segunda-feira, 12 de abril de 2021

Entrevista As A entre as L - na íntegra

Este ano o Encontro da AEMM tem como tema geral "Expressões femininas da cidadania". Que aspectos esperam abordar a partir desse "mote"
As muitas faces femininas da cidadania!
Os direitos e a prática da cidadania, no caso particular das mulheres da Diáspora, têm estado no centro das iniciativas da AEMM, desde o seu início, há 20 anos. Cidadania no sentido mais amplo do conceito. E são as suas formas várias de exercício que consideraremos, ao longo do Encontro, passando da política e do associativismo, para a iniciativa empresarial, ou para a afirmação do “feminino” no espaço da cultura" – onde, aliás, o feminismo nasceu, em Portugal, com o envolvimento de notáveis escritoras e jornalistas. Não as esqueceremos, sobretudo as que foram emigrantes. As primeiras palavras serão  para Maria Lamas, que viveu a dolorosa experiência do exílio, em Paris. Uma cidadã exemplar, que faria neste mês de Outubro, 120 anos.
Sabemos que a emigração feminina, ainda hoje, é muitas vezes tratada num capítulo aparte, como que num pequeno compartimento isolado de uma casa grande. Neste congresso, pelo contrário, queremos olhar a evolução do fenómeno migratório actual a partir da história ou das histórias de vida das mulheres, da sua capacidade de afirmação e de influência nos destinos que partilham com os homens, nas comunidades portuguesas do estrangeiro.
E queremos não só traçar as grandes linhas do movimento, da marcha colectiva para o futuro, mas também revelar os rostos da mudança, as individualidades que se destacam em diferentes domínios. O que poderemos designar por "mulher excepção", com o fenómeno migratório como pano de fundo. Para combater estereótipos ultrapassados ou que é preciso ultrapassar.
Ouviremos, sem dúvida, muitas narrativas de vida mobilizadoras para outras mulheres, para as mais jovens... Mas é importante não tomar a parte pelo todo, a excepção pela regra. Isto é, não esquecer as discriminações que permanecem. para uma maioria..
Provavelmente, em muitos casos se aventará um "e se não fossem emigrantes?". As respostas serão, necessariamente subjectivas, mas nem por isso menos significantes de uma visão do país e da diáspora, num confronto dinâmico... A terra pequena que se deixou pelo espaço largo onde se fez caminho e êxito..."A terra do chiculate" - para citar o título de um livro de Isabel Mateus, que virá de Londres para o Encontro…
  O primeiro tema do debate será "Mulheres Migrantes na política -um princípio de paridade". Há paridade nesta área, ou procuram aqui denunciar a falta dela?
 Paridade não há em Portugal, e poucos são os países onde existe. Digamos que vai havendo, em alguns domínios. O mundo é ainda feito de repúblicas dos homens - veja-se o retrato de uma cimeira europeia ou mundial de governantes, ou a relação dos prémios Nobel, ou a lista dos mais ricos do planeta...
 A paridade é uma utopia …mas temos de acreditar que, um dia, deixará de o ser, usando os meios possíveis para alcançar a igualdade, acompanhando o processo no seu curso, denunciando discriminações, oferecendo paradigmas de direito comparado, aperfeiçoando e fazendo cumprir regras jurídicas… Cuidando das boas práticas
 A emigração tem sido, contra o previsto e o previsível, um factor de mais igualdade entre géneros, pelo menos no caso português. Mas, sem dúvida, mais no campo da cultura do que no da política, ou em qualquer outro – um firme sinal de esperança para mutações profundas da sociedade, que só podem começar neste domínio.
O enfoque na questão cultural não esteve nunca ausente das nossas preocupações, mas tornou-se cada vez mais central, como veio evidenciar o Encontro Mundial da Maia, em 2011. Quando aí ouvi o deputado Paulo Pisco afirmar que nas nossas comunidades a mulher já igualou o homem nesta área, não só concordei, como antevi que nas reuniões seguintes essa “primeira igualdade” seria muito referenciada, como alavanca das demais…
A Lei da Paridade foi uma medida positva para ajudar à igualdade entre os sexos?
A Lei procura cumprir o princípio da Paridade, de uma forma modesta e gradual – garantindo, para já, apenas um mínimo de 1/3de cada um dos sexos nas listas eleitorais.
Num país onde os partidos, são estruturas herméticas – tradicionalmente inacessíveis às mulheres – foram os partidos mais fechados os que mais se opuseram às novas regras… Ninguém ousará desafiar o princípio em abstracto, mas são muitos, no campo conservador, os que contestam os meios de o impor em concreto, por força da lei
O veto do PR à força vinculativa da ordenação “paritária” das listas - foi um primeiro sinal de desconforto...E a relutância dos partidos mais conservadores em a respeitar inteiramente e, mais ainda, em ir além dos mínimos assegurados, é um entrave a uma autêntica paridade. Mas, mesmo assim, a lei tem mostrado eficácia, assegurando uma maior participação das mulheres. É imprescindível que se mantenha.
Alguns criticam-na por "fabricar" artificialmente a igualdade. Eu julgo que os partidos políticos, a começar pelas  organizações da juventude. pelas chamadas "jotas" , é que, de uma forma artificial, sem olhar a  capacidade de trabalho, em regra, promovem os amigos e marginalizam as mulheres...  Por isso, "quotas" não põem em causa o mérito,  antes abrem portas a quem se presume ter méritos iguais aos privilegiados do interior das fortalezas partidárias. As quotas são, assim, uma fenda na muralha... 
 Neste painel do Encontro, os obectivos principais serão os de confrontar experiências de outros países e de conhecer o brilhante trajecto das primeiras portuguesas que fazem carreira política nos países de destino.
 Quem são hoje as mulheres da diáspora?
 Agora, como no passado, mulheres de coragem, e de trabalho, também. O seu papel e a seu relevo no quadro global das migrações não será muito diferente, hoje, do que era na segunda metade do século XX - a percepção que deles se foi ganhando é que é mais ajustada às realidades. Primeiramente, devido a investigação científica, a estudos pioneiros, como, por exemplo, os de Engrácia Leandro, em Paris, na década de 90, depois, também, graças a uma maior atenção por parte dos “media”, dos políticos, das próprias organizações das comunidades - tradicionalmente um espaço de direcção exclusiva de homens.
A emigração revelou-se uma via inesperada de emancipação para um sem número de mulheres portuguesas, no seu trânsito de uma sociedade rural para meios urbanos, onde aproveitam a influência de novos paradigmas de relacionamento familiar e, sobretudo, da autonomia pessoal que lhes dá o acesso a trabalho remunerado ( às vezes mais ou melhor do que o do marido)...
Actualmente dá-se muita visibilidade a um novo perfil de mulheres emigrantes, mais qualificadas e independentes -  as que partem por sua conta e risco e que estão conhecendo o sucesso profissional noutros patamares.
 De todas, das primeiras gerações, aparentemente mais conformistas, e das jovens, em regra, mais audazes e conscientes da sua competência profissional, se faz o mundo da emigração feminina, cada vez mais complexo e heterogéneo.
 Todavia, apesar de progressos que se registam, a esfera da emigração feminina permanece ainda relativamente opaca ou periférica. Daí a preocupação da AEMM de chamar a estas Encontros de âmbito internacional, tanto investigadores universitários, como emigrantes que, elas próprias, pelo seu percurso de vida, combatem os tradicionais estereótipos do “segundo sexo”.
  
Os  problemas da mulheres migrantes são muito diferentes hoje?
No passado, as mulheres saiam para reunificação familiar, agora não necessariamnte. Não em muitos casos .
Mas a história que está a acontecer só vai ser feita dentro de largos anos... Temos, é certo, a lição de experiências concretas, de ciclos sucessivos de grandes êxodos, e podemos, até certo ponto, extrapolar, avançar hipóteses -  mas certezas não há. Até o facto de a emigração, tanto feminina como masculina, ser, em média, mais qualificada, pode degenerar em sentimentos de frustração, se não forem devidamente aproveitadas as capacidades de cada um – ou da cada uma. E esse é um risco a ter em linha de conta para um número significativo de novos emigrantes, ao menos numa primeira fase. Conhecemos muitos casos concretos, embora com a esperança de que consigam fazer valer os seus títulos académicos, ou o seu estatuto profissional, no médio e longo prazo.
Estamos, pois, colocados perante um crescendo avassalador de um fenómeno a que nos habituámos, ao logo de séculos. Mas não nesta dimensão! E não em democracia... Muitos políticos tinham já profetizado o fim dos tempos da nossa  emigração. Enganaram-se...
Este êxodo é  um tremendo  indicativo de descrença no futuro do País, é uma  fuga colectiva ao descalabro em que nos sentimos mergulhados... Vão todos, os mais e os menos qualificados,  tradicionais e  novos perfis da emigração portuguesa, mulheres e homens… Jovens, muitos jovens, que talvez não voltem nunca…Só não se vão ainda mais,  porque não podem, travados por crises alheias - porque a Europa não vive um "boom" económico, como acontecia em sessenta, no tempo do "salto"...
Esperemos que à nova emigração corresponda um novo associativismo, ou uma renovação do antigo. Sem  essas estruturas organizacionais, os emigrantes  dispersar-se-ão e poderemos perde-los para o todo nacional... São problemas, interrogações que tentaremos colocar em agenda, sem conhecer antecipadamente respostas, com o propósito de  saber mais e de ajudar na procura de soluções.

Componente cultural continua a ser uma aposta destes Encontros, especialmente nas Artes plásticas Encontram nesta área em concreto mais necessidade de intervenção?
As iniciativas que a AEMM desenvolve, num ano de comemorações (que é sempre, sobretudo, um ano de especial reflexão, retrospectivamente e prospectivamente) vão continuar a ter um enfoque especial nesta componente – que não sendo a única, é, porventura, a mais marcante – por várias razões, que levaria tempo a enumerar exaustivamente. Refiro apenas algumas: em primeiro lugar, o facto da ligação das comunidades a Portugal se originar e se fortalecer  no seu âmbito, com o ensino da língua e o culto das tradições, das artes, da música, do teatro, da dança, no quadro de um associativismo omnipresente. Depois, a evidencia de que as mulheres estão, quase sempre, à frente dos projectos e acções, neste domínio, directa ou informalmente. E a certeza da importância estratégica do chamar a atenção para esta realidade, reconhecendo o seu mérito e incentivando a sua plena afirmação, aos olhos da comunidade e do País. O que significa não só valorizar o trabalho feito pelas pioneiras, como também abrir portas a outras mulheres, nomeadamente à frente das organizações das comunidades. Fala-se muito em crise no dirigismo associativo e as mulheres podem ser a melhor resposta à falta de voluntários…De preferência, em paridade, que é um apelo à colaboração e ao diálogo de género e de geração -  logo, uma virtude.
Preocupações de sempre....
Já, pelo contrário, o acento nas Artes Plásticas é coisa mais recente, e, faço questão de o salientar, muito fica a dever-se à Drª Nassalete Miranda, que foi a impulsionadora e a comissária da 1ª exposição colectiva de Mulheres, realizada em 2011, durante o Encontro Mundial na Maia.
O lugar cimeiro das artes na nossa Diáspora pertence a grandes nomes femininos – Vieira da Silva, Isabel Meyrelles, Paula Rego… Há que partir à descoberta de mais talentos, de mais Artistas.
Uma nova colectiva será inaugurada durante o Encontro de Lisboa, reunindo pintoras da Diáspora e outras cujas obras têm corrido o mundo.
São iniciadas no EncontroMundial as comemorações dos 20 anos da AEMM. Há outras acções previstas?
Este Encontro de Outubro dá continuidade a um primeiro Colóquio, que teve lugar em fins de Maio, em Espinho, no contexto da II Bienal Internacional “Mulheres d’Artes, com a participação do SECP  Dr. José Cesário. O tema foi “Migrações e artes no feminino” . Nas belíssimas galerias do museu de Espinho, mais de 200 convidados. Para um olhar sobre inter influências culturais, sobre a especificidade (ou não) do feminino na arte, e, também, sobre percursos de vida muito concretos… com inesquecíveis introduções das Professoras Ana Gabriela Macedo, da Universidade do Minho e Isabel Ponce de Leão, da Universidade Fernando Pessoa
Esse colóquio foi seguido, em Agosto, de um Encontro, na mesma Bienal e na mesma linha de análise e diálogo, com estudantes dos cursos de língua portuguesa da Professora Deolinda Adão, nas Universidades de Berkeley e S. José (Califórnia) e de alunos finalistas das Escolas Secundárias de Espinho.  Muito vivo, muito participado!
Ainda este ano esperamos organizar um terceiro Colóquio sobre “As Mulheres na Carreira Diplomática” . No Brasil, abrirá uma nova Delegação da AEMM, por iniciativa da Dr.ª Berta Guedes, que foi candidata à Prefeitura dessa cidade, nas últimas eleições. E, finalmente, em Dezembro, esperamos lançar a publicação das actas do Encontro Mundial.
O que pode adiantar sobre as ASAS, Universidades Seniores?
A criação de Universidades Seniores nas comunidades foi um desafio que a Doutora Graça Guedes lançou em Joanesburgo, em 2008, durante os “Encontros para a Cidadania”, apresentando o exemplo da US de Espinho. Hoje, na África do Sul, por iniciativa da “Liga da Mulher Portuguesa”, as US são uma realidade nas principais comunidades portuguesas do país!
Em 2012, levámos a vários colóquios, na Europa e nas Américas, o projecto de um modelo menos ambicioso, mais próximo da “tertúlia – animação cultural” : as “ASAS” – Academias Seniores de Artes e Saberes.
 Para já, estão em funcionamento, as ASAS em Villa Elisa, (junto a Buenos Aires), com direcção de Violante Martins, fundadora da Mulher Migrante Portuguesa da Argentina, e no Canadá, com a orientação da Profª Manuela Marujo, da Universidade de Toronto, e, ao que me disseram há pouco, também em Wiesbaden, na Alemanha, São processos que levam o seu tempo, dependem de dinâmicas locais...
Mas a ideia que preside às Universidades Seniores, embora com outras designações, tem  inspirado diversas iniciativas muito válidas, destinadas  aos mais velhos em associações e paróquias das comunidades. Por exemplo, no Canadá,  é o caso do "First" de Toronto ou, em Montreal, da Igreja de Santa Cruz, esta com mais de 500 participantes.  Acho que teremos boas outras surpresas, se fizermos um levantamento  geral, e isso ajudará, pela força do exemplo, do "ver para crer", à criação de novas ASAS …Mais importante do que “quem faz o quê” , é que as coisas aconteçam para servir as pessoas, para as tornar mais felizes e mais activas e intervenientes, em todas as idades. Ainda e sempre, uma questão de cidadania

Círculo Maria Archer


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Maria Manuela Aguiar mariamanuelaaguiar@gmail.com

sexta, 1/02, 02:17
para olga
Cara Amiga

Em conjunto com vários amigos, estou a pensar organizar um fórum de debates, informal, sem estatutos, sem burocracias, e sem chefes. Uma tertúlia de amigos, para refletir sobre igualdade, questões de género, lusofonia...  Pensei dar-lhe a designação de "Círculo Maria Archer", lembrando-me do "Círculo Eça de Queiroz", que é, evidentemente, coisa bem diferente . Ou de uma antiga associação que fundei nos anos 90, Associação Ana de Castro Osório. Admiro imenso AC Osório, mas  Maria Archer é muito mais atual, mais  moderna ...  
O que acha? Seria bom, ou não, para a relembrar? 
Se não considerar boa ideia, não o farei. Continuaremos a recordá-la em colóquios, e congressos, 

As minhas cordiais saudações

Olga Archer Moreira vale.olga@gmail.com

segunda, 4/02, 18:45
para eu
Sra. Dra. Manuela Aguiar,
Que agradável surpresa.
Como tem passado?
A sua ideia é excelente e é claro que concordo. 

Um abraço

Olga Archer Moreira

AMM MARIA ARCHER

quarta, 3/07, 16:48 (há 8 horas)
para eu
Para uma associação de estudos sobre as mulheres no universo da emigração, como é a nossa, Maria Archer é certamente uma personalidade inspiradora, que convida à pesquisa, à reflexão e ao diálogo. Esta não é, devo dizer, a primeira das iniciativas em que ela ocupa um lugar central. Começamos por evocar Maria Archer no Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas da Diáspora, em Novembro de 2011, justamente porque nesse congresso pretendemos partir da história da emigração no feminino, traçando, por um lado, as linhas de evolução de mais de um século de migrações portuguesas, com participação crescentes de mulheres, e, por outro, dando-lhes visibilidade, não só mas também, numa área em que podemos considerar que têm estado, pelo menos,  tão presentes como os homens: o domínio da Cultura, do ensino da Língua, das Letras e das Artes. 
Por ambos os caminhos, os da História e os da Cultura, encontramos Maria Archer.
Seguidamente,  voltou a ser figura de cartaz na comemoração do Dia Internacional da Mulher.  Uma "entrevista imaginária" com a grande escritora, protagonizada  por jovens das Escolas de Espinho, deu a esse evento  simples e didáctico um toque singular e comovente... 
 E agora, aqui, em Lisboa, nesta sessão que nos reúne no Teatro Nacional da Trindade, contámos de novo, com a força do seu pensamento e ideais, na evocação tão bem  conseguida em sucessivas intervenções sobre a sua  vida e obra  - e  num  espaço esplêndido, no salão onde ela própria esteve muitas vezes, com muitas pessoas do seu círculo íntimo de família e de convívio, e com a presença e a palavra, tão honrosas para nós e tão prestigiantes para a sua memória, da Drª Maria Barroso e do  Presidente Mário Soares, símbolos da luta vitoriosa pelo Portugal que ela sonhou, em liberdade, em democracia! 
Mais um reencontro com Maria Archer... 
Razões não nos faltam para  justificar o empenhamento cívico com que a fazemos, assim, companheira de jornadas sobre as temáticas de género, no contexto das migrações.  Ela foi, de facto, uma grande Portuguesa da Diáspora. Sê-lo-ia, em qualquer caso, como intelectual, jornalista, romancista, mas foi - o, igualmente, como verdadeira precursora na  pesquisa e divulgação de usos e costumes dos povos com os quais se viu em contacto.  
Primeiro em África, muito jovem, a acompanhar os Pais por terras do "Ultramar", depois, já sexagenária, no exílio brasileiro,  passou largos anos em cinco países da lusofonia, dispersos em  3 continentes,  sempre atenta ao que acontecia em seu redor, com uma inteira compreensão das pessoas, dos ambientes, dos meios sociais, que  soube traduzir em dezenas de escritos de incomensurável valor literário e de enorme interesse etnológico, sociológico e político.... Seria motivo bastante para nos lançarmos na aventura de partir à descoberta desse legado multifacetado e vasto, que, num estado de quase hibernação, guarda  experiências e segredos de tantas gentes, vivências, situações...
  Mas há mais... 
Maria Archer é uma daquelas figuras do passado, que é intemporal, por saber captar as constantes da natureza humana.  Mas é também testemunha, memória crítica de um tempo português, opressivo e cinzento, pautado por estreitos conceitos e por regras de jogo social e político, que inteligentemente desvenda e põe em causa, sem contemplações. 
Ninguém como ela retrata o quotidiano desse Portugal estagnado e anacrónico, avesso a qualquer forma de progresso e de modernidade,  em que os mais fracos, os mais pobres não têm um horizonte de esperança, e as mulheres, em particular, são  dominadas pela força das leis, pelo cerco das mentalidades, pela censura dos costumes, depois de terem sido deformadas pela educação - tendo por pano de fundo as regras impostas para o relacionamento de sexos, a entronização rígida dos papéis de género dentro da famílias e as consequentes desigualdades, distâncias e preconceitos sociais, o doloroso e longo impasse de uma sociedade fechada ao curso da História, que acontecia na Europa e por esse mundo fora. 
Maria Archer vai dar vida às portuguesas suas contemporâneas, revelando-as tal como elas são, com um realismo, que é, sem dúvida (e quer ser) uma busca e uma evidência da verdade - doa a quem doer e  para que se saiba... Então e no futuro.  Nos seus "apontamentos de romancista", ( em "Eu e elas", em que se nos revela ela própria,  com um fino sentido de humor e toda a "joie de vivre" )) confidencia-nos : "O meu trabalho neste livro foi quase o de um artista plástico. Moldei a obra sobre o modelo vivo". Fica-nos a impressão de que não foi, para ela, experiência única - bem pelo contrário... E até que ponto  se projecta, por simpatia ou por contraste, nas figuras de mulheres que cria ou recria?
A mais feminista das escritoras portuguesas, é, seguramente, no que podemos considerar a melhor "tradição nacional", uma "feminista muito feminina", que ousou ser um ícone de beleza, ter uma carreira no jornalismo e  nas Letras, fazendo, em simultâneo, combate pela dignidade  e pela  afirmação das capacidades intelectuais e profissionais negadas à mulher comum..
 Ousou fazer um nome no mundo fundamentalmente masculino da cultura portuguesa. 
 Ousou ser Maria Archer, sem pseudónimos...
Na verdade, por tudo isto, julgo que podemos dizer que ela é mais do nosso tempo do que do seu tempo - aliás, uma afirmação que se deve generalizar às mais notáveis feministas do princípio do século XX, que dão rosto à exposição da Câmara Municipal de Espinho, há pouco, inaugurada aqui, nas salas e corredores do Teatro da Trindade.
Maria era, então, demasiado jovem para poder participar nos movimentos revolucionários, em que estiveram envolvidas a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, mas iria ser uma das poucas  que, no período de declínio desses movimentos e de desaparecimento de uma geração incomparável, continuou, a seu jeito, solitariamente, uma luta incessante contra o obscurantismo, que condenava a metade feminina de Portugal à subserviência, à incultura, ao enclausuramento doméstico.
 Maria Archer foi uma inconformista, consciente das discriminações e das injustiças, em geral, e, em particular das  que condicionavam o sexo feminino, numa sociedade  retrógrada e fundamentalista, como se diria em linguagem actual. A regressão às doutrinas e práticas de um patriarcalismo ancestral é imposta pelo próprio regime, contra o qual se revolta, naturalmente...
A escrita, servida pelos dons de inteligência, de observação e de expressividade.  foi  para ela uma arma de combate  político. Como dizia Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante". 
É um combate em que a sua vida e a sua arte  se fundem - norteadas por um ostensivo  propósito de valorização dos valores femininos, de libertação da mulher e, com ela, da sociedade como um todo.
É já uma Mulher livre num país ainda sem liberdade - coragem que lhe custou o preço de um  tão longo exílio ...
 Maria Archer é uma grande escritora (ou um grande escritor, como alguns preferem precisar, alargando o campo das comparações possíveis). E pode ser lida apenas como tal. Mas permite - nos também diversas outras leituras - para além da literária, a sociológica, a etnológica, a feminista...
 Ninguém. como ela , escrutinou e caracterizou o pequeno mundo da sociedade portuguesa da primeira metade do século XX, das famílias, pobres ou ricas, decadentes ou ascendentes, aristocráticas, burguesas, "povo" . Mulheres e homens,  todos  imersos na nebulosa de preconceitos de género e de classe, de vaidades, de ambições, de prepotências e temores...
"Aurea mediocritas", brandos costumes implacáveis... o mundo de contradições  de um Estado velho, que se chamava Estado Novo.
 Uma leitura feminista:  ninguém conseguiu, como ela, corroer essa imagem da "fada do lar", meticulosamente construída sobre as ideias falsas da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia corporativista do regime), da brandura de costumes, assente no autoritarismo e subjugação  ao "pater familias" no círculo pequeno do lar, ou ao ditador paternalista no do País inteiro. 
Maria Archer é uma retratista magistral da mulher e da sua circunstância... O rigor da narrativa, a densidade das personagens, a qualidade literária, só podiam agravar, aos olhos do regime, a força subversiva da  denúncia.  
Os poderes constituídos não gostaram desses retratos de época, como não gostavam da Autora. Primeiro, tentou desqualificá-la, desvalorizando-a. Sintomática a opinião de um homem do regime, Franco Nogueira, que em contra-corrente, num texto com laivos misóginos,  a apresenta como apenas uma mulher a falar de coisa ligeiras e desinteressantes (por tal entendendo a realidade do destino das mulheres, coisa para ele tão sem importância....). Sintomático também que a crítica seja divulgada pela própria editora da romancista. a par de tantas outras, todas de sentido oposto.
Não tendo conseguido os seus intentos, o Poder passou à acção: livros apreendidos, jornais onde trabalhava ameaçados de encerramento... Maria Archer viu-se forçada a partir para o Brasil - uma última aventura de expatriação, de onde só retornaria, doente e fragilizada, para morrer em Lisboa.
Porém, o desterro não seria pena bastante. Teresa Horta, no prefácio da reedição de "Ela era apenas mulher"
afirma que Maria Archer foi deliberadamente apagada da História. Ser emigrante é já factor de esquecimento, regra geral inevitável, na memória da Pátria. Mas o seu caso foi mais grave, deliberado, doloso. - embora, do nosso ponto de vista,  não definitivamente encerrado. É ainda bem possível combater esse acto persecutório, executado há décadas, restituindo à obra de Maria Archer o espaço que lhe é devido no mundo eterno da  cultura portuguesa...
Revisitar a Mulher de Letras, através dos seus escritos, tem, da nossa parte, este objectivo de desocultar o passado e lançar luz sobre a realidade insuficientemente analisada e realçada da sociedade portuguesa de 40 e 50.  E é também um momento mágico de deparar com Maria Archer, de percorrer com ela as páginas fulgurantes dos seus livros, artigos, crónicas. A elegância do seu estilo tempera o realismo, o "élan" dramático da narrativa e torna, afinal, sempre um prazer acompanhá -la nas incursões pelo universo bafiento e confinado em que se cruzaram e confrontaram as portuguesas e os portugueses durante meio século. Em que as personagens femininas raras vezes cumpriram as suas capacidades e os seus sonhos (mesmo que modestos). E em que os enredos quase nunca têm um final feliz  - ou justo...

Elegância é uma palavra que quadra com Maria Archer, que a caracteriza na maneira como pensou, como escreveu, como se vestiu e apresentou em sociedade, como atravessou uma rua de Lisboa ou de São Paulo, como atravessou uma vida inteira, até ao fim...
Fim não será a palavra mais apropriada...  Estamos aqui justamente unidos pelo projecto de lhe assegurar uma segunda vida, absolutamente ao nosso alcance, porque "existir não é pensar, é ser lembrado", como dizia Pascoaes.
Esta não é o primeira nem será a nossa última reunião sobre ela, o seu exílio, o seu retorno... Talvez a próxima aconteça em São Paulo... sobre o seu legado ou a sua pessoa  - qual deles o mais interessante?
A pessoa é certamente tão fascinante como a mensagem da escritora. E ainda mais desconhecida.
Mas só assim continuará por omissão nossa, porque ela está lá, eternamente jovem e vibrante, nas páginas que nos deixou escritas.
Dizia a Mariana desse romance paradigmático que é  o "Bato às portas da vida": "ando na saudade de mim, mesmo perdida no tempo"
E nós andamos na saudade de Maria Archer, perdida mas  reencontrada no nosso tempo, que esperamos seja o do  início do  correr interminável do seu tempo futuro..









A AVÓ MARIA
Maria da Conceição Barbosa Ramos Aguiar, a Avó Maria.
A 6 de Agosto de 2008, a Avó Maria faria 120 anos.
Vamos lembrá-la, em imagens.
A primeira é um retrato de família. A Avó é a mais nova, a menina do vestido de flores.
Nas duas seguintes, já terá 17 ou 18 anos. É a jovem de vestido branco, em dia de piquenique no Monte Crasto.