terça-feira, 2 de maio de 2023

O EURO 2022 E O FUTURO DO FUTEBOL FEMININO 1 - A final do Euro 2022 de futebol feminino registou 87192 espectadores no Estádio de Wembley e teve 18 milhões de telespectadores em todo o mundo. Foi a maior assistência de sempre num europeu de futebol, masculino ou feminino. Não aconteceu por acaso. O futebol de mulheres tem feito um vertiginoso percurso ascensional e, aqui, a geografia também terá pesado - a Inglaterra é o berço deste desporto fadado para ultrapassar os demais em popularidade. Porém, na verdade, parece que, ainda hoje, os seus inventores o amam mais do que todos os outros, e, talvez por isso, não fazem questão de quem está em campo, homens ou mulheres, desde que o saibam jogar bem. Nem sempre assim foi. O "foot-bal", que é agora de toda a gente, quer na sua terra matricial, quer nos países para onde ia sendo exportado tinha uma marca elitista, de privilégio de classe social e de género. Era para homens de posses e de raça branca… O Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, clube fundado por imigrantes portugueses, reclama a glória de ter sido o primeiro do Brasil a integrar atletas negros no seu plantel! Tal como acontecera no campo dos direitos políticos, onde o combate contra a exclusão dos negros e das mulheres unia os militantes de uma causa comum, também neste domínio os homens negros chegaram à meta muito antes das mulheres de qualquer cor ou credo… As jovens teriam de esperar ainda largas décadas de rigorosa segregação, até serem admitidas num retângulo de jogo. Sei-o por experiência própria. Em meados do século XX, era eu aluna do Colégio do Sardão, em Oliveira do Douro, e podia gozar, no dia a dia, de condições excecionais que dava para a prática de todas as modalidades desportiva consideradas “próprias para meninas” – ginástica, ténis, ping-pong, patinagem, andebol, voleibol, basquete… Só o futebol nos era rigorosamente interdito, como a maçã no paraíso de Eva e Adão! Nada que nos detivesse. Jogávamos, clandestinamente, sob ameaça de pesados castigos, a que, com muita sorte, ao contrário da Eva bíblica, fomos escapando. Na única vez em que nos denunciaram, eu, como suspeita de ser a organizadora do evento (e efetivamente era, não podia nem queria nega-lo…), fui chamada à intimidante presença da “Mestra Geral”. Esperava pena máxima, mas a simpática religiosa revelou não só condescendência, como inesperado sentido de humor. Depois do sermão da praxe (“o futebol não é jogo apropriado para meninas”, etc. etc.), rematou, benignamente: “Bem, Manuela, em todo o caso, como sei que gosta muito de futebol, a si, dou-lhe uma autorização especial para jogar, às outras, não!”. Ficou tudo como dantes - continuamos a transgredir, à hora do recreio, passando do ortodoxo andebol ao subversivo futebol - bola no pé, em vez de bola na mão… 2 - Todavia, justo é reconhecer que as Irmãs Doroteias não estavam isoladas nos seus estereotipados paradigmas de “desporto feminino”, antes partilhavam a mentalidade da época, a nível nacional e internacional. Longa era, então, por exemplo, a lista de desportos interditos ao sexo feminino nos Jogos Olímpicos! Atualmente, nem sequer se admite uma nova modalidade olímpica, se não for aberta aos dois sexos. O futebol acompanhou a evolução do quadro geral e há muito captou milhões de raparigas, havendo até países, onde é mais popular entre elas do que entre rapazes, caso da América do Norte, onde é chamado “soccer”, (para o distinguir do “futebol” local que não tem nada a ver com o nosso). Suponho que, num dia não muito distante, mesmo em Portugal, onde a evolução do desporto para raparigas segue, devagar, as tendências europeias e mundiais para a igualdade, aumentará a pressão sobre os clubes profissionais para se abrirem ao futebol feminino. Já há seis anos, em 2016/17, a FPF instou os participantes da Liga principal a formarem equipas de ambos os géneros, tendo obtido resposta positiva do SCP, SC Braga, Estoril Praia, Os Belenenses e Boavista, a que, depois, se juntaria o SLB. Hoje, três dos “quatro grandes”, SLB, SCP e Braga repartem entre si os troféus no feminino. Só o FCP permanece de fora (é o meu clube, com muita pena o digo...). A honra de bem representar a cidade do Porto cabe ao Boavista, a segunda equipa feminina mais titulada de sempre, com 11 campeonatos (dez consecutivos, entre 1985 e 1995). Perdido este ascendente no século XXI, o Boavista optou, recentemente, por apostar nos escalões de formação, com a esperança de, a prazo, voltar ao topo. Bom seria que o conseguisse - a cidade do Porto precisa de mais títulos, para dar continuidade a esse historial incomparável, que os “grandes” de Lisboa estão ainda longe de poder igualar. O SCP tem dois títulos, tal como o SLB, atual campeão. No ranking da UEFA, Portugal ocupa um modestíssimo 23º lugar, logo atrás da Ucrânia, mas, desta feita, a nossa seleção esteve no Euro e bateu-se dignamente com as melhores. Digamos que está, ainda, numa fase que o futebol masculino já ultrapassou a fase das "vitórias morais". 3 – Qualquer que seja o reduto considerado, é sempre mais fácil proclamar a igualdade no campo jurídico do que vivê-la na realidade. É especialmente assim na área do desporto-rei, porque, além de um admirável espetáculo é negócio internacional poderosíssimo, de dominância masculina - como todos os grandes negócios. E os velhos preconceitos ainda pesam muito… Não são só os talibãs e os aiatolas que negam às mulheres o direito à prática de vigorosos e atrativos desportos: muitos homens, um pouco por todo o lado, consideram o futebol protagonizado por mulheres “contranatura”, desvirtuação do fenómeno original e autêntico, segundo eles, intrinsecamente másculo, ao contrário de, por exemplo, do ténis, da natação, do andebol, ou do bilhar. Em que residirá, de facto, a suposta especificidade masculina do futebol? Mistério.... Certo é que se consubstancia em ideias feitas, enraizadas, inelutáveis, ao menos, no curto e médio prazo. Os progressos são muito mais visíveis na qualidade de jogo interpretado por mulheres, do que em matéria de combate a preconceitos sexistas, que começam na família e na escola... Mas eis que, se súbito, assistimos a um “happening”, que parece poder apressar a longa caminhada para as fronteiras da igualdade: a vitória inglesa no Euro 2022, numa final espetacularmente disputada com a Alemanha. Ganharem as inglesas ou as alemãs não era, a meu ver, equivalente para o futuro das mulheres na modalidade. Uma asserção que pode parecer estranha, ou descabida, sabido que a Alemanha, em termos desportivos, como económicos ou culturais é uma superpotência europeia. Passo a explicar os motivos porque considero que o êxito das germânicas não teria o mesmo efeito. No futebol masculino é costume dizer: "são onze contra onze e, no fim, ganha a Alemanha". Ora, na esfera feminina, o mesmo se pode afirmar: até 2022, elas tinham ganho todas as oito finais que disputaram! Na nona, eram, naturalmente, as grandes favoritas. Se o favoritismo se confirmasse, o que mudava? Julgo que não muito, à semelhança do que aconteceu nos anteriores oito campeonatos europeus assinalados pelo avassalador domínio das eternas campeãs.... O seu país está demasiado habituado a vencer. E valoriza, obviamente, mais os sucessos masculinos, que são também recorrentes, embora não tanto. A Inglaterra, pelo contrário, perseguia um título europeu ou mundial de futebol há 56 anos! O seu último troféu fora erguido em 1966, precisamente contra a Alemanha, e, por coincidência, no mesmo estádio. Neste contexto, olhavam a oportunidade do Euro 2022 com expetativa e euforia crescente, à medida que as “leoas” somavam excelente exibições e resultados. Naquele dia decisivo, multidões de fãs invadiram os cafés, os bares e as ruas, da cidade de Londres à mais remota aldeia. E, como o sonho comanda a vida, gritavam, convictamente: "o futebol está de volta a casa". 4 - Cumpriu-se o sonho, em ambiente de loucura coletiva! Ao nível dos festejos a igualdade foi fulminantemente alcançada, em delírio popular, em reconhecimento, no sentimento de orgulho nacional. A igualdade nos demais aspetos não será para breve, mas ficou mais próxima. Ao menos no universo de cultura anglo-saxónica, imensamente mais vasto do que a Inglaterra (e do que a Alemanha, convenhamos!), o ritmo vai, de imediato, acelerar, e onde é crucial para a generalização da sua prática: nos escalões de formação dos clubes, na Escola, no investimento do Estado (já está prometido pelo governo de Boris Johnson um primeiro cheque de 230 milhões de libras...). Rainha Isabel II, conhecida adepta de futebol, na sua saudação, apontava, justamente, ao futuro: "O vosso sucesso vai muito além do troféu que tão merecidamente recebestes. Vós acabais de dar um exemplo que vai ser uma inspiração para as outras raparigas e mulheres". A mesma certeza, o mesmo sentimento que exprimiu uma antiga campeã, Grace Vella, numa entrevista à Sky News: "milhões de raparigas vão agora querer jogar". Nos "media" a retumbância do feito foi extraordinária (coisa impensável por cá, co capítulo do futebol feminino, como se prova pelo facto de um jogo com este impacte internacional ser transmitido na RTP 2, enquanto os restantes canais se limitavam a pouco mais do que uma notícia de rodapé). A Sky News, a CNN Internacional ou a France 24 deram significativa cobertura ao pós -match, em particular às infindáveis celebrações. Na imprensa inglesa, o título europeu fez manchetes gigantes de primeira página, tanto nos tabloides como nos mais prestigiados jornais. Nunca se vira nada de semelhante! O "Times", por exemplo, escreveu em letras garrafais: "Leoas trazem-no para casa" e, no artigo de fundo, "Mulheres que emocionaram a Nação". O "Guardian", do mesmo modo, destacou o "momento de viragem" ("Game changers"), em página inteira. 5 - Vi a emocionante final, a torcer pela Inglaterra, antevendo as mais benéficas consequências do êxito das "leoas", com a plena consciência de que o seu contributo para a história do futuro do futebol feminino seria insuperável. Não eram as melhores do mundo, mas representavam a pátria-mãe da modalidade, que é, a nível de clubes, um potentado, e, no plano das seleções, um país cronicamente derrotado, com muita fome de títulos. A grande final batia recordes de assistência presencial, contava com uma impressionante audiência televisiva. O cartaz de propaganda ideal da arte feminina de desenhar jogadas no retângulo! O futebol de homens não precisou do grande ecrã para se impor, embora este lhe acrescentasse dimensão planetária. Para as mulheres, a televisão foi o espelho da sua verdadeira qualidade, “a prova dos nove”, vital para a revelação de capacidades e de virtualidades. Uma imagem vale mais do que mil palavras, não é verdade? Contra a evidência das imagens não há argumentos... e os críticos, de ambos os sexos, foram fazendo, enquanto telespectadores, a sua estrada de Damasco. É o meu caso: nunca assisti a um desafio entre mulheres, ao vivo, num estádio e foi a vê-las na televisão, em campeonatos europeus e mundiais, que me converti, há já muitos anos, à beleza, ao tecnicismo e ao maior “fair-play” do futebol no feminino. Quanto ao Inglaterra-Alemanha terei de concordar com quem disser que não foi o mais deslumbrante jogo do século- as finais, seja quem forem os competidores, em regra, tendem a deixar-se dominar por cautelas e espartilhos táticos. (ambas as equipas, note-se, comandadas por selecionadoras mulheres – o que era, de início, coisa rara – e a vencedora, Sarina Wiegman, já em 1917 levara a Holanda à conquista do Euro) De qualquer modo, a mestria esteve presente... o fabuloso golo de Toone, a nº 20 (fuga em velocidade e "chapéu" à guarda redes), depois, o golo que liquidou as esperanças alemãs, marcado, numa insistência, por Chloe Kelly, e menos notório, mas não menos decisivo, o precioso corte da luso-britânica Lucy Bronze ao minuto 111, a impedir o empate (Bronze, a nº 2, que é considerada uma das melhores jogadoras do mundo). Em suma, mais do que ganharem um campeonato para o seu país, as “leoas" de Inglaterra deram ao ao futebol feminino novos horizonte, novo futuro.

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