terça-feira, 30 de maio de 2023

AS BANDEIRAS DE JOACINE 1 . Joacine Katar Tavares Moreira entrou, com 37 anos e um brilhante curriculum académico, no hemiciclo de São Bento no meio de um turbilhão mediático. Dão nas vistas as muitas bandeiras de que se cerca para fazer história na Assembleia da República. É o tê-las, em conjunto, nas suas mãos, não cada uma delas, que a convertem em grande pioneira.
É mulher, negra, nascida no estrangeiro, (naturalizada aos 21 anos) e gagueja, como 100.000 outros portugueses, a quem demonstra que nada lhes é impossível, nem mesmo intervir em debates televisivos e discursar na tribuna parlamentar. Sabe o que quer e sabe o que diz, ainda que o diga, por vezes, mais devagar.  Não são, pois, repito, aquelas particularidades, "de per si" que a tornam um fenómeno político nacional, mas antes o facto de as empunhar, todas, orgulhosamente. É feminista, dirigente associativa de um movimento de mulheres negras,e combate com o seu exemplo, ativamente, diferentes formas de discriminação (a própria gaguez incluída). Não sendo do seu partido e não a acompanhando em todos os pontos do seu programa, gosto, sempre, de a ver afrontar e pôr, assim, a nu uma longa lista de preconceitos. 2 - Aos ataques que sofreu, antes das eleições, acresce, o que, no período seguinte, se deve enquadrar no puro domínio da xenofobia. Refiro-me ao episódio suscitado pelo simples agitar de uma bandeira da Guiné Bissau na festa da noite eleitoral do "Livre". De imediato se levantou um coro de protestos, e logo circulou uma petição, que reuniu cerca de 18.00 assinaturas, na vã tentativa de impedir a sua investidura como deputada, acusando-ou de não ser portuguesa ou de faltar aos deveres de patriotismo. A questão da nacionalidade entrou na liça! E não costuma entrar, ao menos no desporto, quando as protagonistas trazem medalhas de ouro para Portugal - casos de Naide Gomes, (que, por sinal, representou o país de origem, São Tomé e Principe, até ao ano 2000). ou o de Patrícia  Mamona, de ascendência angolana, para só falar de fantásticas atletas, no feminino. É certo que, na modalidade desportiva mais popular, o futebol masculino, houve já, como agora aconteceu no campo da política, afloração de opiniões e atitudes xenófobas, visando, note-se, sobretudo os brasileiros, que representavam a seleção nacional, incluindo Deco, sempre o incomparável "maestro"  da equipa. De África, a principal vítima, até hoje, terá sido o internacional Rolando, defesa do FCP (e da seleção), criticadíssimo por ter festejado um título europeu do clube com uma bandeira de Cabo Verde, sua terra natal, sobre os ombros -  gesto, a meu ver, muito bonito, que terá enchido de alegria os cabo-verdianos e servido para reforçar as suas ligações afetivas ao Porto e ao nosso País. Aqueles 18.000 peticionários, que se julgam bons patriotas, são precisamente o contrário: maus e mesquinhos portugueses, incapazes de compreender o espírito fraternalista da nossa história partilhada com outros povos, e a realidade da CPLP, como herança, presença e futuro desse espírito no universo em expansão da lusofonia. 
A pertença à CPLP é, para Portugal, pelo menos tão importante, como a pertença à UE. Ora uma verdadeira Comunidade de povos não se faz com leis e proclamações solenes, mas com a proximidade e a aceitação de pessoas concretas. Pessoas concretas como a Doutora Joacine. 3 - Os tais 18.000 zelosos peticionários ignoram, pelo visto, que a nossa Constituição e as nossas leis admitem, sem restrições, a dupla (ou múltipla) nacionalidade. e até, atualmente, também, a dupla participação política, no País de origem e no de residência. Mais ainda: consagram um estatuto especial de direitos civis e  políticos para os cidadãos de países de língua portuguesa, sob condição de reciprocidade. Uma espécie de "cidadania lusófona", muito mais lata do que a "cidadania europeia", pois permite o voto em todos os sufrágios, de nível local ou nacional, assim como a capacidade de ser eleito para as autarquias e para a Assembleia da República ou de ser membro do Governo ou da Magistratura Judicial. Para já, só entre Brasil e Portugal existe a necessária reciprocidade, estando em vigor, desde 2001, um estatuto de igualdade de direitos políticos -  o mais avançado que se conhece na Europa e no mundo. Se Joacine fosse brasileira  podia aceder ao cargo de deputada, ao abrigo do artº 15ª da Constituição da República, mesmo sem adquirir a nacionalidade portuguesa... É, pois, como cidadã naturalizada portuguesa, no pleno gozo dos seus direitos, que está em S Bento e pode, obviamente, deixar-se fotografar, tanto com bandeiras da CPLP, como com a da União Europeia, cuja omnipresença aparentemente não incomoda, do mesmo modo, os nacionalistas extremados que subscreveram a petição.

domingo, 21 de maio de 2023

MAIS UMA NOVELA POLÍTICA LUSO-BRASILEIRA 1 – A maioria dos nossos políticos persiste em tratar o Brasil como um país “estrangeiro” e em entender a expressão “povos irmãos” como mero tropo de retórica. Erro grave, tanto numa perspetiva histórica, como na avaliação da realidade atual e do seu possível devir – ou seja, num olhar sobre a “história do futuro”, que é a que mais interessa, como diria Agostinho da Silva. No tempo passado, ao longo de séculos e até meados de novecentos, emigrar foi sinónimo de partir para o Brasil. Só após 1950 os movimentos migratórios se repartiram, significativamente, por outros destinos, em vários continentes, incluindo a Europa. Contudo, as comunidades portuguesas geradas pela emigração resistiram e resistem em prodigiosas instituições, os “Gabinetes de Leitura (o do Rio de Janeiro possui uma biblioteca com mais de 300.00 volumes), as Sociedades de Beneficência, e os seus magníficos hospitais, os centros culturais e recreativos de uma dimensão inimaginável na nossa “terrinha” e até clubes grandes de futebol, como o “Vasco da Gama” do Rio de Janeiro, a “Tuna Lusa de Belém”, ou a “Associação Portuguesa de São Paulo”, que é popularmente conhecida como “a Portuguesa”. No tempo presente está em vigor um Estatuto de Igualdade de Direitos de Portugueses e Brasileiros, uma verdadeira “cidadania Luso-Brasileira”, que vai muito mais longe do que a “cidadania europeia”. Confere aos nacionais de um país residente direitos iguais aos dos naturalizados! A iniciativa de aprofundar os tratados de Igualdade, negociados desde os anos cinquenta do século XX, foi sempre brasileira, embora certamente impulsionada pelo querer e pelo prestígio das comunidades portuguesas. Em 1998, os constituintes brasileiros avançaram para o reconhecimento aos portugueses de todos os direitos da nacionalidade - o voto em todas as eleições, a elegibilidade como autarcas, deputados, senadores, ou o acesso à magistratura judicial, aos mais altos cargos da função pública e a cargos no governo. E são muitos os que gozam efetivamente dessa cidadania. Pensando no Dia Internacional da Mulher, darei dois exemplos no feminino: o da médica Manuela Santos, que foi, há já muitos anos, a primeira mulher Secretária do Estado do Rio de Janeiro (na pasta da Saúde) e o da grande atriz e empresária teatral Ruth Escobar, a primeira mulher deputada numa Assembleia Estadual (a de São Paulo), e, depois, a primeira representante do Brasil na ONU para as questões da igualdade. Natural do Porto, Ruth era, então, porventura, a imigrante mais famosa do país, uma figura icónica, que Portugal e o Porto teimam em não reconhecer. Nunca se naturalizou brasileira, muito embora para a ONU viajasse com estatuto e passaporte diplomático. Os constituintes brasileiros aprovaram este estatuto inédito, (o mais avançado do mundo contemporâneo!), sem hesitação, sem debate, e por unanimidade, com uma única exigência: a de haver reciprocidade por parte de Portugal. Na Assembleia da República, eu própria encabecei projetos de dação da reciprocidade, com a alteração do art.º 15º, em sucessivas revisões constitucionais. Em 1989, os dois maiores partidos do arco constitucional, PSD e PS, e o PCP, derrotaram a emenda pela abstenção, apesar de deputados de todos os partidos lhe terem garantido uma maioria simples. Em 1996, apenas uma parte do PS votou contra, mas tanto bastou para prejudicar a necessária maioria de 2/3… E, por isso, só em 2001, após treze anos de inexplicável e embaraçoso impasse, foi alcançado da nossa parte o consenso que consagrou a reciprocidade, tarde e a más horas, no contexto de uma revisão pontual da Constituição, que se destinava a permitir a adesão ao Tribunal Penal Internacional. Os partidos alargaram os seus projetos de revisão a outras alterações vistas como prioritárias e o PSD assim considerou a reciprocidade, que tardava (para o que foi crucial eu ter conseguido o apoio do presidente do partido, Durão Barroso, o mais pró-brasileiro dos líderes recentes do PSD…). No PS encontrei outro poderosíssimo aliado extraparlamentar – o Dr. Mário Soares! Por indicação do PSD foi, na sua qualidade de antigo Presidente da República, convidado a intervir numa audição pública da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, onde com um depoimento corajoso e arrasador “obrigou” o seu próprio partido, a dar um “sim” imediato e definitivo. E assim chegou a bom termo a mais dura cruzada parlamentar em que, como deputada da emigração, me envolvi, por convicção e por dever de ofício, com muitas negociações de bastidores à esquerda e à direita. Recordo dessa histórica audição de julho de 2001, esta frase fantástica do Dr. Soares: “Todos os portugueses deviam ser obrigados ir ao Brasil”. Oh sim! Sobretudo políticos! Ver para crer… De facto, como Mário Soares muito bem sabia, um dos males da nossa atual de muitos dos nossos políticos de hoje é a “falta de mundo”, incluindo de “mundo lusófono”. Há-os em todos os partidos. Esta longa batalha constitucional mostrou, exuberantemente, a inexistência de qualquer linha de demarcação esquerda/direita, que tão nítida é em outros domínios - por exemplo, no da imigração, onde, à direita, o presidente Marcelo está quase sozinho nos gestos de compreensão e solidariedade. O que nas décadas de oitenta e noventa dividiu as partes em confronto é o mesmo que as divide hoje: a visão cultural do universo da lusofonia. O PSD foi contra com Cavaco e Nogueira, (como o PS o foi, anos após ano, por influência de Almeida Santos), e a favor com Marcelo e Barroso, Barbosa de Melo, Pedro Roseta ou Rui Rio. No PS a ideia de uma cidadania luso-brasileira entusiasmava deputados como Manuel Alegre, Guterres, Alberto Martins, Raúl Rego, Jaime Gama. Todos assinaram, convictamente, os meus projetos de revisão do art.º 15º, bem como, em outros quadrantes Adriano Moreira (CDS), Natália Correia (PRD), António Mota e Luísa Amorim (PCP)… 2 – Portugal está, assim, desde 2001, pronto para a celebração de acordos bilaterais semelhantes ao que nos une ao Brasil com todos os outros países lusófonos, sob condição de reciprocidade. Nenhum deles deu ainda esse passo. Por isso, podemos afirmar que o Brasil é, para Portugal e os Portugueses, o menos estrangeiro de todos os países do mundo! E não só na letra das Constituições e dos Tratados como na sua vivência concreta. E mais no “país irmão” do que por cá, onde ainda não temos notícia de deputados ou juízes brasileiros... Um outro exemplo que anda, infelizmente, muito esquecido: em 1974/75, logo depois da revolução, e de uma descolonização dramática, o Brasil foi o único país que abriu, de par em par, as suas fronteiras aos “retornados”. Colocou nos aeroportos uma “via verde” especial para carimbar autorizações de residência definitiva a todos os que chegassem de África: velhos ou novos, doentes ou saudáveis, ricos ou pobres… 3 – Após o esfriamento das relações oficiais durante os mandatos de Dilma e, sobretudo, de Bolsonaro, com Presidente, que distingue Portugal, começando em Lisboa a sua primeira visita de Estado à Europa, não se esperava uma segunda “questão de reciprocidade”, novamente provocada deste lado do Atlântico, por políticos demagogos, estreitamente nacionalistas e completamente desprovidos de sentido de Estado. Na verdade, o Brasil acolheu, em 2022, no Senado, o Presidente de Portugal e deu-lhe a palavra na sessão solene da celebração dos duzentos anos da sua independência - não o acantonou numa pequena cerimónia lateral, realizada no dia anterior ou no dia seguinte... Em 2023, Portugal, depois de o ter aventado, pela voz de titulares de altos cargos, recusa um convite ao Presidente do Brasil, para falar nas rotineiras comemorações do 49º ano da Revolução do 25 de abril. É simplesmente absurdo… É certo que não havia necessidade de apontar a intervenção do Presidente Lula ao 25 de Abril, mas tendo isso acontecido, não me parece ser despropositado comemorar o 25 de Abril com o Presidente de um país irmão. Afinal, como festa da democracia, tem carater universalista, e pode bem ser partilhada sem barreiras, em especial no espaço da lusofonia, onde veio permitir a constituição de novos Estados! E o Brasil tem aí lugar merecido porque, em 1974 e 1975 repartiu connosco o acolhimento incondicional dos portugueses desalojados (outros Estados receberam alguns desses nossos compatriotas, mas muito limitadamente e com estatuto de imigrante, não de cidadania). Não fico surpreendida por ver capitães de Abril, como Vasco Lourenço, defender a presença do Presidente do Brasil nas comemorações, (que, obviamente, o Presidente Marcelo e o Governo também desejavam) enquanto os políticos mais distantes do espírito de Abril se arvoram em paladinos da pureza das comemorações. É o Portugal dos pequenos líderes. Camões tinha razão: um fraco rei faz fraca a forte gente.
2023 - O PORTUGAL DOS PEQUENINOS 1 – A maioria dos nossos políticos persiste em tratar o Brasil como um país “estrangeiro”, igual a qualquer outro, e em entender a expressão “povos irmãos” como mero tropo de retórica. Erro fatal, tanto numa perspetiva histórica, como no balanço da realidade atual e do seu possível devir. A “história do futuro”, de que falava Agostinho da Silva! No tempo passado, por séculos e séculos e até meados do século XX, emigrar foi sinónimo de êxodo para o Brasil. A partir então, os movimentos migratórios repartiram-se, significativamente, por outros destinos, em vários continentes, mas nem por isso perderam importância as comunidades portuguesas e luso-brasileiras, que sobrevivem nos laços de ligação individuais e num admirável conjunto de instituições: “Gabinetes de Leitura (o do Rio de Janeiro possui uma biblioteca com mais de 300.00 volumes), Sociedades de Beneficência, e os seus magníficos hospitais, centros culturais e recreativos de uma dimensão prodigiosa, clubes grandes de futebol, como o “Vasco da Gama” do Rio de Janeiro, a “Tuna Lusa" de Belém ou a “Associação Portuguesa de São Paulo”, a popular “Portuguesa”. No tempo presente, para além dessa forte presença cultural, social, os dois Estados estão ligados num Tratado pioneiro, único no mundo, que estabeleceu um Estatuto de Igualdade de Direitos de Portugueses e Brasileiros, uma verdadeira “cidadania Luso-Brasileira”, que vai muito mais longe do que a “cidadania europeia”, ao conferir aos nacionais de um país residente no outro, direitos iguais aos dos cidadãos naturalizados. A iniciativa de aprofundar os tratados de Igualdade, que foram sendo negociados a partir da década de cinquenta no século passado, foi sempre brasileira – impulsionada, é certo, pelo querer e pelo prestígio das comunidades portuguesas. Em 1988, os constituintes brasileiros avançaram para o reconhecimento aos portugueses de direitos próprios da nacionalidade - o voto em todas as eleições, a elegibilidade como autarcas, deputados, senadores, o acesso à magistratura judicial, aos mais altos postos da função pública e a cargos no governo, a nível estadual ou nacional. E são, de facto, muitos os que por todo o Brasil beneficiam da aplicação concreta do Tratado de Igualdade reconfigurado pela Constituição brasileira de 88 e pela Constituição portuguesa revista em 2001. Pensando no Dia Internacional da Mulher, darei dois exemplos no feminino: o da médica Manuela Santos, que foi, há já muitos anos, a primeira mulher Secretária do Estado do Rio de Janeiro (na pasta da Saúde) e o da grande atriz e empresária teatral Ruth Escobar, a primeira mulher deputada numa Assembleia Estadual (a de São Paulo), e, depois, a primeira representante do Brasil na ONU para as questões da igualdade. Natural do Porto, Ruth tornou-se a portuguesa mais famosa do país de acolhimento, uma figura icónica, que Portugal e o Porto teimam em não reconhecer. Nunca se naturalizou brasileira, muito embora para a ONU viajasse com passaporte diplomático. Os constituintes brasileiros aprovaram este estatuto inédito em direito comparado sem hesitação e por unanimidade, fazendo uma única exigência: a de haver reciprocidade por parte de Portugal. Na Assembleia da República, eu própria encabecei projetos de dação da reciprocidade, com a alteração do art.º 15º, em duas revisões constitucionais. Em 1989, os dois maiores partidos, PSD e PS, mais o PCP, derrotaram a emenda pela abstenção, apesar de deputados de todos os partidos lhe tenham garantido uma maioria simples. Em 1996, apenas uma parte do PS votou contra, e tanto bastou para prejudicar a necessária maioria de 2/3. Finalmente, em 2001, após treze anos de embaraçoso impasse, se alcançou da nossa parte o consenso para consagrar a reciprocidade. Era uma revisão pontual da Constituição, destinada a permitir a nossa adesão ao Tribunal Penal Internacional, mas os partidos alargaram os seus projetos de revisão a um restrito número de alterações prioritárias. O PSD assim considerou a reciprocidade que tardava. De início, o Grupo Parlamentar estava renitente, mas eu consegui o (fácil) apoio do presidente do partido, Durão Barroso, o mais pró-brasileiro dos líderes recentes do PSD. No PS encontrei outro poderosíssimo aliado extraparlamentar: o Dr. Mário Soares! Por indicação do PSD foi, na sua qualidade de antigo Presidente da República, convidado a intervir numa audição pública da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, onde com um depoimento arrasador “obrigou” o seu próprio partido, a dar, logo ali, um “sim” imediato e definitivo. As palavras lúcidas e corajosas do Dr. Soares fizeram manchetes de imprensa. Depois, a discussão e votação em plenário foi só "cumprir calendário"... E assim chegou a bom termo a mais dura cruzada parlamentar em que, como deputada da emigração, me envolvi, por convicção e por dever de ofício, com muitas negociações de bastidores à esquerda e à direita. Nessa histórica audição de julho de 2001, o Dr. Soares, denunciado o nosso crónico desconhecimento sobre a importância das relações luso-brasileiras, disse: “Todos os portugueses deviam ser obrigados ir ao Brasil”. Oh sim! Sobretudo os jovens políticos dos vários partidos, a quem “falta de mundo”, e, mais ainda, “mundo lusófono” … A batalha constitucional, que se arrastou em São Bento, entre 1988 e 2001, mostrou a inexistência de linhas de demarcação esquerda/direita, que tão nítidas são em outros domínios (por exemplo, no da imigração, onde, à direita, o presidente Marcelo está quase sozinho nos seus gestos solidários de compreensão). Na querela da reciprocidade o que dividiu os políticos foi a vertente cultural do problema, que tem no centro a história das migrações e os elos da língua. Contra foram o PSD com Cavaco e Nogueira, e o PS com Almeida Santos, e a favor o PSD com Marcelo e Barroso, Barbosa de Melo, Pedro Roseta ou Rui Rio, e o PS pela voz de Manuel Alegre, Guterres, Alberto Martins, Raúl Rego, Jaime Gama. Todos assinaram, convictamente, os meus projetos de revisão do art.º 15º, tal como, em outros quadrantes, Adriano Moreira (CDS), Natália Correia (PRD), António Mota e Luísa Amorim (PCP). E muito mais. 2 – Portugal está, desde 2001, constitucionalmente pronto para a celebração de acordos bilaterais semelhantes ao que nos une ao Brasil com todos os outros países lusófonos, sob condição de reciprocidade. Nenhum deles deu ainda esse passo! Por isso, podemos afirmar que o Brasil é, para Portugal e os Portugueses, o menos estrangeiro de todos os países! Só mais um exemplo de fraternidade brasileira que anda, infelizmente, muito esquecido: em 1974/75, durante o dramático êxodo provocado pela descolonização, o Brasil foi o único país que acolheu os “retornados”, sem limitações, como se fossem seus nacionais. Abriu nos aeroportos uma “via verde” especial para carimbar autorizações de residência definitiva a todos os que chegassem de África: velhos ou novos, doentes ou saudáveis, ricos ou pobres… 3 – Após o esfriamento das relações oficiais durante os mandatos de Dilma e, sobretudo, de Bolsonaro, com o Presidente Lula, que retoma as boas práticas e distingue Portugal, começando em Lisboa a sua primeira visita de Estado à Europa, não se esperava uma segunda “questão de reciprocidade”. Mas ela aí está, provocada deste lado do Atlântico, pela visão estreitamente nacionalista da "classe política", com honrosas exceções. O caso é este: o Brasil acolheu, em 2022, no Senado, o Presidente de Portugal e deu-lhe a palavra na sessão solene da celebração dos duzentos anos da sua independência (não o acantonando numa pequena cerimónia, realizada. “a latere”, no dia anterior ou no dia seguinte). Em 2023, Portugal, depois de o ter aventado, pela voz de titulares de altos cargos, rejeita ruidosamente um convite ao Presidente do Brasil, para discursar nas simples e rotineiras comemorações do 49º ano da Revolução do 25 de abril. Incrível, absurdo! É certo que não havia necessidade de apontar a intervenção do Presidente Lula nas cerimónias do dia 25 de Abril, mas tendo isso acontecido, o recuo envergonha-nos. E não faz sentido, porque é um dia de festa da democracia, que pode bem ser partilhada sem barreiras, em especial no espaço da lusofonia, onde veio permitir a constituição de novos Estados e da CPLP, onde o Brasil se situa como o parceiro maior. Aquilo a que vimos assistindo é politiquice para a "petite histoire". Só assim se compreende que, enquanto os capitães de Abril, como Vasco Lourenço, defendem a presença do Presidente do Brasil nas comemorações (obviamente desejada, também, pelo Presidente Marcelo e pelos Governo), os políticos mais distantes do espírito da revolução são os que se arvoram em paladinos da "pureza" das comemorações. É o Portugal dos pequeninos...

terça-feira, 16 de maio de 2023

EFEMÉRIDES 1 – Não é a primeira vez que, nesta coluna, escrevo sobre efemérides, em tom encomiástico. Todavia, devo dizer que tive de fazer, nesta matéria, a minha “estrada de Damasco”. À partida, era avessa a aceitar a imposição de uma data, por mais internacional ou mundial que fosse, como pretexto para reflexão, folguedo ou solenidade, excetuando aqueles rituais consagrados pela nossa tradição cristã ou laica. Poucos: o Natal, o Dia de Reis (que a minha avó materna considerava “a primeira festa do ano, pretexto para reunir, de novo, uma quinzena depois da “consoada”, a sua numerosa família), o Carnaval, a Páscoa, o Dia da Mãe e o Dia do Pai. Não me lembro de nenhuma especial congregação familiar a 10 de junho, a 5 de outubro ou a 1 de dezembro…. Eram simplesmente feriados, a gozar como um domingo normal. Para a maior parte dos portugueses, as coisas ainda são vistas assim: o Dia nacional, se estiver sol, é para ir à praia, e os outros, incluindo, desde a meia década de setenta, o 25 de abril, com tempo favorável, também permitem uma boa passeata. Quando muito, o povo participa no programa do dia de Portugal na cidade escolhida como sede da festa, e no Dia da Liberdade numa marcha organizada pelos partidos e ONG’s afins. Mais sorte, têm, por exemplo, os “Santos Populares” – o São João do Porto ou de Braga, o Santo António de Lisboa, o São Pedro de Espinho, porque as pessoas aderem, espontaneamente e em massa, à festança na rua. O mesmo se diga do Carnaval, que polariza eventos um pouco por todo o lado, embora mais nuns do que em outros.… E, curiosamente, efemérides de importação recente ascenderam ao “top 10”, como o “dia dos namorados”, dia de São Valentim, (que se tornou uma espécie de 4º santo popular, ultrapassando o São Martinho dos magustos) e o “Halloween”, para o povo infantil… O que, a meus olhos, mais contribuía para desacreditar tantas efemérides era a caótica mescla de enfoques de um calendário “oficial”, que não cessava, (nem cessa), de se ramificar, incorporando tanto modismos fúteis e datas de culto alheias (do mediático mundo anglo-saxónico, sobretudo), como verdadeiros desafios ou “sinais dos tempos”. No calendário católico, sendo a intenção orar, quotidianamente, parecia-me bem ir variando de medianeiro, e, nos meus tempos escolares, recordo-me de fazer, sistematicamente, promessas aos santos dos dias de testes e exames. Porém, num mundo laico, parecia-me coisa para quem quer divertir-se a “festejar por festejar”, “à la carte”, num almanaque caleidoscópico. Nenhum dos 365 dias do roteiro anual fica em branco, há, sempre, pelo menos um santo, completamente esquecido do cristão comum, à espera de ser venerado. Para os hipocondríacos, (como eu), abundam datas de combate a doenças, se não sentidas, pelo menos temidas - o dia mundial da obesidade, do rim, do transtorno bipolar, da incontinência urinária, da lepra, da tuberculose, da epilepsia, da artrite reumatoide, etc., etc. No setor alimentar, por exemplo, os “dias mundiais” elegem o hamburger, a comida picante, o chocolate, a nutela, a bolacha, ou bebidas como o cocktail, o whisky, o vinho do Porto, o chá (a que acresce o “dia do chá gelado)… Para os amigos dos animais, em que me conto, o calendário sinaliza numerosas espécies, esquecendo outras: o “dia mundial” do rato, da baleia, do urso polar, do pinguim, das abelhas, do mosquito, do cão (mais o dia internacional do “cão guia”), do gato (merecendo o “gato preto” jornada à parte…), do tigre, do elefante. Estranha-se a ausência, do cão polícia ou do cão pastor, do lince ibérico, do canguru, do panda, do camelo … Nas profissões, um numeroso lote, o mesmo “senão”, há as privilegiadas e as esquecidas. Outro filão é o foco em atividades inteiramente lúdicas ou descontraídas: o dia internacional do fascínio das plantas, o dia sem dieta, os dias do riso, do sorriso, do beijo, dos namorados, do casamento (ao menos para casais felizes…), do piquenique, da preguiça, das palavras cruzadas, da piada etc.etc. Está nesta categoria, o mais universal de todos, “o dia da mentira”, 1 de abril… Num outro patamar, acedemos à Cultura, com os dias Mundiais da Criatividade e Inovação, da Poesia, da Arte, do Teatro, do Cinema, dos Museus, dos Monumentos, e tantos outros, que, felizmente, vão entrando na agenda concreta de instituições públicas e da sociedade civil. E, a seu lado, crescem também os esforços de lutar pelos direitos humanos, contra a violação dos seus valores nos mais diversos aspetos, dando-lhes, a partir de uma certa data, mais visibilidade e consciência da sua importância 2 – Devo dizer que foi na vida política, e não no meu espaço privado, que me apercebi do enorme potencial de certas efemérides. O Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, tal como é celebrado na Diáspora, constituiu uma revelação, porque lá fora é, realmente, uma oportunidade de união, de exuberante divulgação da nossa cultura, partilhada com os outros, em grandes festivais de música, de dança, cortejos alegóricos, banquetes, competições desportivas, exposições de arte, debates. O programa varia muito, a intenção é idêntica, os meios humanos e materiais vêm, em regra, do movimento associativo, clubes, escolas, paróquias, e estende-se, às vezes, por dias, semanas, ou por todo o mês de junho… As entidades oficiais, da terra de origem ou de residência são apenas convidadas, o anfitrião é a comunidade, em trabalho conjunto, esquecendo o que as divide ao longo do ano. Em Newark e em Toronto o 10 de junho juntava dezenas, quando não centenas de milhares de pessoas, ultrapassando, no que respeita a essa participação popular, largamente, tudo quanto se fazia no país. Converti-me! O Dia Internacional da Mulher, o Dia da Comunidades Luso-Brasileira, o 25 de Abril, o Dia da Europa têm sido efemérides de datas que me levaram e ainda levam a variadas cidades, países e continentes. 3 - Neste ano de 2023, depois de ter estado em Montreal, para o 20º Dia Internacional da Mulher organizado pelo Jornal “Luso Presse” (uma dupla efeméride, a da data em si mesma, e a do aniversário de uma iniciativa, há duas décadas, absolutamente inédita na nossa emigração, ainda hoje pouco sensível a questões de igualdade de género). E, na semana passada, participei no Dia Nacional do Mutualismo promovido pela União das Mutualidades Portuguesas, aqui bem perto, em Gaia, na sua fronteira com Espinho. Fui convidada para moderar uma conferência com quatro esplêndidos oradores, o Comissário Europeu Nicolas Schmit, os eurodeputados José Manuel Fernandes e Pedro Marques e o Vice-Presidente da ANM Pedro Ferreira, Presidente da CM de Torres Vedras. Na sala, os cartazes lembravam-nos que, em Portugal, o mutualismo tem quase a mesma idade do país, pois a primeira confraria remonta a 1067, mas da sua longa viagem através dos tempos, falou-se quase só para mostrar como a fórmula da solidariedade e cooperação em que assenta se consegue adaptar às mais profundas transformações sociais e económicas. “Mutualismo numa nova ordem mundial” era o tema da Conferência, e todos os intervenientes traçaram o retrato realista do fim de um longo ciclo de paz na Europa e de abertura à globalização, com a emergência de novas tensões internacionais, do ressurgir de blocos em confronto, de incertezas e desafios. A pandemia, a invasão da Ucrânia, o drama dos refugiados, a crise financeira, alargaram, sem dúvida, o fosso entre países ricos e países pobres - e entre as pessoas, também. E até a inovação e progresso tecnológico contribuem para criar um mundo que avança vertiginosamente, deixando para trás o universo em expansão dos excluídos. É uma constatação tremenda… O cenário de pobreza, de desigualdade e de injustiça extremas, foi sempre o terreno em que o mutualismo germinou, entre a cultura do lucro capitalista e a limitada capacidade do Estado de dar resposta a tudo. É com o espírito mutualista de partilha, de entreajuda, de compreensão do outro, que se poderão moldar as transformações económicas, sociais e culturais, a que assistimos nas nossas sociedades. E é com esse mesmo espírito que a Europa, e dentro dela, cada país, deve nortear o seu esforço de cooperação com outros continentes. Portugal, a sua multissecular experiência mutualista pode fazer a diferença no espaço da lusofonia, a que pertence, como brilhantemente salientou, na parte final do programa do dia, o Prof Guilherme de Oliveira Martins. Assim o mutualismo se mostrou como atualmente é, olhando o mundo e o futuro. Assim vale a pena comemorar uma efeméride.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

CONGRESSO - A VEZ E A VOZ DAS MULHERES síntese da comunicação

Maria Manuela Aguiar sexta, 31/03, 12:36 para mim POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EMIGRAÇÃO FEMININA O caso português - uma perspectiva diacrónica Portugal é um país de emigração multissecular, cujas políticas tradicionalmente descuraram a proteção dos cidadãos fora de fronteiras e se caracterizaram pela prioridade de regular os fluxos de saída, com a quase constante imposição de restrições ao êxodo masculino e de proibição ou de limitação sistemática das migrações femininas, primeiro para Oriente, depois para o Brasil e outros destinos. As primeiras políticas públicas destinadas às mulheres são marcadas por uma misoginia sem paralelo na Península Ibérica e na Europa. A revolução de 1974 trouxe a todos os cidadãos portugueses a liberdade de emigrar e o desenvolvimento de medidas de apoio cultural e social, sem que, todavia, a situação específica das emigrantes fosse objeto de particular atenção. Em 1981, o recém criado Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), Órgão representativo da emigração e instância consultiva do Governo,era composto por cerca de 60 membros, eleitos no âmbito associativo, todos do sexo masculino. Em 1983, nova eleição em colégio associativo trouxe à instituição as duas primeiras mulheres conselheiras, uma das quais, Maria Alice Ribeiro, de Toronto, avançou com a proposta da convocação de um encontro mundial das mulheres emigrantes portuguesas. O 1º Encontro Mundial veio a realizar-se em 1985, com o alto patrocínio da UNESCO, dando ao país um improvável lugar de pioneirismo europeu e mundial. No entanto, a sequência a dar às suas principais conclusões só viria a concretizar-se a partir de 2005, pela via dos " Encontros para a Cidadania - a igualdade entre homens e Mulheres", uma iniciativa desenvolvida através de uma parceria entre a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas e ONG's, como a Associação Mulher Migrante e a Fundação Pro Dignitate. A descontinuidade dos "Encontros para a cidadania", (do "congressismo" como instrumento de luta pela igualdade) e a sub-representação feminina no interior do Conselho das Comunidades, eleito por sufrágio direto e universal, marcam o estado atual das políticas públicas com a componente de género nas nossas comunidades do estrangeiro. Palavras chave: emigração feminina, políticas públicas, igualdade, sub-representação feminina, congressismo

terça-feira, 2 de maio de 2023

2022 MARIA ARCHER Lisboa Uma primeira palavra de agradecimento à organização deste colóquio, em especial à Profª Isabel Henriques de Jesus, por este convite para participar numa grande jornada de reflexão em torno de Maria Archer, no 40º ano da sua morte A celebração de uma efeméride é, muitas, vezes, apenas cumprimento de um calendário ritual, mas também pode ser muito mais, quando dela se faz um verdadeiro “projeto memória”, ponte entre o passado de figuras ou acontecimentos e o presente, com o fim de o transportar ao futuro. Assim sucedeu, por exemplo, na comemoração do 20º ano da convocatória do 1º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas na Emigração, que resultou no verdadeiro início de políticas públicas naquele domínio, ou com o centenário da República em cujo programa de eventos se foi dando visibilidade, aqui e ali, a grande vultos da nossa 1ª vaga do movimento feminista. E assim será, espero, com as comemorações do cinquentenário da revolução de Abril, onde haverá lugar ao reencontro com a vida e a obra de grandes mulheres que a Ditadura tentou eliminar do património imaterial que é a memória coletiva. Embora saiba não haver ligação direta entre essa próxima agenda, e a que aqui nos traz, atrevo-me a dizer que vejo já nas linhas de investigação voltadas para as escritoras que resistiram ao silenciamento imposto pelo regime, de algum modo, um prenúncio ou uma decorrência espontânea no ambiente criado â volta de uma data marcante, e a um olhar sobre um outro centenário, dos 50 anos de ditadura aos 50 anos de democracia – com uma perspetiva certamente não passadista, mas simultaneamente retrospetiva e prospetiva. É como se os ventos d mudança já nos levassem a esse caminho. Maria Archer, essa portuguesa admirável, nascida num dia do último janeiro do século XIX, e ainda tão atual no pensamento e no exemplo de inconformismo e de coragem merece se, nesta envolvente, redescoberta. Nela vejo, sempre , antes de mais, a cidadã de muitas cidades, num percurso repartido pela geografia do mundo lusófono, em convívio curioso e expetante com as suas culturas e particularidade, empenhada em aprendizagens e partilhas, na intervenção em variados domínios, movida por valores humanistas que são ainda hoje os nossos. Um destino de interminável itinerância, desde menina, poderia ter significado inadaptação e desenraizamento - mas não, bem pelo contrário, enraizou-a um pouco por todo o lado, com o olhar atento sobre tudo o que era novo, a fascinação pelo exotismo e pela beleza das pessoas e das paisagens - em suma, ao despertar dos afetos. Em estadas longas, que perfizeram 14 anos de África, a sua infância e a juventude decorrem, assim, numa sucessão de idas e voltas, de Lisboa para Bissau e Bolama, para a Ilha de Moçambique, com os pais, depois, já casada, para a ilha de Ibo com o marido, e após o divórcio, ainda sob teto paterno, para Luanda. Divorciar-se, no ano de 1933, foi um ato de enorme ousadia, com que encerrou um ciclo e começou outro, finalmente livre para transpor a fronteira do espaço privado, onde as jovens da burguesia se deixavam emparedar, na dependência vitalícia de filhas ou esposas, para o espaço público, onde se tornou verdadeiramente Maria Archer. No breve relance sobre a sua trajetória de escritora, a vemo-la por pouco mais de duas décadas, destacar-se nos meios intelectuais de Lisboa, onde se impunha pelo talento literário – a grande revelação da década de trinta – e encantava pela elegância do porte e pela vivacidade do espírito e pelo talento literário. Em 1935, ainda em Luanda, fazia a sua estreia literária com os de três mulheres, de seguida, publica, em Lisboa, "África Selvagem", uma primeira e fulgurante incursão nos domínios da literatura colonial. Era o início da aventura solitária de subsistir pela escrita, como Autora reconhecida pela crítica e pelos leitores, que esgotavam edições e reedições dos seus romances e novelas, e como reputada articulista nas páginas de jornais e revistas de referência. As causas que a moveram permanecem atuais: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania, o feminismo como humanismo, a aproximação dos povos da lusofonia - ultrapassando a visão eurocêntrica tradicional, herdada da 1ª República, no policentrismo dos seus escritos mais tardios.. . A ditadura assente na repressão das Liberdades e no conservadorismo misógino, não suportava a subversão da sua ideologia e da sua Ordem e sobretudo a transgressão no feminino, que Maria Archer encarnava. Entre nós, ninguém levou tão longe e tão bem a recriação realista de uma atmosfera social e política que condicionava o mundo segregado das mulheres, com o implacável rigor de uma etnóloga por vocação e a arte de o traduzir literariamente. Nas suas próprias palavras, moldava o retrato sobre modelo vivo. A Ditadura não gostou do retrato e tratou de a levar ao degredo do seu espaço e ao esquecimento no seu tempo. Quis, como disse Maria Teresa Horta, "deliberadamente apagá-la da história". Maria Archer foi obrigada a partir para um exílio de 24 anos em São Paulo, de onde regressaria, em 1979, como se não tivesse regressado, diminuída na debilidade física irreversível, desaparecida na memória do país. Maria Archer, porém, viu para além do horizonte desse tempo, confiante no julgamento do futuro. Esse futuro é agora, somos nós. Estamos hoje aqui, a dizer, com a nossa presença e a nossa palavra, que queremos, deliberadamente, restitui-la à história. Integramos um movimento iniciado por uma plêiade de investigadores, que, primeiramente nos meios académicos do Brasil, e, hoje, já também em Portugal, a reconhecem como romancista e contista intemporal na representação literária de um dado tempo ou meio social, e a situam nos caminhos da luta pelo direito de pensar, de falar e de viver livremente em Portugal e na aproximação dos vários mundos da lusofonia pela construção de pontes que os unam. E, ainda, como legatária da 1ª vaga do feminismo português, cuja bandeira, extinto praticamente esse movimento, transportou, solitariamente, desconstruindo, pelo força iconoclasta da sua obra, e pelo seu próprio exemplo, o ideal tipo feminino do salazarismo. Ou, se preferirmos, como precursora da 2ª vaga, das vésperas da revolução, que antecipou no seu pensamento de mulher moderna – e moderna ainda por padrões atuais. No 40º ano da sua morte, celebramos o reencontro com a Maria Archer. no retorno definitivo do exílio para preencher o seu lugar na história da literatura, e do jornalismo, da democracia, e do feminismo em Portugal. Maria Archer podia ter sido personagem de um romance realista de Maria Archer. Na verdade, o que falta contar é a história que escreveu com a sua própria vida. Talvez, por altura de outra efeméride, em 2024, nos 125 anos da escritora, alguém queira e possa dar-lhe e dar-nos essa biografia. Aqui deixo o desafio, porque tão admirável é a obra como a vida de Maria Archer. ----------------------------------------------------------------------------------------------- Maria Archer viveu num presente de que ela era já o futuro, Como ela adivinhou aqui e agora o País a redescobre, tão fascinante na sua obra como na sua vida- Maria Archer bem podia ter sido personagem de um romance de Maria Archer Falta contar a história dramática que escreveu com a sua própria vida Como ela adivinhou o País haveria de a redescobrir, tão fascinante na sua obra como na sua vida. Maria Archer podia bem ter sido a personagem de um último romance de Maria Archer. Falta ir contando a história que escreveu com a própria vida, refletindo, como hoje aqui se vai fazer, sobre os infinitos reflexos ----------------------------------------------------------------------------------------. Maria Archer emergiu meteóricamente numa sociedade misógina, opressiva e medíocre, num presente sombrio de que se sentia já o futuro. No Portugal dos anos trinta a cinquenta, tinha ela pouco mais do que a idade do século, ousou abandonar, de vez, o gineceu familiar, infringir as velhas regras, derrubar os padrões do patriarcalismo, desconstruir pelo exemplo, os modelos culturais do feminino ditados pelo regime, empunhando a bandeira de um feminismo interdito. A primeira viagem que faria, por seu livre arbítrio, em decisão irreversível, foi de uma Lisboa para outra Lisboa - do reduto fechado dos salões da burguesia familiar para as tertúlias intelectuais do meio artístico e literário. Um percurso solitário e agreste, caminho de libertação, que lhe deu voz e influência no espaço público, mas não felicidade. O preço imenso que pagou por ser mulher no pleno uso dos seus talentos, mulher liberta, interveniente, solidária. Ou dito de outra forma, por não ser "apenas mulher", como o regime a queria formatada. -------------------------------------------------------------------------------- Entre a pioneira vaga do movimento feminista português no início de novecentos, que atingia o auge, quando Maria Archer era menina, e o seu ressurgimento, na década de sessenta e setenta, quando a falta de saúde já a silenciara, ela foi a brilhante e generosa herdeira de uma e a verdadeira precursora da outra. O jornalismo e a Literatura, foram, em Portugal como na Suécia, armas de combate estratégico pela igualdade de sexos. Entre nós, ninguém levou tão longe e tão bem a recriação realista de uma atmosfera social e política que condicionava o mundo segregado das mulheres - denúncia pungente servida pela suas qualidade literária e por uma reconhecida vocação de etnógrafa, a quem faltava a formação académica mas sobrava a capacidade de observação e registo rigoroso de costumes bantus como lisboetas... Os seus retratos literários têm uma força expressiva. incomparável Maria Archer adivinhou o País haveria de a redescobrir, tão fascinante na sua obra como na sua vida. Maria Archer podia bem ter sido a personagem de um último romance de Maria Archer. Falta ir contando a história que escreveu com a própria vida, refletindo, como hoje aqui se vai fazer, sobre os infinitos reflexos ------------------------------------------- Como ela adivinhou o País haveria de a redescobrir, tão fascinante na sua obra como na sua vida. Maria Archer podia bem ter sido a personagem de um último romance de Maria Archer. Falta ir contando a história que escreveu com a própria vida, refletindo, como hoje aqui se vai fazer, sobre os infinitos reflexos
CCP CARTA ÀS CONSELHEIRAS DO CCP . 2 junho 2019 Senhora Conselheira Luísa Semedo Agradeço a informação recebida e muito me regozijo com esta histórica iniciativa das Conselheiras do CCP. Estou inteiramente de acordo com as propostas avançadas e quero felicitá-las pela forma tão objetiva e tão convincente como a defendem, pondo o acento na incompatibilidade entre a própria definição de democracia e a situação de discriminação de género subsistente no CCP, quase 40 anos depois de ter sido instituído. Tive o privilégio de acompanhar de perto o seu nascimento e evolução, enquanto membro do Governo e Deputada da emigração, desde a a feitura da lei em 1980 e a realização da reunião plenária inaugural, em abril de 1981. Nesse primeiro encontro mundial, não havia uma única mulher eleita pelo colégio eleitoral formado, então, por dirigentes associativos das Comunidades, o que não podia deixar de prejudicar a imagem, credibilidade democrática e eficácia de um Órgão de representação e consulta tão importante. Essa inadmissível discriminação espelhava, porém, a realidade de um movimento associativo caraterizado pela absoluta predominância masculina e tornava-se, por isso, extremamente difícil de combater. Nas eleições de 1983, apenas duas mulheres ganharam acesso ao Conselho, ambas jornalistas, uma de Paris, outra de Toronto e só em 1985 surgiram as primeiras conselheiras oriundas do movimento associativo, notáveis pioneiras de reconhecida competência, apesar da qual nunca foram escolhidas pelos seus pares para qualquer cargo de direção. Após um longo interregno, que se estendeu de 1988 a 1996, a adoção, nesse ano, de um novo modelo de Conselho, a eleger por sufrágio directo e universal, parecia abrir perspetivas ao maior equilíbrio de sexo, logo frustradas, pois a componente feminina manteve-se diminuta e afastada das lideranças, por mais qualificada e influente que fosse - e era! Só a imposição de quotas, (de que, há muito, sou adepta declarada), tanto nas eleições nacionais e autárquicas como no CCP, se revelou decisiva para os progressos registados na última década, ficando, embora, ainda aquém das metas da paridade. E, infelizmente, muito mais no Conselho das Comunidades do que, por exemplo, na Assembleia da República. Ora quanto maior for a continuada resistência a uma intervenção feminina igualitária, mais necessário é reforçar a eficácia da aplicação das regras da paridade, procurando detetar, denunciar e impedir os desvios concretos ao espírito e aos ditames da lei. É exatamente o que, em relação ao caso particular do CCP, vêm propor, com rigorosa argumentação, as Senhoras Conselheiras, Acredito que conseguirão alcançar os objetivos e, com isso, dignificar a Instituição, dar-lhe a sua verdadeira dimensão representativa, e contribuir, em simultâneo, para um novo fôlego, na Diáspora, das políticas públicas para a igualdade, que constituem, nos termos da Constituição, "tarefa fundamental" da Estado. No passado, o CCP teve já, por sinal, um papel relevante na génese das políticas para a igualdade, graças à recomendação de uma Conselheira de Toronto, Maria Alice Ribeiro, que levou, em linha reta, à convocatória, pelo Governo, do "1º Encontro de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo", em 1985. Uma reunião inédita, em que grandes mulheres das Comunidades de todo o mundo mostraram o seu conhecimento das problemáticas da emigração, capacidades de diálogo e criação de consensos, comprovando, assim, a medida exata da falta que a sua voz fazia no Conselho. Permitam-me, por último, felicitá-las pelos resultados já atingidos, sobretudo a nível regional, redobrando fundadas esperanças no futuro Conselho, no impacte que nele terá, certamente, a sequência desta tomada de posição conjunta das Conselheiras. Para todas envio cordiais saudações, com a minha inteira solidariedade e muito apreço Luisa Semedo quinta, 30/05/2019, 16:30
O EURO 2022 E O FUTURO DO FUTEBOL FEMININO 1 - A final do Euro 2022 de futebol feminino registou 87192 espectadores no Estádio de Wembley e teve 18 milhões de telespectadores em todo o mundo. Foi a maior assistência de sempre num europeu de futebol, masculino ou feminino. Não aconteceu por acaso. O futebol de mulheres tem feito um vertiginoso percurso ascensional e, aqui, a geografia também terá pesado - a Inglaterra é o berço deste desporto fadado para ultrapassar os demais em popularidade. Porém, na verdade, parece que, ainda hoje, os seus inventores o amam mais do que todos os outros, e, talvez por isso, não fazem questão de quem está em campo, homens ou mulheres, desde que o saibam jogar bem. Nem sempre assim foi. O "foot-bal", que é agora de toda a gente, quer na sua terra matricial, quer nos países para onde ia sendo exportado tinha uma marca elitista, de privilégio de classe social e de género. Era para homens de posses e de raça branca… O Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, clube fundado por imigrantes portugueses, reclama a glória de ter sido o primeiro do Brasil a integrar atletas negros no seu plantel! Tal como acontecera no campo dos direitos políticos, onde o combate contra a exclusão dos negros e das mulheres unia os militantes de uma causa comum, também neste domínio os homens negros chegaram à meta muito antes das mulheres de qualquer cor ou credo… As jovens teriam de esperar ainda largas décadas de rigorosa segregação, até serem admitidas num retângulo de jogo. Sei-o por experiência própria. Em meados do século XX, era eu aluna do Colégio do Sardão, em Oliveira do Douro, e podia gozar, no dia a dia, de condições excecionais que dava para a prática de todas as modalidades desportiva consideradas “próprias para meninas” – ginástica, ténis, ping-pong, patinagem, andebol, voleibol, basquete… Só o futebol nos era rigorosamente interdito, como a maçã no paraíso de Eva e Adão! Nada que nos detivesse. Jogávamos, clandestinamente, sob ameaça de pesados castigos, a que, com muita sorte, ao contrário da Eva bíblica, fomos escapando. Na única vez em que nos denunciaram, eu, como suspeita de ser a organizadora do evento (e efetivamente era, não podia nem queria nega-lo…), fui chamada à intimidante presença da “Mestra Geral”. Esperava pena máxima, mas a simpática religiosa revelou não só condescendência, como inesperado sentido de humor. Depois do sermão da praxe (“o futebol não é jogo apropriado para meninas”, etc. etc.), rematou, benignamente: “Bem, Manuela, em todo o caso, como sei que gosta muito de futebol, a si, dou-lhe uma autorização especial para jogar, às outras, não!”. Ficou tudo como dantes - continuamos a transgredir, à hora do recreio, passando do ortodoxo andebol ao subversivo futebol - bola no pé, em vez de bola na mão… 2 - Todavia, justo é reconhecer que as Irmãs Doroteias não estavam isoladas nos seus estereotipados paradigmas de “desporto feminino”, antes partilhavam a mentalidade da época, a nível nacional e internacional. Longa era, então, por exemplo, a lista de desportos interditos ao sexo feminino nos Jogos Olímpicos! Atualmente, nem sequer se admite uma nova modalidade olímpica, se não for aberta aos dois sexos. O futebol acompanhou a evolução do quadro geral e há muito captou milhões de raparigas, havendo até países, onde é mais popular entre elas do que entre rapazes, caso da América do Norte, onde é chamado “soccer”, (para o distinguir do “futebol” local que não tem nada a ver com o nosso). Suponho que, num dia não muito distante, mesmo em Portugal, onde a evolução do desporto para raparigas segue, devagar, as tendências europeias e mundiais para a igualdade, aumentará a pressão sobre os clubes profissionais para se abrirem ao futebol feminino. Já há seis anos, em 2016/17, a FPF instou os participantes da Liga principal a formarem equipas de ambos os géneros, tendo obtido resposta positiva do SCP, SC Braga, Estoril Praia, Os Belenenses e Boavista, a que, depois, se juntaria o SLB. Hoje, três dos “quatro grandes”, SLB, SCP e Braga repartem entre si os troféus no feminino. Só o FCP permanece de fora (é o meu clube, com muita pena o digo...). A honra de bem representar a cidade do Porto cabe ao Boavista, a segunda equipa feminina mais titulada de sempre, com 11 campeonatos (dez consecutivos, entre 1985 e 1995). Perdido este ascendente no século XXI, o Boavista optou, recentemente, por apostar nos escalões de formação, com a esperança de, a prazo, voltar ao topo. Bom seria que o conseguisse - a cidade do Porto precisa de mais títulos, para dar continuidade a esse historial incomparável, que os “grandes” de Lisboa estão ainda longe de poder igualar. O SCP tem dois títulos, tal como o SLB, atual campeão. No ranking da UEFA, Portugal ocupa um modestíssimo 23º lugar, logo atrás da Ucrânia, mas, desta feita, a nossa seleção esteve no Euro e bateu-se dignamente com as melhores. Digamos que está, ainda, numa fase que o futebol masculino já ultrapassou a fase das "vitórias morais". 3 – Qualquer que seja o reduto considerado, é sempre mais fácil proclamar a igualdade no campo jurídico do que vivê-la na realidade. É especialmente assim na área do desporto-rei, porque, além de um admirável espetáculo é negócio internacional poderosíssimo, de dominância masculina - como todos os grandes negócios. E os velhos preconceitos ainda pesam muito… Não são só os talibãs e os aiatolas que negam às mulheres o direito à prática de vigorosos e atrativos desportos: muitos homens, um pouco por todo o lado, consideram o futebol protagonizado por mulheres “contranatura”, desvirtuação do fenómeno original e autêntico, segundo eles, intrinsecamente másculo, ao contrário de, por exemplo, do ténis, da natação, do andebol, ou do bilhar. Em que residirá, de facto, a suposta especificidade masculina do futebol? Mistério.... Certo é que se consubstancia em ideias feitas, enraizadas, inelutáveis, ao menos, no curto e médio prazo. Os progressos são muito mais visíveis na qualidade de jogo interpretado por mulheres, do que em matéria de combate a preconceitos sexistas, que começam na família e na escola... Mas eis que, se súbito, assistimos a um “happening”, que parece poder apressar a longa caminhada para as fronteiras da igualdade: a vitória inglesa no Euro 2022, numa final espetacularmente disputada com a Alemanha. Ganharem as inglesas ou as alemãs não era, a meu ver, equivalente para o futuro das mulheres na modalidade. Uma asserção que pode parecer estranha, ou descabida, sabido que a Alemanha, em termos desportivos, como económicos ou culturais é uma superpotência europeia. Passo a explicar os motivos porque considero que o êxito das germânicas não teria o mesmo efeito. No futebol masculino é costume dizer: "são onze contra onze e, no fim, ganha a Alemanha". Ora, na esfera feminina, o mesmo se pode afirmar: até 2022, elas tinham ganho todas as oito finais que disputaram! Na nona, eram, naturalmente, as grandes favoritas. Se o favoritismo se confirmasse, o que mudava? Julgo que não muito, à semelhança do que aconteceu nos anteriores oito campeonatos europeus assinalados pelo avassalador domínio das eternas campeãs.... O seu país está demasiado habituado a vencer. E valoriza, obviamente, mais os sucessos masculinos, que são também recorrentes, embora não tanto. A Inglaterra, pelo contrário, perseguia um título europeu ou mundial de futebol há 56 anos! O seu último troféu fora erguido em 1966, precisamente contra a Alemanha, e, por coincidência, no mesmo estádio. Neste contexto, olhavam a oportunidade do Euro 2022 com expetativa e euforia crescente, à medida que as “leoas” somavam excelente exibições e resultados. Naquele dia decisivo, multidões de fãs invadiram os cafés, os bares e as ruas, da cidade de Londres à mais remota aldeia. E, como o sonho comanda a vida, gritavam, convictamente: "o futebol está de volta a casa". 4 - Cumpriu-se o sonho, em ambiente de loucura coletiva! Ao nível dos festejos a igualdade foi fulminantemente alcançada, em delírio popular, em reconhecimento, no sentimento de orgulho nacional. A igualdade nos demais aspetos não será para breve, mas ficou mais próxima. Ao menos no universo de cultura anglo-saxónica, imensamente mais vasto do que a Inglaterra (e do que a Alemanha, convenhamos!), o ritmo vai, de imediato, acelerar, e onde é crucial para a generalização da sua prática: nos escalões de formação dos clubes, na Escola, no investimento do Estado (já está prometido pelo governo de Boris Johnson um primeiro cheque de 230 milhões de libras...). Rainha Isabel II, conhecida adepta de futebol, na sua saudação, apontava, justamente, ao futuro: "O vosso sucesso vai muito além do troféu que tão merecidamente recebestes. Vós acabais de dar um exemplo que vai ser uma inspiração para as outras raparigas e mulheres". A mesma certeza, o mesmo sentimento que exprimiu uma antiga campeã, Grace Vella, numa entrevista à Sky News: "milhões de raparigas vão agora querer jogar". Nos "media" a retumbância do feito foi extraordinária (coisa impensável por cá, co capítulo do futebol feminino, como se prova pelo facto de um jogo com este impacte internacional ser transmitido na RTP 2, enquanto os restantes canais se limitavam a pouco mais do que uma notícia de rodapé). A Sky News, a CNN Internacional ou a France 24 deram significativa cobertura ao pós -match, em particular às infindáveis celebrações. Na imprensa inglesa, o título europeu fez manchetes gigantes de primeira página, tanto nos tabloides como nos mais prestigiados jornais. Nunca se vira nada de semelhante! O "Times", por exemplo, escreveu em letras garrafais: "Leoas trazem-no para casa" e, no artigo de fundo, "Mulheres que emocionaram a Nação". O "Guardian", do mesmo modo, destacou o "momento de viragem" ("Game changers"), em página inteira. 5 - Vi a emocionante final, a torcer pela Inglaterra, antevendo as mais benéficas consequências do êxito das "leoas", com a plena consciência de que o seu contributo para a história do futuro do futebol feminino seria insuperável. Não eram as melhores do mundo, mas representavam a pátria-mãe da modalidade, que é, a nível de clubes, um potentado, e, no plano das seleções, um país cronicamente derrotado, com muita fome de títulos. A grande final batia recordes de assistência presencial, contava com uma impressionante audiência televisiva. O cartaz de propaganda ideal da arte feminina de desenhar jogadas no retângulo! O futebol de homens não precisou do grande ecrã para se impor, embora este lhe acrescentasse dimensão planetária. Para as mulheres, a televisão foi o espelho da sua verdadeira qualidade, “a prova dos nove”, vital para a revelação de capacidades e de virtualidades. Uma imagem vale mais do que mil palavras, não é verdade? Contra a evidência das imagens não há argumentos... e os críticos, de ambos os sexos, foram fazendo, enquanto telespectadores, a sua estrada de Damasco. É o meu caso: nunca assisti a um desafio entre mulheres, ao vivo, num estádio e foi a vê-las na televisão, em campeonatos europeus e mundiais, que me converti, há já muitos anos, à beleza, ao tecnicismo e ao maior “fair-play” do futebol no feminino. Quanto ao Inglaterra-Alemanha terei de concordar com quem disser que não foi o mais deslumbrante jogo do século- as finais, seja quem forem os competidores, em regra, tendem a deixar-se dominar por cautelas e espartilhos táticos. (ambas as equipas, note-se, comandadas por selecionadoras mulheres – o que era, de início, coisa rara – e a vencedora, Sarina Wiegman, já em 1917 levara a Holanda à conquista do Euro) De qualquer modo, a mestria esteve presente... o fabuloso golo de Toone, a nº 20 (fuga em velocidade e "chapéu" à guarda redes), depois, o golo que liquidou as esperanças alemãs, marcado, numa insistência, por Chloe Kelly, e menos notório, mas não menos decisivo, o precioso corte da luso-britânica Lucy Bronze ao minuto 111, a impedir o empate (Bronze, a nº 2, que é considerada uma das melhores jogadoras do mundo). Em suma, mais do que ganharem um campeonato para o seu país, as “leoas" de Inglaterra deram ao ao futebol feminino novos horizonte, novo futuro.