terça-feira, 21 de setembro de 2021

MENINA E MOÇA ME LEVARAM... 1 - O título tem , para além da sua encantatória ressonância literária, a virtude de espelhar a principal constante que encontramos em tão admiravelmente heterogéneo conjunto de registo sobre percursos de emigração feminina. De facto, poucos são os que refletem uma decisão própria das protagonistas, que partiam em função de escolhas e projetos de outrem - pais, maridos... Em Portugal, desde o início da Expansão, a aventura embrionária de correr o mundo foi negada às mulheres, e até à revolução de 1974 sempre iria ser proibida ou fortemente condicionada. A fronteira para as portuguesas foi, ao longo de séculos, a mais estreita que podemos conceber: o "emparedamento" dentro da casa familiar, que, em muitos casos, nem era verdadeiramente sua. Ao investigar e divulgar o fenómeno da colonização imperial portuguesa, Boxer, intitula a coletânea que dá à estampa, "Mary and misogyny", labéu que se perde na branda tradução para a nossa língua. O estudo procede à comparação das políticas e da prática das nações peninsulares e aponta a portuguesa como a mais discriminatória do sexo feminino, quase invariavelmente excluído dos planos régios de povoamento das suas possessões, sendo este baseada em uniões de facto ou matrimoniais, com as mulheres daí, dessas terras.. A emigração não se segue cronologicamente a uma fase de colonização estatal, antes com ela, sobretudo no imenso Brasil, desde cedo se entrelaça (por tal se devendo entender a que corresponde a movimentos espontâneos, que, quando barrados, resistiram e romperam as proibições e condicionamentos impostos pelo Poder régio. E foi nos contingentes de clandestinidade que aumentou, a pouco a pouco, o número de mulheres. A tradição de clandestinidade, a que no século passado se chamou "o salto", remonta, pelo menos, ao século XVII e vai em crescendo nos seguintes, através dos oceanos, tendo por destino dominante a América do Sul, e, depois, (no ciclo da pesca à baleia e ao atum), a partir dos Açores, a América do Norte, e, mais próximo de nós, por montanhas e vales, o centro da Europa. Porém, são ainda, maioritariamente, os homens que partem, como se tivessem interiorizado os ditames misóginos das Leis - ou como se estas tivessem plasmado preconceito enraizados. Um longo e imparável êxodo de "homens sós", a que as mulheres, por vezes, anos depois, se conseguiam juntar, Só por exceção à regra, se permitiu a saída de famílias inteiras (por exemplo, das Ilhas Atlânticas para o Havai, no último quartel do século XIX). e até no paradigma historicamente relevante da expatriação de "mulheres sós", as "órfãs d' El Rei", elas vão, "meninas e moças", sim, mas levadas por vontade alheia,por vontade régia, para muito longe, em viagens sem regresso. A massificação do reagrupamento familiar, registada a partir do começo e ao longo de todo o século passado, permitiu um crescente equilíbrio de género nas nossas comunidades, alcançado sem incentivo ou apoio do Estado e contra um sem número de obstáculos. Neste campo, as únicas políticas públicas respeitantes às mulheres, através dos séculos e dos regimes, até 1974, foi a proibição ou a sujeição a regras altamente discriminatórias. Ninguém melhor do que o republicano Afonso Costa, na sua veste de académico e catedrático, terá expresso o preconceito subjacente àquelas regras, ao considerar a partida das mulheres uma "degenerescência do fenómeno migratório". Contudo, elas, que partiam, em regra, num segundo tempo e com um estatuto de dependência, viriam a desmentir a bondade daquela visão de época puramente economicista das migrações, (que foi preponderante no meio académico e político), a contribuir para o sucesso dos projetos migratórios comuns e a criar pontes com as sociedades locais e a dar às comunidades a sua vertente de vivência familiar e cultural,. Este estado de coisas estará a mudar, no interior da chamada "nova emigração", de jovens altamente qualificados, impondo um outro estereótipo de mulher migrante, senhora do seu destino, levada por projetos de carreira, no ritmo determinado pelos seus próprios passos. Mas a imagem áurea da independência feminina constrói-se, ainda, uma pequena minoria. Desde logo, porque este "brain drain", esta autêntica expatriação de "cérebros" é um segmento importante, mas pequeno da totalidade dos movimentos de saída e, também, porque a desproporção de sexos, entre os jovens mais qualificados, continua a ser superior à da maioria dos países europeus. Permanecemos, assim, dentro do quadro de migrações, que mantiveram - e ainda, largamente, mantêm - o seu perfil tradicional, revelador do conservadorismo larvado de uma sociedade, tantas décadas depois da revolução igualitária. . 2 - As mulheres que neste projeto coletivo se reúnem, em vibrantes testemunhos de vida, são (ao menos as portuguesas), quase todas oriundas da realidade configurada no "paradigma bernardiniano". Quem são elas? Que vida se permitiram, dentro na categoria assim privilegiada (e sob um manto de invisibilidade lançado sobre os seus contributos, tecido, afinal, da mesma matéria, do mesmo descaso com que as crónicas lavradas por homens apagaram as suas marcas originais)? Página a página, cada uma das Autoras, rememorando o passado, encontrou a sua própria fórmula de dar respostas diferentes a uma infinidade de interrogações, por si colocadas, onde, afortunadamente, podemos não só reconhecer o percurso extraordinário de uma geração, mas, de algum modo, também, refazer a história das migrações femininas a uma nova luz. Há outros modos de avançar neste domínio, o primeiro dos quais é, certamente, o trabalho académico multidisciplinar, hoje visto como fundamental (quando antes nem sequer era considerado um objetivo da investigação científica, nomeadamente para historiadores, antropólogos, sociólogos e politólogos. Na verdade, nem mesmo no campo dos estudos das mulheres, ou, anteriormente, no terreno da longa e tão custosa reivindicação dos seus direitos, a especificidade da situação das migrantes recebeu a merecida atenção. E, por isso, esta História, que se constrói de histórias individuais é complementar, insubstituível e, não raramente se converte em fonte inspiração e tema de novas linhas de pesquisa. Aceitaram o convite para responder muitas mulheres migrantes, cujos caminhos passaram por todos os continentes do mundo. O convite a que dessem os seus rostos à experiência vivida do estrangeiro, de que se faz realidade vivencial sobre estereótipos e preconceitos. Um convite a nos deixassem - a nós, os seus leitores - acompanhá-las na viagem pelas suas memórias. E o que à partida, se adivinhava tão igual foi ganhando, em cada passo do caminhos, contornos de uma infinita diversidade, página e página, num livro fascinante, escritos a muitas mãos, muitos destinos. Cada uma das viagens individuais, únicas e irrepetíveis, nos transporta à sua trajetória geográfica de entrelaçamento de continentes e de culturas, no espaço da lusofonia, Angola e Moçambique, Goa, Macau e Timor, Guiné Bissau, Cabo Verde e Brasil ou no das comunidades de fala portuguesa nas Américas, do Sul e do Norte , e da Europa e África à Oceania... E não só a uma terra, mas a um lugar situado em dado tempo, que nos transporta ao cenário da II guerra mundial, da invasão da Hungria pelos tanques soviéticos, ou a um Portugal, terra de refúgio, poupado da devastação bélica dos anos 40, mas não da opressão e da pobreza sem remédio, causa maior do incessante êxodo migratório transoceânico, continuado, na segunda metade do século passado (como se vê olhando o nascimento de novas comunidades, como são as da Venezuela, da Austrália e do Canadá, nesta coletânea tão exemplarmente representadas), quando o movimento de saída se dirige, crescentemente para a Europa, onde França vai ocupar a posição dominante que fora, por vários séculos, a do Brasil Não há um caso que seja semelhante ao outro, muito embora tenhamos de reconhecer, entre a maioria das Autoras, afinidades no cumprir de projetos mais orientadas para o sucesso académico do que para o material, no envolvimento cívico para mudar um estado de coisas, numa mundivisão partilhada pela AMM, que com elas, desta forma ímpar, comemora o seu 25º ano de atividade. É uma iniciativa que vai idealmente no sentido de aprofundar o conhecimento das especificidades das migrações femininas e de dar, neste domínio, visibilidade ao papel das mulheres, como agentes de grandes transformações societais - a razão de ser primeira desta Associação - e que relança, numa data tão simbólica, um dos seus mais antigos projetos, o de recolher narrativas de vida, e, mais latamente, o de promover essas recolhas, a nível académico e comunitário, como um dos meios mais poderosos de a cumprir, de um modo eficiente, específico, dialogante. . 3 - Uma breve nota sobre a AMM, que, em 1995, se apresentou num Congresso Mundial de Mulheres da Diáspora, (o maior até hoje organizado no país), com as suas singularidades, e vocação - uma associação feminista. sem medo da palavra enquanto sinónimo de um "humanismo integral", fundada em Lisboa com o olhar na Diáspora, aberta a mulheres e homens, por igual empenhados na luta contra o sexismo, o racismo e a xenofobia, (ramos de um tronco comum), que o seu lema sintetiza, dizendo: "Não há estrangeiros numa sociedade que vive os direitos humanos". A frase tem tudo a ver com a situação das mulheres, estrangeiras no seu próprio país, quando lhes são negados os direitos da cidadania plena e o reconhecimento do seu papel fundamental na construção de comunidades interculturais, de pontes entre culturas, de Diásporas, com horizonte de futuro. Por isso, desde o início, os projetos focados na memória, na desocultação dos valores femininos soterrados no caudal das narrativas sempre padronizadas no masculino, foram dos primeiros a que se dedicou a AMM, como mostram algumas publicações, centradas em determinados países ou comunidades. Nenhuma foi tão abrangente, nem conduziu a resultados tão concludentes como esta. Devemos a todas as participantes um imenso agradecimento! 4 - Num momento em que crescem, por todo o mundo, forças de regressão, anunciadas por inquietantes sinais de ressurgimento de violência racial, xenófoba e sexista, que não podemos ignorar, este um livro torna-se portador de esperança, com o seu cortejo de admiráveis exemplos concretos de superação de mil e um obstáculos. Uma maioria das Autoras são, como uma delas tão expressivamente se diz, "filhas do salto" - da aventura pelos caminhos da emigração percorridos com o projeto de fugir à pobreza e oferecer à família uma "vida melhor". E isso na emigração multissecular significou quase sempre a abastança material, mas, como é bem conhecido, em muitos casos depressa esse projeto se estendeu, também, a uma vertente cultural.. E são as herdeiras desse "desvio" as que, sobretudo, aqui encotramos

Sem comentários:

Enviar um comentário