terça-feira, 21 de setembro de 2021

TÓQUIO - OS JOGOS DO NOSSO CONTENTAMENTO DESCONTENTE 1 - A participação portuguesa nos últimos jogos olímpicos é incensada pela generalidade dos políticos e dos comentadores desportivos, como "a melhor de sempre". Dir-se-ia que marcou a transição para um patamar de desenvolvimento qualitativo. Pura ilusão... Na realidade, continuamos na cauda da Europa, em matéria de investimento nas diversas modalidades desportivas (menos de metade da média europeia). de formação escolar e universitária - a Educação Física é menorizada nos "curricula", a compatibilização da vida desportiva e académica continua a ser negligenciada, só no desporto federado se pode verdadeiramente fazer carreira e o exercício físico para todos os jovens e em todas as idades é mínimo, em termos comparativos. É esta gritante falta de cultura desportiva que, fundamentalmente, determina o medíocre lugar que ocupamos no "ranking" europeu e mundial de alta competição. Mais um sinal inequívoco desta mentalidade dominante na sociedade portuguesa do século XX, nos foi dado, recentemente, pela despreocupação com que a DGS e o Ministério da Educação, durante a pandemia, nas escolas e nos clubes, encararam a suspensão da atividade física, em absoluto contraste com o alarme provocado pelo encerramento das aulas das demais disciplinas ou pela necessidade de recorrer a ensino não presencial... Com o que teremos perdido mais futuros campeões do que doutores ou engenheiros. 2 - A proclamada excecionalidade da recente "performance" é relativa aos nossos próprios resultados olímpicos passados, que oscilaram, modestamente, entre as duas ou três e estas celebradas quatro medalhas de 2021 - limitadas ao atletismo, em modalidades individuais, a evidenciar o mérito de cada atleta (e, quando muito, também, dos seus clubes que os apoiam), muito mais do que o mérito de um projeto ou estratégia dos poderes públicos. Em boa verdade, na Europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a Lituânia, com 2.794 milhões de habitantes, Chipre com 1, 224.216, o Luxemburgo com 643.196 e Malta com apenas 502, 633). Muito se realçou, igualmente, o caráter "inclusivo" da delegação portuguesa, com esse adjetivo querendo significar a presença de estrangeiros naturalizados e de cidadãos de origem africana na nossa delegação. Muito me regozijo com o facto haver neste domínio maior abertura para o reconhecimento da dupla nacionalidades e para a atribuição do passaporte português. do que há, por exemplo, no futebol profissional, onde tanta polémica causou a chamada de Deco e de Pepe à seleção, dois brasileiros natos, que sempre deram provas de excelência desportiva e de dedicação à camisola das quinas. Talvez, porém, o mesmo não tivesse ocorrido se representassem clubes de Lisboa, como é o caso dos atuais atletas Pedro Pablo Pichardo, Nelson Évora, Jorge Fonseca ou do inesquecível Francis Obikwelu. Esta dúvida não é afirmada contra esses clubes de Lisboa, cuja influência, a ter sido exercida, o foi por uma "boa causa" e que louvo por continuarem a dar medalhas e campeões de atletismo ao país, como, noutros tempos, o fez o FCP, com o seu áureo trio feminino - Aurora Cunha, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro. Suscita, igualmente, espanto e admiração, o fenómeno da preponderância dos afro-portugueses da área metropolitana da capital, na vanguarda do nosso atletismo, com três em quatro das nossas medalhas de Tóquio, a exceção sendo a do canoísta Fernando Pimenta, com raízes nortenhas em Ponte de Lima, (embora, do ponto de vista clubístico, se tenha mudado para sul). E só de Pedro Pichardo se pode dizer que foi formado no estrangeiro e se naturalizou já com um brilhantíssimo palmarés. Jorge Fonseca veio de São Tomé para Portugal com 11 anos, e Nelson Évora, nascido em Abijan, de pais cabo-verdianos, também muito cedo aqui se integrou. Patrícia Mamona é portuguesa, de ascendência angolana, A única mulher neste histórico quarteto de grandes campeões, ganhou uma medalha de prata que vale mais do que o ouro. Ela é a pura encarnação do espírito olímpico, da vontade de se transcender, a cada novo dia. Teimou, desde menina, em praticar o triplo salto e em atingir o Olimpo numa modalidade para a qual, sendo uma predestinada, lhe faltava, diziam-lhe todos, uma característica física: a altura. Mede apenas 1,66 e, note-se, perdeu o ouro para uma gigante cubana de quase dois metros (mais precisamente 1, 92). O que motiva, num país de mentalidade tão avessa ao fomento da atividade física na escola, na infância - que é onde, por todo o lado, se começa - os futuros campeões, rapazes e, igualmente, raparigas, (feito maior, numa sociedade ainda tão misógina)? O que leva crianças de minorias étnicas, em quase todos os outros setores marginalizadas, assim como outras de meios rurais, não menos desprivilegiadas, a superarem o destino pela glória desportiva? É uma história que se vai fazendo de comparações nas semelhanças e nas diferenças de circunstâncias, e que precisava de ser bem melhor contada, sem deixar nenhum nome para trás. Talvez, um dia, possam, todos, figurar num grande museu nacional do desporto...Até lá, cada terra vai homenageando os seus heróis, como Espinho muito bem tem conseguido, guardando a memória de António Leitão. 3 - Tóquio 2021 deixa-nos, por um lado, contentes com todos os atletas, em concreto, com os medalhados, com os que só não o foram por uma questão de menos sorte num momento fatal, e com os que trouxeram diplomas olímpicos - bem mais numerosos do que os pódios, e significativos, como indicadores de qualidade e de potencial, logo de esperança para 2024 - mas, por outro lado, descontentes com a falta de progresso geral, com o imenso desperdício de talentos que, para sempre, se perderam ou estão por encontrar. Quando Aurora Cunha começou a sua meteórica carreira, com uma primeira grande vitória nacional, o "Mundo Desportivo", de 9 de junho de 1976, escrevia: "Quantas Auroras em potência haverá neste país?". 45 anos depois, a pergunta mantém toda a pertinência, porque nem as mentalidades, nem o condicionalismo para a revelação de valores e vocações, nomeadamente a partir das escolas, se alterou de forma substancial. O caso da campeoníssima Aurora Cunha é paradigmático. Aos 14 anos, a oitava de uma família numerosa de 10 filhos, uma menina franzina e irrequieta, que gostava de correr, sozinha, por montes e vales, era operária na maior fábrica têxtil dos arredores da sua pequena comunidade rural de Ronfe. Um domingo, à saída da Igreja, depois do Terço das 15.00, alguém se lembrou de animar o fim de tarde com uma corrida popular para rapazes e raparigas, no estádio da terra. Aurora lá foi, com o sua saia de malha domingueira e sapatos de cabedal, e ganhou, destacadamente, à frente de todos os rapazes, alguns deles equipados a rigor. O Clube Juventude de Ronfe logo ali a convidou para treinar e competir. Depois, viria o contrato com o FCP, o seu clube de coração. E, assim, os horizontes se abriram para a menina de Ronfe, que, no meio fundo e fundo, havia de acumular recordes e medalhas de ouro, ser tricampeã mundial e vencedora das mais prestigiadas maratonas. Vale a pena ler, na sua inspiradora autobiografia "Uma vida de paixões" (prefaciada pelos Presidentes Ramalho Eanes e Rebelo de Sousa), os ensinamentos de uma carreira fenomenal, que começou, num convívio minhoto, por puro acaso.

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