terça-feira, 30 de maio de 2023

AS BANDEIRAS DE JOACINE 1 . Joacine Katar Tavares Moreira entrou, com 37 anos e um brilhante curriculum académico, no hemiciclo de São Bento no meio de um turbilhão mediático. Dão nas vistas as muitas bandeiras de que se cerca para fazer história na Assembleia da República. É o tê-las, em conjunto, nas suas mãos, não cada uma delas, que a convertem em grande pioneira.
É mulher, negra, nascida no estrangeiro, (naturalizada aos 21 anos) e gagueja, como 100.000 outros portugueses, a quem demonstra que nada lhes é impossível, nem mesmo intervir em debates televisivos e discursar na tribuna parlamentar. Sabe o que quer e sabe o que diz, ainda que o diga, por vezes, mais devagar.  Não são, pois, repito, aquelas particularidades, "de per si" que a tornam um fenómeno político nacional, mas antes o facto de as empunhar, todas, orgulhosamente. É feminista, dirigente associativa de um movimento de mulheres negras,e combate com o seu exemplo, ativamente, diferentes formas de discriminação (a própria gaguez incluída). Não sendo do seu partido e não a acompanhando em todos os pontos do seu programa, gosto, sempre, de a ver afrontar e pôr, assim, a nu uma longa lista de preconceitos. 2 - Aos ataques que sofreu, antes das eleições, acresce, o que, no período seguinte, se deve enquadrar no puro domínio da xenofobia. Refiro-me ao episódio suscitado pelo simples agitar de uma bandeira da Guiné Bissau na festa da noite eleitoral do "Livre". De imediato se levantou um coro de protestos, e logo circulou uma petição, que reuniu cerca de 18.00 assinaturas, na vã tentativa de impedir a sua investidura como deputada, acusando-ou de não ser portuguesa ou de faltar aos deveres de patriotismo. A questão da nacionalidade entrou na liça! E não costuma entrar, ao menos no desporto, quando as protagonistas trazem medalhas de ouro para Portugal - casos de Naide Gomes, (que, por sinal, representou o país de origem, São Tomé e Principe, até ao ano 2000). ou o de Patrícia  Mamona, de ascendência angolana, para só falar de fantásticas atletas, no feminino. É certo que, na modalidade desportiva mais popular, o futebol masculino, houve já, como agora aconteceu no campo da política, afloração de opiniões e atitudes xenófobas, visando, note-se, sobretudo os brasileiros, que representavam a seleção nacional, incluindo Deco, sempre o incomparável "maestro"  da equipa. De África, a principal vítima, até hoje, terá sido o internacional Rolando, defesa do FCP (e da seleção), criticadíssimo por ter festejado um título europeu do clube com uma bandeira de Cabo Verde, sua terra natal, sobre os ombros -  gesto, a meu ver, muito bonito, que terá enchido de alegria os cabo-verdianos e servido para reforçar as suas ligações afetivas ao Porto e ao nosso País. Aqueles 18.000 peticionários, que se julgam bons patriotas, são precisamente o contrário: maus e mesquinhos portugueses, incapazes de compreender o espírito fraternalista da nossa história partilhada com outros povos, e a realidade da CPLP, como herança, presença e futuro desse espírito no universo em expansão da lusofonia. 
A pertença à CPLP é, para Portugal, pelo menos tão importante, como a pertença à UE. Ora uma verdadeira Comunidade de povos não se faz com leis e proclamações solenes, mas com a proximidade e a aceitação de pessoas concretas. Pessoas concretas como a Doutora Joacine. 3 - Os tais 18.000 zelosos peticionários ignoram, pelo visto, que a nossa Constituição e as nossas leis admitem, sem restrições, a dupla (ou múltipla) nacionalidade. e até, atualmente, também, a dupla participação política, no País de origem e no de residência. Mais ainda: consagram um estatuto especial de direitos civis e  políticos para os cidadãos de países de língua portuguesa, sob condição de reciprocidade. Uma espécie de "cidadania lusófona", muito mais lata do que a "cidadania europeia", pois permite o voto em todos os sufrágios, de nível local ou nacional, assim como a capacidade de ser eleito para as autarquias e para a Assembleia da República ou de ser membro do Governo ou da Magistratura Judicial. Para já, só entre Brasil e Portugal existe a necessária reciprocidade, estando em vigor, desde 2001, um estatuto de igualdade de direitos políticos -  o mais avançado que se conhece na Europa e no mundo. Se Joacine fosse brasileira  podia aceder ao cargo de deputada, ao abrigo do artº 15ª da Constituição da República, mesmo sem adquirir a nacionalidade portuguesa... É, pois, como cidadã naturalizada portuguesa, no pleno gozo dos seus direitos, que está em S Bento e pode, obviamente, deixar-se fotografar, tanto com bandeiras da CPLP, como com a da União Europeia, cuja omnipresença aparentemente não incomoda, do mesmo modo, os nacionalistas extremados que subscreveram a petição.

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