quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

AS NOSSAS LEIS E OS SEUS INTÉRPRETES 1 - As leis foram o meu ofício, mas há muito deixaram de ser, Formei-me em Direito na Universidade de Coimbra, no distante ano de 1965. A escolha do curso e da cidade foram, insólitamente, fruto de dois equívocos literários. Ou seja, da leitura de escritores que me fascinaram. O primeiro foi americano Erle Stanley Gardner, o criador de Perry Mason, advogado das causas impossíveis, que fazia justiça contra a (in)justiça do sistema, graças aos seus dotes de investigação criminal e ao poder da sua argumentação na sala do tribunal. O segundo foi o português Trindade Coelho, com a sua obra (autobiográfica) "In illo tempore", o livro de relatos das mais divertidas aventuras e desventuras de uma brilhante e turbulenta geração de estudantes coimbrãos. Eu temia que aquela Coimbra mítica já não existisse, tal qual fora, mas tinha esperança de ainda encontrar, da sua lúdica glória, alguns vestígios. E, de algum modo, encontrei, entre bons e maus, por mais entendendo os excessos da "praxe", em todo o caso muito menos brutais do que hoje vemos em universidades de fresca data, sem genuínas tradições. O que jamais encontrei foram oportunidades de emular Perry Mason, pois os crimes, que preencheram o meu estágio e os primeiros anos de advocacia, no Palácio de São João Novo, não passaram da defesa de pequenos larápios, desavenças de vizinhos ou acidentes de trânsito. Dois dois citados "equívocos literários" nasceu, afortunadamente, a escolha certa, e eu "adorei" (como no meu tempo de juventude se usava dizer) o curso, sobretudo as cadeiras de Direito Civil, e a cidade, "a velha academia", que ainda cantava o fado, em serenatas pela noite fora. Uma das minhas matérias preferidas foi "Teoria Geral do Direito", onde aprendi as regras de interpretação das Leis, assim como a conviver com a eventual inevitabilidade de diferentes interpretações, todas baseadas em bem fundamentada argumentação... . No meu caso, em breve, abandonaria a advocacia de barra em favor de trabalho jurídico de gabinete (estudos, pareceres, legiferação...) e, mais tarde, do ensino universitário em Coimbra, na "minha" Faculdade, e Lisboa. E, por fim, embora a contragosto, me vi em cargos políticos, que aceitei como temporários e se tornaram definitivos, e onde, sempre me preocupei em respeitar Lei, tão bem interpretada e aplicada, quanto me era possível... 2 - Assim sendo, confesso, o meu espanto e incompreensão, pela forma como tantos ilustres juristas, nessa veste ou outra (a de políticos, (juristas e políticos com os quais não posso nem pretendo sequer comparar-me), tomam as leis em mãos e as viram para onde querem ou para onde lhes convém. Não haverá melhor exemplo disso do que o do constitucionalista e Presidente da República, que, logo no ato da posse a um Governo maioritário, informou o Primeiro Ministro que não permitiria a sua substituição no cargo, pois quem ganhara a eleição não fora o seu partido, mas ele individualmente. Ora o que, inequivocamente, dispõe a nossa lei é que quem ganha as eleições legislativas são os partidos. Na verdade, a esse nível nem há hipótese de formação de listas independentes - só permitidas a nível autárquico. Uma tal “personalização” de eleições nos líderes partidários, mesmo sabendo o seu peso real no contexto eleitoral, é completamente abusiva. Neste momento, está a custar ao país o preço de uma descabida convocação de novas eleições. Para que o prejuízo não seja maior, resta-nos esperar que. a 10 de março, os resultados tragam nova maioria (improvável) ou uma solução de respeito pelo vencedor das eleições, com a viabilização de um Governo minoritário, pela simples abstenção do opositor principal, como nos ensina a lição dos grandes políticos que marcaram décadas de uma democracia, a celebrar já o seu cinquentenário Mas há mais e ainda mais chocantes interpretações desviantes da lei, por parte de Tribunais (começando pelo próprio STJ!) e das magistraturas judiciais. Um caso recente chocou o país: a detenção por 21 dias dos três famosos arguidos da Madeira, o ex Presidente da Câmara do Funchal – “ex” porque, instaurado o processo, se demitiu de imediato - e dois empresários, à ordem de um juiz, que, aliás, 21 dias depois, lhes não aplicou qualquer medida de coação. Ora, o prazo que a lei dá ao juiz para tomar tal decisão é de dois dias, (isto é, quarenta e oito horas…. Em outros países com uma jurisprudência rigorosa dos mais altos tribunais, prazos semelhantes são rigorosamente cumpridos. Quem vê as séries muito realistas do Fox Crime, ou Star crime, sabe bem que o Ministério Público, na Grã-Bretanha, nos EUA, na França e, em qualquer outro “Estado de Direito” não pode levar os arguidos a um juiz, para recolher as provas depois. Aqui, por vezes, como na Madeira parece ter sucedido, em vez de apresentar provas dá-se “espetáculo de pesquiza” de dados ou indícios. A “operação Funchal”, com dois aviões militares, 200 ou 300 investigadores policiais e uns quantos magistrados (mais os jornalistas que chegam sempre primeiro, chamados sabe-se lá por quem…) foi puro espetáculo, dir-se-ia a saída de uma reportagem da guerra colonial, encomendada pelo regime. A “guerra” possível no império que resta (um “império dos pequenitos”, com as ilhas atlânticas e a zona marítima exclusiva, que não é pequena herança. O mar, muito à portuguesa, não se explora, é claro, e para as Ilhas manda-se um “Governador Geral”, que não se chama assim, e que não tendo sido eleito por ninguém, faz as vezes, como última sobrevivência colonial… 3 – De má interpretação e má aplicação das leis está a nossa República cheia! E as consequências do espetáculo midiático, centrado no mundo da política, está à vista de todos, como um rastilho de incêndio que, se continuado, ameaça tornar o sistema ingovernável. Ninguém escapa! De alto a baixo, estão todos sob suspeita… o Presidente, (num episódio luso-brasileiro rocambolesco, e sem pés para andar), o Primeiro-Ministro (ouvido numa suposta escuta, que pode ter sido só um engano no nome, pois Costas há vários?), um Presidente de Governos Regional, e uma infindável fileira de autarcas. Os processos podem até “morrer na praia” .... veja-se o recentíssimo desfecho do processo de Caminha, ou do supremamente aberrante processo de Matosinhos (em que foi posta em causa a prerrogativa da Presidente de Câmara escolher, livremente, o seu chefe de gabinete, como se esse cargo não fosse, por natureza, de confiança pessoal!). Pouco importa, o mal está feito, é irreversível. Para já, vimos mais alto magistrado da Nação ser enxovalhado, o Primeiro Ministro cair, e, com ele, o Governo e a Assembleia da República, o Presidente do Governo Regional da Madeira cair também), arrastando, ou não, o Governo e a Assembleia Regional, e os autarcas tombarem, um atrás de outro. E não tinha que ser assim!... Há que resistir à força intimidatória da suspeita que pode, a qualquer momento, recair sobre um cidadão exemplar, envolvido, ou não, na “res publica”. É absolutamente crucial que se dê o menor significado possível à figura de arguido, assim procurando restituir, na vida coletiva e na opinião pública, o pleno significado à velha e, pelo visto, desvalorizada “presunção de inocência”! Os titulares de cargos, estando de consciência tranquila, têm o dever de não se demitirem, neste novo contexto de ameaça à durabilidade de governos e assembleias, legitimados por maiorias. Sigam o exemplo de dois sucessivos presidentes da Câmara do Porto, Rui Moreira e Rui Rio (este arguido oito vezes, durante os seus mandatos autárquicos, manteve-se no posto até ao fim e saiu com o curriculum impecável) Esperemos que, também, o Senhor Presidente deixe de colaborar, ativamente, no abate de assembleias e governos, sustentados por maioria. Pode começar por poupar a Assembleia Regional da Madeira a eleições antecipadas, ao contrário do que fez no País. É uma forma de dizer “mea culpa”, em relação ao passado, e de diminuir, futuramente, os efeitos prematuros e precipitados da ação da Justiça sobre a Política, deixando ambas seguir, até à decisão final dos processos, um curso paralelo. Para a estabilidade do sistema, e tranquilidade do povo, muito contribuirá, assim, a sua própria não interferência política... Poupe-se e poupe-nos, Senhor Presidente!