domingo, 21 de maio de 2023

MAIS UMA NOVELA POLÍTICA LUSO-BRASILEIRA 1 – A maioria dos nossos políticos persiste em tratar o Brasil como um país “estrangeiro” e em entender a expressão “povos irmãos” como mero tropo de retórica. Erro grave, tanto numa perspetiva histórica, como na avaliação da realidade atual e do seu possível devir – ou seja, num olhar sobre a “história do futuro”, que é a que mais interessa, como diria Agostinho da Silva. No tempo passado, ao longo de séculos e até meados de novecentos, emigrar foi sinónimo de partir para o Brasil. Só após 1950 os movimentos migratórios se repartiram, significativamente, por outros destinos, em vários continentes, incluindo a Europa. Contudo, as comunidades portuguesas geradas pela emigração resistiram e resistem em prodigiosas instituições, os “Gabinetes de Leitura (o do Rio de Janeiro possui uma biblioteca com mais de 300.00 volumes), as Sociedades de Beneficência, e os seus magníficos hospitais, os centros culturais e recreativos de uma dimensão inimaginável na nossa “terrinha” e até clubes grandes de futebol, como o “Vasco da Gama” do Rio de Janeiro, a “Tuna Lusa de Belém”, ou a “Associação Portuguesa de São Paulo”, que é popularmente conhecida como “a Portuguesa”. No tempo presente está em vigor um Estatuto de Igualdade de Direitos de Portugueses e Brasileiros, uma verdadeira “cidadania Luso-Brasileira”, que vai muito mais longe do que a “cidadania europeia”. Confere aos nacionais de um país residente direitos iguais aos dos naturalizados! A iniciativa de aprofundar os tratados de Igualdade, negociados desde os anos cinquenta do século XX, foi sempre brasileira, embora certamente impulsionada pelo querer e pelo prestígio das comunidades portuguesas. Em 1998, os constituintes brasileiros avançaram para o reconhecimento aos portugueses de todos os direitos da nacionalidade - o voto em todas as eleições, a elegibilidade como autarcas, deputados, senadores, ou o acesso à magistratura judicial, aos mais altos cargos da função pública e a cargos no governo. E são muitos os que gozam efetivamente dessa cidadania. Pensando no Dia Internacional da Mulher, darei dois exemplos no feminino: o da médica Manuela Santos, que foi, há já muitos anos, a primeira mulher Secretária do Estado do Rio de Janeiro (na pasta da Saúde) e o da grande atriz e empresária teatral Ruth Escobar, a primeira mulher deputada numa Assembleia Estadual (a de São Paulo), e, depois, a primeira representante do Brasil na ONU para as questões da igualdade. Natural do Porto, Ruth era, então, porventura, a imigrante mais famosa do país, uma figura icónica, que Portugal e o Porto teimam em não reconhecer. Nunca se naturalizou brasileira, muito embora para a ONU viajasse com estatuto e passaporte diplomático. Os constituintes brasileiros aprovaram este estatuto inédito, (o mais avançado do mundo contemporâneo!), sem hesitação, sem debate, e por unanimidade, com uma única exigência: a de haver reciprocidade por parte de Portugal. Na Assembleia da República, eu própria encabecei projetos de dação da reciprocidade, com a alteração do art.º 15º, em sucessivas revisões constitucionais. Em 1989, os dois maiores partidos do arco constitucional, PSD e PS, e o PCP, derrotaram a emenda pela abstenção, apesar de deputados de todos os partidos lhe terem garantido uma maioria simples. Em 1996, apenas uma parte do PS votou contra, mas tanto bastou para prejudicar a necessária maioria de 2/3… E, por isso, só em 2001, após treze anos de inexplicável e embaraçoso impasse, foi alcançado da nossa parte o consenso que consagrou a reciprocidade, tarde e a más horas, no contexto de uma revisão pontual da Constituição, que se destinava a permitir a adesão ao Tribunal Penal Internacional. Os partidos alargaram os seus projetos de revisão a outras alterações vistas como prioritárias e o PSD assim considerou a reciprocidade, que tardava (para o que foi crucial eu ter conseguido o apoio do presidente do partido, Durão Barroso, o mais pró-brasileiro dos líderes recentes do PSD…). No PS encontrei outro poderosíssimo aliado extraparlamentar – o Dr. Mário Soares! Por indicação do PSD foi, na sua qualidade de antigo Presidente da República, convidado a intervir numa audição pública da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, onde com um depoimento corajoso e arrasador “obrigou” o seu próprio partido, a dar um “sim” imediato e definitivo. E assim chegou a bom termo a mais dura cruzada parlamentar em que, como deputada da emigração, me envolvi, por convicção e por dever de ofício, com muitas negociações de bastidores à esquerda e à direita. Recordo dessa histórica audição de julho de 2001, esta frase fantástica do Dr. Soares: “Todos os portugueses deviam ser obrigados ir ao Brasil”. Oh sim! Sobretudo políticos! Ver para crer… De facto, como Mário Soares muito bem sabia, um dos males da nossa atual de muitos dos nossos políticos de hoje é a “falta de mundo”, incluindo de “mundo lusófono”. Há-os em todos os partidos. Esta longa batalha constitucional mostrou, exuberantemente, a inexistência de qualquer linha de demarcação esquerda/direita, que tão nítida é em outros domínios - por exemplo, no da imigração, onde, à direita, o presidente Marcelo está quase sozinho nos gestos de compreensão e solidariedade. O que nas décadas de oitenta e noventa dividiu as partes em confronto é o mesmo que as divide hoje: a visão cultural do universo da lusofonia. O PSD foi contra com Cavaco e Nogueira, (como o PS o foi, anos após ano, por influência de Almeida Santos), e a favor com Marcelo e Barroso, Barbosa de Melo, Pedro Roseta ou Rui Rio. No PS a ideia de uma cidadania luso-brasileira entusiasmava deputados como Manuel Alegre, Guterres, Alberto Martins, Raúl Rego, Jaime Gama. Todos assinaram, convictamente, os meus projetos de revisão do art.º 15º, bem como, em outros quadrantes Adriano Moreira (CDS), Natália Correia (PRD), António Mota e Luísa Amorim (PCP)… 2 – Portugal está, assim, desde 2001, pronto para a celebração de acordos bilaterais semelhantes ao que nos une ao Brasil com todos os outros países lusófonos, sob condição de reciprocidade. Nenhum deles deu ainda esse passo. Por isso, podemos afirmar que o Brasil é, para Portugal e os Portugueses, o menos estrangeiro de todos os países do mundo! E não só na letra das Constituições e dos Tratados como na sua vivência concreta. E mais no “país irmão” do que por cá, onde ainda não temos notícia de deputados ou juízes brasileiros... Um outro exemplo que anda, infelizmente, muito esquecido: em 1974/75, logo depois da revolução, e de uma descolonização dramática, o Brasil foi o único país que abriu, de par em par, as suas fronteiras aos “retornados”. Colocou nos aeroportos uma “via verde” especial para carimbar autorizações de residência definitiva a todos os que chegassem de África: velhos ou novos, doentes ou saudáveis, ricos ou pobres… 3 – Após o esfriamento das relações oficiais durante os mandatos de Dilma e, sobretudo, de Bolsonaro, com Presidente, que distingue Portugal, começando em Lisboa a sua primeira visita de Estado à Europa, não se esperava uma segunda “questão de reciprocidade”, novamente provocada deste lado do Atlântico, por políticos demagogos, estreitamente nacionalistas e completamente desprovidos de sentido de Estado. Na verdade, o Brasil acolheu, em 2022, no Senado, o Presidente de Portugal e deu-lhe a palavra na sessão solene da celebração dos duzentos anos da sua independência - não o acantonou numa pequena cerimónia lateral, realizada no dia anterior ou no dia seguinte... Em 2023, Portugal, depois de o ter aventado, pela voz de titulares de altos cargos, recusa um convite ao Presidente do Brasil, para falar nas rotineiras comemorações do 49º ano da Revolução do 25 de abril. É simplesmente absurdo… É certo que não havia necessidade de apontar a intervenção do Presidente Lula ao 25 de Abril, mas tendo isso acontecido, não me parece ser despropositado comemorar o 25 de Abril com o Presidente de um país irmão. Afinal, como festa da democracia, tem carater universalista, e pode bem ser partilhada sem barreiras, em especial no espaço da lusofonia, onde veio permitir a constituição de novos Estados! E o Brasil tem aí lugar merecido porque, em 1974 e 1975 repartiu connosco o acolhimento incondicional dos portugueses desalojados (outros Estados receberam alguns desses nossos compatriotas, mas muito limitadamente e com estatuto de imigrante, não de cidadania). Não fico surpreendida por ver capitães de Abril, como Vasco Lourenço, defender a presença do Presidente do Brasil nas comemorações, (que, obviamente, o Presidente Marcelo e o Governo também desejavam) enquanto os políticos mais distantes do espírito de Abril se arvoram em paladinos da pureza das comemorações. É o Portugal dos pequenos líderes. Camões tinha razão: um fraco rei faz fraca a forte gente.

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