domingo, 31 de outubro de 2021

AS REPÚBLICAS AUTÁRQUICAS DOS HOMENS 1 - Que título dar a um comentário sobre a questão de género nas eleições locais, onde o desequilíbrio é mais ostensivo e muito mais persistente do que no Governo e na Assembleia da República? Há tantas maneiras de dizer o mesmo...Poderia citar Célia Marques, que fala de "mundo masculino", ou Sandra Ribeiro (uma voz "oficial", presidente da "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género" (CCIG), a apontar o obstáculo de "meios masculinizados", ou Luís de Sousa (ICS da Universidade de Lisboa) na mesma linha de pensamento a responsabilizar a "envolvente masculina", ou António Barreto que chega à mesma conclusão , escrevendo sobre a "invisibilidade - feminina - no país das autarquias". Alguns exemplos, entre muitos, que guardei na memória. Finalmente, decidi "plagiar-me" a mim própria, lembrando um colóquio que, como vereadora, organizei em Espinho, em 2010, durante as comemorações do centenário 5 de outubro: "Mulheres na República dos Homens". A realidade, que os números e estatísticas revelam, é que as autarquias são, em Portugal, o último reduto do (quase) absoluto poder masculino. A lei da Paridade veio criar nos lugares secundários a ilusão de um crescente equilíbrio de género, mas deixou intocado o cargo onde reside todo o poder - a presidência das Câmaras, em sistema presidencialista. Os homens estão à frente de mais de 90% dos concelhos do continente e das Regiões Autónomas. A paridade que, na economia do diploma original, de 2006, era atingida com uns modestos 33% subiu, em reforma recente, para 40%. Subiram, com ela, as expetativas de um progresso que nos deixaria perto da barreira das quarenta presidências femininas. Desde 1985, vínhamos a registar um crescimento pequeno mas consistente. Na meia década de oitenta, contávamos apenas 4 mulheres presidentes, em 2017 já eram 32. Pouco ultrapassando os 10%, não se tratava de um resultado excelente, mas alimentava a convicção de uma caminhada irreversível. Por isso, 2021 foi verdadeiramente dececionante. Pela primeira vez, em décadas, esse número desceu (de 32 para 29), continuando a deixar de fora as principais cidades do País - Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, e por aí adiante... . 2 -Há em Portugal, a meu ver, uma crença excessiva nas virtualidades do Direito para resolver os problemas do nosso atraso social e económico, de desequilíbrios e assimetrias herdados do passado. No que, em especial, se refere à discriminações de género não penso diferentemente. Sou favorável à Lei da Paridade, considero que há muito deveríamos ter aperfeiçoado disposições a que falta caráter vinculativo, e enquanto Deputada, na Assembleia da República, sempre me manifestei nesse sentido, pela palavra e pelo voto, em oposição a teses então indiscutíveis do meu partido, o PSD (onde apenas Leonor Beleza e Marcelo Rebelo de Sousa, que não era deputado. estavam do meu lado da barreira). Tenho, todavia, a consciência de que é preciso lutar também com outras armas, para alcançar a igualdade efetiva. Há muito - logo após a Revolução de 1974, com a Constituição democrática de 1976 - está, em Portugal, consagrada a plena igualdade entre mulheres e homens. Nesse tempo histórico da meia década de setenta, terminou, assim, facilmente, pela pena do legislador, o longo e difícil combate das (e dos) sufragistas, que se centrava, e se ganhou, na esfera jurídica. Porém, removido o obstáculo que a própria Lei constituía, logo outros se levantaram nos domínios, em que a força vinculativa e sugestiva ou pedagógica do Direito tem as suas limitações. Podemos, é certo, ainda corrigir na legislação ordinária imperfeições ou desconformidades constitucionais, criar mecanismos de controle da aplicação dos comandos legais e da promoção de oportunidades iguais, do tipo da CITE (Comissão para a Igualdade do Trabalho e Emprego) , ou da CCIG. Contudo, o centro estratégico de uma mudança profunda de mentalidades e de práticas deslocou-se, definitivamente, do terreno da legiferação para o da vivência das leis. Não basta impor juridicamente a igualdade salarial, as mesmas oportunidades de progressão profissional ou de participação cívica e política para que elas aconteçam de facto. Não podemos ignorar os expedientes generalizadamente usados para manter o "status quo" - ou seja, 91% de homens presidentes de Câmara no todo nacional e uma percentagem superior, a rondar os 100%, nas capitais de distrito, nas mais importantes cidades. Se a questão fosse, sobretudo, de "mentalidade", de "aceitação social", de "socialização", como pretendem alguns doutos investigadores, caso de Luís de Sousa (Instituto de Estudos Sociais), ou de "tradições preconceituosas", como defende Sandra Ribeiro, a Presidente da CCIG, o fenómeno deveria sentir-se muito mais no mundo rural do que nas grandes urbes cosmopolitas! Aquelas condicionantes terão, sem dúvida, algum peso, mas verdadeiramente determinante é a organização partidária, o "baronato" instalado nas estruturas locais, que se defende "com unhas e dentes" da abertura desejada pelas cúpulas de Lisboa (e não em todos os quadrantes, como sabemos, mas, pelo menos, em alguns). Di-lo, claramente, um sociólogo, um académico com grande experiência de governo e parlamento, António Barreto: "o sistema político e social está organizado de forma a favorecer os homens. O menu de escolha, de oferta, está enviesado a favor dos homens. Mantém o predomínio masculino". A palavra chave é "menu de escolha". A nível nacional, para o Parlamento e para o Governo, têm poder decisivo nas escolhas os órgãos máximos dos partidos, o Secretário-Geral ou Presidente do Partido, as Comissões Políticas, o Primeiro Ministro, no seu Executivo e, por isso, a Lei da Paridade é, mais ou menos, respeitada, e o progresso tem sido constante. A nível local, não , pois no "menu de oferta" as mulheres estão (quase) sempre colocadas nas listas o mais abaixo que o "diktat" legal permite. E são cabeças de lista (quase) só em circunscrições onde esse partido não tem perspetivas de vencer... Nas últimas eleições, o PCP escolheu 80 mulheres cabeças de lista, o PS 44, o PSD 31, o Chega 30, o BE 27, o CDS 17, o PAN 13, a IL 6, o Livre 3. Contas finais elucidativas: mais de 250 candidatas à presidência da Câmara e apenas 29 eleitas... 3 - No Porto e arredores, como vamos, neste campo? Tal como em Lisboa, nunca no Porto se elegeu uma mulher para a presidência da Câmara, E, nas cidades vizinhas, a notável exceção é Matosinhos. Espinho constitui, também, caso raro, pois no seu historial já conta com uma antiga Presidente, Elsa Tavares, que a partir da Vice- presidência ascendeu ao cargo e, com um brilhante desempenho, abriu caminhos ainda não trilhados por nenhuma outra senhora. E, atualmente, apresenta um Executivo camarário que cumpre plenamente os ditames da Lei da Paridade, com 4 homens e 3 mulheres. Em termos da maioria socialista, é rigorosamente paritário - dois homens e duas mulheres. E, embora, na dimensão qualitativa, os homens ocupem os lugares cimeiros, as Vereadoras possuem currículo que permite esperar um desejável equilíbrio na obra a fazer pela terra. No "ranking" da Igualdade de género em Executivos camarários (num pequeno, mas significativo círculo de concelhos que considerei neste levantamento (para além de Porto e Espinho, Gaia, Gondomar, Matosinho e Maia),só Gondomar apresenta uma maioria de mulheres, 6 em 11. Segue-se Espinho, com 3 mulheres em 7. Os restantes ficam aquém de expetativas e regras, se não nas listas, nos resultados finais, que são os seguintes: Porto - 5 mulheres em 13; Matosinhos - 4 em 11; Gaia - 3 em 9: Maia - 3 em 11.` Uma referência é também devida ao contributo de cada partido no combate à desigualdade de género. O PS, que tem sido o grande paladino do sistema de quotas, levará alguma vantagem neste campo, mas diga-se, ao contrário do que se passa nas eleições nacionais, irregular e globalmente escassa. Neste quadro parcial, a ele se deve o bom posicionamento de Gondomar e Espinho, mas na Maia, em Matosinhos, em Gaia e no Porto de outro tanto se não pode vangloriar.. Uma última nota para uma incontornável comparação Norte/Sul, ou melhor, Porto/Lisboa. Na capital, o PSD não só venceu a Câmara, como respeitou a quota (3 vereadoras em 7). E no total, o resultado estatístico é de quase paridade - 8 mulheres e 9 homens. Temos de reconhecer que, neste aspeto, a capital fica bem melhor no retrato...
MEMÓRIAS POLÍTICAS PARA A NOSSA HISTÓRIA 1 - Não conhecemos ainda qualquer esboço do programa das anunciadas comemorações dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, que ocorrem em 2024. Bem à portuguesa, só sabemos, para já, dois nomes. O de quem preside, simbólica e honorificamente - o General Ramalho Eanes, que há muito devia ser o Marechal Ramalho Eanes, e é absolutamente indiscutível - e o de quem vai "presidir" ao Executivo, um jovem professor da área do PS, cuja notoriedade enquanto comentarista de vários "media" em muito suplanta o seu, para já, modesto currículo universitário. Apesar da sensatez e moderação com que sempre intervém, representa, face à escolha da personalidade do Presidente, o 8 perante o 80. O perfil de académico é, a meu ver, o ideal para um coordenador da "comissão organizadora" das celebrações, se, como me parece fundamental para o seu êxito, se vierem a centrar em aprofundadas investigações interdisciplinares. Para fazer história e para "fazer futuro" - na linguagem de então, para "cumprir Abril", ou para dar a dimensão da modernidade às "conquistas da revolução". O que por tal se entende não é inequívoco ou consensual em todos os quadrantes, mas, da equidistância dos cientistas se espera que os considerem todos. Como escreveu Agostinho da Silva, o filósofo que adorava gatos, a história que mais interessa é a do futuro. Porém, não é menos verdade que o ponto de partida e a fonte de ensinamentos e de inspiração é a do passado... Os trabalhos vão, suponho, começar em breve e prolongar-se por vários anos, antes e depois da efeméride nuclear. Nada tenho a opor a um tão extenso período de preparação e de continuidade de esforços se eles envolverem abertura às diversas universidades e especialistas, (não se fechando em "lobbies"" ou capelinhas), se servirem a pesquisa académica rigorosa, a recolha de documentação, a reflexão e a divulgação da história, pensando, em particular, nos mais jovens, no diálogo intergeracional. Eu atrever-me-ei, contudo, a afirmar que, num certo sentido, essa tarefa já teve o seu início num segmento particularmente importante da preservação da memória, com o testemunho direto de muitos dos protagonistas da revolução de 1974 e da edificação da democracia - ou seja, o seu "dia seguinte", na meia década de setenta e na de oitenta. Falo das autobiografias políticas, que não eram propriamente uma boa tradição nacional, mas que ganharam terreno entre os nossos contemporâneos. Cavaco Silva contribuiu com dois volumes, meticulosamente documentados, e mais os seus "diários" da presidência, na esteira de Jorge Sampaio. Mário Soares deixou-nos uma riquíssima coleção de publicações, tocando várias épocas e domínios, até o literário. Convidativos exemplos! As últimas publicações do género que tive a oportunidade de consultar, foram as de Diogo Freitas do Amaral, em 2019, - com o volume final de uma trilogia, "Mais de 35 anos de Democracia Um Percurso singular" Memórias Políticas III (1982-2017) - e de Francisco Pinto Balsemão, intitulada, simplesmente, "Memórias". Ambos nos oferecem a perspetiva diacrónica de uma fascinante e vertiginosa sucessão de eventos em duas décadas cruciais, tal como as atravessaram e marcaram, com um contributo individual para alicerçar a arquitetura do Estado democrático. E, não parando aí, trazem-nos com eles na viagem por mais um quarto de século de democracia estabilizada, até à atualidade. Para muitos, sobretudo os que que nunca souberam o que é o quotidiano de gente comum ou dos ativos intervenientes sob a ditadura, é uma incursão num mundo desconhecido, norteado por normas estranhas, absurdas... Para outros tem o encanto de uma saga acompanhada de perto, ou, até, em alguns momentos, partilhada. Ao lado de Freitas do Amaral, no governo em que ele foi Vice-Primeiro Ministro de Sá Carneiro, como sua Secretária de Estado, vivi o melhor ano da minha vida, o de 1980, até ao dia 4 de dezembro. Lembrá-lo, página a página, torna-se, assim, uma espécie de romagem de saudade. De Balsemão não posso dizer o mesmo, nunca fui amiga nem prosélita, mas, à distância de décadas, é um exercício estimulante constatar, com mais objetividade, não só divergências de análise sobre casos e pessoas, mas concordâncias e algumas bem relevantes, como a relativa à atual filiação do PSD, a nível europeu - o erro de trocar, em fins de século, a Internacional Liberal e Reformista por um PPE, cada vez mais conservador e menos cristão-democrata - ou a simpatia por um militar "presidenciável", que se chamava Mário Firmino Miguel. 2 - Embora abrangendo, no decorrer de um dado período, as vicissitudes da vida pública no mesmo espaço é muito distinta da de Balsemão a narrativa de Diogo Freitas do Amaral - reflexo natural das diferenças de personalidade, de pensamento, de formação académica, de objetivos na profissão e na política, e de realização concreta nestes dois sectores. Freitas do Amaral conjugou, na perfeição, uma fulgurante carreira universitária, (muito novo ascendendo a Professor Catedrático de Direito), e uma corajosa, determinada, e não menos brilhante trajetória cívica e política, ganhando o seu lugar entre os "pais fundadores" do regime nascido no do 25 de Abril - primeiro presidente do CDS, o "Homem de Estado", que, segundo Mário Soares, "ajudou a converter a direita portuguesa à democracia". Escreveu muitas páginas de história, que é não apenas sua, mas do País, e, por isso, de leitura obrigatória. Uma obrigatoriedade que a leveza e a naturalidade com que se exprime, numa linguagem, em simultâneo, precisa, simples e acessível sobre os temas mais complexos, torna, afinal, muito grata e aliciante, não exclusivamente para especialistas em questões de política nacional e internacional, mas para qualquer um de nós. Enquanto Balsemão nos apresenta a sua "narrativa de vida" de mais de oito décadas, Freitas do Amaral optou por se focar nas "memórias políticas", editadas ao longo de mais de 20 anos em três volumes - nos anos de 1995, 2008 e 2019. Neles vamos, fase a fase, seguindo o excecional trajeto de alguém que se preparou, com talento, rigor e dedicação, para ser o que foi. Numa expressão sua, lapidar. "Sonhei coisas grandes e, felizmente, vivi muitas"- Bastante novo atingiu o topo da carreira académica, como professor catedrático de Direito, e muito novo se viu a liderar um dos quatros grandes partidos do pós 25 de Abril. Excecional se revelou, depois, em todos os cargos aos quais se candidatou e para os quais foi eleito, dentro e fora do país - Deputado, Vice Primeiro Ministro, Primeiro-Ministro interino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs (o primeiro português eleito para a presidência de uma grande "Internacional"), Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, candidato à presidência da República, numa eleição que ganhou na 1ª volta e perdeu na 2ª, para Mário Soares, por escassos 138.000 votos... Paradigmática é a forma como analisa os vários factores determinantes dessa derrota, com uma objetividade de cientista político, e como aceita, democraticamente, o veredicto popular, não hesitando em afirmar: "O percurso e o currículo de Mário Soares eram nitidamente superiores aos meus".( Quase metade dos portugueses tinham mostrado, nas urnas, pensar o contrário...). Recusando contestar o resultado, o candidato vencido apressou-se a felicitar o vencedor. No dia seguinte, recebeu em casa "um enorme ramo de flores', com um cartão de cumprimentos, admiração e respeito do casal Maria Barroso e Mário Soares". Nas "Memórias", comenta: "Só o Mário Soares e a Maria de Jesus seriam capazes de fazer uma coisa destas". E eu acrescentarei: Só Freitas do Amaral seria capaz desta reação - a democracia portuguesa no seu melhor! Na era dos Trump e dos Bolsonaros, motivo, para nós, de renovado orgulho. 3 - Francisco Pinto Balsemão, em mil densas páginas, reúne, nos capítulos que sobre política se debruçam, um manancial de dados, desde os dias em que a revolução apenas se adivinhava, sem hora certa. Deputado da "ala liberal" na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano, fundador de um semanário que soube antecipar o tempo da democracia,( "O Expresso"), co-fundador de um partido político, que pesou decisivamente na mudança de regime, o PPD/PSD, Ministro, Primeiro Ministro por dois anos (e dois governos), deputado europeu por 11 dias. E muitas coisas mais: milionário nato (ou seja, de fortuna herdada, que não dilapidou), jornalista, advogado, empresário da comunicação social, não lhe falta matéria de interesse para levar a conhecimento público. Passados os 80 anos, bem gozada a vida, satisfeitas as ambições, as que teve e até as que nem tinha sonhado (nomeadamente ser Primeiro-Ministro, o que somente aconteceu por um trágico acaso), fala sem reservas nem resguardos. É ele próprio, retrata muitas figuras da nossa "res publica", tal como as vê e, ao fazê-lo, retrata-se a si também. Poucos são os que se autobiografam assim, emitindo opiniões, com o à vontade, de quem está numa roda de amigos. O jornalista vem ao de cima", redige com desembaraço e espontaneidade, sem floreados, sem excessivas subtilezas, sem poupar os alvos, ainda que estes hajam ocupado, ou ocupem hoje os mais altos cargos de Estado. As passagens agrestes sobre Marcelo Rebelo de Sousa, não só no livro, mas em entrevistas laterais ao seu lançamento, fazem furor, e, talvez expliquem, pelo menos em parte, que a 1ª edição esteja, (ao que consta), já esgotada. Da Bertrand, em Espinho, trouxe comigo o último exemplar, que só terei conseguido, por estar ligeiramente amolgado - nada que afete o conteúdo. Em jeito de recomendação, terminarei confessando que tenho ficado a lê-lo pela noite dentro, refrescando lembranças, algumas já vagas, e confrontado as minhas com as suas interpretações sobre o encadeamento de ocorrências, de conflitos, polémicas, pessoas que os protagonizaram - exercício tão grato quando aquelas vão no mesmo sentido como quando são dissonantes. Em suma, mais um significativo subsídio para a história de uma então tão jovem e esperançosa democracia. 9 out 2021 -------------------------------------------------------------------- S AUTARQUIAS, REPÚBLICAS DOS HOMENS 1 - Hesitei bastante no título deste comentário. Há tantas maneiras de dizer o mesmo. Célia Marques fala de "mundo masculino", Sandra Ribeiro (uma voz "oficial", presidente da "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género" (CCIG) de "meios masculinizados", Luís de Sousa (ICS da Universidade de Lisboa) de "envolvente masculina", António Barreto de "invisibilidade - feminina - no país das autarquias". Alguns exemplos, entre outros, que guardo na memória. Finalmente, decidi "plagiar-me" a mim própria, lembrando um colóquio organizado em Espinho, em 2010, durante as comemorações do centenário 5 de outubro de 1910: "Mulheres na República dos Homens". A realidade, que os números e estatísticas revelam, é que as autarquias são, em Portugal, o último reduto do (quase) absoluto poder masculino. A lei da Paridade veio criar nos lugares secundários a ilusão de um crescente equilíbrio de género, mas deixou intocado o cargo onde reside todo o poder - a presidência das Câmaras, em sistema presidencialista. Os homens estão à frente de mais de 90% dos concelhos do continente e das Regiões Autónomas. A paridade que, na economia do diploma original, de 2006, era atingida com uns modestos 33% subiu, em reforma recente, para 40%. Subiram, com ela, as expetativas de um progresso que nos deixaria perto da barreira das quarenta presidências femininas. Desde 1985, vínhamos registando um crescimento pequeno mas consistente. Na meia década de oitenta, contávamos apenas 4 mulheres presidentes, em 2017 já eram 32. Pouco ultrapassando os 10%, não se tratava de um resultado excelente, mas alimentava a convicção de progresso irreversível. Por isso, 2021 foi verdadeiramente dececionante, porque, pela primeira vez, em décadas, esse número desceu (de 32 para 29), continuando a deixar de fora as principais cidades do País - Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, e por aí adiante... . 2 -Há em Portugal, a meu ver, uma crença excessiva nas virtualidades do Direito para resolver os problemas do nosso atraso social e económico, de desequilíbrios e assimetrias herdados do passado. No que, em especial, se refere à discriminações de género não penso diferentemente. Sou favorável à Lei da Paridade, considero que há muito deveríamos ter aperfeiçoado disposições a que falta caráter vinculativo, e enquanto Deputada, na Assembleia da República, sempre me manifestei nesse sentido, pela palavra e pelo voto, em oposição a teses então oficiais do meu partido (onde apenas Leonor Beleza e Marcelo Rebelo de Sousa, que não era deputado. estavam do meu lado da barreira). Tenho, todavia, a consciência de que é preciso lutar também com outras armas, para alcançar a igualdade efetiva. Há muito - logo após a Revolução de 1974, com a Constituição democrática de 1976 - está a plena igualdade entre mulheres e homens consagrada no nosso sistema. Esse foi o tempo histórico em que terminou o longo combate das (e dos) sufragistas, que se centrava, e se ganhou, na esfera jurídica. Porém, removido o obstáculo que a própria Leii constituia, logo outros se levantaram nos vários domínios, em que a força vinculativa e sugestiva, ou pedagógica, do Direito tem as suas limitações. Podemos, é certo, ainda corrigir na legislação ordinária imperfeições ou desconformidades constitucionais, criar mecanismos de controle da aplicação dos comandos legais e da promoção de oportunidades iguais, do tipo da CITE (Comissão para a Igualdade do Trabalho e Emprego) , ou da CCID. Contudo, o centro estratégico de uma mudança profunda de mentalidades e de práticas deslocou-se, definitivamente, do terreno da legiferação para o da vivência das leis. Não basta impor juridicamente a igualdade salarial, as mesmas oportunidades de progressão profissional ou de participação cívica e política para que elas aconteçam de facto..Não podemos ignorar os expedientes generalizadamente usados para manter o "status quo" - ou seja, 91% de homens presidentes de Câmara no todo nacional e uma percentagem superior, a rondar os 100%, nas capitais de distrito, nas mais importantes. Se a questão fosse, sobretudo, de "mentalidade", de "aceitação social", de "socialização", como pretendem alguns doutos investigadores, como Luís de Sousa (Instituto de Estudos Sociais), ou de "tradições preconceituosas", como defende Sandra Ribeiro, a Presidente da CCIG, o fenómeno deveria sentir-se muito mais no mundo rural do que nas grandes cidades cosmopolitas! Aquelas condicionantes terão algum peso, mas verdadeiramente eterminante é a organização partidária, o "baronato" instalado nas estruturas locais, que se defende "com unhas e dentes" da abertura desejada pelas cúpulas de Lisboa (e não em todos os quadrantes, como sabemos, mas, ao menos, em alguns). Di-lo, por exemplo, um sociólogo mais do que teórico, com a sua grande experiência de governo e parlamento, António Barreto: "o sistema político e social está organizado de forma a favorecer os homens. O menu de escolha, de oferta, está enviesado a favor dos homens. Mantém o predomínio masculino". A palavra chave é "menu de escolha". A nível nacional, para o Parlamento e para o Governo, têm poder de decisão na escolha, os órgãos máximos dos partidos, e o nº 1, o Primeiro Ministro, o Secretário-Geral ou Presidente do partido e, por isso, a Lei da Paridade é, mais ou menos, respeitada, e o progresso tem sido constante e visível. A nível local, não , pois no "menu de oferta" as mulheres estão (quase) sempre colocadas nas listas o mais abaixo que o "diktat" legal permite. E são cabeças de lista (quase) só em circunscrições onde esse partido não tem perspetivas de vencer... Nas últimas eleições, o PCP escolheu 80 mulheres cabeças de lista, o PS 44, o PSD 31, o Chega, 30, o BE, 27, o CDS, 17, o PAN 13, a IL 6 e o Livre, 3.. Contas finais elucidativas : mais de 250 candidatas à presidência da Câmara e apenas 29 eleitas... 3 - E em Espinho, como vamos, neste aspeto? Tal como acontece nas maiores cidades do País, nunca aqui se elegeu uma mulher para a presidência, mas, por acaso, já houve uma que, a partir da Vice presidência, ascendeu ao cargo e fez história com um brilhante desempenho. A Senhora D.Elsa, de que todos nos podemos orgulhar. Na presidência da Assembleia Municipal já contou com duas ilustre espinhenses e agora apresenta um Executivo camarário que cumpre plenamente os ditames da Lei da Paridade, com quatro homens e três mulheres. Em termos da maioria socialista, é rigorosamente paritário - dois homens e duas mulheres - e, embora, na dimensão qualitativa, os homens ocupem os lugares cimeiros, as Vereadoras possuem currículo que permite esperar um desejável equilíbrio na obra a fazer pela terra. No panorama global do País, estamos, com certeza, nos lugares cimeiros. 21 out 2021 ETC E TAL REPENSAR A HISTÓRIA DA NOSSA DEMOCRACIA 1 - Não conhecemos ainda qualquer esboço do programa das anunciadas comemorações dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, que ocorrem em 2024. Bem à portuguesa, só sabemos para já dois nomes: o de quem as vai presidir, simbólica e honorificamente - o General Ramalho Eanes, que há muito devia ser o Marechal Ramalho Eanes, e é absolutamente indiscutível - e o de quem chefiará o Executivo, um jovem professor da área política do Governo, cuja notoriedade enquanto comentarista de vários "media" em muito suplanta o seu (ainda) modesto currículo universitário. Apesar da sensatez e moderação com que, a meu ver, sempre intervém, representa, face à escolha da personalidade do Presidente, o 8 perante o 80. O perfil de académico será o ideal para um coordenador da "comissão organizadora" das celebrações, se, como me parece fundamental para o seu êxito, se vierem a centrar em aprofundadas investigações interdisciplinares. Para fazer história e para "fazer futuro" - na linguagem de setenta, para "cumprir Abril", ou para dar a dimensão da modernidade às "conquistas da revolução". O que por tal se entende está longe de ser inequívoco ou consensual em todos os quadrantes, mas, da equidistância dos cientistas se espera que os considerem todos. Como escreveu Agostinho da Silva, o filósofo que adorava gatos, a história que mais interessa é a do futuro. Porém, não é menos verdade que o ponto de partida e a fonte de ensinamentos e de inspiração é a do passado... Os trabalhos vão, supõe-se, começar em breve e prolongar-se por vários anos, antes e depois da efeméride nuclear. Nada a opor a um tão extenso período de preparação e de continuidade de esforços se eles envolverem abertura às diversas universidades e especialistas, (não se fechando em "lobbies"" ou capelinhas), se servirem a pesquisa académica rigorosa, a recolha de documentação, a reflexão e a divulgação da história, que as gerações mais novas não viveram. Num certo sentido, essa tarefa já teve o seu início no segmento particularmente importante da preservação da memória, com o testemunho direto de muitos dos protagonistas dos acontecimentos de 1974 e da construção da democracia - ou seja, o seu "dia seguinte" da Revolução, na meia década de setenta e na de oitenta. Refiro-me, em especial, a autobiografias políticas, que não eram propriamente uma boa tradição nacional, e que estão a tornar-se coisa comum entre os nossos contemporâneos. Cavaco Silva contribuiu com dois volumes, meticulosamente documentados, e mais os seus "diários" da presidência, na esteira de Jorge Sampaio. Mário Soares deixou-nos uma riquíssima coleção de publicações, tocando várias épocas e domínios, até o literário. Bons exemplos! As últimas publicações do género que tive a oportunidade de consultar, foram as de Diogo Freitas do Amaral, em 2019, - "Mais de 35 anos de Democracia Um Percurso singular" Memórias Políticas III (1982-2017) - e de Francisco Pinto Balsemão, intitulada, simplesmente, "Memórias". Ambos nos oferecem a perspetiva diacrónica de uma fascinante e vertiginosa sucessão de eventos em duas décadas cruciais, tal como eles as atravessaram, dando o seu contributo individual para alicerçar a arquitetura do Estado democrático. E, não parando aí, trazem-nos com eles na viagem de décadas de democracia estabilizada, até à atualidade. Para muitos, sobretudo os que que nunca souberam como era o quotidiano de gente comum, mais ou menos passiva, ou de ativos contestatários sob a ditadura, é uma incursão num mundo desconhecido, regido por normas que hoje parecem estranhas, a tocar as raias do absurdo... Para outros, tem o encanto de uma saga seguida de perto, ou, até, em alguns momentos partilhada. Ao lado de Freitas do Amaral, no governo em que ele foi Vice-Primeiro Ministro de Sá Carneiro, como sua Secretária de Estado (para a Emigração), vivi o melhor ano da minha vida, o de 1980, até ao dia 4 de dezembro. Lembrá-lo, página a página, torna-se, assim, uma espécie de romagem de saudade. De Balsemão não posso dizer o mesmo, nunca fui amiga nem prosélita, mas, à distância de décadas, é um exercício estimulante constatar, porventura com mais objetividade, não só divergências de análise sobre casos e pessoas, mas concordâncias e algumas bem relevantes, como a relativa à atual filiação do PSD, a nível europeu - apontando o erro de trocar, em fins de século, a Internacional Liberal e Reformista por um PPE, cada vez mais conservador e menos cristão-democrata - ou a simpatia por um militar "presidenciável", que se chamava Mário Firmino Miguel. 2 - Embora abrangendo as vicissitudes da vida pública no decorrer do mesmo período de tempo e no mesmo espaço é muito distinta da de Balsemão a narrativa de Diogo Freitas do Amaral - reflexo natural das diferenças de personalidade, de pensamento, de formação académica, de objetivos na profissão e na política e de realizações concretas nestes dois sectores. Freitas do Amaral conjugou, na perfeição, a fulgurante carreira universitária, (muito novo ascendendo a Professor Catedrático de Direito), e a corajosa, determinada, e não menos brilhante política,caminhada política, ganhando o seu lugar entre os "pais fundadores" do regime nascido no do 25 de Abril - primeiro presidente do CDS. O "Homem de Estado", que, segundo Mário Soares, "ajudou a converter a direita portuguesa à democracia". Escreveu muitas páginas de história, que é não apenas sua, mas do País, e, por isso, de leitura obrigatória. Uma obrigatoriedade que a leveza e a naturalidade com que se exprime, numa linguagem em simultâneo precisa, simples e acessível sobre os temas mais complexos, torna especialmente grata e aliciante, não só para especialistas em questões de política nacional e internacional, mas para qualquer um de nós. Enquanto Balsemão apresenta aos leitores a sua "narrativa de vida" de mais de oito décadas, Freitas do Amaral optou pelo enfioque nas "memórias políticas", editadas ao longo de mais de 20 anos em 1995, 2008 e 2019. Neles vamos, fase a fase, seguindo o excecional trajeto de alguém que se preparou, com rigor, dedicação e muito talento, para chegar onde chegou. Numa expressão sua, lapidar. "Sonhei coisas grandes e, felizmente, vivi muitas"- Muito novo se viu a liderar um dos quatros grandes partidos do pós 25 de Abril e atingiu o topo da carreira académica. Excecional se revelaria em todos os cargos aos quais se candidatou e para os quais foi eleito, dentro e fora do país - Deputado, Vice Primeiro Ministro, Primeiro-Ministro interino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs (o primeiro português eleito para a presidência de uma grande "Internacional"), Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, ou candidato à presidência da República, numa eleição que ganhou na 1ª volta e perdeu na 2ª, para Mário Soares, por escassos 138.000 votos... Paradigmática é a forma como analisa os vários factores determinantes dessa derrota, com uma objetividade de cientista político, e como aceita, democraticamente, o veredicto popular, não hesitando em afirmar: "O percurso e o currículo de Mário Soares eram nitidamente superiores aos meus". (Quase metade dos portugueses tinham mostrado, nas urnas, pensar o contrário...). Recusando contestar o resultado, como alguns queriam, o candidato vencido apressou-se a felicitar o vencedor. No dia seguinte, recebeu em casa "um enorme ramo de flores', com um cartão de cumprimentos, admiração e respeito do casal Maria Barroso e Mário Soares". Nas "Memórias", comenta: "Só o Mário Soares e a Maria de Jesus seriam capazes de fazer uma coisa destas". E eu acrescentarei: Só Freitas do Amaral seria capaz desta reação. A democracia portuguesa no seu melhor! Na era dos Trump e dos Bolsonaros, motivo, para nós, de renovado orgulho. 3 - Francisco Pinto Balsemão, em mil densas páginas, reúne, nos capítulos que sobre política se debruçam, um manancial de dados, desde os dias em que a revolução apenas se adivinhava, sem hora certa. Deputado da "ala liberal" na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano, fundador de um semanário, que soube antecipar o tempo da democracia, ("O Expresso"), co-fundador de um partido político, que pesou decisivamente na mudança de regime, o PPD/PSD, Ministro, Primeiro Ministro por dois anos e meio (em dois governos), deputado europeu por 11 dias. E muitas coisas mais: milionário nato (ou seja, de fortuna herdada, que não dilapidou), jornalista, advogado, empresário da comunicação social, não lhe falta matéria de interesse para levar ao seu público. Passados os 80 anos, bem gozada a vida, satisfeitas as ambições, as que teve e as que nem tinha sonhado (nomeadamente ser Primeiro-Ministro, o que somente aconteceu por um trágico acaso), fala sem reservas nem resguardos. É ele próprio, retrata muitas figuras da "res publica", tal como as vê e, ao fazê-lo, retrata-se a si também. Poucos são os que se autobiografam assim, emitindo opiniões com o à vontade de quem está numa roda de amigos. O jornalista vem ao de cima", redige com desembaraço e espontaneidade, sem floreados, sem excessivas subtilezas, sem poupar os alvos, ainda que estes tenham ocupado, ou ocupem hoje os mais altos cargos de Estado. As passagens agrestes sobre Marcelo Rebelo de Sousa, não só no livro, mas em entrevistas laterais ao seu lançamento, fazem furor, e, talvez expliquem, pelo menos em parte, que a 1ª edição esteja já esgotada. Da Bertrand, em Espinho, trouxe comigo o último exemplar, que só terei conseguido, por estar ligeiramente amolgado - nada que afete o conteúdo. Em jeito de recomendação, terminarei confessando que fiquei a lê-lo pela noite dentro, refrescando lembranças, algumas já vagas, e confrontado as minhas com as suas interpretações sobre o encadeamento de ocorrências, de conflitos, polémicas, pessoas que os protagonizaram - exercício tão grato quando aquelas vão no mesmo sentido como quando são dissonantes. Em suma, mais um significativo subsídio para a história de uma então tão jovem e esperançosa democracia.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

DIÁLOGO E MONÓLOGO EM DEMOCRACIA 1- O Presidente Joe Biden, que, aos 78 anos, foi, nos EUA, o mais velho a tomar posse nesse cargo e se revelou, em poucas semanas, o mais rápido a tomar medidas governativas, participou, no passado mês, na sua primeira "Town Hall", transmitida pela CNN para o mundo. Para quem não sabe exatamente o que isto é - como eu não sabia, antes de me converter em telespetadora habitual da CNN - começo por dizer que não é o que parece. Também se pode designar, mais explicitamente, por "town hall meeting", mas o sentido americano dessa realidade continuará a escapar-nos se traduzirmos por "reunião de Câmara". Não é isso, bem pelo contrário... Por curiosidade, pesquisei no "google" a pluralidade de sentidos de "Town Hall". Os mais comuns são Câmara Municipal - ou Prefeitura, no Brasil - salão da Câmara, Assembleia, serviços camarários. Mas logo outros significados nos levam para longe da sede e do âmbito municipal, ao incluir qualquer reunião para discutir assuntos importantes, que pode ter um determinado círculo de participação, por exemplo, o interior de uma empresa, de uma instituição, ou constituir um conselho, um meio de comunicação e formação interna, ou alargar-se ao exterior, a públicos, que se quer sondar, esclarecer, atrair, mobilizar. Nos EUA, tem um significado mais preciso e inequívoco: é uma reunião interna ou pública, em que um dirigente, em qualquer domínio, político ou outro, responde a questões, livremente colocadas pela audiência. É sinónimo de diálogo democrático, lembra, porventura, a sua origem na "civitas", porém, o lugar concreto da fórmula "Town Hall /reunião", há muito, perdeu a sua umbilical ligação autárquica. Tanto pode realizar-se num salão municipal, como num anfiteatro universitário, num teatro, num hotel. Aquelas a que tenho assistido, na CNN, são, naturalmente, vistas não só nesse auditório, ao vivo, mas por milhões no ecrã da televisão, em diversas partes do planeta. As personalidades mais poderosas e influentes são ali interrogadas pelo cidadão comum, em perguntas quase sempre oportunas, que nós próprios gostaríamos de pôr em agenda. Um exercício democrático em modelo, infelizmente, desusado na nossa cultura. 2 - Há, em Portugal, aproximações a este "happening", as mais interessantes das quais terão sido conseguidas nas "presidências abertas" do Doutor Mário Soares. Também se poderão considerar, na categoria de "sucedâneos", as "sessões de esclarecimento", que estiveram em voga no período pós revolução, mas que, com o decurso do tempo, se foram rarefazendo, como se o diálogo sobre políticas ou medidas concretas, (apenas pensadas, já em execução, ou executadas), à medida que avançava a democracia, se tornasse mais e mais supérfluo. Fomos, obviamente, no sentido errado! Aumentaram conferências de imprensa restritas a jornalistas e, por vezes, sem período de perguntas e respostas, entrevistas dos mesmos profissionais dos media, mais ou menos independentes, debates entre políticos (que sobem em flecha quando se aproximam eleições), mesas redondas de comentadores, em que os homens, brancos, de meia idade e lisboetas, predominam largamente, ou uma mistura destas modalidades, em moldes originais gizados por um programa de rádio ou televisão. Os governantes preferem, (sempre!) responder, não a interlocução direta do povo, mas a dos seus representantes eleitos, os deputados, num parlamento dominado por aparelhos partidários. E respondem o menos possível! Dá uma ideia precisa do estado da nossa democracia, a drástica redução das sessões parlamentares de "perguntas ao Governo", imposta pelo PS, partido no poder, e pelo PSD, o maior partido da oposição. Uma decisão que só tem paralelo noutra bizarra aliança dos mesmos partidos para limitar, deslealmente, a concorrência de listas de independentes às Câmaras e Juntas de Freguesia. A nível autárquico, a situação não é muito diferente - os executivos são, periodicamente, questionados pelos eleitos nas assembleias municipais, mas os cidadãos dispõem de limitadas oportunidades de com eles dialogarem. Em Espinho, isso acontece num período antes da ordem do dia, com exigência de inscrição prévia, e, nos anos em que assisti, por dever de ofício, a Assembleias, posso asseverar que não aconteceu com frequência, e o impacto foi assaz diminuto. Sessões públicas com membros do Executivo, como oradores? Só em comícios de campanha, para propaganda. É para o que servem, de igual modo, quase invariavelmente, as entrevistas nos media locais, ou nacionais. A única iniciativa referendária de que me recordo, num Município, deveu-se a João Soares, em Lisboa - a família Soares, talvez não por acaso, aparece nas exceções à regra, que, neste domínio, me ocorrem... O referendo era sobre a construção de uma espécie de funicular para acesso ao castelo de São Jorge, e foi prontamente derrotada pelo sufrágio popular. Eu, se, naquele tempo, fosse munícipe em Lisboa, também teria votado contra, mas com todo o apreço pelo gesto do Presidente de Câmara. Com outro qualquer, lá estava, hoje, o funicular... 3 - O espírito de "town hall" - de diálogo aberto e basista, com tempos precisos de indagação e esclarecimento, impostos por um moderador, em regra, um bom jornalista - nada tem a ver com convívios em festivos ajuntamentos, "selfies", conversas de rua, sorrisos e abraços (pré pandemia), que mais parecem rituais de campanha eleitoral, fora de época. Nada contra - acho até estimável e divertido, mas não é a mesma coisa que um debate sério e frontal sobre matérias muito concretas.. Foi este tipo de debate que Joe Biden e a CNN nos ofereceram, a partir de Milwaukee. Ao satisfazer dúvidas dos presentes no auditório - todos a distância recomendável, uns dos outros, e de máscara - ele respondia às perguntas de um mundo, onde as preocupações andam globalizadas. - Para quando a normalização da vida? Talvez no Natal, talvez para o ano, por esta altura... mas os especialistas não dão certezas (entretanto, com o sucesso da vacinação em massa, já antecipou a data prevista para o 4 de julho). De facto, triplicaram as aplicações, na América pós Trump (nome que evitou mencionar). E, lá, era no ato de vacinação, mais do que na quantidade de vacinas, que residia o obstáculo principal, pelo que estão a recorrer a médicos e enfermeiros reformados, à Guarda Nacional, ao Exército e, sobretudo, às farmácias, como postos de vacinação de proximidade. - Reabertura das escolas? Sim, começando pelos primeiros anos, que não socializam excessivamente fora das aulas, mas só depois de planificar a divisão de turmas, em grupos mais pequenos, e de assegurar o transporte em perfeitas condições sanitárias. - A vacinação dos professores de classes em funcionamento efetivo, como grupo de risco? Está em estudo. (por aqui, onde ainda escasseiam vacinas para os grupos de risco, com menos de metade dos maiores de 80 anos inoculados com apenas a 1ª toma, vacinam-se corporações inteiras, não só médicos - vá lá...- mas, também, bombeiros, PSP, GNR, e agora, professores e pessoal das escolas! E pouco importa que se trate de jovens saudáveis,de 20 ou 30 anos, a trabalhar em ambientes que a propaganda governamental qualificava de "muito seguros" (os únicos que tiveram a decência de recusar a ultrapassagem dos mais idosos, foram os deputados - e bastantes!). - Apoios à economia? Sim, e em força. "Now is the time to be spending", segundo Biden (na Europa da Senhora von der Leyen, tarda a "bazuca", tardam as vacinas, suspendem-se vacinas - reinam a confusão, a suspeita, as meias verdades, feitas e desfeitas, no dia seguinte).. Este novo (ainda que velho na idade) Presidente revela-se um comunicador nato e uma simpatia! O momento alto da "town hall" foi a conversa com uma menina de oito anos. A mãe, explicando que a filha andava assustada com a pandemia, quis saber: - "Para quando a vacinação das crianças?". Biden dirigiu-se, em linha reta, à criança, como um avô fala à neta, tranquilizando-a com informação científica, em linguagem acessível ("não precisas de vacina, pertences ao grupo de menor risco, estás segura"). E assim falou para todas as meninas e meninos da América... Não disse coisas extraordinárias, mostrou-se, sim, um ser humano extraordinário. Conseguiu, a meu ver, o que queria: ser claro, partilhar, sem euforia nem temores, sem ameaças ou recriminações, (a uma população que, em termos de paciente respeito por ditames muitas vezes opacos, fica muito aquém da portuguesa...) o estado atual do seu conhecimento sobre assuntos do quotidiano em que, afinal, se joga o futuro. Com ele, tudo pareceu simples, mas talvez não seja, a avaliar pelos tergiversantes monólogos de tantos responsáveis políticos.. A esmagadora maioria dos europeus e, em especial, dos nossos.
MENINA E MOÇA ME LEVARAM... 1 - O título tem , para além da sua encantatória ressonância literária, a virtude de espelhar a principal constante que encontramos em tão admiravelmente heterogéneo conjunto de registo sobre percursos de emigração feminina. De facto, poucos são os que refletem uma decisão própria das protagonistas, que partiam em função de escolhas e projetos de outrem - pais, maridos... Em Portugal, desde o início da Expansão, a aventura embrionária de correr o mundo foi negada às mulheres, e até à revolução de 1974 sempre iria ser proibida ou fortemente condicionada. A fronteira para as portuguesas foi, ao longo de séculos, a mais estreita que podemos conceber: o "emparedamento" dentro da casa familiar, que, em muitos casos, nem era verdadeiramente sua. Ao investigar e divulgar o fenómeno da colonização imperial portuguesa, Boxer, intitula a coletânea que dá à estampa, "Mary and misogyny", labéu que se perde na branda tradução para a nossa língua. O estudo procede à comparação das políticas e da prática das nações peninsulares e aponta a portuguesa como a mais discriminatória do sexo feminino, quase invariavelmente excluído dos planos régios de povoamento das suas possessões, sendo este baseada em uniões de facto ou matrimoniais, com as mulheres daí, dessas terras.. A emigração não se segue cronologicamente a uma fase de colonização estatal, antes com ela, sobretudo no imenso Brasil, desde cedo se entrelaça (por tal se devendo entender a que corresponde a movimentos espontâneos, que, quando barrados, resistiram e romperam as proibições e condicionamentos impostos pelo Poder régio. E foi nos contingentes de clandestinidade que aumentou, a pouco a pouco, o número de mulheres. A tradição de clandestinidade, a que no século passado se chamou "o salto", remonta, pelo menos, ao século XVII e vai em crescendo nos seguintes, através dos oceanos, tendo por destino dominante a América do Sul, e, depois, (no ciclo da pesca à baleia e ao atum), a partir dos Açores, a América do Norte, e, mais próximo de nós, por montanhas e vales, o centro da Europa. Porém, são ainda, maioritariamente, os homens que partem, como se tivessem interiorizado os ditames misóginos das Leis - ou como se estas tivessem plasmado preconceito enraizados. Um longo e imparável êxodo de "homens sós", a que as mulheres, por vezes, anos depois, se conseguiam juntar, Só por exceção à regra, se permitiu a saída de famílias inteiras (por exemplo, das Ilhas Atlânticas para o Havai, no último quartel do século XIX). e até no paradigma historicamente relevante da expatriação de "mulheres sós", as "órfãs d' El Rei", elas vão, "meninas e moças", sim, mas levadas por vontade alheia,por vontade régia, para muito longe, em viagens sem regresso. A massificação do reagrupamento familiar, registada a partir do começo e ao longo de todo o século passado, permitiu um crescente equilíbrio de género nas nossas comunidades, alcançado sem incentivo ou apoio do Estado e contra um sem número de obstáculos. Neste campo, as únicas políticas públicas respeitantes às mulheres, através dos séculos e dos regimes, até 1974, foi a proibição ou a sujeição a regras altamente discriminatórias. Ninguém melhor do que o republicano Afonso Costa, na sua veste de académico e catedrático, terá expresso o preconceito subjacente àquelas regras, ao considerar a partida das mulheres uma "degenerescência do fenómeno migratório". Contudo, elas, que partiam, em regra, num segundo tempo e com um estatuto de dependência, viriam a desmentir a bondade daquela visão de época puramente economicista das migrações, (que foi preponderante no meio académico e político), a contribuir para o sucesso dos projetos migratórios comuns e a criar pontes com as sociedades locais e a dar às comunidades a sua vertente de vivência familiar e cultural,. Este estado de coisas estará a mudar, no interior da chamada "nova emigração", de jovens altamente qualificados, impondo um outro estereótipo de mulher migrante, senhora do seu destino, levada por projetos de carreira, no ritmo determinado pelos seus próprios passos. Mas a imagem áurea da independência feminina constrói-se, ainda, uma pequena minoria. Desde logo, porque este "brain drain", esta autêntica expatriação de "cérebros" é um segmento importante, mas pequeno da totalidade dos movimentos de saída e, também, porque a desproporção de sexos, entre os jovens mais qualificados, continua a ser superior à da maioria dos países europeus. Permanecemos, assim, dentro do quadro de migrações, que mantiveram - e ainda, largamente, mantêm - o seu perfil tradicional, revelador do conservadorismo larvado de uma sociedade, tantas décadas depois da revolução igualitária. . 2 - As mulheres que neste projeto coletivo se reúnem, em vibrantes testemunhos de vida, são (ao menos as portuguesas), quase todas oriundas da realidade configurada no "paradigma bernardiniano". Quem são elas? Que vida se permitiram, dentro na categoria assim privilegiada (e sob um manto de invisibilidade lançado sobre os seus contributos, tecido, afinal, da mesma matéria, do mesmo descaso com que as crónicas lavradas por homens apagaram as suas marcas originais)? Página a página, cada uma das Autoras, rememorando o passado, encontrou a sua própria fórmula de dar respostas diferentes a uma infinidade de interrogações, por si colocadas, onde, afortunadamente, podemos não só reconhecer o percurso extraordinário de uma geração, mas, de algum modo, também, refazer a história das migrações femininas a uma nova luz. Há outros modos de avançar neste domínio, o primeiro dos quais é, certamente, o trabalho académico multidisciplinar, hoje visto como fundamental (quando antes nem sequer era considerado um objetivo da investigação científica, nomeadamente para historiadores, antropólogos, sociólogos e politólogos. Na verdade, nem mesmo no campo dos estudos das mulheres, ou, anteriormente, no terreno da longa e tão custosa reivindicação dos seus direitos, a especificidade da situação das migrantes recebeu a merecida atenção. E, por isso, esta História, que se constrói de histórias individuais é complementar, insubstituível e, não raramente se converte em fonte inspiração e tema de novas linhas de pesquisa. Aceitaram o convite para responder muitas mulheres migrantes, cujos caminhos passaram por todos os continentes do mundo. O convite a que dessem os seus rostos à experiência vivida do estrangeiro, de que se faz realidade vivencial sobre estereótipos e preconceitos. Um convite a nos deixassem - a nós, os seus leitores - acompanhá-las na viagem pelas suas memórias. E o que à partida, se adivinhava tão igual foi ganhando, em cada passo do caminhos, contornos de uma infinita diversidade, página e página, num livro fascinante, escritos a muitas mãos, muitos destinos. Cada uma das viagens individuais, únicas e irrepetíveis, nos transporta à sua trajetória geográfica de entrelaçamento de continentes e de culturas, no espaço da lusofonia, Angola e Moçambique, Goa, Macau e Timor, Guiné Bissau, Cabo Verde e Brasil ou no das comunidades de fala portuguesa nas Américas, do Sul e do Norte , e da Europa e África à Oceania... E não só a uma terra, mas a um lugar situado em dado tempo, que nos transporta ao cenário da II guerra mundial, da invasão da Hungria pelos tanques soviéticos, ou a um Portugal, terra de refúgio, poupado da devastação bélica dos anos 40, mas não da opressão e da pobreza sem remédio, causa maior do incessante êxodo migratório transoceânico, continuado, na segunda metade do século passado (como se vê olhando o nascimento de novas comunidades, como são as da Venezuela, da Austrália e do Canadá, nesta coletânea tão exemplarmente representadas), quando o movimento de saída se dirige, crescentemente para a Europa, onde França vai ocupar a posição dominante que fora, por vários séculos, a do Brasil Não há um caso que seja semelhante ao outro, muito embora tenhamos de reconhecer, entre a maioria das Autoras, afinidades no cumprir de projetos mais orientadas para o sucesso académico do que para o material, no envolvimento cívico para mudar um estado de coisas, numa mundivisão partilhada pela AMM, que com elas, desta forma ímpar, comemora o seu 25º ano de atividade. É uma iniciativa que vai idealmente no sentido de aprofundar o conhecimento das especificidades das migrações femininas e de dar, neste domínio, visibilidade ao papel das mulheres, como agentes de grandes transformações societais - a razão de ser primeira desta Associação - e que relança, numa data tão simbólica, um dos seus mais antigos projetos, o de recolher narrativas de vida, e, mais latamente, o de promover essas recolhas, a nível académico e comunitário, como um dos meios mais poderosos de a cumprir, de um modo eficiente, específico, dialogante. . 3 - Uma breve nota sobre a AMM, que, em 1995, se apresentou num Congresso Mundial de Mulheres da Diáspora, (o maior até hoje organizado no país), com as suas singularidades, e vocação - uma associação feminista. sem medo da palavra enquanto sinónimo de um "humanismo integral", fundada em Lisboa com o olhar na Diáspora, aberta a mulheres e homens, por igual empenhados na luta contra o sexismo, o racismo e a xenofobia, (ramos de um tronco comum), que o seu lema sintetiza, dizendo: "Não há estrangeiros numa sociedade que vive os direitos humanos". A frase tem tudo a ver com a situação das mulheres, estrangeiras no seu próprio país, quando lhes são negados os direitos da cidadania plena e o reconhecimento do seu papel fundamental na construção de comunidades interculturais, de pontes entre culturas, de Diásporas, com horizonte de futuro. Por isso, desde o início, os projetos focados na memória, na desocultação dos valores femininos soterrados no caudal das narrativas sempre padronizadas no masculino, foram dos primeiros a que se dedicou a AMM, como mostram algumas publicações, centradas em determinados países ou comunidades. Nenhuma foi tão abrangente, nem conduziu a resultados tão concludentes como esta. Devemos a todas as participantes um imenso agradecimento! 4 - Num momento em que crescem, por todo o mundo, forças de regressão, anunciadas por inquietantes sinais de ressurgimento de violência racial, xenófoba e sexista, que não podemos ignorar, este um livro torna-se portador de esperança, com o seu cortejo de admiráveis exemplos concretos de superação de mil e um obstáculos. Uma maioria das Autoras são, como uma delas tão expressivamente se diz, "filhas do salto" - da aventura pelos caminhos da emigração percorridos com o projeto de fugir à pobreza e oferecer à família uma "vida melhor". E isso na emigração multissecular significou quase sempre a abastança material, mas, como é bem conhecido, em muitos casos depressa esse projeto se estendeu, também, a uma vertente cultural.. E são as herdeiras desse "desvio" as que, sobretudo, aqui encotramos
TÓQUIO - OS JOGOS DO NOSSO CONTENTAMENTO DESCONTENTE 1 - A participação portuguesa nos últimos jogos olímpicos é incensada pela generalidade dos políticos e dos comentadores desportivos, como "a melhor de sempre". Dir-se-ia que marcou a transição para um patamar de desenvolvimento qualitativo. Pura ilusão... Na realidade, continuamos na cauda da Europa, em matéria de investimento nas diversas modalidades desportivas (menos de metade da média europeia). de formação escolar e universitária - a Educação Física é menorizada nos "curricula", a compatibilização da vida desportiva e académica continua a ser negligenciada, só no desporto federado se pode verdadeiramente fazer carreira e o exercício físico para todos os jovens e em todas as idades é mínimo, em termos comparativos. É esta gritante falta de cultura desportiva que, fundamentalmente, determina o medíocre lugar que ocupamos no "ranking" europeu e mundial de alta competição. Mais um sinal inequívoco desta mentalidade dominante na sociedade portuguesa do século XX, nos foi dado, recentemente, pela despreocupação com que a DGS e o Ministério da Educação, durante a pandemia, nas escolas e nos clubes, encararam a suspensão da atividade física, em absoluto contraste com o alarme provocado pelo encerramento das aulas das demais disciplinas ou pela necessidade de recorrer a ensino não presencial... Com o que teremos perdido mais futuros campeões do que doutores ou engenheiros. 2 - A proclamada excecionalidade da recente "performance" é relativa aos nossos próprios resultados olímpicos passados, que oscilaram, modestamente, entre as duas ou três e estas celebradas quatro medalhas de 2021 - limitadas ao atletismo, em modalidades individuais, a evidenciar o mérito de cada atleta (e, quando muito, também, dos seus clubes que os apoiam), muito mais do que o mérito de um projeto ou estratégia dos poderes públicos. Em boa verdade, na Europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a Lituânia, com 2.794 milhões de habitantes, Chipre com 1, 224.216, o Luxemburgo com 643.196 e Malta com apenas 502, 633). Muito se realçou, igualmente, o caráter "inclusivo" da delegação portuguesa, com esse adjetivo querendo significar a presença de estrangeiros naturalizados e de cidadãos de origem africana na nossa delegação. Muito me regozijo com o facto haver neste domínio maior abertura para o reconhecimento da dupla nacionalidades e para a atribuição do passaporte português. do que há, por exemplo, no futebol profissional, onde tanta polémica causou a chamada de Deco e de Pepe à seleção, dois brasileiros natos, que sempre deram provas de excelência desportiva e de dedicação à camisola das quinas. Talvez, porém, o mesmo não tivesse ocorrido se representassem clubes de Lisboa, como é o caso dos atuais atletas Pedro Pablo Pichardo, Nelson Évora, Jorge Fonseca ou do inesquecível Francis Obikwelu. Esta dúvida não é afirmada contra esses clubes de Lisboa, cuja influência, a ter sido exercida, o foi por uma "boa causa" e que louvo por continuarem a dar medalhas e campeões de atletismo ao país, como, noutros tempos, o fez o FCP, com o seu áureo trio feminino - Aurora Cunha, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro. Suscita, igualmente, espanto e admiração, o fenómeno da preponderância dos afro-portugueses da área metropolitana da capital, na vanguarda do nosso atletismo, com três em quatro das nossas medalhas de Tóquio, a exceção sendo a do canoísta Fernando Pimenta, com raízes nortenhas em Ponte de Lima, (embora, do ponto de vista clubístico, se tenha mudado para sul). E só de Pedro Pichardo se pode dizer que foi formado no estrangeiro e se naturalizou já com um brilhantíssimo palmarés. Jorge Fonseca veio de São Tomé para Portugal com 11 anos, e Nelson Évora, nascido em Abijan, de pais cabo-verdianos, também muito cedo aqui se integrou. Patrícia Mamona é portuguesa, de ascendência angolana, A única mulher neste histórico quarteto de grandes campeões, ganhou uma medalha de prata que vale mais do que o ouro. Ela é a pura encarnação do espírito olímpico, da vontade de se transcender, a cada novo dia. Teimou, desde menina, em praticar o triplo salto e em atingir o Olimpo numa modalidade para a qual, sendo uma predestinada, lhe faltava, diziam-lhe todos, uma característica física: a altura. Mede apenas 1,66 e, note-se, perdeu o ouro para uma gigante cubana de quase dois metros (mais precisamente 1, 92). O que motiva, num país de mentalidade tão avessa ao fomento da atividade física na escola, na infância - que é onde, por todo o lado, se começa - os futuros campeões, rapazes e, igualmente, raparigas, (feito maior, numa sociedade ainda tão misógina)? O que leva crianças de minorias étnicas, em quase todos os outros setores marginalizadas, assim como outras de meios rurais, não menos desprivilegiadas, a superarem o destino pela glória desportiva? É uma história que se vai fazendo de comparações nas semelhanças e nas diferenças de circunstâncias, e que precisava de ser bem melhor contada, sem deixar nenhum nome para trás. Talvez, um dia, possam, todos, figurar num grande museu nacional do desporto...Até lá, cada terra vai homenageando os seus heróis, como Espinho muito bem tem conseguido, guardando a memória de António Leitão. 3 - Tóquio 2021 deixa-nos, por um lado, contentes com todos os atletas, em concreto, com os medalhados, com os que só não o foram por uma questão de menos sorte num momento fatal, e com os que trouxeram diplomas olímpicos - bem mais numerosos do que os pódios, e significativos, como indicadores de qualidade e de potencial, logo de esperança para 2024 - mas, por outro lado, descontentes com a falta de progresso geral, com o imenso desperdício de talentos que, para sempre, se perderam ou estão por encontrar. Quando Aurora Cunha começou a sua meteórica carreira, com uma primeira grande vitória nacional, o "Mundo Desportivo", de 9 de junho de 1976, escrevia: "Quantas Auroras em potência haverá neste país?". 45 anos depois, a pergunta mantém toda a pertinência, porque nem as mentalidades, nem o condicionalismo para a revelação de valores e vocações, nomeadamente a partir das escolas, se alterou de forma substancial. O caso da campeoníssima Aurora Cunha é paradigmático. Aos 14 anos, a oitava de uma família numerosa de 10 filhos, uma menina franzina e irrequieta, que gostava de correr, sozinha, por montes e vales, era operária na maior fábrica têxtil dos arredores da sua pequena comunidade rural de Ronfe. Um domingo, à saída da Igreja, depois do Terço das 15.00, alguém se lembrou de animar o fim de tarde com uma corrida popular para rapazes e raparigas, no estádio da terra. Aurora lá foi, com o sua saia de malha domingueira e sapatos de cabedal, e ganhou, destacadamente, à frente de todos os rapazes, alguns deles equipados a rigor. O Clube Juventude de Ronfe logo ali a convidou para treinar e competir. Depois, viria o contrato com o FCP, o seu clube de coração. E, assim, os horizontes se abriram para a menina de Ronfe, que, no meio fundo e fundo, havia de acumular recordes e medalhas de ouro, ser tricampeã mundial e vencedora das mais prestigiadas maratonas. Vale a pena ler, na sua inspiradora autobiografia "Uma vida de paixões" (prefaciada pelos Presidentes Ramalho Eanes e Rebelo de Sousa), os ensinamentos de uma carreira fenomenal, que começou, num convívio minhoto, por puro acaso.
A PANDEMIA NO ESPELHO DO FUTEBOL 1 - Portugal começou bem e acabou mal o Euro - eliminado, no "mata-mata" (como dizia Scolari, o homem que deixou uma herança de bandeiras verde-rubras nas janelas e a má memória da perseguição a Vítor Baía). Desta vez, perdemos para a Bélgica, que só mesmo no "ranking" é a nº 1, tendo na partida de Sevilha posto em prática esquemas táticos, que mais se esperariam de Fernando Santos. Noutra perspetiva, em termos de "jogo jogado", a equipa começou mal e acabou bem. Na última oportunidade mostramos do que somos capazes, merecíamos ganhar, ir em frente para os quartos de final. O futebol é isto: um desporto pontuado por momentos de sorte e azar, de resultado sempre incerto, como a própria vida humana. O factor "suspense" faz parte da sua magia. A perda do ceptro europeu deixou o País de luto e de regresso à normalidade, ou seja, a falar da 4ª vaga COVID, da variante nepalesa, da cerca sanitária de Lisboa, em regime de "part-time", dos desastres de Cabrita, do certificado digital para acesso a restaurantes, dos ritmo da vacinação e do pandemónio de filas de espera - dispensável desorganização civil sob a batuta de um ilustre militar. Já pertencem ao passado os dias de delírio coletivo, a ver na TV o futebol, nosso e alheio, em estádios repletos de público, de cor e de abraços, Já estamos caídos no reino português da burocracia paralisante, que tudo proíbe ou condiciona, sem explicar porquê. Tal como Sísifo, condenado, eternamente, a andar acima e abaixo do caminho da montanha, carregando o seu fardo de pedra, nós, num sobe e desce permanente de horários do comércio e da restauração e do "ranking sanitário" da nossa cidade, confinamos e desconfinamos, enquanto cresce o número de descrentes nestes castigos de deuses menores - sobretudo entre a juventude não vacinada, não mascarada (como diria Ferro Rodrigues), nem fisicamente distanciada.. Há dias, passava eu no Largo da Graciosa e ouvi um fragmento de conversa de três adolescentes sobre este tema do quotidiano espinhense. Um deles bradava, desconsoladamente: "Estou farto da Covid 19. Antes queria um apocalipse zombie!". A pressa que levava não me permitiu ouvir o resto do lamento, que teria valido a pena. Ali estava quem exprimia, numa síntese lapidar, o sentir de uma geração inteira... 2 - O futebol tem sido, desde o início deste interregno "zombie" na história da Humanidade, o espelho fiel de erros, incoerência e arbitrariedade de quem manda na gestão da crise. De entre todos os domínios em que podemos, a meio do 2º ano da pandemia, traçar um balanço negro, este é certamente o "primus inter pares". Logo na primeira avaliação de risco comportamental, recebeu nota máxima, com o consequente encerramento ao público de todos os recintos desportivos (incluindo a pais de meninos pequenos, em jogos de formação!). Assim se demonizava todo e qualquer adepto, dado como incapaz de controlar paixões clubistas ou nacionalistas. A mesma pessoa que assiste civilizadamente a um concerto ou a um cinema, vira selvagem mal se senta num estádio, segundo esta escola de pensamento. Quod erat demonstrandum... Para calar as raras vozes que se levantavam contra o fundamentalismo da medida, os poderes públicos promoveram dois ou três ensaios de abertura ao público, em emocionantes jogos internacionais, esperando um dilúvio de desordem e de caos. Porém, a realidade desmentiu os preconceitos, ancorada na enorme experiência organizativa dos clubes e no caráter ordeiro da maioria das assistências. Tudo correu às mil maravilhas, no acesso, no interior e na saída dos estádios, do Porto e de Lisboa à lonjura dos Açores! Nem por isso, quem, pelo visto, não estava de boa fé, suspendeu a interdição total, mesmo depois de permitir a abertura de portas a espetáculos em espaços fechados. Foi preciso esperarmos vários meses até maio e junho deste ano II pandémico para termos a prova de que, afinal, os desequilibrados, os irracionais, os "loucos" do futebol não são os cidadãos anónimos, mas os próprios detentores de altos cargos do Poder (os autores, materiais ou morais, de leis e regras e minudências absurdas, em que Portugal bate recordes). A desgraça que nos relegou da linha da frente para a cauda da Europa é filha dos monumentais festejos de rua de um campeonato nacional, (todo ele disputado em estádio vazio...), com o "nihil obstat" da DGS e da Câmara de Lisboa. Seguiu-se a polémica autorização para a disputa da final da Champions no Estádio do Dragão, enfim aberto, mas só a um público britânico (desta vez sem funestas consequências, dado o prudente distanciamento físico a que a população do Porto se manteve dos forasteiros). E, logo depois, as mais altas figuras do Estado acompanharam o desenrolar do Euro, febrilmente, tomados por ímpetos juvenis, e, a partir de uma Lisboa em "estado de cerca" parcial", incitaram à deslocação em massa de lisboetas e dos restantes portugueses ao estádio de Sevilha, outra cidade situada em "zona vermelha". Este encadeamento de incidentes com o futebol como pano de fundo, teve, contudo, muito pouco a ver com a realidade e a gente do futebol, e com os interesses do desporto. Tratou-se, em todos os casos, de mero aproveitamento do futebol pelos políticos que nos governam. Quando falam de fãs emotivos e descontrolados, põem um cachecol ao pescoço e olham-se ao espelho... 3 - Quanto à seleção, apenas um diagnóstico breve: sofre de dois males cumulativos: a usura (lenta...) do poder absoluto de Fernando Santos e o endeusamento de Ronaldo, o melhor jogador do mundo por definição, pouco importando que esteja em boa ou em má forma, Santos, ao chegar, fez um saudável contraste com dois antecessores, que, enclausurados nos seus enormes "egos", montavam "equipas de autor" (Queiroz e Bento). Chamou os proscritos de Bento e com eles e outros montou um conjunto em que vedetas e operários, de várias gerações, se uniram harmoniosamente. Foi bonito de ver e, sem produzir maravilhas no relvado - exceto a espaços, com a genialidade de um ou outro predestinado a grandes cometimentos - atingiu o topo da Europa no Euro 2016 e, de seguida, na primeira Taça das Nações. Prestigiado e adulado, a torto e a direito, também Santos, anos volvidos, converte a seleção nacional no "clube do Fernando". Abundam os nomes com lugares cativos, mesmo quando os jogadores que lhes correspondem estão esgotados, Viu-se... Por outro lado, a idolatria de Ronaldo não ajuda o coletivo, sem culpas para o ídolo, vítima e não vilão, (o fenómeno que, aos 36 anos, dá nome a um aeroporto internacional e um museu e é, nas redes sociais, o rosto mais conhecido do seu País). A lenda não vai envelhecer, o homem sim (a menos que Pepe lhe desvende o segredo da sua eterna juventude). E as seleções jovens mostram, constantemente, num futebol de luxo e de ataque, que não nos faltam heróis em lista de espera.

DEFESA DE ESPINHO 16 setembro 2021 - MEMÓRIA PARA A HISTÓRIA

MEMÓRIAS POLÍTICAS PARA A NOSSA HISTÓRIA 1 - Não conhecemos ainda qualquer esboço do programa das anunciadas comemorações dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, que ocorrem em 2024. Bem à portuguesa, só sabemos, para já, dois nomes. O de quem preside, simbólica e honorificamente - o General Ramalho Eanes, que há muito devia ser o Marechal Ramalho Eanes, e é absolutamente indiscutível - e o de quem vai "presidir" ao Executivo, um jovem professor da área do PS, cuja notoriedade enquanto comentarista de vários "media" em muito suplanta o seu, para já, modesto currículo universitário. Apesar da sensatez e moderação com que sempre intervém, representa, face à escolha da personalidade do Presidente, o 8 perante o 80. O perfil de académico é, a meu ver, o ideal para um coordenador da "comissão organizadora" das celebrações, se, como me parece fundamental para o seu êxito, se vierem a centrar em aprofundadas investigações interdisciplinares. Para fazer história e para "fazer futuro" - na linguagem de então, para "cumprir Abril", ou para dar a dimensão da modernidade às "conquistas da revolução". O que por tal se entende não é inequívoco ou consensual em todos os quadrantes, mas, da equidistância dos cientistas se espera que os considerem todos. Como escreveu Agostinho da Silva, o filósofo que adorava gatos, a história que mais interessa é a do futuro. Porém, não é menos verdade que o ponto de partida e a fonte de ensinamentos e de inspiração é a do passado... Os trabalhos vão, suponho, começar em breve e prolongar-se por vários anos, antes e depois da efeméride nuclear. Nada tenho a opor a um tão extenso período de preparação e de continuidade de esforços se eles envolverem abertura às diversas universidades e especialistas, (não se fechando em "lobbies"" ou capelinhas), se servirem a pesquisa académica rigorosa, a recolha de documentação, a reflexão e a divulgação da história, pensando, em particular, nos mais jovens, no diálogo intergeracional. Eu atrever-me-ei, contudo, a afirmar que, num certo sentido, essa tarefa já teve o seu início num segmento particularmente importante da preservação da memória, com o testemunho direto de muitos dos protagonistas da revolução de 1974 e da edificação da democracia - ou seja, o seu "dia seguinte", na meia década de setenta e na de oitenta. Falo das autobiografias políticas, que não eram propriamente uma boa tradição nacional, mas que ganharam terreno entre os nossos contemporâneos. Cavaco Silva contribuiu com dois volumes, meticulosamente documentados, e mais os seus "diários" da presidência, na esteira de Jorge Sampaio. Mário Soares deixou-nos uma riquíssima coleção de publicações, tocando várias épocas e domínios, até o literário. Convidativos exemplos! As últimas publicações do género que tive a oportunidade de consultar, foram as de Diogo Freitas do Amaral, em 2019, - com o volume final de uma trilogia, "Mais de 35 anos de Democracia Um Percurso singular" Memórias Políticas III (1982-2017) - e de Francisco Pinto Balsemão, intitulada, simplesmente, "Memórias". Ambos nos oferecem a perspetiva diacrónica de uma fascinante e vertiginosa sucessão de eventos em duas décadas cruciais, tal como as atravessaram e marcaram, com um contributo individual para alicerçar a arquitetura do Estado democrático. E, não parando aí, trazem-nos com eles na viagem por mais um quarto de século de democracia estabilizada, até à atualidade. Para muitos, sobretudo os que que nunca souberam o que é o quotidiano de gente comum ou dos ativos intervenientes sob a ditadura, é uma incursão num mundo desconhecido, norteado por normas estranhas, absurdas... Para outros tem o encanto de uma saga acompanhada de perto, ou, até, em alguns momentos, partilhada. Ao lado de Freitas do Amaral, no governo em que ele foi Vice-Primeiro Ministro de Sá Carneiro, como sua Secretária de Estado, vivi o melhor ano da minha vida, o de 1980, até ao dia 4 de dezembro. Lembrá-lo, página a página, torna-se, assim, uma espécie de romagem de saudade. De Balsemão não posso dizer o mesmo, nunca fui amiga nem prosélita, mas, à distância de décadas, é um exercício estimulante constatar, com mais objetividade, não só divergências de análise sobre casos e pessoas, mas concordâncias e algumas bem relevantes, como a relativa à atual filiação do PSD, a nível europeu - o erro de trocar, em fins de século, a Internacional Liberal e Reformista por um PPE, cada vez mais conservador e menos cristão-democrata - ou a simpatia por um militar "presidenciável", que se chamava Mário Firmino Miguel. 2 - Embora abrangendo, no decorrer de um dado período, as vicissitudes da vida pública no mesmo espaço é muito distinta da de Balsemão a narrativa de Diogo Freitas do Amaral - reflexo natural das diferenças de personalidade, de pensamento, de formação académica, de objetivos na profissão e na política, e de realização concreta nestes dois sectores. Freitas do Amaral conjugou, na perfeição, uma fulgurante carreira universitária, (muito novo ascendendo a Professor Catedrático de Direito), e uma corajosa, determinada, e não menos brilhante trajetória cívica e política, ganhando o seu lugar entre os "pais fundadores" do regime nascido no do 25 de Abril - primeiro presidente do CDS, o "Homem de Estado", que, segundo Mário Soares, "ajudou a converter a direita portuguesa à democracia". Escreveu muitas páginas de história, que é não apenas sua, mas do País, e, por isso, de leitura obrigatória. Uma obrigatoriedade que a leveza e a naturalidade com que se exprime, numa linguagem, em simultâneo, precisa, simples e acessível sobre os temas mais complexos, torna, afinal, muito grata e aliciante, não exclusivamente para especialistas em questões de política nacional e internacional, mas para qualquer um de nós. Enquanto Balsemão nos apresenta a sua "narrativa de vida" de mais de oito décadas, Freitas do Amaral optou por se focar nas "memórias políticas", editadas ao longo de mais de 20 anos em três volumes - nos anos de 1995, 2008 e 2019. Neles vamos, fase a fase, seguindo o excecional trajeto de alguém que se preparou, com talento, rigor e dedicação, para ser o que foi. Numa expressão sua, lapidar. "Sonhei coisas grandes e, felizmente, vivi muitas"- Bastante novo atingiu o topo da carreira académica, como professor catedrático de Direito, e muito novo se viu a liderar um dos quatros grandes partidos do pós 25 de Abril. Excecional se revelou, depois, em todos os cargos aos quais se candidatou e para os quais foi eleito, dentro e fora do país - Deputado, Vice Primeiro Ministro, Primeiro-Ministro interino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs (o primeiro português eleito para a presidência de uma grande "Internacional"), Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, candidato à presidência da República, numa eleição que ganhou na 1ª volta e perdeu na 2ª, para Mário Soares, por escassos 138.000 votos... Paradigmática é a forma como analisa os vários factores determinantes dessa derrota, com uma objetividade de cientista político, e como aceita, democraticamente, o veredicto popular, não hesitando em afirmar: "O percurso e o currículo de Mário Soares eram nitidamente superiores aos meus".( Quase metade dos portugueses tinham mostrado, nas urnas, pensar o contrário...). Recusando contestar o resultado, o candidato vencido apressou-se a felicitar o vencedor. No dia seguinte, recebeu em casa "um enorme ramo de flores', com um cartão de cumprimentos, admiração e respeito do casal Maria Barroso e Mário Soares". Nas "Memórias", comenta: "Só o Mário Soares e a Maria de Jesus seriam capazes de fazer uma coisa destas". E eu acrescentarei: Só Freitas do Amaral seria capaz desta reação - a democracia portuguesa no seu melhor! Na era dos Trump e dos Bolsonaros, motivo, para nós, de renovado orgulho. 3 - Francisco Pinto Balsemão, em mil densas páginas, reúne, nos capítulos que sobre política se debruçam, um manancial de dados, desde os dias em que a revolução apenas se adivinhava, sem hora certa. Deputado da "ala liberal" na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano, fundador de um semanário que soube antecipar o tempo da democracia,( "O Expresso"), co-fundador de um partido político, que pesou decisivamente na mudança de regime, o PPD/PSD, Ministro, Primeiro Ministro por dois anos (e dois governos), deputado europeu por 11 dias. E muitas coisas mais: milionário nato (ou seja, de fortuna herdada, que não dilapidou), jornalista, advogado, empresário da comunicação social, não lhe falta matéria de interesse para levar a conhecimento público. Passados os 80 anos, bem gozada a vida, satisfeitas as ambições, as que teve e até as que nem tinha sonhado (nomeadamente ser Primeiro-Ministro, o que somente aconteceu por um trágico acaso), fala sem reservas nem resguardos. É ele próprio, retrata muitas figuras da nossa "res publica", tal como as vê e, ao fazê-lo, retrata-se a si também. Poucos são os que se autobiografam assim, emitindo opiniões, com o à vontade, de quem está numa roda de amigos. O jornalista vem ao de cima", redige com desembaraço e espontaneidade, sem floreados, sem excessivas subtilezas, sem poupar os alvos, ainda que estes hajam ocupado, ou ocupem hoje os mais altos cargos de Estado. As passagens agrestes sobre Marcelo Rebelo de Sousa, não só no livro, mas em entrevistas laterais ao seu lançamento, fazem furor, e, talvez expliquem, pelo menos em parte, que a 1ª edição esteja, (ao que consta), já esgotada. Da Bertrand, em Espinho, trouxe comigo o último exemplar, que só terei conseguido, por estar ligeiramente amolgado - nada que afete o conteúdo. Em jeito de recomendação, terminarei confessando que tenho ficado a lê-lo pela noite dentro, refrescando lembranças, algumas já vagas, e confrontado as minhas com as suas interpretações sobre o encadeamento de ocorrências, de conflitos, polémicas, pessoas que os protagonizaram - exercício tão grato quando aquelas vão no mesmo sentido como quando são dissonantes. Em suma, mais um significativo subsídio para a história de uma então tão jovem e esperançosa democracia.

era uma vez ...viagem à roda de África 24 set 2021

ERA UMA VEZ Viagem à roda da África com Maria Archer O que levou uma escritora e jornalista famosa pela qualidade literária da sua prosa, realismo das suas personagens, pendor para o observação etnográfica e ousadia na defesa de causas fraturantes a empreender uma incursão no universo encantatório da literatura para crianças? Partindo do seu "romance de aventuras infantis" e das motivações que ela nos revelou para o oferecer a pequenos leitores, vamos refletir, com Ester de Sousa e Sá e José Vaz sobre as sua prórpias experiências e pontos de vista. O "Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer" agradece a sua participação na 6ª feira, dia 24 de setembro, das 18.15 às 19.15 . Tópico: Zoom meeting invitation - Reunião Zoom de Maria Manuela Aguiar Hora: 24 set. 2021 06:15 da tarde Londres Entrar na reunião Zoom https://us02web.zoom.us/j/82284434416?pwd=K3U2Q1poOS9RQWZ6REM5MHcrWFl5UT09 ID da reunião: 822 8443 4416 Senha de acesso: 672848

terça-feira, 27 de julho de 2021

SUBITAMENTE, MEMÓRIAS DAQUELE DIA DE ABRIL... 1 . Com a morte de Otelo se revive, agora, intensamente, aquele 25 de abril já longínquo, com uma avalanche mediática de depoimentos, noticiários, imagens e entrevistas de época... Assim , de repente, e sem ser por decreto do governo, se iniciaram, verdadeiramente, as comemorações da revolução, que vai fazer o seu cinquentenário daqui a três anos. Para um governo que queria começar com grande antecedência a preparação da efeméride, fez-lhe, prematuramente e por uma triste razão, a vontade o destino... Só Salgueiro Maia, que partiu tão cedo e tão discretamente, (na sua opção de uma vida inteira de servir o País, com honra e sem vã glória), é um símbolo maior do movimento dos capitães, que fez a revolução e abriu caminho à democracia. A ambos estes, então, jovens militares - homens da minha geração, apenas alguns anos mais velhos do que eu... - não faltou a audácia e a coragem de afrontar o Poder e arriscar a vida pela liberdade. Isso lhes devemos, para sempre, como Povo, a eles e a todos os que estiveram juntos nessa grande aventura, tão espantosamente bem sucedida. E não vale dizer, como alguns ainda insistem em fazer-nos crer, que em causa estavam meros interesses corporativos. Não... A democratização do regime, na fase final da operação militar em preparação, era já a prioridade. O que começara com um mero caderno de reivindicações de caráter "sindical" de oficiais de carreira, convertera-se em autêntica luta ideológica de combate à ditadura, para pôr termo a uma guerra colonial, votada à derrota pelos ventos da história. Já não estava em causa a alteração de um diploma que gerara o mal-estar inicial num determinado setor, mas a discussão do programa de um movimento das forças armadas para o derrube do regime anacrónico, seguida da transição para a democracia plena. A solução para o mal-estar coletivo de múltiplos mundos, presos no mesmo impasse, na mesma ditadura. Um fim de ciclo. Um fim do império. A libertação simultânea de um Estado velho e de vários novos Estados, que iriam conhecer sorte muito diversa... Tempo de paz, no fim da transição, para Portugal e para Cabo Verde, que rapidamente se reconstroem, em democracia. Tempo de mais sangrentas guerras para outros países africanos, de invasão e genocídio para Timor-Leste... O que se faz demasiado tarde, tem tudo para correr tragicamente A exceção é do domínio do milagre. Na nossa descolonização, o único milagre foi obra dos cabo-verdianos. 2 - Conto-me entre os que olham com agrado uma comemoração do 25 de abril de 1974, que seja mais do que festas e discursos rituais, centrados num dado momento, desde que um período tão alargado se destine a reflexão e estudos sérios, envolvendo investigação académica, preservação de testemunhos e memórias, chamando interlocutores no universo do antigo império, da lusofonia. Missão ciclópica, diálogo que se adivinha difícil, se ousar afrontar dogmas e preconceitos, se ambicionar um enfoque diacrónico não só sobre este meio século, mas sobre o seu "antes" e o seu "depois". Tarefa que deverá congregar velhas e novas gerações, pôr o acento no intercâmbio de ideias, de solidariedades, sem esquecer as migrações, que neste espaço pluricontinental se continuam, e são verdadeiras pontes transnacionais entre as sociedades dos países a que pertencem. Escolha ideal, indiscutível, a do General Ramalho Eanes para a Presidência das comemorações, porque ninguém, como ele, representa não só o espírito da revolução militar que incorporava um projeto (necessariamente incerto) de democracia, mas a capacidade de viver o projeto no seu conseguimento concreto, com o voto dos portugueses. Nem todos queriam o mesmo, como o PREC mostrou, dia após dia, e, sobretudo, em dias que ficaram gravados no curso da história - 28 de setembro, 11 de março, 25 de novembro... - em que se inscreveram diferentes conceitos para a palavra democracia... Á partida, decepcionante é a entrega da coordenação do programa de celebrações a um jovem universitário, com notoriedade que lhe vem muito mais dos ecrãs de televisão do que de trabalhos científicos. Na TV, de onde o conheço, me parece, devo dizê-lo, um moderado e afável comentador, embora não uma fulgurante e carismática personalidade, um Soares, uma Maria Barroso, um Guterres, um António Vitorino - para me ater só ao quadrante socialista... Às vezes, não é mau partir de baixas expectativas... De qualquer modo, sentir-me-ia bem mais animada com um grande nome das Ciências ou das Letras, à frente de estrutura menos rígida, onerosa e pesada. 3 - Otelo é, por sinal, o exemplo mais do que perfeito para exemplificar a diferença que faz entregar uma missão à pessoa certa ou pessoa errada. No 25 de abril, a coordenação do plano estratégico e da sua operacionalidade, converteu-o em herói nacional. Aí, como o "cérebro" de uma revolução sem sangue, vitoriosa e popular, ganhou o seu lugar num pedestal de fama, de onde ninguém jamais o retirará. E, todavia, não era, de todo, talhado para "o dia seguinte". Ou seja, para nenhuma das altas funções que veio a exercer... Não avanço prognósticos sobre o julgamento final que lhe está reservado na história pátria, mas tenho o meu, subjetivo e naturalmente irrelevante. Para mim, há, para além da sua inconstância ideológica, da sua adesão a todos os excessos revolucionários, que fizeram perigar a implantação da democracia, (tal como eu a entendo), uma surpreendente constância na procura do "bem comum" e não de proveito pessoal, que me leva olhá-lo benignamente. Desde o PREC, estive sempre do lado contrário da barricada, olhando a sua radicalização, sem nenhuma condescendência no que respeita às suas ações, enquanto figura pública, mas, estranhamente, com bastante complacência em relação ao Homem. É alguém que eu gostava de ter conhecido pessoalmente, cuja voz faz falta na comemoração que se aproxima, cuja partida lamento.

terça-feira, 20 de julho de 2021

ERA UMA VEZ...ADELIA PANISSE O REI DA FLORESTA

ERA UMA VEZ... O Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer vai organizar, dentro da temática "Literatura e Migrações", um ciclo de colóquios sobre o conto infantil, denominado "ERA UMA VEZ", em que procura divulgar obras de autores da Lusofonia, de dentro e de fora de Portugal. É uma forma de homenagear Maria Archer, na sua faceta de grande contadora de histórias, oralmente, com sabemos pelo testemunha de sobrinhos e primos, que foram parte das audiências que a ouviram, com entusiasmo, em Lisboa, e, também, através de uma ou outra incursão na literatura infantil e juvenil - como tantos outros escritores, jornalistas e professores, em que se incluem Ana de Castro Osório, Natália Correia, Sophia, Érico Veríssimo, Luís Sepúlveda, Rosa Montero e Vargas Liosa. Em Julho realizam-se dois colóquios, no dia 17, a partir da Galiza com Adela Figueiroa Panisse, e no dia 26 de julho, do Canadá, com Manuela Marujo, celebrando, com "O Dia dos Avós" . O ciclo prosseguirá a partir de fins de setembro. COLÓQUIO POR ZOOM Sábado, 17 de julho, das 16.00 às 17.30 Adela Figueroa Panisse, escritora nascida em Lugo, apresentará o seu livro; O REI DA FLORESTA. Tenho o grande prazer de os convidar para assistirem pelo ZOOM, à primeira sessão desta temática que estou certa se revelará muito interessante, podendo interagir e partilhar. Agradeço a divulgação e partilha. Saudações amigas Ester de Sousa e Sá Tópico: Zoom meeting invitation - Reunião Zoom de Maria Manuela Aguiar Hora: 17 jul. 2021 04:00 da tarde Londres Entrar na reunião Zoom https://us02web.zoom.us/j/7531842887?pwd=VTdDVFRySkgva2wyUXRJekhFSXA2dz09 ID da reunião: 753 184 2887 Senha de acesso: xK2LNF A sessão será integralmente gravada

quarta-feira, 23 de junho de 2021

ESTADO DE CALAMIDADE DE DEMOCRACIA

ESTADO DE CALAMIDADE NA DEMOCRACIA Ainda somos um Estado de Direito? Vivemos longos meses em "estado de emergência", demasiadas vezes renovado, do qual passamos, sem respirar os ventos das liberdades constitucionais, para o chamado "estado de calamidade", que, em bom português, parece coisa pior, mas juridicamente não é. A fundamentação para, deste modo, "suspender" a democracia plena era "salvar vidas" e impedir o colapso dos serviços de saúde. Segundo as nossas autoridades, nenhuma dessas fatalidades é hoje provável. E, aliás, mesmo quando o risco era visível, (e ressurgente, ao sabor de confinamentos radicais e desconfinamentos levianos), as restrições só podiam ser as ajustadas, estritamente, ao objetivo. A fronteira entre o uso e o abuso do poder de cercear a liberdade, os direitos e garantias dos cidadãos assentava na racionalidade das medidas, na adequação dos meios ao escopo, em suma, na procura de uma rigorosa proporção, com ela assegurando a igualdade de tratamento das pessoas e das situações. Apesar de um sem número de exemplos de desnorte e arbitrariedade da parte da DGS e da Ministra da Saúde, os portugueses tudo iam suportando, com infinita paciência. O principal partido da oposição, por seu lado, escusava-se a denunciar erros e omissões, ou a apontar alternativas, e a elite dos nossos constitucionalistas assistia, impávida, à "radicalização" da DGS, sem nela vislumbrar ameaça à democracia. Talvez por melhor conhecer a matéria e melhor distinguir o essencial e o supérfluo no combate à crise pandémica, foi um médico especialista, Adalberto Campos Fernandes, antigo Ministro da Saúde de António Costa, e não um homem de Leis, o que primeiro ouvi a alertar para o desgoverno neste domínio, para a ultrapassagem dos limites de razoabilidade, pondo em cheque o "Estado de Direito", porque o "Estado de Direito" exige a igualdade de tratamento e a justificação dos normativos e ditames, assente numa base científica. Um condicionalismo que as autoridades se mostram incapazes de cumprir. No estado a que chegámos, é crucial, como diz aquele ilustre ex-Ministro, simplificar medidas, que as pessoas compreendam, e sair de uma espiral de contradições - lembremos as contantes e absurdas alterações dos horários de lojas, restaurantes, espetáculos, a inexplicável discriminação de uns setores face a outros, quando não de cidadãos nacionais perante estrangeiros..Na memória dos desmandos do ano louco de 2021 fica uma senhora que foi multada pela polícia por comer uma sanduíche dentro do seu próprio carro, a proibição de beber água no espaço público, de enfeitar janelas, portas ou montras com flores de papel, e de vender vasos de manjerico por altura dos Santos Populares... Por sorte para os responsáveis por tudo isto, o ridículo não mata!... Joana Amaral Dias é outra não jurista que se mostra chocada com a experiência governativa destes últimos meses, dizendo que nem Salazar teve tanto poder de condicionar as vidas dos portugueses. De facto, para além de nos terem confinado, vigiado, vedado o acesso às igrejas, aos funerais, aos cemitérios, aos cafés, aos recintos desportivos, às areias das praias e à vista do mar (em tempo invernoso!), ou aos bancos dos jardins públicos, tentam, sistematicamente, intimidar quem ouse pôr em dúvida a bondade das suas delirantes decisões - o que a senhora DGS fez até na AR, perante os deputados, como se estivesse ainda na antiga Assembleia Nacional... Neste capítulo, nem o Primeiro Ministro, insuspeito democrata, se salva, pois não resiste a zurzir qualquer crítico, como se fosse um inimigo da Pátria.. Anda mal habituado, pela notória falta de oposição política. Porém, afortunadamente, de repente, foi a gente anónima que se fartou de tanto desacerto. A revolução mental do 29 de maio O povo acordou no dia em que mais de 16.000 ingleses foram autorizados a assistir à final da Champions nas bancadas do Dragão, e 500 portugueses proibidos de entrar no Estádio do Jamor, para uma final de râguebi (depois de idêntica interdição ter atingido a final da Taça de Portugal de futebol, em Coimbra). Foi a gota de água... Já acontecera a noite verde e branca, que tumultuou as ruas da capital - prenúncio da viragem, ímpeto de retorno às antigas liberdades. Na esfuziante festa do SCP fora, por sinal, muitíssima mais compacta a multidão, mais numerosos os desacatos, mais violenta a repressão policial, (brigas de bêbados são rituais lisboetas de celebrações de campeonatos, ao contrário do Porto, onde a festa é sempre um São João convivial, que dispensa a vigilância das forças da ordem). O escândalo de Lisboa assumiu, porém, contornos de coisa menor, caseira, benevolentemente olhada, com o próprio Presidente da Câmara a encorajar a festança rija, pretextando ter perdido um email em que a Polícia se manifestava contra. Pela primeira vez, calou-se a voz da DGS, que saiu de cena e deixou o papel de vilão a um solitário Ministro Cabrita. O evento constituiu, em pandemia, um autêntico teste sanitário com desmesurada amostragem (digno de figurar no Guiness), e veio comprovar que o número de internamentos hospitalares não disparou, e menos ainda o de mortes por Covid 19, provocando, contudo, um "super contágio" (para usar a expressão do sportinguista Paulo Portas) e levando a juventude a perder o medo, e a animar a noite dos bairros populares, em confraternizações fora de horas e de regras, à maneira dos "hooligans" ingleses, sem precisar da adrenalina do futebol. E assim o vírus se multiplica, imparavelmente.. A nível interno, parece não haver consequências de maior - apenas se mudam, à pressa, os dogmas da DGS, de modo a não confinar a capital... mas não se mudam, com tanta facilidade, os critérios estabelecidos a nível internacional. A catástrofe abateu.se já sobre o nosso turismo, começando com o governo britânico a banir-nos da sua "lista verde", e podendo vir a ser seguida outros. O Algarve e os emigrantes portugueses do Reino Unido pagam, assim, o preço dos folguedos consentidos em Lisboa! E falta ainda saber se "Champions" agravou, ou não, o "panorama Covid" na região do Porto, após o previsível falhanço da "bolha sanitária" que o governo, com tanta ligeireza, nos prometera.. A verdadeira barreira que isolou os ingleses na Ribeira, na Avenida dos Aliados, na cidade inteira, foi uma "bolha cívica", espontaneamente criada pela população do Porto, que não se misturou com eles, nem participou em bebedeiras e desacatos. Em vão, o "Expresso", jornal sulista e elitista e, de vez em quando, sensacionalista, fazia nas vésperas do jogo, notícia com foto grande e manchete de 1ª página, profetizando "confrontos entre "adeptos ingleses e do FCPorto". No interior, dedicava, quase integralmente, a sua página 5 a uma crónica, cujo título sintetiza bem o conteúdo: "Alerta para confrontos entre "casuals" do FCP e hooligans antissemitas". Na edição seguinte, o Expresso esqueceu-se de referir o exemplar comportamento dos portistas, tal como o dos espectadores britânicos, que emolduravam o retângulo de jogo na final. Fora do estádio, a história foi outra, semelhante à da Albufeira e mais ajuntamentos algarvios - ou seja, muita cerveja na via pública, nada de máscaras, pequenas escaramuças de fãs bastante ébrios. Quanto a antissemistismo, manifestações de extrema direita e outras pragas anunciadas, felizmente, nada!... Proibir, sem mais, ou permitir, com regras, eis a questão... O que mais chocou os portugueses e desacreditou a autoridade irracional e despótica a que temos estado sujeitos, foi o a discriminação dos portugueses, tratados abaixo de estrangeiros no seu próprio país. Este despertar de consciências, ou sobressalto cívico, foi o que de positivo nos trouxe a aberrante dualidade de critérios, que se sentira, ao longo do ano e de toda a época competitiva, discriminando o desporto ao ar livre, e, em especial, o futebol (profissional, amador - e até o de formação!) se comparado com eventos culturais programados em espaços fechados. A desobediência em massa, e quase sempre pacífica, às regras draconianas em vigor, perante a passividade da polícia, tanto em Lisboa como no Porto, estimulou resistências e gerou novos comportamentos (que têm de passar pela liberdade de movimentos, plasmada em normas simples que já interiorizamos - uso de máscara, distância física, desinfeção das mãos). E deixou uma lição, (mais uma...) aos responsáveis máximos, no plano nacional ou local: não vão pelo caminho mais cómodo de proibir, proibir, proibir... Esse pode ser o último recurso, não deve nunca ser o primeiro! É preciso esclarecer as pessoas e confiar na sua racionalidade, na sua colaboração voluntária. Vejam o que aconteceu no futebol, o setor mais diabolizado pela senhora DGS: dentro dos estádios, a capacidade de organização daqueles clubes, onde foi, a título excecional, permitida a presença do público, revelou-se, invariavelmente, perfeita. O que correu mal, em Lisboa e no Porto, aconteceu fora, desafiando proibições. Do futebol bem podemos extrapolar para outros domínios (que gozam, imerecidamente embora, de melhor reputação). Vejamos o exemplo, as festas populares. Entre a proibição, pura e dura, de Medina e a iniciativa de Rui Moreira, ao criar espaços de diversão, com entradas controladas, não tenho dúvidas em recomendar o paradigma portuense, esperando que possa inspirar não só outros municípios, mas, também, o Terreiro do Paço!

SEM ALTERNATIVA

Maria Manuela Aguiar DE VEZ EM QUANDO SEM ALTERNATIVA 1 – Os grandes homens e as grandes mulheres revelam-se em tempos de crise, pela capacidade em passar do remanso da normalidade à gestão inteligente e eficaz do desconhecido, de catástrofes inimagináveis. Para nossa infelicidade, a pandemia de 2020/21 veio patentear a inexistência de políticos com esse perfil entre os que nos governam – ou desgovernam. O PM e o PR, agora reeleito, não conseguiram “agir”, mas tão só “reagir” à situação, e fizeram de conta que assumiam, não assumindo, as suas responsabilidades no caos em que tentamos sobreviver. Para além deles, no parlamento e nos partidos de oposição não parece haver ninguém com peso e influência na matéria. E os poucos que levantam a voz são, de imediato, intimidados com o labéu de “traidores à pátria”. E, assim, entramos no “inferno português” das chamadas segunda e terceira vagas, que, após breve hiato estival, sucedeu ao ambíguo “milagre português” da primeira vaga – o qual, creio eu, só foi possível graças ao atempado confinamento de março 2020, por iniciativa dos próprios cidadãos, impressionados pela imagens que chegavam de Itália, e contra a teimosa renitência governamental. Por isso, tendo o povo sido incitado a relaxar no verão, com multidões nas praias, e um público apelo à vinda dos turistas ingleses e espanhóis, (sem testes nem controlo à chegada, salvo na Madeira e nos Açores – bendita seja a Autonomia…), e tendo, depois, atravessado o outono, despreocupadamente, e passado o Natal em “shoppings” sobrelotados e festas de família, nos vemos, em janeiro de 2021, no topo da lista negra, em número de mortos pela pandemia (proporcionalmente à população) – perdido que foi, há muito e por completo, o rasto às cadeias de contágio. De bom, avulta o esforço constante dos profissionais de saúde, em cada um dos hospitais, (que até para transferirem doentes das unidades que esgotam recursos, pedem e dão apoios num eixo bilateral). e o de todos aqueles autarcas, que têm sabido estar no terreno, junto dos munícipes. Num programa de televisão a que assisti, recentemente, os presidentes das Câmaras de Gaia (PS), Viseu (PSD) e Loures (PCP) falavam, em tal sintonia, das soluções encontradas face aos ciclópicos problemas trazidos pela Covid, que, se não soubéssemos a sua cor política, era difícil adivinhá-la. Fui sempre regionalista e sinto-me, agora, não direi reforçada nas minhas convicções, porque já eram inabaláveis, mas com mais e melhores argumentos para as defender. Madeira, Açores e muitas autarquias são prova bastante da superior eficácia e sensibilidade destes governos de proximidade, quando comparados com o desnorteado governo da República. 2 – Cronologicamente, o último erro de monta a apontar aos nossos políticos é o da realização das eleições presidenciais, a 24 de janeiro, em plena pandemia! Na véspera, o número de mortos (272) e o de novos casos diários (mais de 15.000), constituíam novos recordes, mas nem isso moderava o entusiasmo de apelar ao voto, por parte de candidatos, governantes, CNE ou comentaristas dos “media” – todos, em uníssono, assegurando que o ato era realizado em condições de perfeita segurança. Quod erat demonstrandum… Com o meu pessimismo de hipocondríaca (caraterística, por acaso, partilhada com o Senhor Presidente da República), logo admiti como muito provável o aumento de contágios e de fatalidades, mormente nos grupos de risco – os velhinhos que a DGS quer sempre cautelosamente confinar, exceto quando está em causa o “superior interesse” de ganhar uma mão cheia de votos. Ora a democracia não morreria, se os mais vulneráveis escolhessem, sem pressões, ficar em casa, ao abrigo da exposição ao vírus e às intempéries, até porque os políticos não trataram de lhes dar, de facto, as condições de um voto seguro e fácil – por correspondência, ou meios digitais. E nem sequer, ao contrário do que acontece em países verdadeiramente preocupados com os seus idosos, (como os EUA, ainda no mandato de Trump, e, agora, no de Biden, a Alemanha da Senhora Merkel, a maioria dos nossos parceiros europeus), os colocaram na primeira linha de vacinação anti-Covid. Só por força de uma alteração de 25.ª hora, os maiores de 80 anos, que residem “em liberdade” (isto é, os que não cumprem autênticas penas de prisão em lares de idosos), serão, ao que parece, requalificados na lista de precedência de vacinação. (De fora fica, estranhamente, a faixa etária dos 70/79 anos). Em suma, estas eleições deveriam ter sido adiadas, em outubro ou novembro, quando as cadeias de contágio já cresciam assustadoramente, pela via de uma revisão – relâmpago de um artigo da Constituição na Assembleia da República. Em alternativa, poder-se-ia ter previsto, no texto constitucional, a faculdade do voto por correspondência, (de que já há experiência no nosso sistema eleitoral), e até do voto eletrónico, que é o futuro. Segundo a sondagem do “Expresso”, na véspera das eleições, ainda 57% dos portugueses queria o adiamento, contra uma minoria de 37%. Um povo bem mais avisado do que os seus representantes eleitos! Na verdade, só o adiamento do processo e (ou) a votação postal teriam garantido o voto a todos os cidadãos, nomeadamente os emigrantes e os que, por razões de saúde, ou de confinamento profilático, a partir do dia 14 de janeiro, viram, na prática, denegado esse direito. O PR soube lembrá-los como desculpa para a elevada abstenção, mas não contribuiu “ex ante”, para que fossem criadas efetivas condições de sufrágio universal. Uma palavra de especial agradecimento é devida aos milhares de portugueses que permaneceram por mais de doze horas nas mesas de voto, arriscando voluntariamente a sua saúde, apesar de todas as precauções certamente tomadas. 3 – O desenlace eleitoral não trouxe surpresas de maior. O Porto acompanhou o resto do país, muito embora, com Ana Gomes mais destacada à frente de Ventura e o portuense Mayan Gonçalves com votação superior à da sua própria média nacional. Ventura foi, em alguns “media” estrangeiros, chamado o “Trump português”. Talvez goste da comparação e não podem negar-se algumas similitudes de caráter, de pensamento e de estilo arruaceiro… Ambos atraem o eleitorado do “país profundo”, interior, menos letrado e menos desenvolvido, e, saliente-se, masculino – é sabido que, nos EUA, Trump ganhou na metade masculina, e Biden venceu, largamente, no país, graças às mulheres de todas as raças e idades. Em Portugal, Marcelo estará em Belém por mais cinco anos, sem polémicas nem contestação. É de outra ordem a dúvida que ficou no ar: em que medida podem estes resultados ser extrapolados para as próximas eleições legislativas? Uma sondagem da Universidade Católica, feita à boca das urnas, veio dar-nos uma primeira ideia sobre a redistribuição dos sufrágios de Marcelo (que colheu de todas as esquerdas à direita democrática), e os reequilíbrios partidários que se adivinham: um PS (com 35%), um PSD (com 23%), ambos em perda, mas continuando a dominar o largo “centrão” do espectro político. À esquerda e à direita, porém, anuncia-se que nada permanecerá como dantes. A extrema-direita (com 9%) e o centro- direita, do Iniciativa Liberal (com 7%) relegam o CDS/PP para uns residuais 2% – o mesmo que o PAN. O BE consegue segurar 8%, o PCP, derrotado no seu antigo reduto alentejano pelo discurso incendiário de”O Chega”, mantém a posição, (recuperando alguns fiéis tresmalhados) e o “Livre” não vai além de 1%. Que política de alianças permitiria o quadro em que esta sondagem profetiza? Uma nova “geringonça”, não menos instável? Uma (praticamente) impossível reedição do “Bloco Central” de Mário Soares e Mota Pinto? De fora, por força da estatística, e não só, deve ficar o paradigma açoriano… Brada o Ventura que o PSD não pode ser governo sem “O Chega”. Bem pelo contrário: o PSD não pode, a meu ver, nunca, ser governo com “O Chega”! Ganhará, sim, talvez, no plano interno, com ou sem CDS, um novo parceiro possível, ideologicamente distinto, mas decente e democrata – o IL – depois de, a nível internacional, ter pertencido, por largos e bons anos, à Internacional Liberal. No horizonte próximo, este (des)governo não se verá, provavelmente, ameaçado por qualquer alternativa. Não se sabe, porém, se o Presidente andará mais desperto e pronto a “apagar fogos”…