terça-feira, 16 de maio de 2023

EFEMÉRIDES 1 – Não é a primeira vez que, nesta coluna, escrevo sobre efemérides, em tom encomiástico. Todavia, devo dizer que tive de fazer, nesta matéria, a minha “estrada de Damasco”. À partida, era avessa a aceitar a imposição de uma data, por mais internacional ou mundial que fosse, como pretexto para reflexão, folguedo ou solenidade, excetuando aqueles rituais consagrados pela nossa tradição cristã ou laica. Poucos: o Natal, o Dia de Reis (que a minha avó materna considerava “a primeira festa do ano, pretexto para reunir, de novo, uma quinzena depois da “consoada”, a sua numerosa família), o Carnaval, a Páscoa, o Dia da Mãe e o Dia do Pai. Não me lembro de nenhuma especial congregação familiar a 10 de junho, a 5 de outubro ou a 1 de dezembro…. Eram simplesmente feriados, a gozar como um domingo normal. Para a maior parte dos portugueses, as coisas ainda são vistas assim: o Dia nacional, se estiver sol, é para ir à praia, e os outros, incluindo, desde a meia década de setenta, o 25 de abril, com tempo favorável, também permitem uma boa passeata. Quando muito, o povo participa no programa do dia de Portugal na cidade escolhida como sede da festa, e no Dia da Liberdade numa marcha organizada pelos partidos e ONG’s afins. Mais sorte, têm, por exemplo, os “Santos Populares” – o São João do Porto ou de Braga, o Santo António de Lisboa, o São Pedro de Espinho, porque as pessoas aderem, espontaneamente e em massa, à festança na rua. O mesmo se diga do Carnaval, que polariza eventos um pouco por todo o lado, embora mais nuns do que em outros.… E, curiosamente, efemérides de importação recente ascenderam ao “top 10”, como o “dia dos namorados”, dia de São Valentim, (que se tornou uma espécie de 4º santo popular, ultrapassando o São Martinho dos magustos) e o “Halloween”, para o povo infantil… O que, a meus olhos, mais contribuía para desacreditar tantas efemérides era a caótica mescla de enfoques de um calendário “oficial”, que não cessava, (nem cessa), de se ramificar, incorporando tanto modismos fúteis e datas de culto alheias (do mediático mundo anglo-saxónico, sobretudo), como verdadeiros desafios ou “sinais dos tempos”. No calendário católico, sendo a intenção orar, quotidianamente, parecia-me bem ir variando de medianeiro, e, nos meus tempos escolares, recordo-me de fazer, sistematicamente, promessas aos santos dos dias de testes e exames. Porém, num mundo laico, parecia-me coisa para quem quer divertir-se a “festejar por festejar”, “à la carte”, num almanaque caleidoscópico. Nenhum dos 365 dias do roteiro anual fica em branco, há, sempre, pelo menos um santo, completamente esquecido do cristão comum, à espera de ser venerado. Para os hipocondríacos, (como eu), abundam datas de combate a doenças, se não sentidas, pelo menos temidas - o dia mundial da obesidade, do rim, do transtorno bipolar, da incontinência urinária, da lepra, da tuberculose, da epilepsia, da artrite reumatoide, etc., etc. No setor alimentar, por exemplo, os “dias mundiais” elegem o hamburger, a comida picante, o chocolate, a nutela, a bolacha, ou bebidas como o cocktail, o whisky, o vinho do Porto, o chá (a que acresce o “dia do chá gelado)… Para os amigos dos animais, em que me conto, o calendário sinaliza numerosas espécies, esquecendo outras: o “dia mundial” do rato, da baleia, do urso polar, do pinguim, das abelhas, do mosquito, do cão (mais o dia internacional do “cão guia”), do gato (merecendo o “gato preto” jornada à parte…), do tigre, do elefante. Estranha-se a ausência, do cão polícia ou do cão pastor, do lince ibérico, do canguru, do panda, do camelo … Nas profissões, um numeroso lote, o mesmo “senão”, há as privilegiadas e as esquecidas. Outro filão é o foco em atividades inteiramente lúdicas ou descontraídas: o dia internacional do fascínio das plantas, o dia sem dieta, os dias do riso, do sorriso, do beijo, dos namorados, do casamento (ao menos para casais felizes…), do piquenique, da preguiça, das palavras cruzadas, da piada etc.etc. Está nesta categoria, o mais universal de todos, “o dia da mentira”, 1 de abril… Num outro patamar, acedemos à Cultura, com os dias Mundiais da Criatividade e Inovação, da Poesia, da Arte, do Teatro, do Cinema, dos Museus, dos Monumentos, e tantos outros, que, felizmente, vão entrando na agenda concreta de instituições públicas e da sociedade civil. E, a seu lado, crescem também os esforços de lutar pelos direitos humanos, contra a violação dos seus valores nos mais diversos aspetos, dando-lhes, a partir de uma certa data, mais visibilidade e consciência da sua importância 2 – Devo dizer que foi na vida política, e não no meu espaço privado, que me apercebi do enorme potencial de certas efemérides. O Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, tal como é celebrado na Diáspora, constituiu uma revelação, porque lá fora é, realmente, uma oportunidade de união, de exuberante divulgação da nossa cultura, partilhada com os outros, em grandes festivais de música, de dança, cortejos alegóricos, banquetes, competições desportivas, exposições de arte, debates. O programa varia muito, a intenção é idêntica, os meios humanos e materiais vêm, em regra, do movimento associativo, clubes, escolas, paróquias, e estende-se, às vezes, por dias, semanas, ou por todo o mês de junho… As entidades oficiais, da terra de origem ou de residência são apenas convidadas, o anfitrião é a comunidade, em trabalho conjunto, esquecendo o que as divide ao longo do ano. Em Newark e em Toronto o 10 de junho juntava dezenas, quando não centenas de milhares de pessoas, ultrapassando, no que respeita a essa participação popular, largamente, tudo quanto se fazia no país. Converti-me! O Dia Internacional da Mulher, o Dia da Comunidades Luso-Brasileira, o 25 de Abril, o Dia da Europa têm sido efemérides de datas que me levaram e ainda levam a variadas cidades, países e continentes. 3 - Neste ano de 2023, depois de ter estado em Montreal, para o 20º Dia Internacional da Mulher organizado pelo Jornal “Luso Presse” (uma dupla efeméride, a da data em si mesma, e a do aniversário de uma iniciativa, há duas décadas, absolutamente inédita na nossa emigração, ainda hoje pouco sensível a questões de igualdade de género). E, na semana passada, participei no Dia Nacional do Mutualismo promovido pela União das Mutualidades Portuguesas, aqui bem perto, em Gaia, na sua fronteira com Espinho. Fui convidada para moderar uma conferência com quatro esplêndidos oradores, o Comissário Europeu Nicolas Schmit, os eurodeputados José Manuel Fernandes e Pedro Marques e o Vice-Presidente da ANM Pedro Ferreira, Presidente da CM de Torres Vedras. Na sala, os cartazes lembravam-nos que, em Portugal, o mutualismo tem quase a mesma idade do país, pois a primeira confraria remonta a 1067, mas da sua longa viagem através dos tempos, falou-se quase só para mostrar como a fórmula da solidariedade e cooperação em que assenta se consegue adaptar às mais profundas transformações sociais e económicas. “Mutualismo numa nova ordem mundial” era o tema da Conferência, e todos os intervenientes traçaram o retrato realista do fim de um longo ciclo de paz na Europa e de abertura à globalização, com a emergência de novas tensões internacionais, do ressurgir de blocos em confronto, de incertezas e desafios. A pandemia, a invasão da Ucrânia, o drama dos refugiados, a crise financeira, alargaram, sem dúvida, o fosso entre países ricos e países pobres - e entre as pessoas, também. E até a inovação e progresso tecnológico contribuem para criar um mundo que avança vertiginosamente, deixando para trás o universo em expansão dos excluídos. É uma constatação tremenda… O cenário de pobreza, de desigualdade e de injustiça extremas, foi sempre o terreno em que o mutualismo germinou, entre a cultura do lucro capitalista e a limitada capacidade do Estado de dar resposta a tudo. É com o espírito mutualista de partilha, de entreajuda, de compreensão do outro, que se poderão moldar as transformações económicas, sociais e culturais, a que assistimos nas nossas sociedades. E é com esse mesmo espírito que a Europa, e dentro dela, cada país, deve nortear o seu esforço de cooperação com outros continentes. Portugal, a sua multissecular experiência mutualista pode fazer a diferença no espaço da lusofonia, a que pertence, como brilhantemente salientou, na parte final do programa do dia, o Prof Guilherme de Oliveira Martins. Assim o mutualismo se mostrou como atualmente é, olhando o mundo e o futuro. Assim vale a pena comemorar uma efeméride.

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