duches frios ou  nadar pela manhã num tanque com dimensão de piscina, em água gelada. e tomar, de seguida, invariavelmente  um pequeno almoço de frutas variadas. E excentricidades, Uma das suas engraçadas e inofensivas" era quebrar a  loiça toda nas romarias. Uma mania muito popular entre as feirantes. Logp que  o avistavam, as vendedoras de cântaros e vasos desatavam numa gritaria: "Senhor Aguiar, venha aqui partir a minha louça!".(em São Cosme não se dizia "loiça") E ele lá ia, varrer com vigorosas bengaladas, uma das tendas, pagando principescamente, os estragos.. Restam ainda muitas das bengalas de castão de prata ou ouro, com que executava o ato.


António Carlos Pereira de Aguiar.
Nasceu no dia 11 de Fevereiro de 1880, em Gondomar. Há 129 anos!
Hoje, ao fim do dia, enquanto passeava, em Espinho, à beira mar, pensava nele.
Nas vezes, sem conta, que atravessou este oceano, aproximando-se da "terra amada", como diria Camões, ansioso por abraçar os seus - uma multidão de joviais "Aguiares", entre os pais e mais de uma dúzia de irmãos, para além de afins, e sobrinhos, e amigos e, depois, a namorada Maria...
Quantas vezes partiu, saudoso, mas, como todos os expatriados jovens e bem sucedidos, pronto para retomar o fio dos negócios e enfrentar interessantes desafios no grande país tropical das oportunidades sem fim. E na mais bela cidade do mundo, que era o Rio de Janeiro, no início do século passado (assim pensava a Avó Maria, certamente de pleno acordo com ele).
E quantas viagens, já depois de casados, em cada nova travessia com um menino mais, porque a família crescia, crescia...
Vinham e iam, claro, na 1ª classe dos melhores paquetes (incluindo a "bábá" dos meninos).
Sei que gostavam da vida a bordo, que dançavam nas festas que se sucediam, feericamente, e faziam amigos, com facilidade. Formavam um belo casal - ela bastante mais alta, mas ele sem complexos e orgulhoso da sua graça e distinção, ainda que um pouco ciumento ...
Os meninos eram encantadores, como mostram as fotos (o que as fotos não revelam, "hélas", é as suas diabruras: as almofadas e outras possessões móveis do navio, que eles atiravam pela borda fora...). Enfim, havia formas de diversão para todas as idades!
Como não pensar, também , na casa construida por esse Avô - que não pudemos conhecer, por ter desaparecido, subitamente, com 46 anos, apenas.
A "Villa Maria". A casa dele, a nossa casa!
Os jardins com as belíssimas rosas, que ele cultivava, por suas mãos, e levava a concursos (ganhou vários prémios!). As árvores, de todos os frutos. Os mirantes e recantos, feitos para o convívio da família e dos amigos...
Um presente, que deixou a várias gerações. Através das recordações, que a simples memória desse "espaço Aguiar" nos traz, ele continua vivo.
As histórias do génio empresarial deste "Avô brasileiro", assim como do seu bom gosto, da sua cultura, da sua generosidade, do seu sentido de humor, chegaram, até nós, nos relatos da Avó Maria,
Pela memória se vive, e, por isso, ele não vai morrer nunca.






































DO RIO DE JANEIRO Á VILA MARIA
Maria e António Aguiar casaram a 10 de setembro de 1910. No dia 12, um dos jornais de Gondomar noticiava,  com o título "Consórcio":
"Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar"
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes, 
Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo"
 O recorte, que sobrevive há mais de um século, não permite identificar o periódico - fica a saber-se que não se trata, com certeza, "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor.  Terá, provavelmente, dado igual ou superior relevo ao evento, mas o eco perdeu-se para a posteridade...
Perdidas andarão também as fotos da cerimónia, porque o retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada um pouco descuidada... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo com pormenores, ficou furioso (ignora-se se a criada terá conseguido arrepiar caminho para continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso arranjar um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. De seguida, novo motivo de irritação. Maria Aguiar era muito alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele se colocasse num banquinho disfarçado nas dobras do vestido. Sugestão recebida pelo noivo, com grande indignação. Tanta, que ele não conseguiria recuperar o sorriso da praxe. E ela também não, como, a rir-se, retrospetivamente, contaria a filhos e netos. E, assim, a imagem não espelha a felicidade real daquele 10 de setembro.
A lua de mel terá começado no norte e continuou em Lisboa, onde passaram uns dias no belo Hotel Franqueforte do Rossio (que há muito desapareceu), e depois, num paquete de luxo, em direção ao Brasil. Uma lua de mel com história, na capital do Reino de Portugal - nos últimos dias do Reino e nos primeiros da República.. De facto estavam lá, precisamente a 5 de outubro. Uma bala atravessou a janela do quarto, sem causar dano (bala guardada como macabro troféu, por um casal de monárquicos, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). E o cozinheiro do hotel foi atingido e morreu. Foi nesse ambiente incerto e amargo, que deixaram o País.
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década muito feliz.
      s.Os breves anos em que habitou na Vila Maria, foram anos memoráveis.
Movimento de amigos - mesa e cadeiras verdes - laranjas amargas
Tratamento cerimonioso com a Mulher - o caso do corte de cabelo
Na travessia mesa de comandante - não enjoavam, dança com Chaby Pinheiro
Eramos felizes sem saber
  A Vila Maria era, na meia década de 20 um pequeno mundo, de fronteiras traçadas geometricamente entre propriedades dos vizinhos (os que haviam vendido toda aquela boa porção de terra ao amigo António Carlos Aguiar). Nele cresciam as rosas, as árvores, as crianças... Cumpriam-se os sonhos do casal Maria e António Carlos.
 Mariazinha, a sexta das crianças, era suficientemente pequena, quando a família se instalou na Vila Maria, para não se lembrar de ter habitado qualquer outro lugar. E do Pai não guardou muitas recordações - lembra-se do dia em que ele colheu morangos numa bonita cesta, e a mandou leva-los para a sua madrinha (a Tia Rozaura), na companhia de uma criada. Lembra-se de colherem e comerem fruta no quintal, o Pai, ela e a irmã Lolita (Glória Doroteia). E de diálogos jocosos, em que ele chamava à Lolita, tão morena como ele, a sua "molequinha". Ao que ela respondia: "O Papá é o meu molequinho". A mais viva recordação é, porém, a da sua morte trágica, súbita, (de enfarte do miocárdio, aos 46 anos...) Estranhou vê-lo, na sala de visitas, naquela caixa estreita, imóvel, de olhos fechados, e, quando o tocou na face, sentiu-o gelado, tentou acordá-lo, sem conseguir. Estava horrorizada. Quando vieram buscar o caixão para iniciar o cortejo fúnebre. o filho Manuel  deitou-se por cima, para os impedir de levar o Pai. Foi preciso tratar dele primeiro.
Do funeral sabe-se mais pelas notícias de jornais, do que por testemunhos da família, sempre mais focada as memórias da sua vida.
A "Ordem"; escreve  "faleceu o Snr António d' Aguiar, opulento e estimado capitalista, nosso amigo e assinante de "A Ordem". Contava 46 anos e  faleceu repentinamente na manhã do dia 10 do corrente. Teve um funeral muito concorrido , celebrando missa de corpo presente o rev Manuel Coelho.. O extinto gosava de geral estima  e porisso o seu falecimento foi muito sentido, (...)
A sombra da cruz
"Inesperadamente, quando parecia ainda ter longa vida, pois era bastante novo, faleceu na p assada semana o nosso querido amigo e assinante Snr António Carlos Barbosa Aguiar. Depois duma viagem recente  que fez ultimamente ao Brazil. a sua saúde ficou de tal  maneira abalada que d' ahi resultou quase repentinamente a sua morte. Deixou imersa na mais amarga saudade a sua ex-ma esposa  e filhinhos. O seu funeral que foi excecionalmente concorrido, realizou-se no passado domingo, ma Igreja desta vila, organisando-se vários turnos durante o percurso. (...)
O título do jornal não está anotado no recorte. Curioso erro é a inclusão do apelido da mulher (Barbosa) no nome de António Carlos Pereira de Aguiar.
Outra constatação interessante é ser do jornal " A voz de Gondomar" (republicano). o mais completo obituário, um artigo de quase página inteira  sobre um conhecido monárquico, (ainda que cunhado de alguns dos mais interventivos republicanos do concelho)..
"Mais um bom que desapareceu do scenario tumultuoso da vida ungido da recordação saudosa de todos os que o conheceram  e chorado pela dor angustiosa e percuciente da família que estremeceu e idolatrou, António Aguiar, o saudoso e querido amigo que sacrificou a mocidade ao trabalho para conquistar a independência de que usufruia; o lutador austero e persistente que, quási criança ainda, abandonava a Pátria, e com a Pátria a família, para, em terras distantes e pisando o doloroso trilho do "struggle for life" , onde as ambições se entrechocam, consolidar no trabalho a garantia do seu futuro e a dos seus, acaba de tombar, sacudido pela crueldade brutal de uma "angina pectoris", que desapiedadamente o arrancou de um lar que era todo o seu enlevo (...)
Espírito de eleição consagrado ao culto da família, a que lega o inapreciável tesouro dum nome digno como poucos e o exemplo salutar duma vida impoluta,António Aguiar soubera impor-se à admiração e à amizade sincera de quantos com ele privaram, pela intensidade dos sentimentos afetivos  em que vibrava a sua alma e pela galharda afabilidade do seu trato em que se espelhava toda a nobreza de um carácter nobre e honrada. Era um justo, de quem pode dizer-se que desceu à vala fria do cemitério sem uma única inimizade a empanar-lhe o brilho suave da sua chorada memória".
O funeral do saudoso extinto, que se celebrou na matriz desta vila em 10 do corrente, foi bem uma demonstração imponente da consternação provocada pelo seu desaparecimento  e uma grandiosa homenagem de sagração póstuma tributada às suas  virtudes e à sua memória  pelos muitos amigos de antónio Aguiar , que os possuía em todas as classes sociais.
Na última parte da notícia são mencionados os turnos, em que os amigos se revezaram no transporte da urna entre a Vila Maria e a igreja matriz. Vale a pena transcrever a listagem, porque nela estão os familiares mais próximos, os amigos que eram presença constante de uma casa.sempre aberta, sempre cheia de visitas, de convívios e festas. ou os companheiros de um associativismo local, a que dava generosa contribuição.
1.º turno - António e Alberto Mendes Barbosa, o irmão Augusto Aguiar, José e Damião de Oliveira Aguiar (sobrinhos?) e Saúl Fonseca e Sousa
2.º. - Mário Ferreira (sobrinho, casadao com Isabel - Mimim - Barbosa), Adelino Garrido, Manuel Martins dos Santos, Camilo de Olivaira (o escritor e autor da monografia do Concelho de Gondomar), Alberto Martins de Moura e Artur Cabral Borges
3.º Manuel Ribeiro de Almeida, Vicente Gaspar Vieira, Doutor Agostinho de Sousa Pinto, José Coelho das Neves Junior, José de Sousa Santos e Manuel Coelho das Neves
4.º - José Marques dos Santos, Avelino Martins da Silva, António Coelho da Silva, Manuel Martins de castro Neves, Joaquim Martins Rosas e Abílio Ferreira da Costa.
5.º -Membros do Club Gondomarense, de que o finado era sócio
6.º - Sócios do Club de Caçadores, a que o extinto também pertencia.
7.º -  Bombeiros Voluntários de Gondomar e João Pereira, criado do extinto.
8. - º (no percurso da Igreja para o cemitério) - Dr António Ribeiro Seixas, Dr Manuel Nunes Pereira, José Ribeiro Borges da Cunha, Eduardo Kock, Serafim Rosas e Francisco Herculano Novais de França
Um outro registo significativo é o das coroas fúnebres, colocadas junto ao ataúde: "Club Gondomarense, última homenagem", "Último adeus de Maria Irmínia Barbosa e Alexandre Mendes Barbosa; "Útimo adeus de Rozaura Barboza Marques e Manuel Marques"; Saudades de José Martins das Neves e família"; "Saudade eterna e último beijo de tua esposa"; "Último adeus de sua irmã Amélia Aguiar e esposo": Sentida saudade de seu tio João Moreira dos Santos e Maria Gomes Bessa";"Último adeus de seus cunhados Maria Celestina de Abreu Mesquita Barbosa e José barbosa Ramos";"Eterna saudade de seus filhos": "último adeus de seu amigo Dr Agostinho Emílio de Sousa Pinto".
Pela notícia, que termina apresentando condolências "à desolada viúva, Ex.ma Srnª D Maria Barbosa Aguiar e a seus filhinhos", sabemos ainda que a chave do caixão foi entregue ao Ex.mo Snr Dr José Barbosa Ramos.
Comoção no ambiente familiar e em toda a Vila de Gondomar, onde era, como transparece nos jornais, uma pessoa muito querida, das elites e do povo. A essa sua forma de estar e de viver, devemos, sem dúvida, a imagem que perdura dos Aguiar como exemplos de extrema dedicação à família, de  franqueza, de generosidade espontânea, quase a parecer excessiva. e de alegria de viver. E até de uns laivos de excentricidade, em que , porém, seria ultrapassado pelos cunhados Barbosa. (criam-se, assim, "estereótipos dos "Aguiar" e dos "Barbosa", nos quais mal se enquadram muitos dos que levavam ou levam esses nomes...).
Tinha seis anos, a Lolita quatro. (a mais nova, Madalena, apenas seis meses). Não entendiam o significado do que se passava, viam mãe, vestida de preto, caída em depressão e prantos, cada vez mais ausente nas devoções da igreja. Um dos rapazes, o terceiro mais velho, António Maria. com apenas 10 ou 11 anos, deixou-nos em versos simples, de criança, testemunho único de um sentir certamente partilhado dentro das paredes da Vila Maria:

Meu Pai?
"Quem te levou, meu Pai?!... Quem te levou?
Para esse mundo assim tão azulado.
Responde...sim. Teu filho, um desgraçado
Para quem a tua ausência já chegou

Para esse mundo sem fim, quem te arrastou?
Partiste!... Fiquei só! Desventurado
Pede a Deus a quem por ti tenho rogado,
 embora infeliz.., para quem tudo se quebrou.

Partiste, morreu tudo neste mundo...
E minha Mãe, oh Pai, sempre a chorar
E eu choro, desde o dia em que, moribundo, 

Te segurei... morreste Pai... Agora, então,
Depois de tudo, me vês, sempre a chorar,
Chorará eternamente, Senhor, meu coração!"

Terá sido o primeiro a encontrar o pai. agonizante? Talvez, não se sabe. Desses dias de velório e funeral, a única história insólita é o da segundo filho, Manuel, (doze anos?) que se deitou sobre o caixão, desesperado, para impedir que levassem o pai da sala de casa...)
Tudo mudou, tudo continuou, mas a mãe,  a senhora alegre e mundana, divertida e compassiva,  transformava-se, a pouco e pouco, numa líder severa e enérgica, dentro e fora de casa, entregue tanto às tarefas de educar sete filhos, (não muito fáceis...), como às boas causas na paróquia e na terra (os pobres, os doentes, os presos e a sua família, não raras vezes, intercedendo ou dando emprego a ex.presidiários -  pequenos ladrões, alguns dos quais não perdiam hábitos velhos, apesar de ela acreditar sempre neles - levando criancinhas ao batismo e promovendo casamentos em sólidas "uniões de facto"...). A Vila Maria era visitada, quase quotidianamente, por padres e seminaristas. as freiras que passavam por São Cosme eram suas hóspedes, como se fosse o prolongamento da residência paroquial... Também a organização de festejos religiosos era ali programada, e executadas tarefas várias  como a fabricação, em massa, de flores de papel para os andores das procissões ou para os carros alegóricos, ou o ensaio de grupos corais, reunidos à volta do piano. Passou a ser assim, no tempo dos filhos e nos dos netos.
Apesar das profundas marcas que a partida do pai provocara no ambiente famíliar, Maria Antónia sempre se sentiu protegida e feliz dentro da Vila Maria. Eram muitos, eram naturalmente alegres e divertidos, O Tio Alexandre, foi para os meninos órfãos, um segundo pai, para a viúva, o mais amigo dos irmãos, o mais próximo, e não só porque era vizinho, Uma sua filha única tinha morrido bébé, anos antes...  A Leninha ocupou esse vazio -  praticamente vivia em casa dos Padrinhos, Hermínia e Alexandre, embora a Mãe não a deixasse nunca pernoitar lá. Todos os outros o viam, igualmente como figura tutelar. - bom, generoso e divertido. Nele a irmã tinha um conselheiro (exceto para as coisas da igreja, mas foi sempre em vão que ele, republicano e laico, tentou moderar os seus impulsos beneméritos e oferendas, que considerava excessivos, para as obras da paróquia....). 
Presença constante, já nos tempos do cunhado e, do mesmo modo depois, era a da irmã Rozaura, casada, sem filhos, com  Armando Marques, um Tio.também ele muito dedicado a todos o meninos Aguiar, e, em particular,l à afilhada, Maria Antónia. Moravam a menos de 10 minutos minutos de caminhada, por caminhos rústicos e lindos, num lugar chamado "a  Pedreira" .A "casa da Pedreira" de tão boas memórias para a Mariazinha!. Ali ela era especial e única, não tinha de repartir atenções, com mais seis. E, entre os seus escritos, há pouco descobertos, há um que lhe é dedicado. 
A CASINHA DA PEDREIRA
Queria voltar a ver
as camélias a florir,
as laranjas a crescer.

Queria voltar a ter 
na minha mão pintaínhos 
acabados de nascer

Queria voltar a ver
o jardim, a capoeira,
a horta - querida Maria - 
que se enchia de canseira

Limonete ao fim da escada
Alecrim pro's ramos bentos
toda uma festa, a ramada
a casinha, tão modesta,
com o nicho e a cantareira...

Na comparação com a "Vila Maria", a "Casa da Pedreira" era modesta, mas pequena não era. Teria pertencido a uma antiga quinta, com um grande portão e um átrio espaçoso de pedra. O piso de baixo era de terra batida, servia de adega, de casa da lenha, de arrumação. As escadas de acesso ao patamar superior eram de pedra, assim como as outras duas que davam, numa extremidade da casa, para as salas e, e, na outra, para a cozinha. O primeiro andar tinha quartos enormes, ao todo oito divisões. Salas e os quartos de dormir e a sala de jantar, com mobílias muito antigas, muitas de casas dos pais (era afilha mais conservadora). A cozinha, sim,  era pequena e escura, um absoluto contraste com a da Vila Maria. A criada era a Maria Póvoas, que cozinhava muito bem e tinha tempo para tudo, até para cultivar a horta e tratar das galinhas e das flores.
As janelas de guilhotina, na parte cimeira eram verdadeiros vitrais coloridos, e davam para o Largo da Pedreira, onde havia um imponente tanque comunitário, constantemente ocupado por grupos ruidosos de lavadeiras e, do outro lado, casinhas térreas, de ourives que trabalhavam filigrana de portas abertas. A casa, por certo, completamente alterada, ainda existirá... Não assim a Vila Maria. A sua vida, por desleixo e descaso de quem manda no município, foi relativamente curta, do início doa anos 20 ao fim do século, quando foi permitida a sua demolição (uma barbaridade, porque a casa com o terreno circundante teria tido fácil utilização para turismo, a mais evidente, ou para uma clínica ou um Museu, até para um centro comercial, ou condomínio de luxo, se soubessem aproveitar o enorme espaço que ladeia o edifício de época, em construções a que o ligassem harmoniosamente). Comprada por um pato bravo que faliu está hoje transformada em parque de estacionamento. Dizem. Nem a mãe nem eu o vimos com os nossos olhos, porque os fechávamos, firmemente, sempre que passávamos pelo local
A casa ficava dentro do jardim, distantes uns 30 metros da rua principal e separada de roseirais simétricos um metro mais altos e bordejados a granito, por um caminho largo, que permitia fazer à sua volta gincanas com os carros, como as que algumas vezes se organizaram. Ladeando o portão de ferro as japoneiras, de camélias cor-de-rosa. No extremo norte, à face da estrada, o mirante (que chamávamos o mirante da frente para o distinguir do mirante que ficava no outro extremo, dava, então, para um caminho de terra batida, onde agora é uma escola). Ao lado, espalhando os ramos sobre o mirante e o muro, um enorme diospireiro, A sul, também à face da estrada, o “chalet”, que fora destinado a cavalariça ou garagem, e, depois da morte do Avô, acabou arrendado a vizinhos tranquilos, gente respeitável da terra.
A simetria dos canteiros (elevados um metro acima do nível do portão e do largo espaço de acesso à casa), terminava  face à entrada principal e ao seu terraço - de lado do mirante, prolongava-se até a pequena "casa do forno e à área em que  o pomar confinava com as vinhas. Do lado do chalet, em frente ao grande vitral da parede sul, começava o pomar, por trás do qual se escondia, num retângulo fechado por muros de granito, a pocilga.. Vista de fora, sem porcos à vista, dir-se.ia uma longa   casa térrea, discretamente avistada entre muitos troncos e ramos das árvores de frutos. Havia sempre dois porcos e, quando chegava o dia da matança, as meninas eram fechadas na sala, tão longe quanto possível, para não ouvirem os gritos do tenebroso ato sacrificial. Ouviam, mesmo longe ouviam, e recordaram o horror dos sons, sem imagem. Quem vinha executar o ritual era o dono do talho, negociante próspero e homem simpático. pai da Felismina, que era amiga das meninas e, como elas, aluna de piano da prima Nucha. Depois, era dia de comer rojões, esquecendo a sua origem trágica.. 
A carne de porco sobrante era guardada em arcas, antes cuidadosamente limpas com areia e, depois, cheia de quilos e quilos de sal. A mãe conhecia bem a arte de conservar produtos, frutos, por exemplo:  mandava colocar as laranjas em areia, numa grande arca de castanho, ou os dióspiros, embrulhados em papel, em gavetões fechados. 
Do círculo de amigas e colegas das lições de pianos d pequena Mariazinha faziam parte as "Paciências", encantadoras filhas de um dos vendedores das terras onde se implantou a Vila Maria, e as irmãs Maria Amélia e a Madalena da Estrela. Não era apelido, mas alcunha -  o pai tinha construído um palacete original, em  forma de... estrela.. (Antecipando o futuro em alguns anos, poderá, desde já dizer-se que há muitas fotografias do casamento de estadão da Maria Amélia, com quem, depois, perderam contacto. porque foi viver para Viana. Madalena uniu o destino a um rapaz de Avintes, contra um coro de opiniões adversas. Gostava dele, e não quis saber de mais nada. Não se conhece o desfecho, pois também lhe perderam o rasto. A Felismina viria a ser uma rapariga bonita, alta e loira e a primeira a casar, com um Ramos, a quem chamavam o "Ramitos". Contou às colegas das, pormenores pedagógicos sobre a noite de núpcias, e deixou um conselho: "Não vale a pena gastarem dinheiro na camisa de noite de núpcias. Não vale mesmo a pena...).
Ao longo da divisória com  o terreno do Monteiro ficavam as ramadas com suporte  em bardos,  ocupando metade da quinta agrícola, desde a casa da eira ao mirante do fundo do terreno. Entre as vinhas, havia americano preto e, junto à eira, americano branco (nunca foram cortadas, escaparam ao massacre imposto por lei) e à esquerda, o "Chance la rose", que era reservado para a Avó Maria, grande apreciadora,
Os primeiros bardos eram de moscatel de Hamburgo.
O piso térreo da casa era ocupado por lojas, garrafeira e adega. Do interior, descendo a escada víamos, em frente, a garrafeira, e, passando uma porta verde, a enorme adega, com o lagar e as pipas de vinho.  A Mãe recordava os homens a pisar as uvas, e, no fim do trabalho,  a comer na cozinha, enormes pratos de bacalhau e carne de porco.
A mais famosa história ligada à garrafeira, aconteceu numa visita Pascal, quando era Pároco o Abade Andrade, pessoa muito discreta e cerimoniosa. Foi o Tio Serafim quem abriu as garrafas de vinho branco e de champanhe recém chegadas da garrafeira.  A primeira não saiu com o estrondo habitual, parecia ter perdido força. Outras foram circulando, mas ninguém parecia ter a habitual vontade de beber. Alguém comentou "É fraquinho, perdeu a força". Quando já os hóspedes se haviam retirado, a Avó Maria decidiu fazer a prova dos vinhos e descobriu que em quase todos a percentagem de pura água era elevada - adicionada pelos filhos para substituir o original, que tinham partilhado em noites de paródia secreta com amigos...Imagine-se o sermão materno que se seguiu - dirigido mais a uns do que a outros, conforme o grau de suspeição. O Tio Zé batia de longe os demais...Uma prole sempre difícil de controlar.  Eles e elas. Assim, por exemplo, das filhas só Lina a acompanhava na visitação dos doentes. M A recusava-se, firmemente e não consta que Lola e Lena fossem muito assíduas