terça-feira, 2 de maio de 2023

2022 MARIA ARCHER Lisboa Uma primeira palavra de agradecimento à organização deste colóquio, em especial à Profª Isabel Henriques de Jesus, por este convite para participar numa grande jornada de reflexão em torno de Maria Archer, no 40º ano da sua morte A celebração de uma efeméride é, muitas, vezes, apenas cumprimento de um calendário ritual, mas também pode ser muito mais, quando dela se faz um verdadeiro “projeto memória”, ponte entre o passado de figuras ou acontecimentos e o presente, com o fim de o transportar ao futuro. Assim sucedeu, por exemplo, na comemoração do 20º ano da convocatória do 1º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas na Emigração, que resultou no verdadeiro início de políticas públicas naquele domínio, ou com o centenário da República em cujo programa de eventos se foi dando visibilidade, aqui e ali, a grande vultos da nossa 1ª vaga do movimento feminista. E assim será, espero, com as comemorações do cinquentenário da revolução de Abril, onde haverá lugar ao reencontro com a vida e a obra de grandes mulheres que a Ditadura tentou eliminar do património imaterial que é a memória coletiva. Embora saiba não haver ligação direta entre essa próxima agenda, e a que aqui nos traz, atrevo-me a dizer que vejo já nas linhas de investigação voltadas para as escritoras que resistiram ao silenciamento imposto pelo regime, de algum modo, um prenúncio ou uma decorrência espontânea no ambiente criado â volta de uma data marcante, e a um olhar sobre um outro centenário, dos 50 anos de ditadura aos 50 anos de democracia – com uma perspetiva certamente não passadista, mas simultaneamente retrospetiva e prospetiva. É como se os ventos d mudança já nos levassem a esse caminho. Maria Archer, essa portuguesa admirável, nascida num dia do último janeiro do século XIX, e ainda tão atual no pensamento e no exemplo de inconformismo e de coragem merece se, nesta envolvente, redescoberta. Nela vejo, sempre , antes de mais, a cidadã de muitas cidades, num percurso repartido pela geografia do mundo lusófono, em convívio curioso e expetante com as suas culturas e particularidade, empenhada em aprendizagens e partilhas, na intervenção em variados domínios, movida por valores humanistas que são ainda hoje os nossos. Um destino de interminável itinerância, desde menina, poderia ter significado inadaptação e desenraizamento - mas não, bem pelo contrário, enraizou-a um pouco por todo o lado, com o olhar atento sobre tudo o que era novo, a fascinação pelo exotismo e pela beleza das pessoas e das paisagens - em suma, ao despertar dos afetos. Em estadas longas, que perfizeram 14 anos de África, a sua infância e a juventude decorrem, assim, numa sucessão de idas e voltas, de Lisboa para Bissau e Bolama, para a Ilha de Moçambique, com os pais, depois, já casada, para a ilha de Ibo com o marido, e após o divórcio, ainda sob teto paterno, para Luanda. Divorciar-se, no ano de 1933, foi um ato de enorme ousadia, com que encerrou um ciclo e começou outro, finalmente livre para transpor a fronteira do espaço privado, onde as jovens da burguesia se deixavam emparedar, na dependência vitalícia de filhas ou esposas, para o espaço público, onde se tornou verdadeiramente Maria Archer. No breve relance sobre a sua trajetória de escritora, a vemo-la por pouco mais de duas décadas, destacar-se nos meios intelectuais de Lisboa, onde se impunha pelo talento literário – a grande revelação da década de trinta – e encantava pela elegância do porte e pela vivacidade do espírito e pelo talento literário. Em 1935, ainda em Luanda, fazia a sua estreia literária com os de três mulheres, de seguida, publica, em Lisboa, "África Selvagem", uma primeira e fulgurante incursão nos domínios da literatura colonial. Era o início da aventura solitária de subsistir pela escrita, como Autora reconhecida pela crítica e pelos leitores, que esgotavam edições e reedições dos seus romances e novelas, e como reputada articulista nas páginas de jornais e revistas de referência. As causas que a moveram permanecem atuais: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania, o feminismo como humanismo, a aproximação dos povos da lusofonia - ultrapassando a visão eurocêntrica tradicional, herdada da 1ª República, no policentrismo dos seus escritos mais tardios.. . A ditadura assente na repressão das Liberdades e no conservadorismo misógino, não suportava a subversão da sua ideologia e da sua Ordem e sobretudo a transgressão no feminino, que Maria Archer encarnava. Entre nós, ninguém levou tão longe e tão bem a recriação realista de uma atmosfera social e política que condicionava o mundo segregado das mulheres, com o implacável rigor de uma etnóloga por vocação e a arte de o traduzir literariamente. Nas suas próprias palavras, moldava o retrato sobre modelo vivo. A Ditadura não gostou do retrato e tratou de a levar ao degredo do seu espaço e ao esquecimento no seu tempo. Quis, como disse Maria Teresa Horta, "deliberadamente apagá-la da história". Maria Archer foi obrigada a partir para um exílio de 24 anos em São Paulo, de onde regressaria, em 1979, como se não tivesse regressado, diminuída na debilidade física irreversível, desaparecida na memória do país. Maria Archer, porém, viu para além do horizonte desse tempo, confiante no julgamento do futuro. Esse futuro é agora, somos nós. Estamos hoje aqui, a dizer, com a nossa presença e a nossa palavra, que queremos, deliberadamente, restitui-la à história. Integramos um movimento iniciado por uma plêiade de investigadores, que, primeiramente nos meios académicos do Brasil, e, hoje, já também em Portugal, a reconhecem como romancista e contista intemporal na representação literária de um dado tempo ou meio social, e a situam nos caminhos da luta pelo direito de pensar, de falar e de viver livremente em Portugal e na aproximação dos vários mundos da lusofonia pela construção de pontes que os unam. E, ainda, como legatária da 1ª vaga do feminismo português, cuja bandeira, extinto praticamente esse movimento, transportou, solitariamente, desconstruindo, pelo força iconoclasta da sua obra, e pelo seu próprio exemplo, o ideal tipo feminino do salazarismo. Ou, se preferirmos, como precursora da 2ª vaga, das vésperas da revolução, que antecipou no seu pensamento de mulher moderna – e moderna ainda por padrões atuais. No 40º ano da sua morte, celebramos o reencontro com a Maria Archer. no retorno definitivo do exílio para preencher o seu lugar na história da literatura, e do jornalismo, da democracia, e do feminismo em Portugal. Maria Archer podia ter sido personagem de um romance realista de Maria Archer. Na verdade, o que falta contar é a história que escreveu com a sua própria vida. Talvez, por altura de outra efeméride, em 2024, nos 125 anos da escritora, alguém queira e possa dar-lhe e dar-nos essa biografia. Aqui deixo o desafio, porque tão admirável é a obra como a vida de Maria Archer. ----------------------------------------------------------------------------------------------- Maria Archer viveu num presente de que ela era já o futuro, Como ela adivinhou aqui e agora o País a redescobre, tão fascinante na sua obra como na sua vida- Maria Archer bem podia ter sido personagem de um romance de Maria Archer Falta contar a história dramática que escreveu com a sua própria vida Como ela adivinhou o País haveria de a redescobrir, tão fascinante na sua obra como na sua vida. Maria Archer podia bem ter sido a personagem de um último romance de Maria Archer. Falta ir contando a história que escreveu com a própria vida, refletindo, como hoje aqui se vai fazer, sobre os infinitos reflexos ----------------------------------------------------------------------------------------. Maria Archer emergiu meteóricamente numa sociedade misógina, opressiva e medíocre, num presente sombrio de que se sentia já o futuro. No Portugal dos anos trinta a cinquenta, tinha ela pouco mais do que a idade do século, ousou abandonar, de vez, o gineceu familiar, infringir as velhas regras, derrubar os padrões do patriarcalismo, desconstruir pelo exemplo, os modelos culturais do feminino ditados pelo regime, empunhando a bandeira de um feminismo interdito. A primeira viagem que faria, por seu livre arbítrio, em decisão irreversível, foi de uma Lisboa para outra Lisboa - do reduto fechado dos salões da burguesia familiar para as tertúlias intelectuais do meio artístico e literário. Um percurso solitário e agreste, caminho de libertação, que lhe deu voz e influência no espaço público, mas não felicidade. O preço imenso que pagou por ser mulher no pleno uso dos seus talentos, mulher liberta, interveniente, solidária. Ou dito de outra forma, por não ser "apenas mulher", como o regime a queria formatada. -------------------------------------------------------------------------------- Entre a pioneira vaga do movimento feminista português no início de novecentos, que atingia o auge, quando Maria Archer era menina, e o seu ressurgimento, na década de sessenta e setenta, quando a falta de saúde já a silenciara, ela foi a brilhante e generosa herdeira de uma e a verdadeira precursora da outra. O jornalismo e a Literatura, foram, em Portugal como na Suécia, armas de combate estratégico pela igualdade de sexos. Entre nós, ninguém levou tão longe e tão bem a recriação realista de uma atmosfera social e política que condicionava o mundo segregado das mulheres - denúncia pungente servida pela suas qualidade literária e por uma reconhecida vocação de etnógrafa, a quem faltava a formação académica mas sobrava a capacidade de observação e registo rigoroso de costumes bantus como lisboetas... Os seus retratos literários têm uma força expressiva. incomparável Maria Archer adivinhou o País haveria de a redescobrir, tão fascinante na sua obra como na sua vida. Maria Archer podia bem ter sido a personagem de um último romance de Maria Archer. Falta ir contando a história que escreveu com a própria vida, refletindo, como hoje aqui se vai fazer, sobre os infinitos reflexos ------------------------------------------- Como ela adivinhou o País haveria de a redescobrir, tão fascinante na sua obra como na sua vida. Maria Archer podia bem ter sido a personagem de um último romance de Maria Archer. Falta ir contando a história que escreveu com a própria vida, refletindo, como hoje aqui se vai fazer, sobre os infinitos reflexos

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