quinta-feira, 28 de novembro de 2019


POR UM MUSEU DE AVINTES
1 - Um Museu na zona ribeirinha?
Todas as terras, todas as comunidades orgânicas, deviam, idealmente, ter a sua monografia, a sua imprensa, o museu do seu acervo, da história coletiva e das memórias de que se faz uma identidade carreada de geração em geração. No mundo novo a que alguns chamam "aldeia global", esta será, porventura,  uma das formas de participarmos em pleno num movimento irresistível de confraternização planetária, sem nos perdermos nele. 
A Avintes não tem faltado estudo e reconhecimento de um trajeto mais do que milenar em excelentes publicações, entre as quais se conta, número a número, esta Revista, como uma ponte de passagem entre o passado e o presente, a tornar-se devir. Notáveis contributos a que acresce agora, por iniciativa da Junta de Freguesia, um projeto museológico focado numa das atividades em que ganhou renome nacional: a broa de Avintes, que não tem igual, nem no país, nem no mundo.
Sobre ele, a Revista Caminho Novo me desafiou a fazer um pequeno depoimento. talvez pelo facto de poder vir a estar, de certo modo, ligada à criação do condicionalismo para um arranque rápido. Na verdade, uma  casa rural da minha família paterna, com localização privilegiada, na marginal do Douro, junto ao Areínho, é uma das sedes possíveis para a localização física do museu. E é sabido que  estou recetiva a doa- la ao Município, para esse fim, para que a ideia possa, a breve prazo, concretizar-se ali mesmo, no lugar do Paço, que é tão bonito, e naquele conjunto assimétrico, mas harmonioso de edificações de pedra antiga, com o lagar, o forno caseiro, a eira de granito e o espigueiro, em que hibernam reminiscências de séculos de agricultura ribeirinha, de quando o milho bordejava as águas do rio, e aí deixava, ao correr dos ventos, um reflexo ondulante. Ainda era assim, nos anos da minha juventude, a marginal de Avintes, um dos trechos mais idílicos do Douro num curso de correntes fortes e vagarosas, como se não tivesse pressa de chegar ao Porto, já tão perto. Paisagem não muito diferente da que avistava, no quotidiano, meu bisavô João Dias Moreira, que não conheci, mas  sempre imagino a calcorrear aqueles caminhos, na direção daquela casa, por vezes, na companhia do meio - irmão, Padre Manuel Pinto da Silva, ambos vultos imponentes, com quase dois metros de altura, falando, simplesmente, da sorte das colheitas, ou da sorte do país, que atravessava as crises e os afrontamentos de um período revolucionário. Ao Padre Manuel, monárquico, convicto defensor de valores cristãos tradicionais, se deve a fundação e direção do primeiro jornal da terra , o "Aurora de Avintes", e a João, menos movido pelo proselitismo religioso, a reconstrução, em fins do século XIX, da casa que herdara, triplicando a área da sua matriz (muito mais antiga)) e acrescentando-lhe, do outro lado do terreiro, três pisos de aidos, lojas e arrumos, a aproveitar o declive íngreme da colina, com a eira e o espigueiro no patamar superior. Tudo cercado de muros, dentro dos quais o granito austero dominava, nas escadas, nas paredes e até no chão, emergindo aqui e ali, irregularmente, entre terra batida. Todavia, menos severo terá sido o ambiente humanos ali vivido, pois João, ele mesmo pessoa serena e de bom feitio, era casado com Quitéria Francisca Pinto, mulher que sabia combinar perfeitamente os ritmos de labor intenso e de diversão, grande contadora de lendas e histórias e poetisa repentista, imbatível na arte de "cantar ao desafio". O pai andara pelo Brasil e de lá trouxera uma maneira alegre e otimista de estar em família e em sociedade, além de capital para investimentos e para construir uma vivenda, situada perto da que viria a ser da filha Francisca (Reis pelo casamento), na rua 5 de outubro, atualmente a sede dos "Plebeus Avintenses". Uma das irmãs, Esperança, casara com o jovem Adolfo Marques, dos Marques que a Avintes deram alguns dos seus muitos excecionais escultores da madeira. Do marido, João, sabe-se que os antepassados também eram de Avintes, mas a alcunha "patrão" parece indiciar que seriam gente ligada, não à agricultura mas à pesca ou a estaleiros, que ali terão florescido. Certo é que, em boa hora, se dedicou à lavoura, com um sucesso que o tornou figura lendária para a descendência, constando que terá adquirido, ao longo da vida, 99 propriedades, entre pequenas courelas e matas, pinheirais e quintas. Contudo, mais importante do que o seu rasgo empresarial é a aura de lisura de trato e generosidade, em particular para com quem estava ao seu serviço, que terá originado este dito curioso: "Mais vale ser cão na casa do João Patrão do que criado nas outras quintas".
O espaço que poderá, em dias não muito distantes, albergar o museu de que se fala, fez, pois, genuinamente, parte do ciclo do milho e da broa, o "ex-libris" de Avintes
2 - Incursões no campo da experimentação museológica... 
Penso, naturalmente, num museu de "nova geração", com work-shops, suportes digitais, ações formativas e pedagógicas - não um daqueles que, quando era jovem,  esgotavam, praticamente, o seu conceito, sinónimo de coleções de arte, "templos das musas", no sentido etimológico da expressão, que eu gostava de visitar, embora conservassem quadros e estatuária, ali, imutáveis e estáticos, dados à nossa contemplação. Hoje é um imperativo imprimir-lhes dinâmicas em várias direções, até ao cerne da vivência das comunidades e da interpretação das suas particularidades..
Não esperava ser, anos mais tarde, envolver-me em "aventuras museológicas", como veio a acontecer em função do meu trabalho no campo das migrações. Cedo me apercebi que a longa aventura da Diáspora portuguesa, feita de uma infinidade de aventuras individuais, que prosseguem, merecia honras de um museu nacional, capaz de testemunhar a realidade económica, política, sócio - cultural, intercultural, as suas formas externas e internas de presença e representação, ao longo de séculos. Estávamos no princípio dos anos oitenta e a ideia parecia, então, pouco menos do que peregrina e irrealista. O interesse académico na área da emigração andava esmorecido, se se comparar com o que despertava no auge do êxodo para o Brasil, e desperta atualmente. Na demanda de modelos inspiradores, pedi, durante uma viagem oficial a Estocolmo, para visitar o museu sueco da emigração, em Vaxjo, no sul do país, e de lá regressei com ensinamentos preciosos e impressionada, sobretudo, com o rigor na procura e obtenção sistemática de dados individuais, imagens, objetos, cartas, registos paroquiais e milhares e milhares de entrevistas, cada uma com duração de horas. Ali, ao dispor de visitantes, tanto como de futuras investigações multidisciplinares, estava o pulsar de várias gerações de migrantes, não apenas de alguns notáveis, mas de pessoas comuns.  No lugar central estava o Emigrante, enquanto protagonista do movimento coletivo - uma outra forma de escrever história.
Na impossibilidade de importar, sem mais, o modelo original, para um país sem preexistência de semelhantes preocupações e  pesquisas, havia que as promover e aprofundar e, com esse propósito, se instituiu o "Fundo Documental e Iconográfico das Comunidades Portuguesas".  O "Fundo" teve, um rápido trajeto ascencional, porém, assaz abreviado, pois quando se consolidava, já com muitas dezenas de obras publicadas, terminava o meu mandato, e no executivo seguinte, como é de regra entre nós, até dentro do mesmo quadrante partidário, o programa nascente foi imediatamente abandonado....
Atravessamos agora conjuntura bastante propícia ao lançamento das mais diversas configurações  museológicas, mas no terreno quase inexplorado da emigração, só vingaram as  que se devem a ação municipal,  caso do Museu da Emigração Açoriana, na Ribeira Grande, e do Museu das Migrações e das Comunidades, em Fafe, concelho por excelência, de "brasileiros" de "torna-viagem" (que, aliás, também em Avintes e em toda a região do Porto, deixaram a sua marca e não só em bonitas mansões familiares).
A nível de sucessivos governos, o tema tem sido, espaçadamente, retomado, ainda que apenas no discurso, apesar de alguns deles terem conseguido levar a bom termo exposições temáticas de tal qualidade e dimensão que, como afirmou, recentemente, a Prof,ª Miriam Halpern Pereira, teriam podido constituir o embrião ou o primeiro polo de uma experiência museológica...  Esse queria ser e podia já sido  o destino da exposição "Os emigrantes e o mar" , que, há mais de 30 anos, foi o "canto de cisne" do  referido Fundo Documental e Iconográfico -  uma exposição que, em espaço próprio,  se converteria, facilmente, de temporária em permanente.
O paradigma sueco levou-me, igualmente, como dirigente de ONG' s, a incentivar, no âmbito do movimento associativo das comunidades do estrangeiro ou nas regiões de origem dos emigrantes, a recolha de depoimentos individuais, que, em algumas ( Rio de Janeiro, Buenos Aires, Nova York,  Chaves) se traduziu em relevantes estudos e publicações. O que falta é a sua generalização, e um esforço de coordenação científica. Daí a esperança nos traz um ambicioso projeto da Universidade Nova de Lisboa, patrocinado pela FCT,  e dirigido pela  historiadora Maria Fernanda Rollo, (antiga Secretária de Estado da Investigação Científica), que tem por  título "Memória para todos"  e a todos lança um apelo aliciante: "Faça história, partilhando a sua".
Para quem queira participar, saliento a abertura da iniciativa a quaisquer domínios, períodos, quadrantes geográficos, acontecimentos, artesanato, festas e rituais... Já foram estudadas mais de cem comunidades, completadas centenas de entrevistas, e reunidos milhares de objetos pessoais - desde memórias das guerras mundiais, da primeira República, da guerra colonial, às da ópera, de corporações com a polícia, a vilas ou cidades. As possibilidades são infinitas, assim haja entusiasmo popular, solicitações, que, confio, hão-de chegar também das comunidades, com conteúdo útil para  um museu, criado a partir das suas memórias... 
 3 -   Diversidade cultural  e museus municipais
No nosso país, assiste-se, neste começo do século XXI, a uma expansão de pequenos ou grandes museus municipais - e refiro-me aos que são, de facto, de vocação especificamente local, não os que resultam de uma apressada forma de descentralização, a remeter para a órbita autárquica os sedeados fora da capital, como se não houvesse, e devesse haver, verdadeiros museus de carater nacional em outras cidades. . 
 Municipais devem, pois, considerar-se os que valorizam e divulgam as singularidades do seu território. no que respeita a instituições, artes e artífices tradicionais, comunidades de trabalho e de empreendimento... São, atualmente, muitos, entre eles: o Centro Interpretativo do Património da Afurada, voltado para a pesca e para o rio Douro, o Museu de Espinho, dedicado à arte xávega e à indústria conserveira, o Museu do Ouro em Travassos, Póvoa do Lanhoso, o Museu da Chapelaria e o Museu do Calçado, em São João da Madeira, o Museu Mineiro de São Pedro da Cova, o Museu do Móvel de Paços de Ferreira, o Museu Marítimo de Ílhavo, (com os núcleos da faina da Ria e da pesca do bacalhau nos mares do Norte, um navio- museu e um recentemente inaugurado aquário de bacalhaus).
 Todos eles encontram a razão de ser no caráter extraordinário, singular, de um património material e imaterial, e são, nesta perspetiva, uma celebração da diversidade cultural, do direito à sua afirmação e do dever de a cultivar e aprofundar.
O que é extraordinário, único tem de ser preservado e partilhado,  constituindo responsabilidade não só dos poderes públicos, como da sociedade civil e dos cidadãos.
Em Avintes, não obstante a riqueza uma história, bem estudada e detalhada em outras áreas, a absoluta raridade dá claro favoritismo ao fenómeno cultural e gastronómico, que é a sua broa, famosa no país inteiro e a merecer, sem dúvida, o esforço da internacionalização, que será enormemente facilitada pela existência de uma unidade museológica ou "centro interpretativo".
Quando, como e onde isso acontecerá, é, de momento, pergunta sem resposta. Há, contudo, já promissores sinais de uma tomada de consciência e vontade política, fatores determinantes para o arranque do projeto, num contexto em que não falta a imprescindível pesquisa da comunidade académica, recetividade popular, artefactos, empresas de fabrico artesanal, comunidades guardiãs das tradições e do segredo de um sabor inimitável. A meu ver, pode ser lido como muito significativo o gesto da Câmara Municipal, de distinguir, no dia da Cidade, com a medalha de Mérito Cultural, classe ouro, um fundador da Confraria da Broa, Joaquim da Costa Gomes. e quatro tradicionais obreiras da Broa de Avintes (Padaria Arminda e Neto, Padaria Broa da Manelinha, Padaria Maria Cristina e Padaria Climana) pela "produção da Broa de Avintes. símbolo identitário e de cultura gastronómica da freguesia de Avintes e do Concelho de Vila Nova de Gaia"
A fundamentação da homenagem, serve, igualmente, de justificação para a criação do Museu da Broa, em palavras que podem ser vistas como a sua pedra angular. Palavras ditas precisamente neste ano de 2019. em que não vemos mera coincidência ou acaso, antes pressentimos, a intenção política de passar das palavras aos atos.