terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Maria Manuela Aguiar sobre MARIA ARCHER LX 24 jan 2022

Uma primeira palavra de agradecimento à organização deste colóquio, em especial à Profª Isabel Henriques de Jesus, pelo convite para participar numa grande jornada de reflexão em torno de Maria Archer, no 40º ano da sua morte A celebração de uma efeméride é, por vezes, apenas cumprimento ritual de um calendário, mas também pode ser muito mais, se dela se faz um momento de salvaguarda da memória de figuras ou acontecimentos, um momento de reavaliação do seu papel, do seu significado no tempo presente. Assim sucedeu, por exemplo, na comemoração do 20º ano da convocatória do 1º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas na Emigração, de que resultou o reinício ou o verdadeiro início de políticas públicas naquele domínio, ou do centenário da República, em cujo programa de eventos foi dada enorme e bem merecida visibilidade a grande vultos da 1ª vaga do nosso movimento feminista. E assim poderá ser, e espero que seja, com as comemorações do cinquentenário da revolução de Abril, onde haverá lugar ao reencontro com a vida e a obra de grandes mulheres que a Ditadora e o chamado Estado Novo tentaram eliminar dos anais da República, do património imorredouro que é a memória coletiva. .Sei que não há uma ligação direta entre essa aguardada agenda, e a iniciativa que aqui nos convoca, mas atrevo-me a dizer que pressinto nas linhas de investigação voltadas para as escritoras que resistiram às pressões e perseguição do regime ditatorial, de algum modo, uma espontânea decorrência do ambiente criado em torno dessa data marcante, que, no lapso de um século, separa 50 anos de ditadura e 50 anos de democracia. Separa o Portugal em que Maria Archer combateu e Portugal pelo qual incansavelmente se bateu. .. Maria Archer, essa portuguesa admirável, nascida num dia do último janeiro do século XIX, e, contudo, tão atual no pensamento e na mentalidade, que vem agora sendo redescoberta como exemplo inspirador de inconformismo e de coragem Nela vejo, sempre, antes de mais, a cidadã - cidadã de muitas cidades, num percurso repartido pela geografia do universo lusófono, em convívio, curioso e expectante, com as suas culturas e particularidade, empenhada em aprendizagens e partilhas, observadora e interveniente em tão variados domínios, invariavelmente movida por valores humanistas que são ainda hoje os nossos. Um destino de interminável itinerância, desde menina, poderia ter significado inadaptação e desenraizamento - mas não! Sendo quem era, bem pelo contrário, enraizou-a um pouco por todo o lado, com o seu olhar atento sobre a tudo o que era alteridade, fascinada pelo exotismo e pela beleza das pessoas, dos costumes e das paisagens.. Em estadas longas, que perfizeram 14 anos de África, a sua infância e a juventude decorreu numa sucessão de idas e voltas, de Lisboa para Bissau e Bolama, para a Ilha de Moçambique, com os pais, depois, já casada, para a mítica ilha de Ibo com o marido, e após o divórcio, ainda sob teto paterno, para Luanda. Divorciar-se, no ano de 1931, foi um ato de enorme ousadia, com que encerrou um ciclo e começou outro, finalmente livre para transpor a fronteira do espaço privado, onde as jovens da burguesia se deixavam emparedar, em vitalícia dependência como filhas ou esposas, para o espaço público, onde se tornou verdadeiramente Maria Archer . Em 1935, em Luanda, fazia a sua estreia literária com uma obra sobre três mulheres, de seguida, publicava, em Lisboa, "África Selvagem", uma primeira e fulgurante incursão nos domínios da literatura colonial. Era o início da aventura solitária de subsistir pela escrita, como Autora reconhecida pela crítica e pelos leitores, que esgotavam edições e reedições dos seus romances e novelas, e como reputada articulista nas páginas de jornais e revistas de referência. Num breve relance sobre a sua trajetória de escritora, vemo-la por pouco mais de duas décadas, destacar-se nos meios intelectuais de Lisboa, onde se impôs pelo talento literário – como a grande revelação da década de trinta – encantou pela elegância do porte, pela cultura e pela vivacidade do espírito e desafiou os poderes constituídos usando a escrita como arma na luta pelas causas que a moviam. Causas que permanecem, tantas décadas depois, impressionantemente atuais: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania, o feminismo como humanismo, e a aproximação dos povos da lusofonia - ultrapassando a visão eurocêntrica tradicional, herdada da 1ª República, no policentrismo dos seus escritos mais tardios, da que podemos chamar a fase brasileira. . A ditadura assente na repressão das Liberdades e no conservadorismo misógino, não tolerava a subversão da sua ideologia e da sua Ordem e não podia, sobretudo, admitir a transgressão no feminino, que Maria Archer encarnava. Entre nós, ninguém levara tão longe, e tão militantemente, a denúncia pela recriação realista de uma atmosfera social e política do quotidiano num país anacrónico em que as mulheres eram confinadas pelas normas impostas no relacionamento dos sexos, pela educação para a desiguldade e pela censura dos costumes. É esse mundo segregado das mulheres que desoculta - mulheres são sempre as personagens principais nas suas obras... E fá-lo, com o implacável rigor de uma etnóloga por vocação e a arte consumada de manejar a língua, em toda a sua riqueza e plasticidade. Nas suas próprias palavras, "moldava o retrato sobre modelo vivo". Um retrato com muitos rostos, muitos enredos... A Ditadura não gostou do retrato, que desconstruía, pelo ímpeto iconoclasta da sua obra, e pelo seu exemplo de independência , o ideal tipo feminino do salazarismo. E não lhe perdoou. Condenou-a ao ostracismo não só no seu espaço, como no no tempo. Quis, como disse Maria Teresa Horta, "deliberadamente apagá-la da história". Maria Archer foi obrigada a partir para um exílio de 24 anos em São Paulo, de onde regressaria, em 1979, num regresso obscuramente, diminuída na debilidade física irreversível, desaparecida na memória do país, mas, no seu íntimo, confiante no julgamento do futuro. . Esse futuro é agora, somos nós. Estamos hoje aqui, a dizer, com a nossa presença e a nossa palavra, que queremos, deliberadamente, restituí-la à História. O movimento começou nos meios académicos do Brasil, com a plêiade de investigadores, que desde há alguns anos, vem cumprindo essa esperança, no reencontro a sua obra intemporal de escritora e jornalista - e o eco desses passos vem, desde data mais recente, repercutindo em Portugal. Cronista de uma época que, nos seus livros, pode ser estudada, numa perpetiva interdisciplinar, em múltiplas leituras, todas atuais. Protagonista histórica da luta pelo direito de pensar, de falar e de viver livremente em Portugal, pela aproximação dos povos de fala portuguesas, continuadora da 1ª vaga do feminismo português, a que a ditadura pôs termo, com a barreira da censura e da polícia, e antecessora da 2ª vaga, que nasceu e cresceu no declínio do Estado Novo, nas vésperas da revolução, que antecipou com o seu pensamento de mulher moderna – e moderna ainda por padrões atuais. No 40º ano da morte de Maria Archer, queremos celebrar o seu retorno definitivo do exílio, para preencher o lugar a que tem direito na história da literatura, da democracia e do feminismo em Portugal. Maria Archer podia ter sido personagem de um romance de Maria Archer. Falta contar é a história que escreveu dramaticamente com a sua própria vida. Talvez, por altura de outra efeméride, em 2024, nos 125 anos da escritora, haja quem queira e possa dar-lhe e dar-nos essa biografia por presente. Valerá a pena, porque tão singular e extraordinária é a obra como a vida de Maria Archer.

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