sábado, 19 de fevereiro de 2022

MARIA ARCHER no seu tempo futuro

MARIA ARCHER NO SEU TEMPO FUTURO Por ocasião dos 40 anos da sua morte 1 - No dia 23 de janeiro, completam-se 40 anos sobre a morte de Maria Archer, grande escritora e jornalista, para quem a escrita começou por ser narrativa acutilante de experiências de vida em muitas partes do mundo da lusofonia e tornou-se, crescentemente, ato de cidadania, denúncia de um modelo opressivo e misógino de família e sociedade. O regime ditatorial não só a perseguiu e forçou ao exílio no Brasil, como, deliberadamente procurou apaga-la da história, no dizer de Maria Teresa Horta, prefaciadora da reedição de um dos seus mais lidos romances (“Ela era apenas mulher”). No ocaso de uma trajetória literário, que a doença encurtou, Maria Archer estava consciente disso e não encontrava em si o ânimo para contrariar o esquecimento a que fora sentenciada, mas sempre acreditou que o futuro lhe faria justiça. Numa quase total invisibilidade voltou a Lisboa, em 1979, e veio a morrer três anos depois. Parecia ter deixado, de uma obra vastísssima obra, apenas um ou outro livro sobrante nas prateleiras de alfarrabistas, e de um imenso talento a recordação prestes a extinguir-se juntamente com os derradeiros leitores da sua geração. 2 – A segunda vida da Maria Archer começou no Brasil (mais do que em Portugal), com o renovado interesse de um pequeno grupo de académicos na sua obra tão polifacetada, que vem sendo objeto de estudo e de divulgação em artigos, publicações, conferências, teses de mestrado e doutoramento. A esperança de Maria Archer num reencontro com o futuro estará em vias de se cumprir! E só pela via do reconhecimento de um indiscutível valor literário, mas também pela via do seu pioneirismo de surpreendentes textos de natureza etnográfica sobre os povos e culturas de África colonial lusófona ou sobre a condição das mulheres portuguesas durante o Estado Novo e pela sua corajosa luta pela liberdade As comemorações do cinquentenário do 25 de Abril, vão, com certeza, lançar em simultâneo, um olhar sobre a evolução de cinco décadas de democracia e de cinco décadas de resistência à ditadura e aqui Maria Archer não pode ser esquecida! Não o é num projeto que está em investigação na Universidade Nova, como não foi numa iniciativa com que, nesta linha, o jornal Público se antecipou, homenageando, há alguns meses, mulheres cujos livros foram proibidos pela Censura. Nessa seleção, entre dez publicações, duas são de Maria Archer. Está em formação uma vaga de fundo que trará a público a memória da sua vida, como a comemoração do centenário da República trouxe a de Carolina Ângela ou Ana de Castro Osório. E nem terá de esperar até então. A efeméride que neste mês de janeiro celebramos vai coloca-la em foco nos meios académicos. O Porto receberá o ato inaugural, como ela, por certo, gostaria. Tinha orgulho na sua ascendência irlandesa, e, afinal, esta foi a cidade para onde imigrou, no ano de 1720, o seu primeiro ascendente, um aristocrata oriundo de Kilkeny, Lancaster. Entre janeiro de 2022 e janeiro de 2023, o Circulo de Culturas Lusófonas Maria Archer , esperamos levar a bom termo uma agenda em que abordaremos, sucessivamente, as temáticas da criação literária e artística das mulheres portuguesas, das migrações, da cidadania e da Diáspora, do diálogo no universo da lusofonia. A 22 de janeiro no Porto, pelas 16.00, abrimos a programação, inaugurando na Galeria da Biodiversidade, a exposição “Vivências”, comissariada por Ester de Sousa e Sá, antecedida por uma mesa redonda com os pintores que, na tela, procuraram deixar a sua interpretação da personalidade, do espírito, do mundo de Maria Archer. Seguir-se-á, em fevereiro e março, um colóquio sobre “Maria Archer e outras Mulheres de referência e de (Ir) reverência”, e um ciclo de conferências com periodicidade quinzenal. 40 anos depois da sua partida, Maria Archer, regressa, intemporal para ficar na História das Letras e do Jornalismo, da Literatura Colonial, do Feminismo e da Democracia.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

AMM in FACES DE EVA

ASSOCIAÇÃO "MULHER MIGRANTE" - UM PERCURSO SINGULAR 1 - NASCIDA COM AS PRIMEIRAS POLÍTICAS DE GÉNERO PARA A EMIGRAÇÃO A Mulher Migrante Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade" (AMM), foi criada em 1993, por escritura pública de 8 de outubro de 1993 e tem, estatutariamente. por objetivos principais aqueles que a sua própria designação sintetiza: o estudo da problemática das migrações femininas; a cooperação com mulheres profissionais e dirigentes de associações das comunidades portuguesas do estrangeiro e das comunidades de imigração em território nacional: o apoio à integração das mulheres nas sociedades de acolhimento, através de uma ativa participação em todos os domínios, e dá igual destaque ao combate às "idéias e movimentos xenófobos" (Gomes, 2014, p 46). . É uma colectividade que se vê como integrante dos movimentos de reivindicação da igualdade de sexos, no particular domínio das migrações, o mais esquecido não só pelos governos como pelas diferentes correntes do sufragismo novecentista. O que confere à AMM a sua identidade no universo associativo português não é tanto o seu escopo, mas o modo como o desenvolve na área concreta em que interage, e as alianças através das quais o prossegue. Entre as suas singularidades poderemos enumerar: o ser uma associação mista, formada por mulheres e homens irmanados nos mesmos objetivos;.o estar sediada no país, mas voltada para a Diáspora, (em particular, a feminina), embora atenta, também, a fenómenos de discriminação em território nacional - em relação a imigrantes e a emigrantes regressadas e suas famílias; promover, através das fronteiras, um "encontro de mundos" que tendem a isolar-se - os de emigrantes e não emigrantes, de mulheres e homens, de académicos e gente com experiência vivencial do fenómeno migratório ou de diferentes gerações; o combinar, estrategicamente, a actividade de estudo com a ação concreta, a mobilização para a igualdade, pela via de um “congressismo”, renovado à medida de realidades atuais de discriminação sexista; a filiação num projeto anterior à sua criação, que ainda por cumprir, visando, por um lado, mobilizar as portuguesas para a intervenção cívica e, por outro, reclamar a implementação de políticas públicas para a igualdade das comunidades do estrangeiro. A vontade expressa de lançar uma organização internacional de Portuguesas da Diáspora havia sido anunciada, nas conclusões no "1º Encontro de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo", promovido, em 1985, pela Secretaria de Estado da Emigração, em Viana do Castelo (Centro de Estudos da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, 1986, p 138). Veio a ser concretizada, decorrida quase uma década, pela "Mulher Migrante", fundada por mais de um terço das participantes do 1º Encontro. Encontro pioneiro com que o nosso "antecipou, assim, em 10 anos, o que haveria de ser uma das principais recomendações da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres organizada pelas Nações Unidas, em Pequim, em 1995: a indispensabilidade do empoderamento das mulheres, de que são pressupostos a visibilidade e o reconhecimento" (Cunha Rego, 2015, p 24). Portugal era um protagonista improvável deste iniciativa, dada a constância de políticas discriminatórias de interdição ou forte limitação da emigração feminina, antes da revolução de 1974, e, seguidamente, em democracia, a mera proclamação formal da Igualdade, desacompanhada, nas comunidades do estrangeiro, de qualquer ação positiva, A verdade é que o início do processo se deve ao rasgo de uma das primeiras mulheres a ter assento no Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), órgão consultivo do Governo. O CCP era composto por conselheiros eleitos em colégio eleitoral associativo e por jornalistas - todos homens, em resultado do sufrágio, de 1981. Ficava, assim, gritantemente evidenciada a marginalização a que estavam votadas as mulheres no universo associativo das comunidades. Idêntico foi o resultado das eleições de 1983 exclusão, mas na quota do jornalismo surgiram as primeiras mulheres, apenas, duas. E bastou uma, a jornalista de Toronto, Maria Alice Ribeiro, para fazer a diferença, com a sua proposta da realização de um congresso de mulheres, onde pudessem ter a presença e a voz, que lhes faltava no "Conselho". A Secretária de Estado da Emigração, por inerência Presidente do CCP, encetou, de imediato, a preparação do Encontro, que reuniu, no ano seguinte, dirigentes associativas e jornalistas, num formato de audição semelhante ao do CCP, o que permitiu às participantes fazer amplo e inovador levantamento da situação das diferentes comunidades e dirigir ao Governo um conjunto de significativas recomendações. Estava dado o primeiro passo na implementação de políticas de género. A convocatória anual de uma "Conferência para a Participação das Mulheres", prevista na órbita do CCP, foi inviabilizada pela queda do Governo, seguida, a curto prazo pela do CCP. E, por isso, o segundo passo das políticas públicas, neste campo, que pareceria fácil, tardou 20 anos e seria, novamente, impulsionado, de fora, por proposta da "Mulher Migrante", justamente a coletividade que se considera herdeira da inesperada modernidade desse passado. 2 - Cumprir O PROJETO A associação fundada em 1993, integrava mais de um terço das intervenientes do Encontro de Viana, e apresentava-se como o fórum interassociativo para a cooperação das mulheres da Diáspora, nos termos ali delineado, com exceção da já assinalada singularidade de uma plena abertura a participação masculina, que se deseja tendencialmente paritária (muito embora seja ainda minoritária) e que, de modo algum, se pretendeu impor nas comunidades, onde se reconhece,não haver as mesmas condições para operacionalizar a opção. As mulheres portuguesas nas Comunidades do estrangeiro quase sempre responderam à sua exclusão no associativismo masculino ou com a criação de estruturas próprias, de fins predominantemente beneficentes e de entreajuda (de que são exemplo as grandes sociedades fraternais femininas da Califórnia, a Sociedade Beneficente das Damas Portuguesas de Caracas, a Liga da Mulher da África do Sul), ou aceitando participar no movimento associativo misto "a latere", em departamentos femininos (situação muito comum, sobretudo, na América do Sul). É um quadro em mudança, com a gradual e lenta ascensão das mulheres ao dirigismo, que outrora lhes era vedado num associativismo que impunha na "casa coletiva" que é o centro de convívio, a mesma divisão de tarefas, tradicional no interior de cada família... Organizações focadas na reivindicação da igualdade, que prolonga, adaptando-a a novas realidades o "congressismo" feminista da primeira metade do século passado, eram praticamente inexistentes antes do Encontro de Viana, e, posteriormente, da ação da AMM, nascida dessa dinâmica, em rutura com o passado (note-se, porém que não só o Estado, mas também o movimento sufragista ignorou, um pouco por todo o lado, a situação específica das mulheres expatriadas). . A AMM desempenhou ao longo de mais de 25 anos esse trabalho de mobilização, em duas fases distintas: na primeira década de atividades, com ação mais centrada dentro de fronteiras, em articulação com a Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres (CIDM), e em coordenação com delegações e congéneres do estrangeiro (cada qual atuando no seu círculo territorial), na segunda, iniciada em finais de 2005, convertida em parceiro privilegiado de sucessivos governos na implementação de políticas de promoção da Igualdade de género na Diáspora portuguesa. A PRIMEIRA DÉCADA 1995-.2005 A AMM tem existência jurídica desde 1993, mas só no ano seguinte, se apresenta em Barcelos, conjuntamente com a Associação Comercial e Industrial num colóquio sobre a problemática do regresso, ciente de que, para as mulheres, as mais das vezes significa "regressão", perda de estatuto consolidado no estrangeiro, com a independência económica de um salário, e a frequente liderança do processo de integração de toda a família. Em março de 1995, firma a sua imagem com a organização, do maior congresso da Diáspora feminina até hoje levado a cabo no País, sob o lema "Diálogos de género e geração". Contou com apoios de grandes Fundações, a Gulbenkian, a Luso Americana, e a Oriente, e, também do Governo, central e local, traz a Espinho, personalidade dos cinco continentes e os grandes nomes na investigação da emigração, estudantes, técnicos, ex. emigrantes, políticos, representantes das Autonomias, num debate de uma intensa semana de trabalho. Com o acento posto na intergeracionalidade, a sessão inicial foi presidida pela Secretária de Estado da Juventude, a de encerramento pela Drº Maria Barroso, que, desde então, aderiu ao projeto e nele viria a ter papel de primeiro plano. O Encontro Mundial "serviu para dar a conhecer a nossa Associação, foi também a concretização de uma das recomendações do "Encontro de Viana" (Graça Guedes, 2015, p 27), foi prova das virtualidades da novíssima associação, permitindo-lhe o enorme alargamento da sua rede de cooperação e matriz de futuro. Desta década, a AMM chamaria à interlocução sobre a facticidade das migrações femininas, as suas congéneres da Diáspora, associações de imigrantes lusófonos, políticos, nomeadamente autarcas e serviços regionais, administração pública e investigadores (muitos dos quais se tornaram seus ativos membros). A sistemática publicação de atas e comunicações de conferências e colóquios era seguida de apresentação em vários pontos do país, dava, assim, azo à multiplicação dos debates sobre as migrações, femininas e globais. O país estava a converter-se em polo de atração maciça de migrantes vindos do leste europeu, e revelava impreparação no seu acolhimento e legalização. A AMM foi das primeiras ONG' a promover junto do poder local, ações de sensibilização e de esclarecimento. A CIDM continuava a ser parceiro privilegiado e na presidência de Maria Amélia Paiva, tomou a iniciativa (inédita no historial da instituição) de promover um colóquio sobre: "Mulheres Migrantes - Duas faces de uma realidade". A AMM, representada pela presidente Rita Gomes, fez parte da organização O décimo aniversário da AMM, comemorado em 2004, num grande encontro internacional, seria patrocinado pela FLAD e pelo SECP Carlos Gonçalves, num envolvimento que prenunciava já o recomeço de preocupações com a problemática da igualdade.. UM NOVO CONGRESSISMO PARA A IGUALDADE Dos "Encontros para a Cidadania" (2005.2009) aos Encontros Mundiais de 2011 e 2013 Um novo "congressismo" para a igualdade Em 2005, a AMM entrou, numa segunda fase, marcada pela estreita cooperação com a SECP, para a execução de um ambicioso plano governamental para a promoção da igualdade. De facto, foi a Associação que desencadeou o processo, ao propor ao Secretário de Estado António Braga a comemoração do 20º aniversário do mítico Encontro de Viana, em novo Encontro para fazer o ponto de situação das desigualdades subsistentes. O Secretário de Estado quis ir além de um grande evento isolado, e, inesperadamente, convidou uma pequena (embora singular) associação, como "parceiro privilegiado para o desenvolvimento de políticas de género" (Aguiar, 2011, p 109), incumbindo-a de organizar, ao longo do seu mandato (2005-2009), reuniões de mobilização para a vivência da Igualdade, Governo e AMM optaram pelo modelo de "congressismo" com que fizeram história as organizações feministas do começo de novecentos, adaptando-o a novos tempo e contextos. Com a designação de "Encontros para a Cidadania - a Igualdade entre Mulheres e Homens, esses "fora" de livre análise, diálogo e mobilização para a mudança, tiveram sempre a presença de um membro do Governo, António Braga ou Jorge Lacão (Secretário de Estado da Presidência, com o pelouro da Igualdade), e de Maria Barroso, Presidente de Honra, e assumiram caráter internacional (com representação das comunidades de cada uma das grandes Regiões: América do Sul, (Buenos Aires, em 2005), Europa, (Estocolmo, em 2006), América do Norte, costa Leste, (Toronto, em 2007), África (Joanesburgo) e América do Norte costa Oeste, (Berkeley), em 2008. A organização esteve a cargo de Associações locais - a AMM da Argentina, a Federação das Mulheres Lusófonas (PIKO), a Cônsul- Geral, antiga presidente da CIDM, Maria Amélia Paiva, coadjuvada por várias associações luso-canadianas, a Liga da Mulher da África do Sul e Deolinda Adão da Universidade da Califórnia-Berkeley (também associada da AMM). É de realçar o facto de todos os eventos terem tido, em proporção variável, significativa participação de homens, do mundo associativo, académico e político, um positivo sinal dos tempos e, em alguns casos, também de políticos daqueles países. Em 2009, em Espinho, o" Encontro dos Encontros", com a intervenção dos relatores de cada um dos "congressos" e muitas dezenas de participantes (predominantemente investigadores), permitiu fechar ciclo, em jeito de balanço, e olhar em frente, com a propositura de outras medidas Em 2011, logo após tomar posse, o Secretário de Estado José Cesário chamou a AMM á co- participação no seguimento das políticas encetadas pelo predecessor, com aceleração de ritmo e de frequência das acções, essenciais à mobilização imparável e crescente. Com ele (2011-.2015), o "congressismo" atingiu o seu ponto alto, com a alternância bienal de congressos no País (em 2011, na Maia, lançando um olhar retrospetivo e prospetivo sobre as nossas migrações, começou por uma homenagem a Maria Archer e Maria Lamas, mulheres da diáspora e da resistência, e 2013, no Palácio das Necessidades, falando de novas expressões de cidadania, para além da política e do voluntariado, á cultura, às artes e á economia) e de múltiplos encontros e conferência nas várias comunidades da Diáspora (em 2012, ano europeu do envelhecimento, com o lançamento do Projecto ASAS - Academias Seniores de Artes e Saberes) e em 2014, a comemoração sobre 40 anos de migrações em liberdade – seu significado no Direito e na Vida - um ciclo de conferências, que teve a abertura presidida pelo SECP por Maria Barroso, no Palácio das Necessidades e prosseguiu, nas comunidades da Europa e das Américas, e, através de docentes, que são associadas da AMM na universidades de Berkeley, Toronto, Sorbonne, UAB- Lisboa… O enfoque colocado no associativismo, a partir dos debates do 1º Encontro, justifica-se pela simples constatação de que é, em regra, mais fácil às emigrantes afirmaram o seu estatuto de cidadania nas sociedades de acolhimento, quando regidas por normas e costumes mais igualitários, do que no interior das comunidades portuguesas, e suas instituições, onde continuam a ver-se segregadas. E, por isso, se entendeu que a ação governamental, deveria incidir nesse terreno, onde não necessitava de diálogo bilateral com outro governo porque tudo se passava - e se passa - entre portugueses.Tem sido esse, também, o domínio prioritário de ação da AMM, cuja vocação matricial é a cooperação interassociativa e transnacional e uma das constantes da sua atuação tem sido a criação de oportunidades para reflexão e debate sobre a reformulação dos papéis de género ou o reconhecimento do papel das mulheres em cenários improváveis onde, afinal se conclui que tem todo s cabimento, apesar de nunca antes haver sido tentado. Por exemplo nos festejos de 10 de junho, que, em muitas comunidades, são manifestações de vulto, com programação cultural variada durante dias, quando não semanas. As primeiras experiências ocorreram em Newark, nas grandes comemorações organizadas pela Fundação Coutinho, e em Montreal, em conjunto com o Consulado, o CCP e o Carrefour Lusophone, uma associação de jovens. O mesmo aconteceu em outros eventos das comunidades, em que outras são normalmente as temáticas tratadas: os Encontros (anuais) das comunidades do Cone Sul da América, a Convenção da Associação dos Portugueses Estrangeiros (APE), Bienais de Artes Plásticas, como as de Espinho (em 2013) e a de Gaia (em 2019), as celebrações do Dia Internacional da Mulher, onde, em Portugal, raras vezes as emigrantes têm visibilidade - e a a AMM trouxe ao presente a memória de Maria Archer, de Maria Lamas ou do do sucesso coletivo de toda uma geração que partiu "a salto" para França. Inédito foi, também, envolver a Federação das Associações Portuguesas de França num colóquio em que foram homenageadas mulheres presidentes de associações na região de Paris, (tendo o êxodo desse primeiro colóquio levado a "Federação" integrar na sua agenda anual a efeméride, como ocasião de balanço sobre o estado das discriminações). Na mesma linha de desocultar o papel real das mulheres migrantes, ou de denunciar a distorção da sua imagem, se integraram os seminários sobre "Mulheres Migrantes - os multimédia enquanto espaços de ação e representação", realizados, no Canadá e EUA, para audiências de jornalistas, investigadores, e estudantes, na U Massachusetts-Dartmouth, na Rutgers University, de Newark e em Toronto. Não menos importante tem sido, como é óbvio, o trabalho de cooperação com ONG's e movimentos femininos, como "A vez e a voz da Mulheres" , "A voz das Avós", "Mulheres em Movimento", para além dos já mencionados e, naturalmente, da rede de instituições e individualidades associadas à AMM. A preocupação de pôr o acento tónico nas questões de cidadania e a de valorizar todas as formas de militância feminina mais tradicionais somaram-se sempre na trajetória da AMM. Em 2015, a fraca proporção de mulheres eleitas para o CCP, ainda longe da meta da paridade, mostra, agora, como em 1985, onde estão, ou não estão, as mulheres da Diáspora, mas a vitória retumbante das dirigentes da AMM nas eleições da Argentina e da Venezuela é reveladora da importância da vertente do associativismo que vem fomentando. Mais do que enumerar a longa lista de realizações e publicações da "Mulher Migrante", os muito nomes que a marcaram, desde a fundação - lembraremos só a memória de Maria Barroso, Rita Gomes e Alice Ribeiro - procuramos aqui focar momentos-chave de uma caminhada, mostrar o espírito que a animou, os meios a que recorreu, que foram afinal, a forma como fez valer as causas nas circunstâncias que se lhe ofereceram.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

UM PAÍS INVARIAVELMENTE AO CENTRO in DEFESA DE ESPINHO jan 2022

2022 - UM PAÍS INVARIAVELMENTE AO CENTRO 1 - Voto por dever e por gosto. Já fiz, várias vezes, centenas de quilómetros para votar. Em 1975, era assistente da Faculdade de Direito, com residência obrigatória em Coimbra, e encontrava-me em Lisboa. Fui e voltei no meu carro, por estrada quase deserta e, depois, esperei horas, por esse momento empolgante, numa fila interminável, de gente compenetrada e silente, como quem aguarda num templo o início de uma cerimónia religiosa. A taxa de abstenção foi insignificante, o povo estava em luta, usando a arma democrática, por excelência, que é o voto. Estava em causa a Assembleia Constituinte, onde se inaugurou a arquitetura partidária em que assentou, até 30 de janeiro passado, a casa democracia portuguesa, com os quatro partidos que elegeram a maioria dos deputados. Ao fim de 47 anos, o CDS desapareceu do Parlamento e o PCP está reduzido a seis deputados… Pelo contrário, o PS e o PSD resistem, repartem entre si a maioria de 2/3, essencial a revisão constitucional, à aprovação das Leis fundamentais do regime, às reformas estruturais de que o país precisa para ter futuro. Já houve maiorias absolutas do PSD (duas, com Cavaco Silva) e do PS (duas, com José Sócrates e, agora, com António Costa). Uma impressionante constância do voto popular, não obstante o leque de escolha partidária ser, nessa fase de construção da democracia, extremamente alargado, com um acentuado pendor esquerdista (para além dos que sobrevivem num completo anonimato, como o MRPP, os extintos MDP/CDE, UDP, UEDS, MES, PT, OCMLP, PUP, FSP, PRT, PCP-ML, PSR, e POUS entre outros). A autoproclamada direita, como o MIRN de Kaúlza de Arriaga, reduzia-se a pequenos grupos marginais. O CDS de Freitas do Amaral dizia-se "rigorosamente ao centro", (vocação de que, há muito, mais não resta do que o logótipo original) e assumia a tarefa patriótica de converter a direita ao seu programa cristão democrata - feito histórico que lhe é, sem dúvida, reconhecido. Seria, curiosamente, o primeiro partido a apoiar Mário Soares num governo de coligação PS/CDS, e, poucos anos depois, parceiro do PSD de Sá Carneiro na coligação AD, que conquistou a primeira maioria absoluta, em 1980. O PPD apresentara-se, em maio de 1974, ideologicamente na esquerda reformista, com um carismático Sá Carneiro, que já no início da década de setenta, em tempos de ditadura, ousava afirmar-se publicamente “social-democrata à sueca". Mas, quer a maioria dos militantes, quer a maioria dos dirigentes que se seguiram, embora invocando perpetuamente o seu nome, foram resvalando para o centro-direita, e apenas alguns históricos resistem ainda no centro-esquerda. Sá Carneiro tudo tentou para que o PPD fosse aceite na Internacional Socialista, o que só a oposição do PS, (já antes de 1974 membro dessa Internacional), inviabilizou. Para integrar outra família europeia, a Liberal, Sá Carneiro exigiu que adotasse, também, a designação “reformista”. O PSD já abandonou a Internacional “Liberal e Reformista”, mas esta, suponho, mantém o título, por inércia. E para onde foi, no dealbar do novo século, o PSD? Para o PPE, onde hoje convive, não só com o CDS, como com os duvidosos representantes húngaros do partido do Senhor Órban…). Talvez muitos já tenham esquecido o nome do presidente do PSD que protagonizou essa viragem à direita, a meu ver, errada. Aqui fica o nome: Marcelo Rebelo de Sousa! Note-se, porém, que, nesses tempos primordiais, nem o PS escapou à necessidade de proceder a correções de vulto do seu esquerdismo inicial, abandonando, pouco a pouco, o "slogan "Partido Socialista, Partido Marxista" e tornando-se, com Mário Soares, a grande barreira democrática à ofensiva do PCP de Cunhal e, da extrema.esquerda, e um grande paladino da nossa adesão à CEE. Só o PCP permaneceu imutável, marxista, leninista, eterno saudosista da URSS pré-Gorbatchev e simpatizante da distopia norte-coreana. Por muito simpáticos que nos sejam o Jerónimo de Sousa e os seus jovens heterónimos – e até são! – há que de admitir esta verdade. 2 - Quarenta e sete anos depois, as eleições legislativas não tiveram, nem podiam ter, a mesma força mobilizadora. Foram, contudo, em plena pandemia, com mais de um milhão e meio de portugueses confinados, uma enorme surpresa em termos de participação popular e, mais ainda, de resultados! O mais surpreendido terá sido, porventura, o Presidente da República, único e exclusivo responsável pela dissolução da Assembleia da República e convocação de eleições antecipadas, que o chumbo do OE não implicava. O Governo fez questão de não se demitir, mostrou-se pronto a apresentar um segundo orçamento e nessa atitude começou a sua vitória - na qual só foi acompanhado, à distância, pelos dois outros únicos beneficiados pela antecipação de eleições, a direita inteligente da Iniciativa Liberal e a abominável extrema-direita do Chega. Perdedores houve muitos - o PSD, o BE, a CDU, o PAN, e o CDS, desaparecido em combate. E, “last but not least”, o Presidente da República, que utilizou, pela derradeira vez, o seu trunfo maior, que é a prerrogativa de dissolver o Parlamento. No nosso sistema político, a autoridade presidencial avulta em situações de instabilidade ou de crise, e foi nesse quadro que até agora alardeou a sua influência, através de uma superabundância de atos e palavras. A partir de 30 de janeiro, o poder deslocou-se de Belém para São Bento. Veremos se, após a inversão de posições entre Marcelo e Costa, o seu relacionamento se mantém como dantes... E veremos se a vitória do PS, alavancada nos fundos da UE que estão para vir, se converte, como desejamos, na vitória do País, na recuperação do seu atraso económico. 3 - Aparentemente, estamos perante uma radical reconfiguração parlamentar, com a hecatombe de algumas formações partidárias e a emergência de outras. Não vejo as coisas assim, recuperando aquela frase célebre de Pinheiro de Azevedo, gritada em situação bem mais dramática: "o povo é sereno!". É mesmo!... António Costa não deverá continuar uma política de adiamento de reformas de fundo, que aconselham, sempre e, em muitos casos, exigem mais do que a maioria absoluta, a maioria de 2/3. Esta maioria foi, desde 1975, dada ao chamado "bloco central'' - PS e PSD. E permanece em 2022, já que ficou praticamente inalterada a expressão dos partidos que se opõem ao modelo de democracia ocidental perfilhado por Mário Soares e Sá Carneiro. Houve apenas uma dança de cadeiras no hemiciclo. Há 12 extremistas que se sentam na bancada da direita e apenas 11 na da esquerda. Ao todo, 23 em 230. Somos um País invariavelmente ao centro!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

OTELO in DEFESA DE ESPINHO

SUBITAMENTE,  MEMÓRIAS  DAQUELE DIA DE ABRIL... 1 . Com a morte de Otelo se revive, agora, intensamente, aquele 25 de abril já longínquo, com uma avalanche mediática de depoimentos, noticiários, imagens e entrevistas de época... Assim , de repente, e sem ser por decreto do governo, se iniciaram, verdadeiramente, as comemorações da revolução, que vai fazer o seu cinquentenário daqui a três anos. Para um governo que queria começar com grande antecedência a preparação da efeméride, fez-lhe, prematuramente e por uma triste razão, a vontade o destino... Só Salgueiro Maia, que partiu tão cedo e tão discretamente, (na sua opção de uma vida inteira de servir o País, com honra e sem vã glória), é um símbolo maior do movimento dos capitães, que fez a revolução e abriu caminho à democracia. A ambos estes, então, jovens militares - homens da minha geração, apenas alguns anos mais velhos do que eu... - não faltou a audácia e a coragem de afrontar o Poder e arriscar a vida pela liberdade. Isso lhes devemos, para sempre, como Povo, a eles e a todos os que estiveram juntos nessa grande aventura, tão espantosamente bem sucedida. E não vale dizer, como alguns ainda insistem em fazer-nos crer, que em causa estavam meros interesses corporativos. Não... A democratização do regime, na fase final da operação militar em preparação, era já a prioridade. O que começara com um mero caderno de reivindicações de caráter "sindical" de oficiais de carreira, convertera-se em autêntica luta ideológica de combate à ditadura, para pôr termo a uma guerra colonial, votada à derrota pelos ventos da história. Já não estava em causa a alteração de um diploma que gerara o mal-estar inicial num determinado setor, mas a discussão do programa de um movimento das forças armadas para o derrube do regime anacrónico, seguida da transição para a democracia plena. A solução para o mal-estar coletivo de múltiplosmundos, presos no mesmo impasse, na mesma ditadura. Um fim de ciclo. Um fim do império. A libertação simultânea de um Estado velho e de vários novos Estados, que iriam conhecer sorte muito diversa... Tempo de paz, no fim da transição, para Portugal e para Cabo Verde, que rapidamente se reconstroem, em democracia. Tempo de mais sangrentas guerras para outros países africanos, de invasão e genocídio para Timor-Leste... O que se faz demasiado tarde, tem tudo para correr tragicamente A exceção é do domínio do milagre. Na nossa descolonização, o único milagre foi obra dos cabo-verdianos. 2 - Conto-me entre os que olham com agrado uma comemoração do 25 de abril de 1974, que seja mais do que festas e discursos rituais, centrados num dado momento, desde que um período tão alargado se destine a reflexão e estudos sérios, envolvendo investigação académica, preservação de testemunhos e memórias, chamando interlocutores no universo do antigo império, da lusofonia. Missão ciclópica, diálogo que se adivinha difícil, se ousar afrontar dogmas e preconceitos, se ambicionar um enfoque diacrónico não só sobre este meio século, mas sobre o seu "antes" e o seu "depois". Tarefa que deverá congregar velhas e novas gerações, pôr o acento no intercâmbio de ideias, de solidariedades, sem esquecer as migrações, que neste espaço pluricontinental se continuam, e são verdadeiras pontes transnacionais entre as sociedades dos países a que pertencem.Escolha ideal, indiscutível, a do General Ramalho Eanes para a Presidência das comemorações, porque ninguém, como ele, representa não só o espírito da revolução militar que incorporava um projeto (necessariamente incerto) de democracia, mas a capacidade de viver o projeto no seu conseguimento concreto, com o voto dos portugueses. Nem todos queriam o mesmo, como o PREC mostrou, dia após dia, e, sobretudo, em dias que ficaram gravados no curso da história -  28 de setembro, 11 de março, 25 de novembro... -  em que se inscreveram diferentes conceitos para a palavra democracia...Á partida, decepcionante é a entrega da coordenação do programa de celebrações a um jovem universitário, com notoriedade que lhe vem muito mais dos ecrãs de televisão do que de trabalhos científicos. Na TV, de onde o conheço, me  parece, devo dizê-lo, um moderado e afável comentador, embora não uma fulgurante e carismática personalidade, um Soares, uma Maria Barroso, um Guterres, um António Vitorino -  para me ater só ao quadrante socialista... Às vezes, não é mau partir de baixas expectativas... De qualquer modo, sentir-me-ia bem mais animada com um grande nome das Ciências ou das Letras, à frente de estrutura menos rígida, onerosa e pesada. 3 - Otelo é, por sinal, o exemplo mais do que perfeito para exemplificar a diferença que faz entregar uma missão à pessoa certa ou pessoa errada. No 25 de abril, a coordenação do plano estratégico e da sua operacionalidade, converteu-o em herói nacional. Aí, como o "cérebro" de uma revolução sem sangue, vitoriosa e popular, ganhou o seu lugar num pedestal de fama, de onde ninguém jamais o retirará. E, todavia, não era, de todo, talhado para "o dia seguinte". Ou seja, para nenhuma das altas funções que veio a exercer... Não avanço prognósticos sobre o julgamento final que lhe está reservado na história pátria, mas tenho o meu, subjetivo e naturalmente irrelevante. Para mim, há, para além da sua inconstância ideológica, da sua adesão a todos os excessos revolucionários, que fizeram perigar a implantação da democracia, (tal como eu a entendo), uma surpreendente constância na procura do "bem comum"  e não de proveito pessoal, que me leva olhá-lo benignamente. Desde o PREC, estive sempre do lado contrário da barricada, olhando a sua radicalização, sem nenhuma condescendência no que respeita às suas ações, enquanto figura pública, mas, estranhamente, com bastante complacência em relação ao Homem. É alguém que eu gostava de ter conhecido pessoalmente, cuja voz faz falta na comemoração que se aproxima, cuja partida lamento.   

Maria Manuela Aguiar sobre MARIA ARCHER LX 24 jan 2022

Uma primeira palavra de agradecimento à organização deste colóquio, em especial à Profª Isabel Henriques de Jesus, pelo convite para participar numa grande jornada de reflexão em torno de Maria Archer, no 40º ano da sua morte A celebração de uma efeméride é, por vezes, apenas cumprimento ritual de um calendário, mas também pode ser muito mais, se dela se faz um momento de salvaguarda da memória de figuras ou acontecimentos, um momento de reavaliação do seu papel, do seu significado no tempo presente. Assim sucedeu, por exemplo, na comemoração do 20º ano da convocatória do 1º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas na Emigração, de que resultou o reinício ou o verdadeiro início de políticas públicas naquele domínio, ou do centenário da República, em cujo programa de eventos foi dada enorme e bem merecida visibilidade a grande vultos da 1ª vaga do nosso movimento feminista. E assim poderá ser, e espero que seja, com as comemorações do cinquentenário da revolução de Abril, onde haverá lugar ao reencontro com a vida e a obra de grandes mulheres que a Ditadora e o chamado Estado Novo tentaram eliminar dos anais da República, do património imorredouro que é a memória coletiva. .Sei que não há uma ligação direta entre essa aguardada agenda, e a iniciativa que aqui nos convoca, mas atrevo-me a dizer que pressinto nas linhas de investigação voltadas para as escritoras que resistiram às pressões e perseguição do regime ditatorial, de algum modo, uma espontânea decorrência do ambiente criado em torno dessa data marcante, que, no lapso de um século, separa 50 anos de ditadura e 50 anos de democracia. Separa o Portugal em que Maria Archer combateu e Portugal pelo qual incansavelmente se bateu. .. Maria Archer, essa portuguesa admirável, nascida num dia do último janeiro do século XIX, e, contudo, tão atual no pensamento e na mentalidade, que vem agora sendo redescoberta como exemplo inspirador de inconformismo e de coragem Nela vejo, sempre, antes de mais, a cidadã - cidadã de muitas cidades, num percurso repartido pela geografia do universo lusófono, em convívio, curioso e expectante, com as suas culturas e particularidade, empenhada em aprendizagens e partilhas, observadora e interveniente em tão variados domínios, invariavelmente movida por valores humanistas que são ainda hoje os nossos. Um destino de interminável itinerância, desde menina, poderia ter significado inadaptação e desenraizamento - mas não! Sendo quem era, bem pelo contrário, enraizou-a um pouco por todo o lado, com o seu olhar atento sobre a tudo o que era alteridade, fascinada pelo exotismo e pela beleza das pessoas, dos costumes e das paisagens.. Em estadas longas, que perfizeram 14 anos de África, a sua infância e a juventude decorreu numa sucessão de idas e voltas, de Lisboa para Bissau e Bolama, para a Ilha de Moçambique, com os pais, depois, já casada, para a mítica ilha de Ibo com o marido, e após o divórcio, ainda sob teto paterno, para Luanda. Divorciar-se, no ano de 1931, foi um ato de enorme ousadia, com que encerrou um ciclo e começou outro, finalmente livre para transpor a fronteira do espaço privado, onde as jovens da burguesia se deixavam emparedar, em vitalícia dependência como filhas ou esposas, para o espaço público, onde se tornou verdadeiramente Maria Archer . Em 1935, em Luanda, fazia a sua estreia literária com uma obra sobre três mulheres, de seguida, publicava, em Lisboa, "África Selvagem", uma primeira e fulgurante incursão nos domínios da literatura colonial. Era o início da aventura solitária de subsistir pela escrita, como Autora reconhecida pela crítica e pelos leitores, que esgotavam edições e reedições dos seus romances e novelas, e como reputada articulista nas páginas de jornais e revistas de referência. Num breve relance sobre a sua trajetória de escritora, vemo-la por pouco mais de duas décadas, destacar-se nos meios intelectuais de Lisboa, onde se impôs pelo talento literário – como a grande revelação da década de trinta – encantou pela elegância do porte, pela cultura e pela vivacidade do espírito e desafiou os poderes constituídos usando a escrita como arma na luta pelas causas que a moviam. Causas que permanecem, tantas décadas depois, impressionantemente atuais: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania, o feminismo como humanismo, e a aproximação dos povos da lusofonia - ultrapassando a visão eurocêntrica tradicional, herdada da 1ª República, no policentrismo dos seus escritos mais tardios, da que podemos chamar a fase brasileira. . A ditadura assente na repressão das Liberdades e no conservadorismo misógino, não tolerava a subversão da sua ideologia e da sua Ordem e não podia, sobretudo, admitir a transgressão no feminino, que Maria Archer encarnava. Entre nós, ninguém levara tão longe, e tão militantemente, a denúncia pela recriação realista de uma atmosfera social e política do quotidiano num país anacrónico em que as mulheres eram confinadas pelas normas impostas no relacionamento dos sexos, pela educação para a desiguldade e pela censura dos costumes. É esse mundo segregado das mulheres que desoculta - mulheres são sempre as personagens principais nas suas obras... E fá-lo, com o implacável rigor de uma etnóloga por vocação e a arte consumada de manejar a língua, em toda a sua riqueza e plasticidade. Nas suas próprias palavras, "moldava o retrato sobre modelo vivo". Um retrato com muitos rostos, muitos enredos... A Ditadura não gostou do retrato, que desconstruía, pelo ímpeto iconoclasta da sua obra, e pelo seu exemplo de independência , o ideal tipo feminino do salazarismo. E não lhe perdoou. Condenou-a ao ostracismo não só no seu espaço, como no no tempo. Quis, como disse Maria Teresa Horta, "deliberadamente apagá-la da história". Maria Archer foi obrigada a partir para um exílio de 24 anos em São Paulo, de onde regressaria, em 1979, num regresso obscuramente, diminuída na debilidade física irreversível, desaparecida na memória do país, mas, no seu íntimo, confiante no julgamento do futuro. . Esse futuro é agora, somos nós. Estamos hoje aqui, a dizer, com a nossa presença e a nossa palavra, que queremos, deliberadamente, restituí-la à História. O movimento começou nos meios académicos do Brasil, com a plêiade de investigadores, que desde há alguns anos, vem cumprindo essa esperança, no reencontro a sua obra intemporal de escritora e jornalista - e o eco desses passos vem, desde data mais recente, repercutindo em Portugal. Cronista de uma época que, nos seus livros, pode ser estudada, numa perpetiva interdisciplinar, em múltiplas leituras, todas atuais. Protagonista histórica da luta pelo direito de pensar, de falar e de viver livremente em Portugal, pela aproximação dos povos de fala portuguesas, continuadora da 1ª vaga do feminismo português, a que a ditadura pôs termo, com a barreira da censura e da polícia, e antecessora da 2ª vaga, que nasceu e cresceu no declínio do Estado Novo, nas vésperas da revolução, que antecipou com o seu pensamento de mulher moderna – e moderna ainda por padrões atuais. No 40º ano da morte de Maria Archer, queremos celebrar o seu retorno definitivo do exílio, para preencher o lugar a que tem direito na história da literatura, da democracia e do feminismo em Portugal. Maria Archer podia ter sido personagem de um romance de Maria Archer. Falta contar é a história que escreveu dramaticamente com a sua própria vida. Talvez, por altura de outra efeméride, em 2024, nos 125 anos da escritora, haja quem queira e possa dar-lhe e dar-nos essa biografia por presente. Valerá a pena, porque tão singular e extraordinária é a obra como a vida de Maria Archer.

Norberto de Abreu sobre MARIA ARCHER - Porto 22 jan

Boa tarde, senhoras e senhores.... Falar em público nunca foi fácil para mim, é por isso que pintar e transmitir através da tela é meu meio de expressão ideal... No entanto, tentarei brevemente explicar meu trabalho, especificamente no Retrato de Maria Archer. Senti uma grande empatia por esta senhora das letras e sua luta pela igualdade de gênero, Liberdade e Democracia em um mundo que minimizava as mulheres. Essa mulher lutadora, que emigrou e se exilou para defender suas firmes convicções de livre pensamento, numa época em que a mulher era considerada mais um bem na vida do homem, tocou muito fortemente meu ser criador... Sempre na minha carreira artística, a mulher foi, é e será, um ponto relevante das minhas composições, do meu trabalho, porque nela também reflito a admiração que sinto pela minha Mãe, pelas minhas tias emigrantes e lutadoras, na Venezuela. onde eu nasci. Admiro também sua imagem e figura, seu porte digno, seu olhar inteligente e sedutor, como uma heroína de cinema... Queria ser cúmplice da sua luta, porque também como ela, tive de emigrar do país onde nasci, para reencontrar as minhas origens, as minhas verdadeiras raízes, Portugal. Fiz uma viagem pelas imagens de Maria Archer para poder pintá-la com verdade, com respeito e fazer justiça à sua beleza. Pinto sobre folhas de ouro, e com cores acrílicas, brinco com os volumes, misturo e quebro a forma tradicional, para tornar sinuosas as margens da obra... não há limites... e a figura emerge em um retrato. Um escorço torna a mão da Senhora visivelmente distorcida, com a sua luva preta de cetim e o seu sumptuoso vestido...rodeada pelos títulos das suas obras e pelos nomes dos países visitados...fazendo um belo fado pintado. Tem sido uma honra poder pintar este retrato e sentir às vezes que de pincelada em pincelada, ela falou comigo sobre suas viagens e suas experiências... OBRIGADO Norberto D'Abreu

Constância Néry sobre MARIA ARCHER - Porto 22 de janeiro

Fico a pensar na incrível mulher portuguesa, Maria Archer, na sua brilhante imagem. Sinto-a como um presente que o destino reservou para o Brasil. Enquanto viveu no Brasil, a escritora, poetisa, analista e corajosa defensora dos movimentos realizados pelas mulheres contribuiu, entre outras muitas vertentes, como colunista do importante Jornal O Estado de São Paulo. Pisou o mesmo asfalto que nós pisamos na infância, na juventude e sempre. Passou pelas portas, janelas e esquinas da Av. São João, Ipiranga e das ruas dos jardins Paulista, Europa e América entre outros espaços. Esteve presente, a opinar, nos eventos dos estudantes das Faculdades de São Paulo, como a nossa famosa São Francisco que abrigou a Une da década de 1950 - antes e depois. Aos sábados ou domingos, respirou o ar do maravilhoso Parque Ibirapuera, (esse que mostro na tela) não sem antes entregar seu sopro inteligente, que entrou na alma de cada raiz, cada folha, fruto ou flor do rico jardim daquele que é considerado um dos mais belos parques urbanos do mundo. Maria Archer viveu ali, no meu país, a contemplar a Igreja da Sé, a Avenida Paulista, a Augusta e o Teatro Municipal. Constancia Nèry - 14/01/202

Comemorações de Maria ARCHER in AS ARTES ENTRE AS LETRAS

No próximo dia 23 de janeiro completam-se quarenta anos sobre a morte de Maria Archer. É uma data que será comemorada, no Porto, pelo Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer, ao longo do ano, com uma programação de atividades focada nas múltiplas facetas da sua vastíssima obra, e na sua vida, repartida no espaço da lusofonia, num constante cirandar entre realidades culturais de que se tornaria intérprete e mensageira privilegiada. A sessão de abertura terá lugar no sábado, dia 22, na Galeria da Biodiversidade – Centro de Ciência Viva, às 16.00, com uma conferência de Deolinda Adão (Universidade de Berkeley) sobre “Sussurros de vozes no silêncio – o caso de Maria Archer”. Segue-se a inauguração de uma exposição de pintura, comissariada por Ester de Sousa e Sá, em que os artistas são convidados a falar da sua relação com Maria Archer, tal como a expressam nas sua telas A 22 de fevereiro, o Instituto de Línguas Comparadas Margarida Losa e o Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer, (com uma Comissão Organizadora de que fazem parte Marinela de Freitas, Lurdes Gonçalves, Nassalete Miranda e eu própria), convocam uma audiência internacional de interessados para um colóquio "on line" de homenagem a Maria Archer, que reúne investigadores portugueses e estrangeiros dedicados ao estudo da obra de mulheres portuguesas que se destacaram no panorama das Letras e Artes e nos movimentos proto feministas e feministas, de finais do século XVIII aos nossos dias. Com o título, "Maria Archer e outras Mulheres de Referência e (Ir) reverência", se pretende sublinhar o que, para além da diversidade de épocas, lugares e contextos sócio-culturais, todas têm em comum, o talento, a lucidez, o inconformismo. Durante o primeiro trimestre deste ano, no lugar e no período de abertura ao público da Exposição em homenageia Maria Archer, entre 22 de janeiro e 31 de março, está previsto um ciclo de colóquios presenciais, com regularidade quinzenal subordinado ao tema " Mulheres que irromperam no mundo dos homens". Na incerteza que a crise pandémica traz ao nosso quotidiano, não está ainda fechada a planificação do ano, que, assim, continua aberta a novas propostas e sugestões à volta das grandes causas de Maria Archer: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania ,a compreensão da alteridade, a aproximação dos povos da lusofonia, no trânsito da dominação colonial num novo espaço policêntrico, o feminismo como humanismo, as fronteiras mutáveis do feminino e a desocultação do seu lugar na História. Maria Archer viveu num presente de que ela já era o futuro. Foi incompreendida, perseguida pelo regime, exilada, e, mais ainda como escreveu Maria Teresa Horta "deliberadamente apagada da História". No ocaso de uma brilhante e singular trajetória, que a doença encurtou, já não encontrava ânimo para combater o esquecimento a que fora sentenciada, mas acreditava que tempos vindouros lhe fariam justiça. Primeiro nos meios académicos do Brasil, agora também já em Portugal, uma plêiade de investigadores veio dar-lhe razão e cumprir a sua esperança. A comemoração desta efeméride, no Porto, em Lisboa, em São Paulo, e um pouco por todo o lado, é, afinal, uma etapa do caminho de retorno. Quarenta anos após a sua partida, Maria Archer está de volta, para ficar na História das Letras e do jornalismo, da literatura colonial, da democracia, pela qual se bateu na primeira linha de intervenção, e do feminismo, cujo bandeira empunhou, entre tão poucas outras mulheres, em meio século de ditadura e obscurantismo. Os portugueses vão descobrir que tão fascinante é a obra como a vida de Maria Archer