domingo, 31 de outubro de 2021

AS REPÚBLICAS AUTÁRQUICAS DOS HOMENS 1 - Que título dar a um comentário sobre a questão de género nas eleições locais, onde o desequilíbrio é mais ostensivo e muito mais persistente do que no Governo e na Assembleia da República? Há tantas maneiras de dizer o mesmo...Poderia citar Célia Marques, que fala de "mundo masculino", ou Sandra Ribeiro (uma voz "oficial", presidente da "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género" (CCIG), a apontar o obstáculo de "meios masculinizados", ou Luís de Sousa (ICS da Universidade de Lisboa) na mesma linha de pensamento a responsabilizar a "envolvente masculina", ou António Barreto que chega à mesma conclusão , escrevendo sobre a "invisibilidade - feminina - no país das autarquias". Alguns exemplos, entre muitos, que guardei na memória. Finalmente, decidi "plagiar-me" a mim própria, lembrando um colóquio que, como vereadora, organizei em Espinho, em 2010, durante as comemorações do centenário 5 de outubro: "Mulheres na República dos Homens". A realidade, que os números e estatísticas revelam, é que as autarquias são, em Portugal, o último reduto do (quase) absoluto poder masculino. A lei da Paridade veio criar nos lugares secundários a ilusão de um crescente equilíbrio de género, mas deixou intocado o cargo onde reside todo o poder - a presidência das Câmaras, em sistema presidencialista. Os homens estão à frente de mais de 90% dos concelhos do continente e das Regiões Autónomas. A paridade que, na economia do diploma original, de 2006, era atingida com uns modestos 33% subiu, em reforma recente, para 40%. Subiram, com ela, as expetativas de um progresso que nos deixaria perto da barreira das quarenta presidências femininas. Desde 1985, vínhamos a registar um crescimento pequeno mas consistente. Na meia década de oitenta, contávamos apenas 4 mulheres presidentes, em 2017 já eram 32. Pouco ultrapassando os 10%, não se tratava de um resultado excelente, mas alimentava a convicção de uma caminhada irreversível. Por isso, 2021 foi verdadeiramente dececionante. Pela primeira vez, em décadas, esse número desceu (de 32 para 29), continuando a deixar de fora as principais cidades do País - Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, e por aí adiante... . 2 -Há em Portugal, a meu ver, uma crença excessiva nas virtualidades do Direito para resolver os problemas do nosso atraso social e económico, de desequilíbrios e assimetrias herdados do passado. No que, em especial, se refere à discriminações de género não penso diferentemente. Sou favorável à Lei da Paridade, considero que há muito deveríamos ter aperfeiçoado disposições a que falta caráter vinculativo, e enquanto Deputada, na Assembleia da República, sempre me manifestei nesse sentido, pela palavra e pelo voto, em oposição a teses então indiscutíveis do meu partido, o PSD (onde apenas Leonor Beleza e Marcelo Rebelo de Sousa, que não era deputado. estavam do meu lado da barreira). Tenho, todavia, a consciência de que é preciso lutar também com outras armas, para alcançar a igualdade efetiva. Há muito - logo após a Revolução de 1974, com a Constituição democrática de 1976 - está, em Portugal, consagrada a plena igualdade entre mulheres e homens. Nesse tempo histórico da meia década de setenta, terminou, assim, facilmente, pela pena do legislador, o longo e difícil combate das (e dos) sufragistas, que se centrava, e se ganhou, na esfera jurídica. Porém, removido o obstáculo que a própria Lei constituía, logo outros se levantaram nos domínios, em que a força vinculativa e sugestiva ou pedagógica do Direito tem as suas limitações. Podemos, é certo, ainda corrigir na legislação ordinária imperfeições ou desconformidades constitucionais, criar mecanismos de controle da aplicação dos comandos legais e da promoção de oportunidades iguais, do tipo da CITE (Comissão para a Igualdade do Trabalho e Emprego) , ou da CCIG. Contudo, o centro estratégico de uma mudança profunda de mentalidades e de práticas deslocou-se, definitivamente, do terreno da legiferação para o da vivência das leis. Não basta impor juridicamente a igualdade salarial, as mesmas oportunidades de progressão profissional ou de participação cívica e política para que elas aconteçam de facto. Não podemos ignorar os expedientes generalizadamente usados para manter o "status quo" - ou seja, 91% de homens presidentes de Câmara no todo nacional e uma percentagem superior, a rondar os 100%, nas capitais de distrito, nas mais importantes cidades. Se a questão fosse, sobretudo, de "mentalidade", de "aceitação social", de "socialização", como pretendem alguns doutos investigadores, caso de Luís de Sousa (Instituto de Estudos Sociais), ou de "tradições preconceituosas", como defende Sandra Ribeiro, a Presidente da CCIG, o fenómeno deveria sentir-se muito mais no mundo rural do que nas grandes urbes cosmopolitas! Aquelas condicionantes terão, sem dúvida, algum peso, mas verdadeiramente determinante é a organização partidária, o "baronato" instalado nas estruturas locais, que se defende "com unhas e dentes" da abertura desejada pelas cúpulas de Lisboa (e não em todos os quadrantes, como sabemos, mas, pelo menos, em alguns). Di-lo, claramente, um sociólogo, um académico com grande experiência de governo e parlamento, António Barreto: "o sistema político e social está organizado de forma a favorecer os homens. O menu de escolha, de oferta, está enviesado a favor dos homens. Mantém o predomínio masculino". A palavra chave é "menu de escolha". A nível nacional, para o Parlamento e para o Governo, têm poder decisivo nas escolhas os órgãos máximos dos partidos, o Secretário-Geral ou Presidente do Partido, as Comissões Políticas, o Primeiro Ministro, no seu Executivo e, por isso, a Lei da Paridade é, mais ou menos, respeitada, e o progresso tem sido constante. A nível local, não , pois no "menu de oferta" as mulheres estão (quase) sempre colocadas nas listas o mais abaixo que o "diktat" legal permite. E são cabeças de lista (quase) só em circunscrições onde esse partido não tem perspetivas de vencer... Nas últimas eleições, o PCP escolheu 80 mulheres cabeças de lista, o PS 44, o PSD 31, o Chega 30, o BE 27, o CDS 17, o PAN 13, a IL 6, o Livre 3. Contas finais elucidativas: mais de 250 candidatas à presidência da Câmara e apenas 29 eleitas... 3 - No Porto e arredores, como vamos, neste campo? Tal como em Lisboa, nunca no Porto se elegeu uma mulher para a presidência da Câmara, E, nas cidades vizinhas, a notável exceção é Matosinhos. Espinho constitui, também, caso raro, pois no seu historial já conta com uma antiga Presidente, Elsa Tavares, que a partir da Vice- presidência ascendeu ao cargo e, com um brilhante desempenho, abriu caminhos ainda não trilhados por nenhuma outra senhora. E, atualmente, apresenta um Executivo camarário que cumpre plenamente os ditames da Lei da Paridade, com 4 homens e 3 mulheres. Em termos da maioria socialista, é rigorosamente paritário - dois homens e duas mulheres. E, embora, na dimensão qualitativa, os homens ocupem os lugares cimeiros, as Vereadoras possuem currículo que permite esperar um desejável equilíbrio na obra a fazer pela terra. No "ranking" da Igualdade de género em Executivos camarários (num pequeno, mas significativo círculo de concelhos que considerei neste levantamento (para além de Porto e Espinho, Gaia, Gondomar, Matosinho e Maia),só Gondomar apresenta uma maioria de mulheres, 6 em 11. Segue-se Espinho, com 3 mulheres em 7. Os restantes ficam aquém de expetativas e regras, se não nas listas, nos resultados finais, que são os seguintes: Porto - 5 mulheres em 13; Matosinhos - 4 em 11; Gaia - 3 em 9: Maia - 3 em 11.` Uma referência é também devida ao contributo de cada partido no combate à desigualdade de género. O PS, que tem sido o grande paladino do sistema de quotas, levará alguma vantagem neste campo, mas diga-se, ao contrário do que se passa nas eleições nacionais, irregular e globalmente escassa. Neste quadro parcial, a ele se deve o bom posicionamento de Gondomar e Espinho, mas na Maia, em Matosinhos, em Gaia e no Porto de outro tanto se não pode vangloriar.. Uma última nota para uma incontornável comparação Norte/Sul, ou melhor, Porto/Lisboa. Na capital, o PSD não só venceu a Câmara, como respeitou a quota (3 vereadoras em 7). E no total, o resultado estatístico é de quase paridade - 8 mulheres e 9 homens. Temos de reconhecer que, neste aspeto, a capital fica bem melhor no retrato...
MEMÓRIAS POLÍTICAS PARA A NOSSA HISTÓRIA 1 - Não conhecemos ainda qualquer esboço do programa das anunciadas comemorações dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, que ocorrem em 2024. Bem à portuguesa, só sabemos, para já, dois nomes. O de quem preside, simbólica e honorificamente - o General Ramalho Eanes, que há muito devia ser o Marechal Ramalho Eanes, e é absolutamente indiscutível - e o de quem vai "presidir" ao Executivo, um jovem professor da área do PS, cuja notoriedade enquanto comentarista de vários "media" em muito suplanta o seu, para já, modesto currículo universitário. Apesar da sensatez e moderação com que sempre intervém, representa, face à escolha da personalidade do Presidente, o 8 perante o 80. O perfil de académico é, a meu ver, o ideal para um coordenador da "comissão organizadora" das celebrações, se, como me parece fundamental para o seu êxito, se vierem a centrar em aprofundadas investigações interdisciplinares. Para fazer história e para "fazer futuro" - na linguagem de então, para "cumprir Abril", ou para dar a dimensão da modernidade às "conquistas da revolução". O que por tal se entende não é inequívoco ou consensual em todos os quadrantes, mas, da equidistância dos cientistas se espera que os considerem todos. Como escreveu Agostinho da Silva, o filósofo que adorava gatos, a história que mais interessa é a do futuro. Porém, não é menos verdade que o ponto de partida e a fonte de ensinamentos e de inspiração é a do passado... Os trabalhos vão, suponho, começar em breve e prolongar-se por vários anos, antes e depois da efeméride nuclear. Nada tenho a opor a um tão extenso período de preparação e de continuidade de esforços se eles envolverem abertura às diversas universidades e especialistas, (não se fechando em "lobbies"" ou capelinhas), se servirem a pesquisa académica rigorosa, a recolha de documentação, a reflexão e a divulgação da história, pensando, em particular, nos mais jovens, no diálogo intergeracional. Eu atrever-me-ei, contudo, a afirmar que, num certo sentido, essa tarefa já teve o seu início num segmento particularmente importante da preservação da memória, com o testemunho direto de muitos dos protagonistas da revolução de 1974 e da edificação da democracia - ou seja, o seu "dia seguinte", na meia década de setenta e na de oitenta. Falo das autobiografias políticas, que não eram propriamente uma boa tradição nacional, mas que ganharam terreno entre os nossos contemporâneos. Cavaco Silva contribuiu com dois volumes, meticulosamente documentados, e mais os seus "diários" da presidência, na esteira de Jorge Sampaio. Mário Soares deixou-nos uma riquíssima coleção de publicações, tocando várias épocas e domínios, até o literário. Convidativos exemplos! As últimas publicações do género que tive a oportunidade de consultar, foram as de Diogo Freitas do Amaral, em 2019, - com o volume final de uma trilogia, "Mais de 35 anos de Democracia Um Percurso singular" Memórias Políticas III (1982-2017) - e de Francisco Pinto Balsemão, intitulada, simplesmente, "Memórias". Ambos nos oferecem a perspetiva diacrónica de uma fascinante e vertiginosa sucessão de eventos em duas décadas cruciais, tal como as atravessaram e marcaram, com um contributo individual para alicerçar a arquitetura do Estado democrático. E, não parando aí, trazem-nos com eles na viagem por mais um quarto de século de democracia estabilizada, até à atualidade. Para muitos, sobretudo os que que nunca souberam o que é o quotidiano de gente comum ou dos ativos intervenientes sob a ditadura, é uma incursão num mundo desconhecido, norteado por normas estranhas, absurdas... Para outros tem o encanto de uma saga acompanhada de perto, ou, até, em alguns momentos, partilhada. Ao lado de Freitas do Amaral, no governo em que ele foi Vice-Primeiro Ministro de Sá Carneiro, como sua Secretária de Estado, vivi o melhor ano da minha vida, o de 1980, até ao dia 4 de dezembro. Lembrá-lo, página a página, torna-se, assim, uma espécie de romagem de saudade. De Balsemão não posso dizer o mesmo, nunca fui amiga nem prosélita, mas, à distância de décadas, é um exercício estimulante constatar, com mais objetividade, não só divergências de análise sobre casos e pessoas, mas concordâncias e algumas bem relevantes, como a relativa à atual filiação do PSD, a nível europeu - o erro de trocar, em fins de século, a Internacional Liberal e Reformista por um PPE, cada vez mais conservador e menos cristão-democrata - ou a simpatia por um militar "presidenciável", que se chamava Mário Firmino Miguel. 2 - Embora abrangendo, no decorrer de um dado período, as vicissitudes da vida pública no mesmo espaço é muito distinta da de Balsemão a narrativa de Diogo Freitas do Amaral - reflexo natural das diferenças de personalidade, de pensamento, de formação académica, de objetivos na profissão e na política, e de realização concreta nestes dois sectores. Freitas do Amaral conjugou, na perfeição, uma fulgurante carreira universitária, (muito novo ascendendo a Professor Catedrático de Direito), e uma corajosa, determinada, e não menos brilhante trajetória cívica e política, ganhando o seu lugar entre os "pais fundadores" do regime nascido no do 25 de Abril - primeiro presidente do CDS, o "Homem de Estado", que, segundo Mário Soares, "ajudou a converter a direita portuguesa à democracia". Escreveu muitas páginas de história, que é não apenas sua, mas do País, e, por isso, de leitura obrigatória. Uma obrigatoriedade que a leveza e a naturalidade com que se exprime, numa linguagem, em simultâneo, precisa, simples e acessível sobre os temas mais complexos, torna, afinal, muito grata e aliciante, não exclusivamente para especialistas em questões de política nacional e internacional, mas para qualquer um de nós. Enquanto Balsemão nos apresenta a sua "narrativa de vida" de mais de oito décadas, Freitas do Amaral optou por se focar nas "memórias políticas", editadas ao longo de mais de 20 anos em três volumes - nos anos de 1995, 2008 e 2019. Neles vamos, fase a fase, seguindo o excecional trajeto de alguém que se preparou, com talento, rigor e dedicação, para ser o que foi. Numa expressão sua, lapidar. "Sonhei coisas grandes e, felizmente, vivi muitas"- Bastante novo atingiu o topo da carreira académica, como professor catedrático de Direito, e muito novo se viu a liderar um dos quatros grandes partidos do pós 25 de Abril. Excecional se revelou, depois, em todos os cargos aos quais se candidatou e para os quais foi eleito, dentro e fora do país - Deputado, Vice Primeiro Ministro, Primeiro-Ministro interino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs (o primeiro português eleito para a presidência de uma grande "Internacional"), Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, candidato à presidência da República, numa eleição que ganhou na 1ª volta e perdeu na 2ª, para Mário Soares, por escassos 138.000 votos... Paradigmática é a forma como analisa os vários factores determinantes dessa derrota, com uma objetividade de cientista político, e como aceita, democraticamente, o veredicto popular, não hesitando em afirmar: "O percurso e o currículo de Mário Soares eram nitidamente superiores aos meus".( Quase metade dos portugueses tinham mostrado, nas urnas, pensar o contrário...). Recusando contestar o resultado, o candidato vencido apressou-se a felicitar o vencedor. No dia seguinte, recebeu em casa "um enorme ramo de flores', com um cartão de cumprimentos, admiração e respeito do casal Maria Barroso e Mário Soares". Nas "Memórias", comenta: "Só o Mário Soares e a Maria de Jesus seriam capazes de fazer uma coisa destas". E eu acrescentarei: Só Freitas do Amaral seria capaz desta reação - a democracia portuguesa no seu melhor! Na era dos Trump e dos Bolsonaros, motivo, para nós, de renovado orgulho. 3 - Francisco Pinto Balsemão, em mil densas páginas, reúne, nos capítulos que sobre política se debruçam, um manancial de dados, desde os dias em que a revolução apenas se adivinhava, sem hora certa. Deputado da "ala liberal" na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano, fundador de um semanário que soube antecipar o tempo da democracia,( "O Expresso"), co-fundador de um partido político, que pesou decisivamente na mudança de regime, o PPD/PSD, Ministro, Primeiro Ministro por dois anos (e dois governos), deputado europeu por 11 dias. E muitas coisas mais: milionário nato (ou seja, de fortuna herdada, que não dilapidou), jornalista, advogado, empresário da comunicação social, não lhe falta matéria de interesse para levar a conhecimento público. Passados os 80 anos, bem gozada a vida, satisfeitas as ambições, as que teve e até as que nem tinha sonhado (nomeadamente ser Primeiro-Ministro, o que somente aconteceu por um trágico acaso), fala sem reservas nem resguardos. É ele próprio, retrata muitas figuras da nossa "res publica", tal como as vê e, ao fazê-lo, retrata-se a si também. Poucos são os que se autobiografam assim, emitindo opiniões, com o à vontade, de quem está numa roda de amigos. O jornalista vem ao de cima", redige com desembaraço e espontaneidade, sem floreados, sem excessivas subtilezas, sem poupar os alvos, ainda que estes hajam ocupado, ou ocupem hoje os mais altos cargos de Estado. As passagens agrestes sobre Marcelo Rebelo de Sousa, não só no livro, mas em entrevistas laterais ao seu lançamento, fazem furor, e, talvez expliquem, pelo menos em parte, que a 1ª edição esteja, (ao que consta), já esgotada. Da Bertrand, em Espinho, trouxe comigo o último exemplar, que só terei conseguido, por estar ligeiramente amolgado - nada que afete o conteúdo. Em jeito de recomendação, terminarei confessando que tenho ficado a lê-lo pela noite dentro, refrescando lembranças, algumas já vagas, e confrontado as minhas com as suas interpretações sobre o encadeamento de ocorrências, de conflitos, polémicas, pessoas que os protagonizaram - exercício tão grato quando aquelas vão no mesmo sentido como quando são dissonantes. Em suma, mais um significativo subsídio para a história de uma então tão jovem e esperançosa democracia. 9 out 2021 -------------------------------------------------------------------- S AUTARQUIAS, REPÚBLICAS DOS HOMENS 1 - Hesitei bastante no título deste comentário. Há tantas maneiras de dizer o mesmo. Célia Marques fala de "mundo masculino", Sandra Ribeiro (uma voz "oficial", presidente da "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género" (CCIG) de "meios masculinizados", Luís de Sousa (ICS da Universidade de Lisboa) de "envolvente masculina", António Barreto de "invisibilidade - feminina - no país das autarquias". Alguns exemplos, entre outros, que guardo na memória. Finalmente, decidi "plagiar-me" a mim própria, lembrando um colóquio organizado em Espinho, em 2010, durante as comemorações do centenário 5 de outubro de 1910: "Mulheres na República dos Homens". A realidade, que os números e estatísticas revelam, é que as autarquias são, em Portugal, o último reduto do (quase) absoluto poder masculino. A lei da Paridade veio criar nos lugares secundários a ilusão de um crescente equilíbrio de género, mas deixou intocado o cargo onde reside todo o poder - a presidência das Câmaras, em sistema presidencialista. Os homens estão à frente de mais de 90% dos concelhos do continente e das Regiões Autónomas. A paridade que, na economia do diploma original, de 2006, era atingida com uns modestos 33% subiu, em reforma recente, para 40%. Subiram, com ela, as expetativas de um progresso que nos deixaria perto da barreira das quarenta presidências femininas. Desde 1985, vínhamos registando um crescimento pequeno mas consistente. Na meia década de oitenta, contávamos apenas 4 mulheres presidentes, em 2017 já eram 32. Pouco ultrapassando os 10%, não se tratava de um resultado excelente, mas alimentava a convicção de progresso irreversível. Por isso, 2021 foi verdadeiramente dececionante, porque, pela primeira vez, em décadas, esse número desceu (de 32 para 29), continuando a deixar de fora as principais cidades do País - Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, e por aí adiante... . 2 -Há em Portugal, a meu ver, uma crença excessiva nas virtualidades do Direito para resolver os problemas do nosso atraso social e económico, de desequilíbrios e assimetrias herdados do passado. No que, em especial, se refere à discriminações de género não penso diferentemente. Sou favorável à Lei da Paridade, considero que há muito deveríamos ter aperfeiçoado disposições a que falta caráter vinculativo, e enquanto Deputada, na Assembleia da República, sempre me manifestei nesse sentido, pela palavra e pelo voto, em oposição a teses então oficiais do meu partido (onde apenas Leonor Beleza e Marcelo Rebelo de Sousa, que não era deputado. estavam do meu lado da barreira). Tenho, todavia, a consciência de que é preciso lutar também com outras armas, para alcançar a igualdade efetiva. Há muito - logo após a Revolução de 1974, com a Constituição democrática de 1976 - está a plena igualdade entre mulheres e homens consagrada no nosso sistema. Esse foi o tempo histórico em que terminou o longo combate das (e dos) sufragistas, que se centrava, e se ganhou, na esfera jurídica. Porém, removido o obstáculo que a própria Leii constituia, logo outros se levantaram nos vários domínios, em que a força vinculativa e sugestiva, ou pedagógica, do Direito tem as suas limitações. Podemos, é certo, ainda corrigir na legislação ordinária imperfeições ou desconformidades constitucionais, criar mecanismos de controle da aplicação dos comandos legais e da promoção de oportunidades iguais, do tipo da CITE (Comissão para a Igualdade do Trabalho e Emprego) , ou da CCID. Contudo, o centro estratégico de uma mudança profunda de mentalidades e de práticas deslocou-se, definitivamente, do terreno da legiferação para o da vivência das leis. Não basta impor juridicamente a igualdade salarial, as mesmas oportunidades de progressão profissional ou de participação cívica e política para que elas aconteçam de facto..Não podemos ignorar os expedientes generalizadamente usados para manter o "status quo" - ou seja, 91% de homens presidentes de Câmara no todo nacional e uma percentagem superior, a rondar os 100%, nas capitais de distrito, nas mais importantes. Se a questão fosse, sobretudo, de "mentalidade", de "aceitação social", de "socialização", como pretendem alguns doutos investigadores, como Luís de Sousa (Instituto de Estudos Sociais), ou de "tradições preconceituosas", como defende Sandra Ribeiro, a Presidente da CCIG, o fenómeno deveria sentir-se muito mais no mundo rural do que nas grandes cidades cosmopolitas! Aquelas condicionantes terão algum peso, mas verdadeiramente eterminante é a organização partidária, o "baronato" instalado nas estruturas locais, que se defende "com unhas e dentes" da abertura desejada pelas cúpulas de Lisboa (e não em todos os quadrantes, como sabemos, mas, ao menos, em alguns). Di-lo, por exemplo, um sociólogo mais do que teórico, com a sua grande experiência de governo e parlamento, António Barreto: "o sistema político e social está organizado de forma a favorecer os homens. O menu de escolha, de oferta, está enviesado a favor dos homens. Mantém o predomínio masculino". A palavra chave é "menu de escolha". A nível nacional, para o Parlamento e para o Governo, têm poder de decisão na escolha, os órgãos máximos dos partidos, e o nº 1, o Primeiro Ministro, o Secretário-Geral ou Presidente do partido e, por isso, a Lei da Paridade é, mais ou menos, respeitada, e o progresso tem sido constante e visível. A nível local, não , pois no "menu de oferta" as mulheres estão (quase) sempre colocadas nas listas o mais abaixo que o "diktat" legal permite. E são cabeças de lista (quase) só em circunscrições onde esse partido não tem perspetivas de vencer... Nas últimas eleições, o PCP escolheu 80 mulheres cabeças de lista, o PS 44, o PSD 31, o Chega, 30, o BE, 27, o CDS, 17, o PAN 13, a IL 6 e o Livre, 3.. Contas finais elucidativas : mais de 250 candidatas à presidência da Câmara e apenas 29 eleitas... 3 - E em Espinho, como vamos, neste aspeto? Tal como acontece nas maiores cidades do País, nunca aqui se elegeu uma mulher para a presidência, mas, por acaso, já houve uma que, a partir da Vice presidência, ascendeu ao cargo e fez história com um brilhante desempenho. A Senhora D.Elsa, de que todos nos podemos orgulhar. Na presidência da Assembleia Municipal já contou com duas ilustre espinhenses e agora apresenta um Executivo camarário que cumpre plenamente os ditames da Lei da Paridade, com quatro homens e três mulheres. Em termos da maioria socialista, é rigorosamente paritário - dois homens e duas mulheres - e, embora, na dimensão qualitativa, os homens ocupem os lugares cimeiros, as Vereadoras possuem currículo que permite esperar um desejável equilíbrio na obra a fazer pela terra. No panorama global do País, estamos, com certeza, nos lugares cimeiros. 21 out 2021 ETC E TAL REPENSAR A HISTÓRIA DA NOSSA DEMOCRACIA 1 - Não conhecemos ainda qualquer esboço do programa das anunciadas comemorações dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, que ocorrem em 2024. Bem à portuguesa, só sabemos para já dois nomes: o de quem as vai presidir, simbólica e honorificamente - o General Ramalho Eanes, que há muito devia ser o Marechal Ramalho Eanes, e é absolutamente indiscutível - e o de quem chefiará o Executivo, um jovem professor da área política do Governo, cuja notoriedade enquanto comentarista de vários "media" em muito suplanta o seu (ainda) modesto currículo universitário. Apesar da sensatez e moderação com que, a meu ver, sempre intervém, representa, face à escolha da personalidade do Presidente, o 8 perante o 80. O perfil de académico será o ideal para um coordenador da "comissão organizadora" das celebrações, se, como me parece fundamental para o seu êxito, se vierem a centrar em aprofundadas investigações interdisciplinares. Para fazer história e para "fazer futuro" - na linguagem de setenta, para "cumprir Abril", ou para dar a dimensão da modernidade às "conquistas da revolução". O que por tal se entende está longe de ser inequívoco ou consensual em todos os quadrantes, mas, da equidistância dos cientistas se espera que os considerem todos. Como escreveu Agostinho da Silva, o filósofo que adorava gatos, a história que mais interessa é a do futuro. Porém, não é menos verdade que o ponto de partida e a fonte de ensinamentos e de inspiração é a do passado... Os trabalhos vão, supõe-se, começar em breve e prolongar-se por vários anos, antes e depois da efeméride nuclear. Nada a opor a um tão extenso período de preparação e de continuidade de esforços se eles envolverem abertura às diversas universidades e especialistas, (não se fechando em "lobbies"" ou capelinhas), se servirem a pesquisa académica rigorosa, a recolha de documentação, a reflexão e a divulgação da história, que as gerações mais novas não viveram. Num certo sentido, essa tarefa já teve o seu início no segmento particularmente importante da preservação da memória, com o testemunho direto de muitos dos protagonistas dos acontecimentos de 1974 e da construção da democracia - ou seja, o seu "dia seguinte" da Revolução, na meia década de setenta e na de oitenta. Refiro-me, em especial, a autobiografias políticas, que não eram propriamente uma boa tradição nacional, e que estão a tornar-se coisa comum entre os nossos contemporâneos. Cavaco Silva contribuiu com dois volumes, meticulosamente documentados, e mais os seus "diários" da presidência, na esteira de Jorge Sampaio. Mário Soares deixou-nos uma riquíssima coleção de publicações, tocando várias épocas e domínios, até o literário. Bons exemplos! As últimas publicações do género que tive a oportunidade de consultar, foram as de Diogo Freitas do Amaral, em 2019, - "Mais de 35 anos de Democracia Um Percurso singular" Memórias Políticas III (1982-2017) - e de Francisco Pinto Balsemão, intitulada, simplesmente, "Memórias". Ambos nos oferecem a perspetiva diacrónica de uma fascinante e vertiginosa sucessão de eventos em duas décadas cruciais, tal como eles as atravessaram, dando o seu contributo individual para alicerçar a arquitetura do Estado democrático. E, não parando aí, trazem-nos com eles na viagem de décadas de democracia estabilizada, até à atualidade. Para muitos, sobretudo os que que nunca souberam como era o quotidiano de gente comum, mais ou menos passiva, ou de ativos contestatários sob a ditadura, é uma incursão num mundo desconhecido, regido por normas que hoje parecem estranhas, a tocar as raias do absurdo... Para outros, tem o encanto de uma saga seguida de perto, ou, até, em alguns momentos partilhada. Ao lado de Freitas do Amaral, no governo em que ele foi Vice-Primeiro Ministro de Sá Carneiro, como sua Secretária de Estado (para a Emigração), vivi o melhor ano da minha vida, o de 1980, até ao dia 4 de dezembro. Lembrá-lo, página a página, torna-se, assim, uma espécie de romagem de saudade. De Balsemão não posso dizer o mesmo, nunca fui amiga nem prosélita, mas, à distância de décadas, é um exercício estimulante constatar, porventura com mais objetividade, não só divergências de análise sobre casos e pessoas, mas concordâncias e algumas bem relevantes, como a relativa à atual filiação do PSD, a nível europeu - apontando o erro de trocar, em fins de século, a Internacional Liberal e Reformista por um PPE, cada vez mais conservador e menos cristão-democrata - ou a simpatia por um militar "presidenciável", que se chamava Mário Firmino Miguel. 2 - Embora abrangendo as vicissitudes da vida pública no decorrer do mesmo período de tempo e no mesmo espaço é muito distinta da de Balsemão a narrativa de Diogo Freitas do Amaral - reflexo natural das diferenças de personalidade, de pensamento, de formação académica, de objetivos na profissão e na política e de realizações concretas nestes dois sectores. Freitas do Amaral conjugou, na perfeição, a fulgurante carreira universitária, (muito novo ascendendo a Professor Catedrático de Direito), e a corajosa, determinada, e não menos brilhante política,caminhada política, ganhando o seu lugar entre os "pais fundadores" do regime nascido no do 25 de Abril - primeiro presidente do CDS. O "Homem de Estado", que, segundo Mário Soares, "ajudou a converter a direita portuguesa à democracia". Escreveu muitas páginas de história, que é não apenas sua, mas do País, e, por isso, de leitura obrigatória. Uma obrigatoriedade que a leveza e a naturalidade com que se exprime, numa linguagem em simultâneo precisa, simples e acessível sobre os temas mais complexos, torna especialmente grata e aliciante, não só para especialistas em questões de política nacional e internacional, mas para qualquer um de nós. Enquanto Balsemão apresenta aos leitores a sua "narrativa de vida" de mais de oito décadas, Freitas do Amaral optou pelo enfioque nas "memórias políticas", editadas ao longo de mais de 20 anos em 1995, 2008 e 2019. Neles vamos, fase a fase, seguindo o excecional trajeto de alguém que se preparou, com rigor, dedicação e muito talento, para chegar onde chegou. Numa expressão sua, lapidar. "Sonhei coisas grandes e, felizmente, vivi muitas"- Muito novo se viu a liderar um dos quatros grandes partidos do pós 25 de Abril e atingiu o topo da carreira académica. Excecional se revelaria em todos os cargos aos quais se candidatou e para os quais foi eleito, dentro e fora do país - Deputado, Vice Primeiro Ministro, Primeiro-Ministro interino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs (o primeiro português eleito para a presidência de uma grande "Internacional"), Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, ou candidato à presidência da República, numa eleição que ganhou na 1ª volta e perdeu na 2ª, para Mário Soares, por escassos 138.000 votos... Paradigmática é a forma como analisa os vários factores determinantes dessa derrota, com uma objetividade de cientista político, e como aceita, democraticamente, o veredicto popular, não hesitando em afirmar: "O percurso e o currículo de Mário Soares eram nitidamente superiores aos meus". (Quase metade dos portugueses tinham mostrado, nas urnas, pensar o contrário...). Recusando contestar o resultado, como alguns queriam, o candidato vencido apressou-se a felicitar o vencedor. No dia seguinte, recebeu em casa "um enorme ramo de flores', com um cartão de cumprimentos, admiração e respeito do casal Maria Barroso e Mário Soares". Nas "Memórias", comenta: "Só o Mário Soares e a Maria de Jesus seriam capazes de fazer uma coisa destas". E eu acrescentarei: Só Freitas do Amaral seria capaz desta reação. A democracia portuguesa no seu melhor! Na era dos Trump e dos Bolsonaros, motivo, para nós, de renovado orgulho. 3 - Francisco Pinto Balsemão, em mil densas páginas, reúne, nos capítulos que sobre política se debruçam, um manancial de dados, desde os dias em que a revolução apenas se adivinhava, sem hora certa. Deputado da "ala liberal" na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano, fundador de um semanário, que soube antecipar o tempo da democracia, ("O Expresso"), co-fundador de um partido político, que pesou decisivamente na mudança de regime, o PPD/PSD, Ministro, Primeiro Ministro por dois anos e meio (em dois governos), deputado europeu por 11 dias. E muitas coisas mais: milionário nato (ou seja, de fortuna herdada, que não dilapidou), jornalista, advogado, empresário da comunicação social, não lhe falta matéria de interesse para levar ao seu público. Passados os 80 anos, bem gozada a vida, satisfeitas as ambições, as que teve e as que nem tinha sonhado (nomeadamente ser Primeiro-Ministro, o que somente aconteceu por um trágico acaso), fala sem reservas nem resguardos. É ele próprio, retrata muitas figuras da "res publica", tal como as vê e, ao fazê-lo, retrata-se a si também. Poucos são os que se autobiografam assim, emitindo opiniões com o à vontade de quem está numa roda de amigos. O jornalista vem ao de cima", redige com desembaraço e espontaneidade, sem floreados, sem excessivas subtilezas, sem poupar os alvos, ainda que estes tenham ocupado, ou ocupem hoje os mais altos cargos de Estado. As passagens agrestes sobre Marcelo Rebelo de Sousa, não só no livro, mas em entrevistas laterais ao seu lançamento, fazem furor, e, talvez expliquem, pelo menos em parte, que a 1ª edição esteja já esgotada. Da Bertrand, em Espinho, trouxe comigo o último exemplar, que só terei conseguido, por estar ligeiramente amolgado - nada que afete o conteúdo. Em jeito de recomendação, terminarei confessando que fiquei a lê-lo pela noite dentro, refrescando lembranças, algumas já vagas, e confrontado as minhas com as suas interpretações sobre o encadeamento de ocorrências, de conflitos, polémicas, pessoas que os protagonizaram - exercício tão grato quando aquelas vão no mesmo sentido como quando são dissonantes. Em suma, mais um significativo subsídio para a história de uma então tão jovem e esperançosa democracia.