quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Nota Introdutória PARA REVER 1 - Para olhar o nascimento do “Conselho” à distância de quarenta anos, privilegiarei a data da sua primeira reunião mundial, realizada em Lisboa, de seis a dez de abril de mil, novecentos e oitenta e um, e não a da promulgação do diploma jurídico pelo qual foi criado (DL nº 373/80 de 12 de setembro) porque, na minha perspetiva, esta lei pode considerar-se uma declaração de intenções, uma esperançosa expetativa com futuro incerto, entregue ao poder fático da reunião constituinte. Crucial é o momento de passagem da esfera normativa do Direito à realidade da vida das pessoas ou das instituições, e no caso do CCP, esse trânsito foi muito além da boa aplicação da lei, pelo facto de ser, à partida, uma lei a rever, para melhor se ajustar à vontade dos destinatários, um convite a que eles próprios a reformulassem, nela vertendo, porventura, outros conteúdos. É nessa procura de reconfiguração, no ponto de equilíbrio de vontades e estratégias, que se corporiza o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP). Este segundo tempo foi, assim, o que contou mais. O Governo, na sua primeira consulta, convidou os Conselheiros a uma livre ponderação de alternativas às linhas do modelo institucional para que apontava originariamente. Não colocou obstáculos a deslocar o seu centro de gravidade da interlocução da Diáspora para a da emigração recente, dando espaço ao debate dos problemas prementes do quotidiano. E com isso entrou o Conselho num domínio que, continuando a ser de reencontro pelo diálogo, não mais escaparia à turbulência e à confrontação, verbalmente violenta, que marcou a segunda década de setenta e os primeiros anos de oitenta, em Portugal. Tempos ainda próximos da dinâmica e das contradições da revolução de 1974, que, já então, entrara numa via reformista, apoiada por larga maioria constitucional e popular, mas entre profundos conflitos Maria Manuela Aguiar | pag. 14 sociais e choques político-partidários. Saindo da área da dominante cultural (com a sua facilidade de consensos naturais, já que a Cultura é sempre o máximo denominador comum) o CCP avançava em terreno aberto às arrebatadas pulsões que agitavam a sociedade portuguesa, dentro e fora de fronteiras por igual - quando não mais ainda em algumas das comunidades do estrangeiro do que no País. Naqueles poucos dias da Reunião Mundial do Palácio Foz, o Conselho mudaria de natureza, de vocação, de estilo, e consequentemente, de destino. 2 – O manifesto eleitoral da Aliança Democrática, em 1979, tratava com o mesmo relevo, mas em rubricas autónomas, a “Emigração”, com referência a políticas públicas de apoio social e jurídico aos emigrantes e aos seus descendentes, e as “Comunidades Portuguesas no Mundo”, com a ênfase colocada na preservação dos laços históricos e culturais ao País, na criação de um “Conselho das Comunidades Portuguesas no Mundo”, onde estas se fariam representar. No que concerne às políticas públicas para as migrações de saída e regresso apostava-se na continuação de esforços iniciados em 1974, visando sobretudo, a melhoria de meios e a sua eficiência. No que respeita às “Comunidades”, a principal promessa eleitoral era inovadora, encarava de frente uma das falhas mais extraordinárias que, bem vistas as coisas, a sociedade civil partilhava com o Estado: a inexistência de uma plataforma internacional de união entre os portugueses no estrangeiro. No panorama europeu, note-se, esta constatação convertia-nos em caso raro entre países de emigração, mesmo entre aqueles cuja tradição migratória se não podia, quantitativa e qualitativamente, comparar com o peso e significado da nossa. Em todos esses países encontramos, desde fins do século XIX, ou inícios do século passado, movimentos federativos das associações atuantes nas diversas regiões do mundo da sua imigração, maioritariamente O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 15 oriundos da iniciativa privada, nalguns casos apoiados ou enquadrados num organismo de cúpula governamental. A lacuna é tanto mais de estranhar, quanto se sabe que a propensão associativa dos emigrantes portugueses foi enorme, nas várias épocas e latitudes. Da parte do Estado, o descaso não poderá surpreender-nos, sabido que as primeiras medidas de apoio aos emigrantes datam de meados do século passado e se limitam ao acompanhamento da viagem de ida, em travessias transoceânicas realizadas em condições de grande risco, ficando depois os cidadãos entregues a si próprios. Face a essa total e multissecular “ausência do Estado” nas comunidades da emigração, nasceu e cresceu, enraizado em fortes laços de entreajuda e solidariedades, um impressionante associativismo, no domínio social e cultural, que tanto refletia a relação afetiva com a terra originária como ajudava a integração no país de acolhimento. Poucos foram, no passado, os governantes ou os académicos que se aperceberam da dimensão do fenómeno associativo enquanto esteio de comunidades estruturadas e perenes. Os que podemos apontar como exceção (caso de Afonso Costa) atribuem-lhe um caráter fugaz ou transitório, identificando-o como forma de combater o sentimento de isolamento e a saudade por parte de uma emigração temporária. Porém, ao contrário do que previa (e queria) o Estado, grande número de indivíduos e famílias escolheram o não retorno, mantendo essa vontade de pertença coletivamente expressa no grupo nacional. Neste contexto, que apresenta traços comuns a outras migrações europeias, cumpre indagar quais os motivos, as circunstâncias, as eventuais especificidades que contiveram, então e ainda hoje, o nosso associativismo dentro dos limites de cada um dos países de destino, como se fossem desconhecedores ou desinteressados da existência dos demais. Esperamos de futuras investigações, o aprofundamento da compreensão das caraterísticas de um Maria Manuela Aguiar | pag. 16 associativismo português fechado dentro de fronteiras e das causas que porventura o condicionaram ou acantonaram. A larga predominância, ao longo de séculos, da emigração para o Brasil (país imenso, um mundo em si, uma sociedade aberta e acolhedora, onde a língua e a cultura tornavam mais fácil as relações sociais e o enraizamento) surge como hipótese de trabalho. No Brasil se situam as mais grandiosas manifestações do espírito associativo português, em número e em dimensão sem paralelo em quaisquer outras comunidades - os “Gabinetes de Leitura”, os Hospitais e os Lares das “Beneficências”, os clubes sociais, as agremiações desportivas... Aí existe uma importante Federação das Associações Portuguesas e Luso-brasileiras, que representa as nossas maiores instituições no mundo, sem, contudo, ter pretendido transpor as fronteiras do Brasil. 3 – Ao longo dos últimos dois séculos, registamos somente um conseguido ensaio de agregação das comunidades de língua e cultura portuguesas por iniciativa do Prof. Adriano Moreira, à frente da Sociedade de Geografia, na década de sessenta do século passado. Foi o primeiro a compreender a importância dos laços que a História tecera (não apenas a História do Império em declínio, mas a do êxodo sem fim dos portugueses que consigo levaram e expandiram a fala e a cultura em todo o planeta), e a mostrar capacidade de agir, reunindo em congresso mundial os representantes dessas comunidades de língua, cultura e afeto. O primeiro Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa teve Lisboa como palco, o segundo, Moçambique, o terceiro estava projetado para o Brasil. Seria, porém, adiado sine die, porque o regime, que, de uma forma mais ou menos neutral, aceitara o avanço deste movimento da sociedade civil, se fechou, em definitivo, após a ascensão de Marcelo Caetano ao poder. As atas do 1º e do 2º Congressos foram publicadas pela Sociedade de Geografia em seis volumes e documentam o espantoso e O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 17 pioneiro trabalho levado a cabo. Ao lê-las, mais de meio século depois, constatamos que não foram as últimas manifestações de saudosismo colonial, na sua 25ª hora, mas o prenúncio de uma CPLP ainda informe e distante - não a que mornamente subsiste, no novo século, mas a que sonhou José Aparecido de Oliveira. Ao grande político brasileiro, como a Adriano Moreira, os meandros da Política e da História não deram tempo de levar a obra por diante. E não houve, a meu ver, até hoje, quem a soubesse retomar com a mesma visão da lusofonia policêntrica e universalista. 4 - A revolução de 1974 tardou sete anos a convocar os expatriados ao diálogo e à cooperação global no Conselho das Comunidades Portuguesas. Desta feita, a iniciativa pertenceu ao Estado. Os representantes de organizações da sociedade civil foram chamados ao encontro com o Governo, num exercício de democracia que revestiu a forma de proposta à coparticipação na definição das políticas para as comunidades do estrangeiro. O Conselho foi, desde o início, concebido como instância consultiva do Governo da República e dos Governos Regionais e como órgão representativo dos seus eleitores, dotado, consequentemente, do direito de iniciativa. Comparando o movimento da Sociedade de Geografia e o CCP instituído pelo Governo da Aliança Democrática, poderemos concluir que coincidiam no objetivo fundamental de federalizar o movimento associativo das comunidades do estrangeiro, igualmente se aproximando no propósito de colocar o foco na área da cultura e nos laços afetivos. Todavia, o momento político em que o diploma criador do Conselho foi trabalhado exigiu atenção a outros aspetos, que viriam a determinar o seu alargamento à vertente sócio laboral das migrações. O facto de o Governo anterior, no último mês do seu mandato, ter posto em marcha a organização de um Congresso das Comunidades Portuguesas (ao abrigo do Decreto-Lei nº Maria Manuela Aguiar | pag. 18 462/79 de 30 de novembro) colocou o VI Governo Constitucional perante o dilema de cumprir o seu próprio programa ou de o compatibilizar com os objetivos de projeto alheio. Não foi surpreendente a decisão de propor à Assembleia da República a ratificação do diploma de 30 de novembro, com o propósito de deslocar o Congresso da esfera de influência presidencial para a do executivo e de impor o seu adiamento para 1981. O cancelamento dos preparativos no ano de 1980 provocou fortes reações nas comunidades em áreas onde a oposição partidária era mais forte (sobretudo em França, onde o movimento associativo estava bastante politizado) e terá contribuído para o ambiente conturbado em que se gerou o CCP, e, em resposta, levou a uma tentativa de conciliar o «Conselho de Diáspora», previsto no Programa da AD, com a ideia de um «Conselho de Emigrantes», que o governo anterior visava criar no contexto do seu Congresso. O articulado do Decreto-Lei nº 373/80 de 12 de setembro era suficientemente flexível para abarcar a problemática das migrações antigas e recentes, e, de facto, o CCP encontraria a sua identidade servindo ambas as vertentes. O pedido de ratificação do Decreto-Lei nº 462/79 pelo Governo da AD e o atraso na publicação do diploma que instituía o CCP, implicaram o adiamento de ambos os eventos, no ano de 1980. Seria, por isso, o VII Governo Constitucional que, no começo do ano seguinte, dinamizou o processo de constituição das “Comissões de País” por áreas consulares, e através delas, da eleição dos seus representantes à 1ª Reunião Mundial do CCP. A reunião foi organizada por Secções onde seriam debatidos, em profundidade, os pareceres ou recomendações ao Governo, e por Plenários, onde estes seriam submetidos a votação final. À lista de Secções resultantes de prévia consulta aos eleitos, o Governo acrescentou uma Secção destinada à análise do articulado do Decreto-Lei nº 373/80, um espaço de diálogo em que as suas disposições podiam ser repensadas e reajustadas, como foram, e O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 19 não de uma só vez, mas por consensos alcançados nas sucessivas etapas, em que se foi moldando a instituição. 5 – Houve, à partida, a preocupação de delinear um diploma jurídico abrangente e flexível que pudesse ser a plataforma jurídica onde os representantes das comunidades iriam protagonizar a aventura irrepetível de criar a instituição - um complexo e exigente processo de procura e de consecução de consensos bastantes para a alicerçar, através de pontes lançadas entre posições políticas, geografias e tipos de emigrações muito diversos, que se desconheciam e, por se ignorarem, se antagonizavam - a Europa contra o resto do mundo, migrações recentes contra as migrações antigas, mais os descontentes com o adiamento do 1º Congresso do Governo Pintasilgo e os simpatizantes do novo Governo Sá Carneiro. Por fim, na mútua aceitação de opostos sedimentou-se uma instituição abrangente e original. O grupo de trabalho que preparou a legislação foi buscar inspiração a um modelo estrangeiro do único país onde funcionava, já com largos anos de existência, um órgão governamental de audição de emigrantes - a França, o “Conseil Supérieur des Français de l’ Étranger” (CSFE). Comparemos o CSFE com o CCP: um e o outro estavam sediados no Ministério dos Negócios Estrangeiros e eram presididos pelo Ministro. Neles tinham assento membros natos, membros eleitos (por um colégio eleitoral associativo) e membros nomeados. No caso do CCP, estes últimos foram escolhidos numa lógica bastante mais restritiva dos poderes discricionários do Ministro, visto que os representantes sindicais e patronais eram indicados pelas respetivas centrais. Os peritos escolhidos pelo Governo constituíam um reduzido núcleo e sempre desempenharam de forma extremamente discreta a sua missão de apoio técnico. O Decreto-Lei nº 373/80 era um documento sintético, assente em arquitetura minimalista. Não especificava, por exemplo, os diferentes papéis de cada uma das três categorias referidas. Maria Manuela Aguiar | pag. 20 Todavia, a sua prática não deu margem a quaisquer dúvidas: os membros natos - Governo da República, Governos das Regiões Autónomas, Deputados – promoviam simplesmente a audição dos eleitos. Face a face, em diálogo, ficavam os detentores do poder público e os eleitos da sociedade civil, delegados das associações e “observadores” da Comunicação Social (aceites como iguais, na sua veste representativa e consultiva). Mais difícil de definir, antes de tudo por ser menos óbvia numa leitura literal do diploma, era a função dos “membros nomeados” - representantes dos sindicatos e do patronato e especialistas convidados pelo governo. A chamada das centrais sindicais e associações patronais tanto podia significar a aposta numa instância tripartida de concertação, porventura inspirada na CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego, criada no ano anterior) caso em que seriam um segundo patamar de auscultação, somando-se à vertente principal (a da Emigração e Diáspora), ou, como veio a acontecer, remeter-se a uma função coadjuvante no debate (de suporte técnico e jurídico à formulação de recomendações e pareceres). Os “delegados” dos parceiros sociais (que o eram, na realidade, apesar de o despacho de nomeação caber ao MNE) fizeramse ouvir mais a esse nível, nos bastidores e nos “media” que lhes eram afetos – sobretudo a CGTP/Intersindical, perante a mais discreta atuação da UGT e a invisibilidade quase total dos representantes das associações patronais. “Conselheiros” eram, pois, os dirigentes associativos que integravam as “Comissões de País” e os “Observadores” da Comunicação Social. A presença dos “membros natos”, não só nas sessões solenes de abertura e de encerramento, como em muitas das reuniões de trabalho, foi garantia de acessibilidade a parceiros de diálogo. E, por isso, paradoxalmente, o primeiro Conselho seria, mais do que o segundo (1996/2021), um espaço de interlocução direta O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 21 entre os Conselheiros e os responsáveis políticos. E quer o CCP “associativo”, quer o CCP refundado em 1996, se ergueram sobre uma legitimidade democrática – no primeiro alicerçada no voto de um colégio eleitoral, formado por representantes do movimento associativo; no segundo em processo de sufrágio direto, secreto e universal dos portugueses pertencentes a um determinado universo cuja dimensão foi variando - de princípio, coincidia com os cadernos de inscrição consular (mais de dois milhões de cidadãos nacionais), depois, viu-se circunscrito aos cadernos eleitorais dos círculos de emigração, então com pouco mais de 170.000 recenseados e, em data mais recente, cresceu de novo enormemente pela via do recenseamento automático dos expatriados detentores do cartão de cidadão (cerca de 1.500.000 eleitores). 6 - Do ponto de vista de funcionamento do Conselho, comparando os dois modelos que se sucederam - o que constituía um fórum presidido pelo Ministro dos Negócios e o que atualmente forma um coletivo com presidência eletiva - constatamos que nas sessões em que o Governo está presente continua a assumir protocolarmente a sua direção. A diferença reside no facto de essa presença quase se limitar às solenidades de abertura e encerramento dos trabalhos. De facto, a presença do Governo no 1º CCP responsabilizava-o na dação de respostas e justificações, enquanto no Conselho atual se converteu em ritual de boasvindas e de despedida, libertando os governantes da pressão exercida numa relação direta. E, como temos visto, em alguns casos, até da necessidade de abordar a problemática contida nas Recomendações caídas em semiesquecimento. Para isso também terá contribuído, no seu início, uma menor mediatização, face àquela de que gozou o Conselho associativo. Nos meios de comunicação social, eram menos as notícias sobre as reuniões, as propostas, a vida do CCP. Todavia, gradualmente, o Conselho tem vindo a afirmar-se, também, neste campo e com uma imagem pública muito mais positiva. Ainda aquém Maria Manuela Aguiar | pag. 22 do desejável, dirão alguns. Em qualquer caso, os progressos são inegáveis. Certo é que o CCP há muito deixou de ser um cenário privilegiado de confrontação, imagem de marca dos seus primeiros anos e causa mais provável do seu eclipse em 1990 (eclipse quase total, visto que, na sua segunda vida, que se prolongou até 1996, o “Conselho” modificado pela Lei nº 101/90 funcionou, essencialmente, a nível local). Em 1996, o Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Lello, relançou o Conselho, dando continuidade ao que tinham sido as suas formas de cooperação tradicionais. Embora eleito por sufrágio direto e universal, o atual CCP acolhe uma plêiade de dirigentes associativos – e estranho seria que assim não fosse, pois é, em regra, através da atividade cívica e do voluntariado no interior das comunidades que os cidadãos ganham prestígio e notoriedade entre os seus pares. Esse é um dos fatores que lhe tem permitido manter o seu perfil e espírito original. 7 - No balanço de 40 anos de vida desta instituição, tão sólida na vontade coletiva de existir e nas solidariedades que dela emergiram, avulta, no lado mais negativo, uma certa desvalorização do seu trabalho pela falta de resposta, assaz frequente, das Recomendações, assim como omissões, também frequentes, de consulta do Órgão em matérias de relevo para os cidadãos emigrados e para o futuro da Diáspora. Matérias que transcendem largamente o âmbito de uma Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, hoje desprovida dos meios de que dispunha até à década de noventa do século passado, o Instituto de Apoio à Emigração e às Comunidades Portuguesas (organismo dotado de autonomia administrativa e financeira, e o seu escol de técnicos, especialistas e dirigentes) e a Comissão Interministerial para a Emigração, à qual eram levadas as Recomendações dirigidas pelo Conselho a cada um dos departamentos da Administração Pública. O Conselho das Comunidades Portuguesas | pag. 23 Que futuro para o CCP? Autonomia face ao Executivo e ligação preferencial ao Parlamento? Consagração constitucional? O poder discricionário do Governo no relacionamento com a instituição dele dependente marcou várias fases do seu percurso, chegando praticamente a neutralizá-lo entre 1988 e 1996. Quase dez anos decorreram entre a última reunião do “Conselho associativo”, em fins de 1987, e a primeira reunião do Conselho renascido em 1997. Este longo hiato de invisibilidade, a nível global, não correspondeu, é certo, à inexistência jurídica da instituição, mas ao incumprimento da legislação em vigor (caso da não convocação das reuniões anuais, entre 1988 e 1991) ou uma nova estrutura, que se revelou, em larga medida, inexequível, devido à fragmentação dos colégios eleitorais, consagrada na Lei nº 101/90 e à irregularidade de funcionamento dos Conselhos de País. No 40º ano da acidentada vida do Conselho das Comunidades Portuguesas, é hora de repensar as condições jurídicas e fáticas para o pleno aproveitamento do seu imenso potencial e de o reconhecer como a instituição que levou a democracia, ressurgida em 1974, às comunidades portuguesas no estrangeiro. Nesta coletânea de alguns escritos sobre esta temática, quer sobre a origem e a história dos mecanismos de representação de emigrantes em espaços transnacionais, quer sobre o CCP, dou conta de ocorrências e de reflexões pessoais, ancoradas no acompanhamento da sua vivência. Uma visão subjetiva (como Presidente do Conselho, na primeira fase, entre 1980 e 1987, e como Deputada da Emigração, de 1997 a 2005) à qual subjaz a crença nas suas virtualidades, a par de algum ceticismo, que o passado justifica, quanto à capacidade de as projetar inteiramente no atual quadro da dependência governamental. Foi esse moderado ceticismo que me levou a dar, na Assembleia da República, em 2004, um último contributo para a valorização do CCP, através da organização de um colóquio promovido pela Maria Manuela Aguiar | pag. 24 Subcomissão das Comunidades Portuguesas, a que presidia, sobre possíveis modelos alternativos ao Conselho atual. Nessa audição foi aventada, por alguns dos mais prestigiados juristas portugueses, a consagração constitucional do CCP, a fim de garantir a sua autonomia, com ou sem uma eventual transição para a órbita da Assembleia da República. Um passo em frente no seu trajeto, para cumprir a vocação originária de ser uma assembleia verdadeiramente representativa e influente, o grande fórum da Diáspora e da emigração portuguesas. Espinho, 6 de abril de 2021 Maria Manuela Aguiar

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

REVIVER MARIA ARCHER - Olga Archer Moreira

Reviver Maria Archer Senhora Dra. Manuela Aguiar, Senhora Professora Doutora Isabel Henriques de Jesus, Senhoras e Senhores, Apresento os meus agradecimentos ao Círculo Maria Archer na pessoa da Sra. Dra. Manuela Aguiar, pela organização do ciclo de colóquios “Maria Archer Eu e Elas- Mulheres que irromperam no mundo dos homens”. Ao imaginar como vos deveria apresentar Maria Archer recordei-me de um Inquérito às Mulheres Portuguesas que o semanário O Diabo, dirigido por Ferreira de Castro, corria o ano de 1935, lançou. Penso que nada será mais autêntico do que reencontrarmo-nos com Maria Archer através das suas próprias palavras. Permitam-me, então, que vos recorde alguns dos considerandos de Maria Archer sobre questões, ainda e sempre, tão actuais como “A mulher, o feminismo–O trabalho feminino – A época em que a mulher foi mais feliz”. “Fala a escritora Maria Archer Maria Archer, escritora e jornalista, respondendo ao nosso inquérito, começa por nos manifestar as suas impressões sobre a dificuldade de se dar uma resposta concisa e genérica a determinadas perguntas que é costume fazer-se em relação à vida espiritual das mulheres. E diz: MA -As aspirações da Mulher são muitas: a maior parte delas, porém, não se confessa. Acima de tudo a Mulher deseja o reconhecimento da sua categoria de criatura socialmente humana. É que, presentemente a mulher é ainda um animal doméstico. O Diabo - Quanto ao feminismo… qual a sua maior preocupação? MA - A de conseguir para a mulher a independência em todos os seus aspectos. O Diabo - Que impressões possui sobre o trabalho feminino? MA - O trabalho é sempre um meio de subsistência. Para a mulher, entretanto, não chega a ser isso. No futuro, o trabalho será aquilo que havemos de ver quando o futuro fôr presente. O Diabo – Houve alguma época da existência da humanidade em que a mulher tivesse sido feliz? MA – Uma: a do matriarcado. O Diabo – Efeitos do desenvolvimento intelectual da mulher? MA – De princípio, um mal, porque a mulher, por seu intermédio, perde a faculdade de admirar os homens. Em relação ao lar, esses efeitos são mínimos: o lar é um campo mais próprio para manifestações afectivas do que manifestações intelectuais. Perante os filhos a intelectualidade da mãe deve forçosamente manifestar-se benéfica. Na vida social, depende do carácter dela.” E como afirmou Maria Teresa Horta, no prefácio à reedição do livro Ela é apenas Mulher: “Tudo o que Maria Archer dizia, era proibido.” Assim vos apresentei Maria Archer, a irreverente, de seu nome Maria Emília Archer Eyrolles Baltasar Moreira. Nasceu em 4 de janeiro de 1899, em Lisboa. Foi a mais velha de uma prole de seis. Um rapaz e 5 raparigas. A sua vida juvenil passou-a quase toda em África. No longínquo ano de 1910 aportou em Moçambique. Maravilhou-se com a paisagem que diariamente lhe inundava o imaginário e apelidou-a de “ilha de coral branco” (Archer, 1940). Aí “fascinada com o encanto da sua alma oriental” (Archer, 1940) publicou o seu primeiro artigo no jornal O Ocidental em 1913. Em 1916 rumou até à Guiné, “a verdadeira África maravilhosa” (Archer,1940). Aqui viveu durante dois anos. Em 1990, Leopoldo Amado na comunicação A Literatura Colonial Guineense afirmou que «as condições nas duas primeiras décadas do século XX não eram propícias ao florescimento literário, pelo que se exceptuarmos a actividade jornalística que esporadicamente publicava alguns poemas saudosista-coloniais, que saibamos, não foi publicada outra obra literária-colonial que não a de Maria Archer e Fernanda de Castro. Maria Archer apresenta-se-nos como a primeira literata-colonial e é reconhecida como a “poeta do exotismo”». Em agosto de 1921, e já em Faro, casou com Alberto Teixeira Passos, que tinha conhecido anos antes na ilha de Moçambique. Os primeiros cinco anos de vida do jovem casal e do filho de Alberto foram vividos em Ibo, Moçambique. O seu matrimónio resistiu 10 anos. Após a separação Maria Archer terá feito uma Carta Precatória para Depósito de Mulher Casada, informando que estava a viver em casa de família em Lisboa (Botelho,1994) e em 1931 encontrava-se já, oficialmente, separada do marido. Nesse ano navegou até Angola para viver com os pais e aí permaneceu até 1935. O seu primeiro livro foi editado em Angola, em 1935. Um livro de novelas e de contos intitulado, Três Mulheres, em parceria com Pinto Quartim. Aqui colaborou no Última Hora, no Pátria, no Comércio de Angola e no Angola Desportiva. Após o regresso a Portugal, e ainda no curso do ano de 1935, publicou o romance África Selvagem – a sua estreia na literatura colonial portuguesa. Sobre o romance África Selvagem escreveu Augusto Pinto no Diário de Notícias: “Há muito que não líamos em língua portuguesa livro que tanto nos agradasse” salientando, entre outros predicados da obra, a «linguagem rica, de uma perfeita plasticidade e de um colorido brilhante como só grandes escritores sabem utilizar» (Quartim, 1936). O Diário de Lisboa considerou Maria Archer “a revelação da literatura portuguesa de 1935” (Quartim, 1936). E Pinto Quartim assim enalteceu Maria Archer “Não foi preciso uma convivência demorada para me certificar de que estava em frente de mais um brilhantíssimo desmentido, não só a suposição idiota de que a Mulher é um ser sem cérebro, para quem só há duas condições: dona de casa ou cortezã, como também a essa baboseira tão repetida de que a Mulher inteligente e culta perde todo o seu modo de ser feminino….E reparei, ao mesmo tempo, que a essa mulher, intelectual e artista, não faltava nem a graça feminil, nem a garridice ou coquetterie própria do seu sexo…E relembrando o seu vivificante convívio intelectual, mais em mim se fortifica a convicção de que não há superioridade de um sexo sobre outro, mas apenas a superioridade de algumas individualidades sobre a massa.” (Quartim, 1936). Após o regresso de Angola participou em múltiplas conferências promovidas pela Sociedade de Geografia de Lisboa subordinada ao tema “Bárbaros no século XX”, no Ateneu Comercial de Lisboa, no Clube dos Fenianos no Porto, na Voz do Operário sobre o tema “Negros de Angola”, além das 20 conferências sobre Angola aos microfones da Emissora Nacional. Também nos Liceus Maria Archer marcou presença em palestras dirigidas aos alunos. Em Lisboa viveu, empenhada e militantemente, do seu trabalho de escrita para jornais e revistas e dos direitos de autor dos livros que publicou e que, amiúde, tanta polémica provocaram pela incomodidade causada ao pensamento dominante. O teatro esteve, também, presente na vida de Archer. Escreveu algumas peças, aventurou-se numa carreira teatral segundo nos confidenciou num artigo publicado no Suplemento Cultural do jornal O Estado de São Paulo de 16 de março de 1956, intitulado “Em prol do teatro brasileiro no Brasil”. Elucidou-nos, quase dez anos passados, que se afastou após contactos com grupos do meio artístico português por os considerar demasiado artificiais, o que não a satisfazia.” Mulher de ação pela palavra, pela escrita, sempre atenta ao que a envolvia, quer fora como dentro do próprio país, com uma compreensão rara das pessoas, dos ambientes e dos meios sociais, traduziu a experiência vivida em inúmeros escritos de grande interesse etnológico, sociológico e político. Escreveu sobre os seus ideais, sobre África, sobre a luta pela dignificação da mulher. Ainda hoje muitas lutas femininas se continuam a fazer para alcançar direitos iguais de participação política e cidadania, de acesso a educação e a profissões reservadas ou dominadas por homens. Ondina Braga, no artigo Maria Archer: o espírito lutando com as sombras, refere que João Gaspar Simões lhe teceu os maiores elogios: “Prosadora vigorosa, as suas histórias moldadas à maneira de Maupassant, num estilo mais másculo que feminino abordam problemas ousados nas relações da mulher com o homem e nas da situação daquela numa sociedade pouco afeita ainda a reconhecer direitos iguais aos dois sexos.”(as cited in Grande Dicionário da Literatura Portuguesa) e afirmou também “A escrita foi para Archer uma arma de combate político que Artur Portela refere como: "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante"(Diário de Lisboa, 5 de março 1953). Para João Gaspar Simões, citado por Ondina Braga no artigo Maria Archer: o espírito lutando com as sombras, “Maria Archer é um exemplo. Escreve, escreve sem desfalecimentos nem transigências, compreendida umas vezes incompreendida outras, mal compreendida quase sempre.” (João Gaspar Simões, 1951) Os seus livros sobre África são pontes para a meditação mágica, para a beleza. A densidade da escrita enleia-nos tal floresta tropical. A sua escrita é a conjugação da água e do fogo, a simbiose da terra e do mar. Foi a única mulher a escrever seis dos setenta títulos que integram a coleção Cadernos Coloniais, publicados entre 1935 e 1941. Maria posicionou-se no mundo dos homens. Em 1945 Maria Archer aderiu ao Movimento da Unidade Democrática (MUD). Em 1949 Archer apoiou a campanha do General Norton de Matos, nomeadamente através do artigo publicado no jornal Sol de 8 de janeiro com o título “O General Norton de Matos visto por Maria Archer”. Viveu a revolta de ver alguns dos seus livros apreendidos. No ano passado o jornal Público publicou alguns dos livros censurados, cerca de 21, e escolheu entre muitos, os dois livros de Maria Archer, Casa Sem Pão e Ida e Volta de uma Caixa de Cigarros. Viveu tempos onde sombra e luz dançaram ferozmente numa orquestra sensível… onde o compasso errado, podia impossibilitar o milagre da vida E, inconformada e perseguida, com dificuldade em subsistir pelo seu trabalho, obteve um visto temporário, o qual não lhe permitia trabalhar no Brasil, no Consulado Geral do Brasil em Lisboa com validade de 90 dias. E os 90 dias multiplicaram-se e foram 24 anos de vida de Maria Archer no Brasil. Partiu de Portugal em 5 de julho de 1955 viajando até ao Brasil onde no dia 15 de julho desembarcou no Porto de Santos. Na hora de embarcar dois amigos a acompanharam, Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro. Não nos olvidemos que Maria saiu de Portugal sozinha. E sozinha, sem família, trilhou o seu caminho no Brasil. À época as mulheres, de um modo geral, quando saiam do seu país era para acompanharem a família. Em 19 julho de 1957, segundo o Diário Oficial de São Paulo n.º 159, o deputado Cid Franco do Partido Socialista Brasileiro, defendera Maria Archer e dera-lhe voz, afirmando que Maria Archer não era comunista, mas sim uma grande escritora e deu a conhecer excertos da carta que Archer lhe escrevera onde reitera que “não possui nem possuiu a qualidade de ser filiada no Partido Comunista embora confesse o mais profundo respeito pelas heróicas pessoas que professam essa perseguida ideologia política”. Archer antecipou o futuro quando publicou no Brasil, em 1959, Os Últimos Dias do Fascismo Português, livro que relata o julgamento do capitão Henrique Galvão, deu ainda à estampa Terras onde se fala Português (1957), África sem Luz (1962) e Brasil, Fronteira da África (1963) e colaborou nos Jornais O Estado de S. Paulo, Semana Portuguesa e Portugal Democrático. A equipa que fundou o Portugal Democrático era marcada pela sua pluralidade política. O núcleo do Comité era formado pelos jornalistas Miguel Urbano Rodrigues, Carlos Maria de Araújo, Paulo de Castro, João Alves das Neves, João Santana Mota e Vitor da Cunha Rego, e tinha como presenças permanentes Adolfo Casais Monteiro, Fernando Lemos, Francisco Lopes, João Alves das Neves, Pedroso de Lima, João Santana Mota, João dos Santos Baleizão, João Sarmento Pimentel, Maria Archer, Miguel Urbano Rodrigues, Vítor da Cunha Rego e, do Recife, os matemáticos Alfredo Pereira Gomes e Manuel Zaluar Nunes. Maria Archer participou em diversas tarefas do jornal durante todo o seu período, até ao 25 de abril, e ao longo de anos organizou atividades de apoio a presos e exilados políticos e pelo fim da censura, em nome da União das Mulheres Portuguesas. A sua contribuição, através de escritos, foi mais efetiva entre 1956 e 1962. Maria Archer irrompeu, mais uma vez, no mundo dos homens. Já em Portugal o mesmo acontecera. Em 27 de maio de 1962, no Cine-Teatro Paramount, teve lugar o Ato público de solidariedade aos trabalhadores e aos povos de Espanha e Portugal. Nos ficheiros do Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) encontra-se a referência a este evento com as seguintes informações: “Levamos ao conhecimento dessa Chefia que, segundo nossos observadores, realizou-se na manhã de ontem dia 27, das 9:10 às 12:50 horas no Cine Teatro Paramount, à Av. Brigadeiro Luiz Antônio, o anunciado ato público de solidariedade aos trabalhadores e aos povos de Espanha e Portugal. Os trabalhos, que contaram com a presença de cerca de 900 pessoas (lotando a platéia e os camarotes), foram presididos pelo deputado Cid Franco, tendo ainda tomado à mesa, os seguintes elementos: dep. José da Rocha Mendes Filho; dep. Germinal Feijó; dep. Paulo de Tarso; dep. Jethero de Faria Cardoso, João Louzada, Gen. Humberto Delgado, Luiz Carlos Prestes, dr. Walter Dias, (advogado da Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Jales); e entre outros esteve presente Maria Archer (da União Brasileira de Escritores - UBE),….”. Uma vez mais Maria Archer invadiu o mundo dos homens. Maria Archer foi ainda assessora do deputado federal Ulysses Guimarães. Miguel Urbano Tavares num artigo publicado em 21 de abril de 2000 no Jornal de Notícias, com o título “Portugueses hostilizados numa terra fraterna” refere: “(…) Mas foi a partir do final dos anos 50 que a corrente dos exilados políticos adquiriu um volume torrencial. Ao Brasil chegaram em diferentes anos e na sequência de acontecimentos e perseguições políticas de natureza também diferente, muitos portugueses que, em permanências de longa ou breve duração, marcaram com a sua presença a vida brasileira (…). Outros nomes a lembrar são os escritores Adolfo casais Monteiro, Carlos Maria Araújo, Sidónio Muralha, Jorge de Sena, Castro Soromenho, Maria Archer, Mário Henrique Leiria (…).” De novo surge a menção a Maria Archer entre os homens exilados políticos. Em 1965 foi publicado, em Portugal, o livro Sarça Erótica de António Nobre e outros. São 13 os escritores presentes (António Nobre, Teixeira Gomes, Raúl Brandão, Justino de Montalvão, Henrique de Vasconcelos, António Patrício, Manuel Laranjeira, Leonardo Coimbra, Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, José Migueis, Maria Archer.) deles um apenas é mulher, chama-se Maria Archer e apresenta-nos a sua novela Eros e Psiché. No prefácio da obra Petrus diz-nos “ Fechar este ciclo de novelas, que é de certo modo um roteiro das várias tendências e possibilidades que neste campo, se tem revelado a partir do simbolismo, com uma história de feminina lavra é, por isso, um acto de justiça que reveste especial significado por reacender a gratidão de que é digna uma grande escritora expatriada, que com invulgar coragem e fina percepção dos profundos instintos humanos, enriqueceu a novelística nacional, com algumas obras primas, como essa extraordinária novela que se chama Uma Mulher como Outras, interditada inexplicavelmente pela nossa anacrónica Mesa Censória. Maria Archer não carece deste preito para ser uma grande escritora, mas é fora de dúvida que nela se encontra admiravelmente personificada e actual capacidade artística e psicológica da Mulher Portuguesa.” (Petrus,1965) Ao relembrarmos os seus livros que abordaram temas tão delicados e incómodos como a condição da mulher ou a ausência de liberdade no país da altura recordemos que, também os laços de sangue falaram pela pena de Maria Archer e essa união afetiva foi retratada no conto Eu vi o pelicano abrir o peito, de 1944, no livro Eu e Elas – Apontamentos de uma romancista (Archer, 1944) em que Maria Archer, através da sua pena, suplica justiça para um jovem que quer crescer e não tem meios. Aos 17 anos, o sobrinho prodígio vê vedada a possibilidade de frequentar a sonhada universidade. A mãe, em desespero, apela à irmã que, com a forte arma da palavra, comova “aqueles que poder têm para ajudar o sobrinho”. Hoje, aqui, no Porto, viemos ao encontro de Maria Archer escritora, jornalista, conferencista, tradutora, quarenta anos após a sua morte. E será que se mantem atual a obra de Maria Archer? Escutemos o que Guilherme Bordeira nos confidenciou sobre o livro Ela é Apenas Mulher: ” Perante um fresco tão significativo não só de personagens com histórias cruzadas, mas também revelador de um quotidiano do Portugal dos anos 40, apraz-nos pensar que bela série de época para televisão daria este livro.” (Bordeira, 2014). Curiosa esta confidência. Corriam os anos 80 do século XX quando uma revista portuguesa noticiava: “Telenovela Portuguesa em Preparação – Realizada por Ferrão Katzenstein, a primeira novela “made in Portugal” vai chamar-se Os Aristocratas e é uma adaptação da obra de Maria Archer. Trinta e seis episódios a cores com quarenta minutos cada, a iniciar no próximo ano, tal é o projecto que neste momento toma forma na RTP.” Mas foi Vila Faia, em 1982, a primeira telenovela “made in Portugal”. Recentemente, em 15 de março de 2021 foi publicado pelo Cinema Sétima Arte o seguinte artigo: Ukbar Filmes e RTP produzem 10 telefilmes realizados por mulheres. “Contado por Mulheres” é a nova aposta audiovisual da produtora Ukbar Filmes e da RTP1, em coprodução com a Krakow Film Klaster (Polónia), que pretende dar voz a dez realizadoras para criarem dez histórias baseadas em obras literárias de autores portugueses. Rodados entre abril e agosto deste ano (2021) em diversos locais da região Centro, com o apoio das respetivas Câmaras Municipais e candidato ao Fundo do Turismo e do Cinema. “10 livros, 10 realizadoras, 10 telefilmes, 10 espaços. Um mesmo universo.” é o mote do projeto que pretende ir aos calabouços da censura do Estado Novo e devolver ao grande público a força de Soeiro Pereira Gomes, Maria Archer, Bernardo Santareno, Carlos Oliveira até aos desafios dos nossos dias com Maria Judite de Carvalho, Teolinda Gersão, Ondjaki, Mário Zambujal e Mário de Carvalho. Contado por Mulheres é uma aposta em boas histórias, dos melhores autores portugueses procurando fazer chorar, rir, sentir dramas de épocas ou ir até aos sensíveis desafios morais da atualidade. Mas acima de tudo entreter com personagens inspiradoras.” Das dez mulheres convidadas para realizar os dez telefilmes: Anabela Moreira realizará Há-de Haver uma Lei, inspirado na obra de Maria Archer e adaptado por Manuel do Ó Pereira. As gravações do Há-de Haver uma Lei decorreram em Tomar, em julho de 2021. Os dez telefilmes estavam previstos estrear em horário nobre da RTP1 no último trimestre do ano de 2021.” Não foi o livro Aristocratas, não foi o livro Ela é Apenas Mulher, mas sim o Há-de Haver uma lei que sofreu uma adaptação para um telefilme. Ainda não o vimos. Maria estaria, certamente, orgulhosa. Em outubro de 1949 sobre o livro Há-de Haver uma Lei Maria Archer foi assim elogiada por João Gaspar Simões: “Disse que Maria Archer não era uma escritora – mas um verdadeiro escritor. (…) é perante um grande escritor português que nos encontramos, um dos maiores contistas que a nossa literatura tem conhecido (…) Em qualquer país civilizado a autora de Há-de Haver uma Lei… teria, pelo menos, meia dúzia de editores, e dos principais da nação, a disputá-la como seu best-seller. Entre nós, que vemos? Maria Archer … inscreve na capa do seu livro, ali onde costuma figurar a firma do editor, esta legenda que é um labéu para a nossa corporação de livreiros: «Edição da Autora – Lisboa, 1949»! Esperem o juízo do tempo, e verão! Quando em 2049 se celebrar o centenário do aparecimento de Há-de Haver uma lei… todos os editores portugueses dignos desse nome baixarão os olhos, envergonhados, ao ouvir esta tremenda efeméride: em 1949 Maria Archer, autora de duas dezenas de volumes, teve de publicar a expensas suas o seu livro de contos Há-de Haver uma lei… pois não havia então em Portugal um único editor capaz de perceber que este livro era uma colecção de obras-primas do conto português” (Simões, 1949). Fruto da força das suas convicções e ideais em que se empenhou de alma e coração várias foram as travessias dos oceanos que empreendeu. Destaquemos dois momentos. Um, em que, perseguindo o sonho da liberdade de pensamento e de escrita, navegou até ao Brasil onde viveu 24 anos; outro, quando cruzando, de novo, o oceano regressa ao País que a viu nascer e que nunca esqueceu, em 26 de abril de 1979, concretizando o seu desejo de morrer em Portugal, conforme artigo publicado no jornal A Luta de abril de 1977 com o título “Maria Archer quer morrer em Portugal” tendo por base uma carta do capitão Sarmento Pimentel publicada no Primeiro de Janeiro. Regressou doente, seis anos após ter obtido a anelada permissão do Professor Marcelo Caetano: “… Sra. D Maria Archer pode vir para Portugal quando quiser. Não será incomodada.” com um novo regime político. No regresso, vinte e quatro anos volvidos desde o dia em que deixou Portugal, dificilmente reconheceu as irmãs e os sobrinhos. No entanto, esta mulher de horizontes, viajada e ousada, admirada por muitos e silenciada por alguns, manteve, até ao fim, inalterada, apesar das agruras da vida, uma das suas características: a vaidade feminina. Foi no interregno dos seus silêncios que conheci Maria Archer. Tinha 80 anos. Vivia num mundo só seu, com as lágrimas da alma, vogando na brisa de abril. Partiu em 23 de janeiro de 1982 para a sua última viagem. Raul Rego (1982), no artigo “Maria Archer”, escrito dias após sua morte, sublinhou: “Ela era uma mulher livre, escritora de garra, senhora de si e impondo-se pelo talento”, o que na altura, não agradava a muitos, a ponto da sua obra Ida e volta de uma caixa de cigarros (1938) ser apreendida. A mulher que não se escondeu atrás de pseudónimos e que contraventos e marés perseverou em sonhar e lutar por um mundo melhor, por um mundo de e com liberdade, por um mundo onde homem e mulher são iguais, permanece viva na memória de Almada, Almodôvar, Amadora, Cascais, Faro, Ferreira do Alentejo, Oeiras e Seixal. Estas edilidades homenagearam-na, discretamente, num quase anonimato, entre 1975 e 2010, marcando, de forma perene, as ruas dos seus concelhos. Também esta iniciativa marcou e relembrou Maria Archer a mulher de mil rostos, a mulher que se metamorfoseou em testemunha rara, em memória crítica de um tempo português, espinhoso e cinzento, regulado por preconceitos e discriminações, por regras de jogo algo viciadas, que desmascarou, sem temor e cujo exemplo de inconformismo apela à militância cidadã. Ao Circulo Maria Archer que segundo Manuela Aguiar (2019) pretende, afinal, sobretudo, assegurar uma segunda vida a Maria Archer, projeto perfeitamente possível, porque, como dizia Pascoaes, existir não é pensar, é ser lembrado", muito obrigada. Olga Archer Moreira Aguiar, Manuela – A Modernidade de Maria Archer, Porto, 11 de outubro de 2019 Amado, Leopoldo (1990). A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP, 20-21, pp. 160-178 Archer, Maria (1940) Roteiro do Mundo Português, Edições Cosmos Archer, Maria (1945) Eu e Elas Apontamentos de Romancista, Editorial Aviz Archer, Maria O Estado de São Paulo de 16 de março de 1956 – p.10 Arquivo do Estado (seção Deops), São Paulo/SP, Arquivo DEOPS 41-E-5-14 Bordeira, Guilherme. (2014). Acerca de Maria Archer, p.52 Botelho, Dina – Ela é apenas Mulher – Universidade Nove de Lisboa – Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo Portugueses – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Lisboa – 1994 p.34 Diário Oficial Estado de São Paulo, Ano LXVII – n.º 159 – Sexta-Feira, 19 de julho de 1957 Horta, Maria Teresa (2001), prefácio ao Livro Ela é Apenas Mulher de Maria Archer, p. X O Diabo, Lisboa, 03/11/1935, Ano II, n. º71 O Estado de São Paulo, 16 de março de 1956, p.10 Quartim, Pinto (1936, janeiro). Maria Archer A revelação da literatura portuguesa de 1935. Ilustração de Angola Rego, R. (1982, fevereiro, 2) Maria Archer. Diário Popular, p.3 Sarça Erótica. Arte e Cultura, Porto. Edição da Petrus, 1965, p.16 Simões, João Gaspar (1949, outubro 30). Átomo, pp.15-16 Tavares, Miguel Urbano (2000, abril, 21). Jornal de Notícias https://www.cinema7arte.com/ukbar-filmes-e-rtp-produzem-10-telefilmes-realizados-por-mulheres/ (acedido em 20 de março de 2021) Palavras-Chave: Maria Archer Escritora, Exílio Feminismo Direitos das Mulheres Revelação

5 GOVERNOS

Maria Manuela Aguiar quarta, 5/10/2016, 23:46 para mim I - O GOVERNO MOTA PINTO (1978-79) I - No início de uma participação política em órgãos de soberania, que haveria de se prolongar por mais de vinte e cinco ano, esteve um convite do Prof. Mota Pinto para o seu governo (1978/79), o primeiro a que pertenci. Tinha a particularidade de ser formado por independentes - um dos chamados "governos de iniciativa presidencial", não menos constitucional do que os outros, já que o seu programa passara (sem ir a votos)na Assembleia da República. O anterior, chefiado por Nobre da Costa, objeto de uma moção de rejeição caiu, ao ver o seu programa rejeitado. Com eleições obrigatórias em Outubro de 1979, era, de qualquer modo, um executivo destinado a durar cerca de um ano e foi ainda mais breve, porque os partidos o derrubaram com a ameaça de uma moção de rejeição, perante a qual, Mota Pinto não esperou para apresentar um pedido de demissão, simplificando o processo. E não se manteve em gestão, porque o Presidente Eanes optou pela constituição de um terceiro governo, o último desta série, com uma duração estimada em três meses (embora tenha durado bastante mais), cujo fim era meramente organizar eleições. A maior surpresa foi ter escolhido uma mulher: Maria de Lurdes Pintasilgo. Curiosamente, depois dela, desde que todo o poder foi retomado pelos partidos, não houve mais nenhuma mulher. É obviamente mais difícil a ascensão feminina no puro quadro das maiorias parlamentares, pois os partidos são coutada de homens - eram, então, e continuam a ser, ao menos os tradicionais. Já lá vão 37 anos, quando Thatcher e Pintasilgo faziam história na Europa e não se vê, em Portugal, nenhuma Theresa May no horizonte. Lideranças masculinas nos grandes partidos, dão primeiros- ministros, no masculino, numa perfeita relação de causa e efeito - Quando me perguntam ( perguntam frequentemente....) a razão porque escolhi a política, respondo que não escolhi, de todo, fui convidada pela circunstância de não pertencer a qualquer partido. Para ser uma presença feminina num governo quase 100% masculino... Entrei na aventura,( que à partida seria breve e, como disse, o foi mais do que o previsto ), por me ser difícil dizer "não" ao Primeiro Ministro, que era um amigo de Coimbra e ao parceiro de equipa no Ministério do Trabalho, o João Padrão, um colega de curso (brilhantíssimo!), que se ocupava do Emprego. Hesitei, mas fui bastante pressionada, sobretudo pelo João. Ofereci-me como voluntária para a assessoria no seu gabinete, mas não consegui ser aceite nessa mais modesta, mas mais experimentada posição (desde os governos provisórios prestei serviço nessa qualidade). Tinha as minhas razões...Não queria ser chefe de ninguém, falta-me a paciência para esperar que outros façam as coisas, quando não fazem logo, logo. Não era essa a minha opção de vida - dar aulas na Faculdade ou pareceres num centro de estudos, na Provedoria de Justiça, fazia o meu sonho do presente e do futuro. Aí, melhor usaria o que a Universidade de Coimbra me ensinara, com tempo para o cinema, (quase todos os dias, pelas 18.00), o desporto nos fins de semana, o convívio com a família, as tertúlias de café, em Espinho. Para le e ouvir música (os meus velhos discos de vinil). Não me parecia que na vida política houvesse lugar para tudo isso. Pior ainda, era a convicção de que o mundo do trabalho perderia uma executante suficientemente competente e o mundo da política não ganharia nada com a troca. À mistura com o receio de falhar havia, porém, uma boa dose de curiosidade de conhecer o "outro lado", o lado do "poder" - neste caso, muito relativo e garantidamente efémero. Não sabendo como dizer "não", acabei Secretária de Estado do Trabalho. Fui para um Ministério que conhecia bem: ali mesmo, no arranha-céus da Praça de Londres, no início de 1967. tomara posse como assistente do Centro de Estudos, cerca de um ano depois de ter terminado o curso de Direito (com a média de curso exigida aos assistentes da faculdade ou daquele "centro de estudos - não bastava, como em Passárgada, ser amigo do rei...). Um lugar de boas memórias, onde tudo me era familiar, os assuntos, os problemas e até algumas das caras que via nos corredores. Apesar da mudança de regime, o que havia de bom no velho Ministério mantinha-se, antes de mais, a qualidade dos funcionários e dos serviços, com directores- gerais de carreira (à inglesa), que se distinguiam pela competência, bem mais do que por quaisquer tendências ideológicas. (por sinal, coube-me acolhe-los de volta à atividade, a eles e a muitos dezenas de dirigentes que tinham sido saneados, em 1974, e, depois, reintegrados por insuspeita decisão do Conselho da Revolução - foram todos colocados em funções técnicas, para sua tranquilidade´, já que a nossa era imperturbável). Quatro anos apenas depois da revolução, os gabinetes dos membros do governo eram pequenos, como mandava a lei - um chefe de gabinete, dois adjuntos, dois secretários, dois motoristas. E assim foi enquanto estive nos Executivos, até 1987. Depois, parece que as coisas foram mudando, através de expedientes para recrutar "boys" e "girls", com vencimentos "à la carte", sem limitações. Procurei, pois, compensar a minha falta de experiência com uma seleção, norteada pelo princípio da máxima competência possível, Desde já antecipo que resultou, pelo que recomendo a solução. Escolhi os dois adjuntos dentro da "casa" (uma mulher e um homem), trouxe para chefe de gabinete o Manuel Marcelino, colega do Serviço do Provedor de Justiça, uma sumidade na área do Direito Administrativo. As duas secretárias, formadas no ISLA, tinham longo curriculum de gabinetes. Ajudaram-me, de uma forma decisiva, a atravessar o tempo iniciático - uma equipa unida nos bons e maus momentos. E destes, houve alguns. Não tanto pelos conflitos sociais, negociações, greves... verdadeiros "braços de ferro", uma requisição civil, etc, etc. Com o "adversário exterior" lidávamos nós bem. Com o interno, nem sempre... Não foi sempre pacífico o relacionamento com o Ministro e o seu "staff". Vinham do sector privado, convencidos da sua superior eficácia (o ministro até era eficaz, muito melhor do que a "entourage", ao contrário do que se podia dizer da minha, que, por sinal, era 100% "funcionalismo público". A qualidade dos quadros do Ministério acabou por convencer o Dr Eusébio Marques de Carvalho, que fez lentamente a "estrada de Damasco" na Praça de Londres... Mais difícil de converter era o seu chefe de gabinete. Julgava-se o "chefe" dos chefes de gabinete dos Secretários de Estado. Ora não há vínculo hierárquico entre os gabinetes, embora haja entre o Ministro e cada um dos Secretários de Estado. Como explicar-lhe esta evidência? Foi impossível... Ingerência nos assuntos da "minha" gente eu não estava disposta a admitir - e não admiti. Invetivei-o muitas vezes, com palavras duras, que ele ouvia com resignação. Contudo, na primeira oportunidade, recomeçava a dar as suas ordens ao Manel Marcelino. O João Padrão foi o maior obreiro da paz, naquele 16º andar da Praça de Londres! Um homem encantador, com uns vivíssimos olhos azuis, um apurado sentido de humor e da relatividade das coisas. Muito inteligente, um diplomata e um grande amigo. Sempre que eu irrompia no seu gabinete, contíguo ao meu, a relatar um novo caso e a ameaçar demitir-me, oferecia-me um café, desdramatizava, entre sorrisos e amena conversa, e, assim, reduzia a dimensão do incidente... A esta distância, vejo que se tratava de uma falta de "savoir faire" do reincidente, que, aliás, era um homem de boas maneiras e agradável à vista. Não sei se no setor privado esse comportamento é aceitável, porque fui sempre funcionária pública e muito bem tratada! Os meus "chefes" foram, todos, verdadeiros "gentlemen". Ali, na Praça de Londres, o Dr Cortez Pinto, cerimonioso, educadíssimo, e o Doutor António Silva Leal, um sábio, um génio, exuberantemente cordial, descontraído, que se sentava nas escadas do corredor a apertar os atilhos dos sapatos - "para que não tenham a tentação de me fazer ministro", explicava, entre duas sonoras gargalhadas, Depois da Revolução, na Universidade de Coimbra (onde tomei posse a 24 de abril), o Doutor Boaventura Sousa Santos, o Doutor Rui de Alarcão, o Doutor Mota Pinto. Em Lisboa, no Governo, o Doutor Rui Machete, na Provedoria de Justiça, o Coronel Costa Bráz, em meados de 1976, e, poucos meses depois, tendo ido o Coronel para o Governo, organizar eleições livres, o incomparável Dr José Magalhães Godinho - que foi, para mim, o mais próximo e o mais querido de todos. Tinha uma memória fenomenal e muita graça a contar as histórias da História. Era generoso, solidário, carismático e acessível. O mesmo não se diria de Eusébio Marques de Carvalho, com o seu feitio impulsivo e impaciente, e, tal como eu, "estreante" em lides governativas. Acabou por me influenciar mais do que todos os antigos e tão estimados "superiores", tornou-se. em verdadeiro "role model"... Por um espontâneo mimetismo, dei por mim a tomar decisões rápidas e a exigir execução pronta. Com o que, sem que fosse esse o meu objectivo, se construiu a imagem que dei para o exterior "dama de ferro", na esteira daquele "homem de ferro". Imagem mais ou menos positiva, segundo a perspectiva do observador... Mas a essa imagem devo, com certeza, o convite seguinte, para a pasta da Emigração. O tempo era de guerra, de afrontamento e contraditório, na aprendizagem da democracia, a começar no MNE, em guerra aberta com a Presidência. Numa das primeiras conversas com o Doutor Freitas do Amaral, no Palácio das Necessidades, disse-lhe que já se murmurava pelos corredores que eu iria mudar tudo, que não deixaria "pedra sobre pedra". Ao que ele me respondeu que não me preocupasse, porque era um tipo de fama não prejudicava a acção concreta. Talvez fosse "mais a fama do que o proveito", mas é verdade que parti para a inovação possível, mantendo tudo o que encontrei bem, nas práticas ou nas pessoas. Trabalhara os anos suficientes na função pública, ou com a função pública, para acreditar, até prova em contrário, que as pessoas estão nos seus postos para cumprirem tarefas e não para fazerem espionagem ou conta-corrente, a mando de um partido. Suportei, logo na primeira experiência governativa, a pressão para despedir uma secretária, a Ana, que tinha transitado do gabinete do meu antecessor, supostamente comunista. A Ana era, aliás, oriunda do quadro da Presidência do Conselho de Ministros e tinha-me sido recomendada pelo Secretário de Estado, Doutor Xavier de Basto, como muito competente. "Durante duas semanas fez de chefe de gabinete e de secretária, foi formidável, mas agora chegaram as pessoas que eu já tinha convidado e não tenho vaga para ela", dizia-me ele. (ali no alto da presidência, também tinha de respeitar os limites quadro legal...). "Ela conhece bem esse ministério, secretariou o seu antecessor". "Isso é que é pior" - respondi - "o Ministro não quer, por perto, ninguém que tenha vindo dos anteriores gabinetes". O sigilo e a confidencialidade eram importantes, ali, onde se esperava conflitualidade, que veio a verificar-se. Contudo, como o meu amigo e professor de Coimbra, um homem particularmente perspicaz, a recomendava, contratei-a, de imediato. Mas, pouco depois, alguém a denunciou e foi-me sugerido o seu imediato despedimento. Recusei a sugestão, apesar do Ministro me prevenir, muito irritado: "No meu gabinete e no do Secretário de Estado do Emprego toda a gente é de absoluta confiança. Se houver uma fuga de informação é do seu gabinete. "Com certeza! Não vai haver problema!", tranquilizei-o. Isto é, não devo ter tranquilizado, mas, provou-se que tinha razão. Fuga de informação foi coisa que não houve. Nem Ministro nem mais ninguém jamais suspeitou que a Ana também tinha sido secretária e tradutora do Vasco Gonçalves! Imagino a reação, se descobrissem esse passado, aliás, nada secreto... Ela era simplesmente oriunda dos quadros da Presidência, estava a leste de todas as contendas políticas. Foi convidada por uma boa razão, a sua competência. A par do "segredo" estava apenas a outra secretária, a Maria de Lurdes. O que nós nos ríamos, a traçar cenários de pânico se o facto viesse a ser detetado...