quarta-feira, 8 de novembro de 2023

A MÃE BREVE HISTÓRA DA FAMÍLIA A PARTIR DAS SUAS MEMÓRIAS VINDA DO RIO DE JANEIRO NASCER EM GONDOMAR Maria Antónia nasceu a 28 de agosto de 1920, poucas semanas depois de Amália Rodrigues, artista que tanto admirava e cujos fados cantava com a voz timbrada e poderosa, que conservou, intacta, quase até aos 100 anos. A música foi a sua grande paixão, que vinha, na sua escala de valores, logo depois do Amor (escrito com letra grande, como os nomes das pessoas). A história de vida, que planeava deixar-nos, dividida em capítulos - infância na Vila Maria, Colégio da Esperança, namorados e casamento, e depois - não passou da enunciação destas quatro partes num papelinho solto.Tinha por hábito anotar assim, em folhas avulsas, às vezes apenas pequenos pedaços rasgados, memórias, pensamentos, versos e variados dados. Poucas vezes, para si própria usou um caderninho, como fazia, cuidadosamente, para os irmãos, cuja poesia se conhece graças a esse desvelo antigo, dos tempos de menina. E, por isso, tendo perdido muitas anotações, nunca mais as histórias todas que iria detalhar, serão contadas com as cores da subjetividade. Restam aquelas que ficaram na memórias dos outros, e os videos em que, nas alegres tardes de sábado em Espinho, à volta da mesa redonda, com a irmã Lolita e os sobrinhos, recordava e encantava a plateia (ela que gostaria de ter sido atriz). A sua vida começa, verdadeiramente, do outro lado do mar, no Brasil. Daí, nos primeiros meses desse ano, os pais regressavam, em definitivo, a São Cosme, no centro da vila de Gondomar, onde ambos tinham raízes mais do que seculares. António Carlos Aguiar após mais de 25 anos no estrangeiro, a mulher Maria mal completando uma década, pontuada por muitas visitas a Portugal. Nessa última travessia transoceânica, em 1920, estava ela grávida, nada de novo para ela. Assim veio do Rio a Gondomar por três vezes, para que os filhos aí nascessem, na sua casa paterna de Quintã, à vista do Monte Crasto. Era uma viajante nata, quaisquer que fossem as distâncias, os lugares ou meios de transporte, e nada lhe agradava mais do que a vida social a bordo de um vapor moderno e luxuoso, ao lado do marido, o homem mais afetuoso e gentil do mundo. Com eles, a lindíssima, alta e elegante Maria Aguiar, um português de assombrosos olhos verdes e bigode bem tratado, mais baixo, mas igualmente elegante viajavam cinco bonitas e irrequietas crianças (entre os oito anos e os 12 meses) e uma babá brasileira. O bebé de colo, Augusto de todos os bonitos irmãos o mais bonito, já não existia quando Maria Antónia chegou a este mundo, vítima de uma pneumonia fatal, que deixou os pais inconsoláveis e que as gerações seguintes não esqueceriam mais – para o que a beleza do menino morto, bem evidenciada nos retratos, terá contribuído. A menina que ia ocupar o lugar na linha familiar, e que, invisível, a mãe trazia consigo, nunca teria oportunidade de fazer o percurso de retorno, mas considerar-se tão brasileira como os três irmãos, Carolina José e Augusto dados à luz na radiosa cidade do Rio de Janeiro. O pai manteria, nos anos seguintes, o vaivém solitário, a fechar os negócios no Brasil, que o tinham tornado um homem rico, com joalharia na Rua do Ouvidor. e projetos de integrar uma sociedade bancária, que a morte súbita aos 46 anos inviabilizou. A sua derradeira passagem do Rio para Lisboa foi realizada a bordo do Lipari, dos “Chargeurs Réunis”, em fevereiro de 1926 - exactamente trinta anos, após a sua saída de Gondomar, aos 16 anos. Era um dos mais novos de uma enorme prole de quinze (ou, a acreditar na narrativa oral, de dezassete) irmãos e, sendo um jovem promissor e aventureiro, aceitou o desafio de um dos mais velhos, João, para ir trabalhar junto dele. Manuel Pereira de Aguiar, o pai e patriarca, estava ligado à ourivesaria, arte e indústria dominante em Gondomar, e na sua empresa, cuja dimensão se ignora, se terão iniciado alguns dos filhos, caso de João, que no passaporte com que emigrou, indicava como profissão, “caixeiro”. Como proprietários de joalharias (não como artífices), fariam fortuna João e António Carlos no Rio de Janeiro, e Augusto no Porto, Rua das Flores Porto. Do patriarca a memória da neta Maria Antónia era vaga – falava de um homem alto, bonito, de olhos azuis, feitio alegre e paixão pelo cultivo de rosas, que foi herdada pelos filhos Augusto e António e, provavelmente, por outros também. Esse avô teria de ser, pelo menos, mediamente abastado, para viver na grande casa da Gandra, que, na geração seguinte, seria de Augusto, um tio encantador, também ele possuidor de uns belos olhos azuis (a sobrinha achava essa a cor ideal para olhos enormes e expressivos e nunca deixava de mencionar essa caraterística). A avó Rosa Pereira de França, sobreviveu, por muitos anos, ao marido, mas faleceu em 1921, cedo demais para dela guardar memória (na verdade, nem dos avós maternos se recordava, por terem falecido o avô Joaquim, quando andava pelos 3 anos e a avó Carolina pouco tempo depois. A Avó Rosa, nas sua fotos de viúva é um largo vulto, de aspeto severo, em vestidos pretos e pouco cuidados (bem arranjada só aparece, num retrato do casal...). Mas dela foi encontrada uma carta para o filho António, em que se revela mãe saudosíssima e muito veemente nos seu protestos de amor materno. Talvez ele fosse um dos seus filhos preferidos, e a sua ausência lhe pesasse, apesar de a visitar com uma regularidade quase anual, sempre em estadas de alguns meses. Não se conhece o início do percurso brasileiro de João, só se sabe que, numa época áurea da economia brasileira prosperou rapidamente, É mais do que plausível a estimativa de que rapidamente se estabeleceu por conta própria, pois ninguém enriquece a trabalhar por conta de outrem. E, assim, lhe foi possível, poucos anos decorridos, mandar “carta de chamada” a dois dos irmãos, António Carlos, em 1896, e Alfredo, no início do século XX (se, como é muito provável, saiu do país com a mesma idade de António, de quem era quatro anos mais novo). João, António (e também de Alfredo), rapazes bem-educados e de boa aparência (como o pai), e facilmente fizeram amigos na sociedade carioca e luso brasileira. João casou, em 1901 com a lindíssima Judith de Andrade da Cruz Ferreira, menina de boa sociedade carioca, que, a partir de 1910, seria a melhor amiga da cunhada Maria. Quem se une a mulher brasileira, como João, não volta mais.Tendo procurado noiva portuguesa, António para Gondomar voltou, já na casa dos quarenta, preparado para recomeçar, tranquilamente, um percurso de sucesso empresarial, em S Cosme e no Porto. Embora descrevesse o Rio como um paraíso terreal e os anos aí passados como os mais felizes da sua vida, Maria Aguiar sentia a falta dos pais, velhinhos e saudosos, e do convívio no círculo largo de parentes e amigos de uma verdadeira comunidade de afetos, como era, então, a pequena vila de Gondomar. O exotismo tropical fora exaltante e desejado, tal como o tranquilo o dia a dia numa das mais belas cidades do mundo, em grandes andares no centro do Rio (no plural, pois pelos endereços da correspondência se constata que mudaram de morada com regularidades) e, nos últimos anos, numa esplêndida mansão, rodeada de jardins no privilegiado bairro de Santa Teresa. Mas chegara, no começo da década de 20, a hora do regresso.. Maria da Conceição Barbosa Ramos (Aguiar por casamento, apelido que sempre havia de privilegiar) era a mais nova dos nove filhos de Carolina Ferreira Ramos, que tinha então 45 anos, o pai, Joaquim Mendes Barbosa, quase 50. Carolina era descendente de muitas gerações de bons burgueses de Gondomar, Joaquim, o notário que viera de Paredes, oriundo de uma antiga família, os Barboza de Bitarães. Aquela filha, "quase neta", recebeu a mesma educação das duas irmãs, Rosaura e Glória, as primeiras lições em Valbom, ficando alojadas em casa da professora, que era amiga da mãe, depois, em casa, Rosaura e Maria completaram os estudos, com aulas particulares, algumas, certamente, do próprio pai, que tinha começado a sua vida profissional como professor, antes de encetar a longa carreira jurídica. Glória foi a única que quis fazer, no Porto, o curso de magistério, convertendo-se em pioneira na vila, com direito a inscrever o nome na biografia do concelho de Gondomar, ao lado de Contudo, por outra via, a mais jovem havia de tornar-se, também, um nome feminino que se impôs a consideração universa das gentes de São Cosme. Mas isso, só muito mais tarde, na sua segunda vida, uma sofrida viuvez, solitária, mas passada no meio da multidão, em tarefas solidárias. l Neste ano de 1920, ela é ainda a senhora casada sociável e cosmopolita, que se acomodara perfeitamente ao ritmo citadino da capital, deslumbrada com a beleza incomparável das paisagens, as baías com cercaduras de montanhas do Rio de Janeiro, os picos montanhosos ainda mais altos de Teresópolis. Bem integrada na família luso-brasileira, feliz com o extrovertido e carinhoso marido e com ele criando os filhos que chegavam, a um ritmo praticamente bienal. Das nostálgicas narrações que deixou à descendência, à sua aventura brasileira só apontava um “senão”: o incómodo causado pelo calor excessivo e húmido, que, no verão austral a levava a mudar-se para Teresópolis, com os meninos, em busca da frescura da serra. O marido por ela estava disposto a tudo, não hesitando em deambular incansavelmente pelas estradas sinuosas de montanha, em idas e voltas para o Rio, para estar com eles todo o tempo que lhe sobrava da direção dos negócios. Era, como indiciam todas as cartas, retratos, pequenos episódios e detalhes, recordações soltas guardados pela mulher e pelos filhos, um homem afectivo e devotado à família. Organizava, de facto e muito eficientemente a gestão dos seus negócios, por forma a poder ausentar-se por largos períodos, acompanhando a família nas férias em Portugal. Não obstante essa capacidade, algumas vezes teve de suportar longas semanas de separação, como aconteceu após o complicado parto do filho António Maria, em Fevereiro de 1915, que obrigou a jovem mãe a prolongar a estada em São Cosme. As cartas que existem desses períodos dão bem conta do seu estado de espírito, misto de saudade, solidão e preocupações... No Brasil, na montanha, como na cidade, preferiu a solução de arrendamento, e, como se vê por uma das cartas escritas do Rio, ele próprio se encarregava de procurar espaços cada vez maiores e melhores para a família que crescia, Dessa vez, encontrara um andar esplêndido, superior a que todos os que anteriormente haviam ocupado, e, por renda surpreendentemente mais baixa, acrescentava. Deduz-se que a mulher, no regresso ao Brasil, se via, assim, instalada num novo ambiente, pronto a habitar, sem ter passado pelas agruras de qualquer mudança. Através dos endereços de postais e cartas, se constata que, nos primeiros anos de casamento, foi muito frequente a deslocação de casa para casa. Depois, a partir de 1916, sentiram-se visivelmente satisfeitos em Santa Teresa, com vistas esplendorosas sobre a cidade e os montes e montanhas que a cercam, numa moldura de incomparável beleza. Daí só saíram para Portugal, no ano de 1920. O Avò Aguiar investia na bolsa, não no imobiliário. Comprar propriedades era, então, para um português emigrado, regra geral, sinal que apontava à integração. Dos dois irmãos, só João mandou construir um belo palacete no Flamengo, na Rua de Payssandú. A fotografia da mansão foi por ele enviada à família, com dedicatória, exatamente como lhes oferecia os seus próprios retratos. Os filhos brasileiros continuaram no mundo dos negócios, alguns, segundo dizia Maria Antónia, enveredaram pela política e pela diplomacia. Depois do desaparecimento do pai, sem ligação visível às suas origens lusas. Na década de cinquenta, José Augusto, o quarto filho de António e Maria, voltou ao Rio, de onde era natural, e aí viveu, antes de reemigrar, com passaporte brasileiro, para Nova Iorque. Retomou, então, por poucos anos, relações de amizade com simpáticas e bonitas primas, hoje, já todas, provavelmente, desaparecidas O casarão de António seria em Gondomar. Primeiro, entusiasmou-o a perspectiva de comprar um solar do século XVI, na quinta da Bouça Cova, quando esteve providencialmente à venda, mas a mulher manifestou reservas. Achava a quinta isolada e sombria. O seu sonho, talvez inspirado nas imponentes residências de Santa Teresa, apontava para conforto e modernidade Queria construir de raiz, pedra a pedra, uma edificação rodeada de jardins e arvoredo, no centro de São Cosme, perto de todos e de tudo. E foi feita a sua vontade, não obstante ser de difícil concretização. Lendo correspondência do pai, constata-se que já em 1918 ele procurava, juntamente com o filho Alexandre, terrenos disponíveis, mais ou menos na área em que veio a implantar-se, nos anos 20, a Vila Maria - no coração da vila de Gondomar, atravessado pela estrada principal, do Largo de Santo António (hoje Largo do Souto) para o de Quintã, de onde seguia para o Porto. Ao longo desse troço entre os dois Largos se situavam fileiras de moradias citadinas, e para elel convergiam caminhos estreitos, cruzando pinhais e campos arados, férteis e verdes a perder de vista, à volta do airoso e frondífero Monte Crasto. Aqui e ali, dispersas, as casas de lavoura de pedra e cal, com amplos pátios, modelos de uma arquitectura tradicional, sólida e harmoniosa. Os campos não estavam, porém, no mercado. Pertenciam a lavradores abastados, com orgulho em proclamar que "não vendiam terras, compravam". O notário Mendes Barboza e o filho Alexandre, secretário da Câmara eram homens muito respeitados e bem relacionados e bem informados e até para eles a tarefa de pesquisa de oportunidades se revelou árdua. Muito referenciadas foram umas propriedades da “regedora”, que se comprometeu, caso vendesse, a dar-lhes preferência, a troco da qual eles cobririam, naturalmente, qualquer proposta. A hipótese não se concretizou, ela conseguiu, contra ventos e marés, resolver de outro modo os seus problemas financeiros (sendo que uma das vias faladas para tal era um casamento rico de um dos filhos, que, esse sim, talvez se tenha materializado). Acabaram por ser proprietários relutantes e não necessitados, que cederam ao amigo António, a alto preço e por especial favor, o espaço onde se implantou a única grandiosa mansão de "brasileiro" que houve em São Cosme, situada face da estrada principal, a dois passos do Souto. A propriedade estendia-se, discreta, invisível da frente de rua, por centenas de metros quadrados, num desenho de longas linhas retas, como as recentes fronteiras de África, configurando uma quinta agrícola, que nunca recebeu esse nome. Ao gosto da época, chamou-se ao conjunto, simplesmente, "Vila Maria". Perfeita, para criar uma família grande e em aumento cadenciado – em seis anos nasceram três meninas, Maria Antónia em 1920, Glória Doroteia, em 1922 e Maria Madalena em 1926, apenas 2 meses antes da morte do pai. 2 – GONDOMAR TERRA BENDITA Maria Antónia, a Mariazinha, como era chamada, veio ao mundo e passou os primeiros tempos de vida na casa dos Avós, Joaquim, o forasteiro de Paredes, e Carolina, uma gondomarense de várias gerações, como ela própria teria sempre orgulho em se declarar. (uma brasileira de Gondomar). As suas raízes profundas eram dali, daquele lugar, cuja beleza os seus antepassados tinham celebrado, em prosa e verso. O tio materno, José Barbosa Ramos, era o autor da letra do hino de Gondomar, com música composta por José Moura (por sinal, o primeiro professor de piano das meninas Aguiares). "Gondomar, terra bendita Rincão formoso e fecundo O nosso Crasto frondoso Não tem, não, rival no mundo. Filigranas delicadas, Verdes prados cinge a serra. Cantam fontes e avezinhas Eis os dons Da nossa terra. Gondomar é o nosso berço Beija-o a brisa fagueira Cantemos por Gondomar, É divisa da bandeira Cantar, cantar, A linda terra de Gondomar". Na geração seguinte, seu irmão Manuel glosou o tema, num mais longo poema destinado à célebre revista musical “O Nabo”, que estreou em 24 de Setembro de 1933. e ficou nos anais de Gondomar, e cujo refrão voltaria a recitar para amigos, em pleno Monte Crasto. Um repórter registou-o nas páginas do "Correio de Gondomar" de 17-3-34, e minha mãe guardou o recorte nas suas gavetas, onde foi encontrado já depois de ter partido. "E o Castro Belo e frondoso Erguendo-se majestoso Na terra que nos foi mãe, No sino da igreja além, Trindades oiço tocar Como é linda a minha terra Como é linda a verde serra Como é lindo Gondomar!" O texto completo foi mais tarde encontrado num caderno, recolha de poesias dos três irmãos mais dados à Letras, Carolina, Manuel e António, copiadas pela letra juvenil da Mariazinha GONDOMAR!... Gondomar!... o nosso berço de criança Nossa terra querida, idolatrada… Tu és o meu cantinho, a minha esp'rança O meu torrão natal, a minha amada Tu és o Monte Crasto - o verde altar Cheio de poesia... de frescura Tu és o imenso sol a iluminar O Mundo de prazer... de desventura... E, ornando o teu Altar, campos fecundos Ferem a nossa vista... e o lavrador Vê, nessa curta faixa, os novos Mundos Do seu divertimento... seu labor. O Crasto belo e frondoso Erguendo-se majestoso Da terra que nos foi Mãe... No sino da Igreja, além, Trindades oiço tocar... Como é linda a minha terra Como é linda a verde serra! Como é lindo Gondomar!... Tu és, meu Gondomar a primavera Da nossa mocidade, nossos dias Tu és a minha Igreja: a voz que impera .Numa canção dolente... Avé- Marias! Tu és a criancinha caminhando P'ra os bancos da escola, p'ra o futuro Tu és a pobre Mãe... rica, embalando O filho, o seu amor altivo e puro... Tu és a poesia... hino de amor Que enches de prazer os meus sentidos Tu és o bom velhinho - com fervor - Recordando o passado, os tempos idos (repete refrão O Crasto belo e frondoso, etc etc )! Meu Gondomar!... ó fonte cristalina Onde as pombinhas mansas vão beber... Tu és o sol cadente, que ilumina Com maternal carinho o meu viver Tu és o horizonte azul, infindo Da nossa Pátria grande e imortal... Tu és as andorinhas ressurgindo Depois de longa ausência em Portugal Tu és essa guitarra triunfante, Trinando em noites belas de luar... Tu és a negra capa de estudante Cobrindo a minha alma: Gondomar!... Repete o refrão O Castro belo e frondoso. Etc) Os poemas têm assinatura, mas retratam o estado de alma de uma família inteira, a olhar quotidianamente, com orgulho, as formosuras paisagistas de São Cosme. O arrasador e malfadado progresso do cimento e do betão” vedou aos vindouros essa comunhão com a gracilidade de um meio ambiente, hoje irreversivelmente perdido. Nem mesmo o Monte Crasto, seu último bastião de resistência, é tão frondoso quanto era nessa idade de ouro. Dissolveu-se, também, na populosa "cidade-dormitório do Porto", a dimensão de uma comunidade autêntica, convivial e afável, quando os dias corriam devagar e todos fruíam de recantos onde a vila e o campo se misturavam numa interlocução de pessoas e espaços, em que todos se conheciam, e se falavam nas ruas, nos clubes e tertúlias, na botica, no adro da greja e nas festas populares, partilhando hábitos e costumes, a sonoridade do sotaque, a fala com as peculiaridades, em que o "povo-povo" resistia mais à uniformização do que as elites letradas. Mariazinha, excelente aluna a História e a Geografia, foi, desde sempre, dada a recolhas de natureza cripto-etnográfica, (no que terá sido influenciada pelo exemplo da Tia Rosaura de quem se conhecem apontamentos soltos, por exemplo, sobre ditados ou sobre mezinhas e rezas das mulheres do antiquíssimo Gondomar), anotou os lugares, que faziam os seus encantos - o Barroco, a represa de Cascaneira, entre a Gandra e Ramalde, Bouça Cova, Azenha, Ermentão, Rio Carreiro, Fontela, Ponte Real, São Miguel, Pevidal, Santo André... - , e, também, expressões, nomes e alcunhas aldeãs, que lhe despertavam a curiosidade, como Pojeiras, Restivos, Cabaças, Jeque-Jeque,Tarré Fome Negra, Caga Troços, Carriças, Pilha Galinhas, Patacas, Pirabeca, Arregalados, Folhetas, Estabões, Bagulho, Parraxila, Chasco, Varetas, Melros, Pisco, Choco, Pimpão, Pinguinhas, Pombalinos, Toca- certo... Menos invulgar o nome de Isidro Izidoro, que, todavia, fez sensação, quando deixou dito que, nas exéquias, queria levar um cravo vermelho na lapela. Era ela uma criança, mas conseguiu que a levassem a vê-lo. Talvez uma benigna criada, lhe tenha permitido a secreta escapadela. A família materna, tal como a paterna, encontravam-se praticamente livres de alcunhas, fossem elam trocistas ou amáveis, com uma única exceção conhecida, a de uma tia Pereira de Aguiar, a quem, por ser baixa e gordinha, chamavam Maria Parrachila. Algumas das antepassadas de sua avó Carolina, as que se assemelhavam a muitas das formidáveis figuras femininas do universo ficcional de Agustina, ficaram conhecidas como "as Alexandras", não entrando, contudo, naquele “dicionário”. O nome popularizou-se e foi adotado, também, no masculino, e ainda hoje o é, em sextas ou sétimas gerações dos seus descendentes. Curiosamente, não o vemos nas pesquisas genealógicas que abrangem o século XIX. Há, sim, entre tias e primas, alguns outros nomes de ressonância greco-latina, como Lavínia, Leocádia, Violante, Blandina ou germânica, como Guiomar. No apanhado de vocábulos esquisitos, então em voga nos meios populares, apontou, dando sempre o sinónimo, palavras ou expressões como: vasculho malandro), paspalhão (desajeitado), dar uma topada (tropeçar), encatrapiada (aleijada), pimpineira (aldrabice), pixote (pequenino), "embaçado" (envergonhado) … Ou ditos antigos, por exemplo: "estás a olhar para ontem, que já lá vai", ou "estás a ver navios" (distração): Deus nos dê muito e nos abone com pouco":"estreminguei um pé" (torci) "vim da outra banda" (do outro lado) "estou triste como a noite"... Tudo o que era, ou, pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe dava a certeza de estar onde e com quem mais queria. Ligava-a à longa linha de ancestrais, que certezas semelhantes tinham arreigado ali, mesmo quando, como aconteceu com seu pai, se aventuravam, por muitos anos para além das fronteiras do concelho, do país, ou do mar, sem perder nunca a vontade de revir à melhor das terras à face da Terra - a vila de Gondomar, de onde tantos avoengos eram originários I - OS MENDES BARBOZA E OS FERREIRA RAMOS JOAQUIM MENDES BARBOZA Joaquim, o avô de porte aristocrático e olhar sereno, que veio do norte, de um norte não muito longínquo, era natural de Santa Maria Madalena de Paredes, filho de António Mendes e de Joaquina Roza Coelho Barboza. Fez os seus estudos de Teologia no Bispado do Porto, que concluiu no ano de 1858/59, tendo tido no exame a classificação de “Muito Bom”. Em 1960, foi “admitido à receção de todas as ordens sacras”, mas, em vez da ordenação sacerdotal, vemo-lo, em 1863, aceitar o posto de professor na recém-criada Escola de Vilela, Paredes, com um contrato de três anos. A decisão de mudar de rumo, qualquer que tenha sido a motivação, não afetou a sua fé e religiosidade profundas, bem expressas em alguns trechos de correspondência enviada à filha Maria, meio século depois, enquanto esta morou no Rio de Janeiro, entre 1910 e 1920. Em Vilela, exerceu o cargo, (que era bem remunerado e com mordomia), incluindo casa oferecida pelas autoridades locais, de forma a merecer os maiores encómios, ou seja, “com tanto aproveitamento para os alunos que provou até à evidência a sua muita inteligência, aptidão e inexcedível zelo”, como atestava o público agradecimento da Junta de Freguesia. Seguidamente, vemo-lo enveredar por carreiras jurídicas do funcionalismo público, nos serviços de Registo Hipotecário da Conservatória de Paços de Ferreira e na Administração dos concelhos de Paredes e de Gondomar, como escrivão. No Julgado de Paços de Ferreira, pertencente à comarca de Lousada, seria nomeado solicitador encartado, funções que deixou em 1870, com mais louvares num curriculum imaculado. 1970 é o ano do seu casamento com Carolina Ferreira Ramos, na vila de Gondomar, onde estivera colocado em 1865 e 66. A sua sintética biografia in “O Conselho de Gondomar” não refere os cargos exercidos durante a década de 70. É sabido que se manteve como funcionário público, profissão que lhe é atribuída, por exemplo, em 1879, na certidão de nascimento da filha Rosaura, emitida em Gondomar, onde nasceram todos os seus oito filhos Em maio de 1983, é colocado como secretário da Junta de Freguesia e, em 1 de Outubro de 1885, nomeado tabelião no Julgado de Gondomar da Iª vara da Comarca do Porto. E como notário se manteve até à aposentação em 1916, já com avançada idade. Em 1890, foi nomeado Administrador do Concelho, funções que acumulava com as do notariado. Na monografia “Concelho de Gondomar, descreve-o assim o Autor “ Era um espírito muito culto, tendo colaborado em algumas revistas da sua classe, como “O Direito Notarial” de Lisboa. Numa nota mais pessoal, não muito comum no conjunto dos seus biografados, apresenta-o, numa data em que já falecera, como um “chefe exemplar de família”, que “legou a seus filhos uma esmerada educação que lhes assegurou uma situação respeitável no meio da sociedade” Testemunho direto de Camilo de Oliveira sobre qualidades humanas, que impressionavam, pelo menos, tanto quantos as profissionais, e que seriamcorroboradas pelos seus próximos, no rastro imperecível de memórias íntimas Não sendo, como vimos, oriundo de Gondomar, converteu-se em verdadeiro filho da terra, onde criou família e fez incontáveis amigos, e nenhum inimigo, seguindo a vocação de louvar a Deus, de um outro modo, servindo, cristãmente, os seus semelhantes. Monárquico, do partido Regenerador, não parece ter sido penalizado pelas suas convicções políticas, a partir de 1910 e até 1918, data da sua retirada por razões de idade e saúde, que, todavia, não o impediram de dar a sua colaboração graciosa, e a tempo inteiro, por largos meses, ajudando a formação do seu sucessor, um jovem licenciado em Direito por Coimbra, muito sabedor de leis, mas sem qualquer experiência prática. (como ele própria relata com um fio de humor, na sua correspondência para o Rio de Janeiro) CAROLINA FERREIRA RAMOS O historial de Carolina, menina da sociedade gondomarense, não consta, naturalmente, dos anais da terra. Como quase todas as mulheres desse tempo, fez “curriculum” pelo casamento e uma numerosa prole esta bonita e voluntariosa filha de ANNA PEREIRA, (cujos pais, JOSÉ PEREIRA e THEREZA d' ALMEIDA, eram ambos naturais de São Cosme), e de JOAQUIM FERREIRA RAMOS, filho de FRANCISCO FERREIRA RAMOS e de CATHARINA ALVES, de Valbom. Anna e Joaquim eram casados já há alguns anos e tinham vários filhos, quando se mudaram de Valbom para São Cosme, para morar na quinta da Bela Vista, que ou compraram, ou herdaram dos pais de Anna Pereira Carolina, uma das filhas mais novas, nasceu, certamente, na quinta da Bela Vista, e terá conhecido o futuro marido por volta de 1866, no período em que este exerceu o cargo de escrivão do Concelho de Gondomar. Frequentavam o mesmo meio pequeno de comunidade burguesa. Talvez Joaquim Mendes Barboza fosse amigo dos seus irmãos, apesar das divergências políticas, ele monárquico e conservador, os Ramos maioritariamente republicanos e progressistas. Por essa altura, a Carolina não faltaram pretendentes. Houve um que conseguiu ficar no anedotário da família, graças uma equívoca e infeliz quadra que lhe dedicou: Minha doce Carolina Estas, porventura lembrada, Tu ao mirante da esquina Eu a cavalo na estrada. Um poeta “cavalgando a estrada” ou “A cava-lo na estrada” (subentenda-se a cavar o ouro da herança) não era literato capaz de granjear o entusiasmo de uma rapariga perspicaz e exigente. (se é que a história é verídica, o que não seguro). Certo é que ela era um “bom partido” e os pais, de início, terão contrariado a pretensão do jovem escrivão do Concelho… Mulher de forte personalidade, não desistiu de um casamento por amor. Poderá a oposição paterna ter retardado a cerimónia nupcial, que só se efetuou quatro anos depois, em 2 de maio de 1970, quando ela já ia nos 26 anos, para a época idade madura, e ele nos 30. Foi madrinha da noiva a irmã Joanna, a cuja beleza e graciosidade os retratos fazem justiça. Esse dado leva-nos a considerar que houve, enfim, aprovação parental e que os pais, Anna e Joaquim, terão estado, também, presentes na boda Joaquim Ferreira Ramos seria um abastado comerciante, ou não teria podido adquirir, por partilhas ou por compra, a quinta da Bela Vista, com a sua casa apalaçada. No retrato do álbum de família, aparentando já mais de 60 anos, é um senhor distinto, pensativo, de olhos claros, com uma extraordinária semelhança com o que terá sido o mais atraente e brilhante dos seus bisnetos, Manuel Joaquim, legatário dos cristalinos olhos azuis e do nome, (que coincidia com o do avô minhoto, o suave enamorado de Carolina). De Anna há, também uma fotografia de estúdio, em traje de lavradeira rica, de chapéu preto e lenço de seda, ignorando- se o foi, de verdade - ou se estava fantasiada para o entrudo, como então era comum. O pormenor de estar de livro aberto na mão, livro que pode ser, simbolicamente, uma Bíblia, apontará para a primeira hipótese, assim como a lenda das "Alexandras", ligada a heranças e ambição de terras. Essa ambição, frustrada no caso da irredutível Carolina, atingira o seu ponto alto com uma antepassada que queria impor consorte rico a sua filha, e, não logrando os intentos, porque a donzela se mostrava indomável, praticamente a sequestrou dentro de portas, até ao dia em que, ajudada por criados de coração solidário, e pelo pároco, não menos compassivo, a noiva secreta escapou, de manhã cedo, para a Igreja. Aí a esperava o padre para a unir ao bem-amado pretendente pobre, em apressada cerimónia, com a bênção de Deus, mas não com a da mãe (do pai, fosse vivo ou morto, não reza a a narrativa). Nessa manhã, a “emparedada” levara a sua mãe, à cama, ela própria, prestável e aparentemente resignada, a bandeja do pequeno-almoço, mas não fora ouvida nem vista, depois de não ter vindo recolhe-la. Chamou-a a mãe e, não obtendo resposta, cheia de suspeitas, tratou de se vestir à pressa e correu, também ela, para o templo. Tarde demais chegou… já os noivos estavam ligados para sempre pelo sacramento. Restou-lhe, assim, em incontrolada fúria, apedrejar o cortejo nupcial, à saída da igreja. E com esse insólito comportamento rompeu as barreiras do completo anonimato futuro, convertendo-se em lendária figura familiar... Joaquim Mendes Barboza pode não terá recebido. Inicialmente, acolhimento muito amistoso, mas, no polido e mais flexível meio de uma burguesia comercial, escapou a gritos de guerra e tentativas de lapidação. Ficou, em todo o caso, ciente de que educação, ascendência, bom carácter e boas maneiras, não contavam tanto, para a família da noiva, como haveres materiais, em que ele era mais parco. Para Carolina, aquelas qualidades sobejavam, tanto mais que ele era um belo e gentil rapaz. Bem andou em não desistir do seu amor, na melhor tradição das "Alexandras”. Meio século de vida em comum com Joaquim dar-lhe-ia razão. E não foi preciso muito tempo para que os sogros se convertessem às virtudes do tão bondoso quanto sensato genro, ao mesmo ritmo de toda a sociedade gondomarense. As memórias das filhas coincidem rigorosamente com o teor da monografia do Concelho de Gondomar, apresentando-o, da mesma forma, que se pode sintetizar numa palavra: exemplar! Como homem, cidadão e profissional. Foi, assim, longo e feliz o casamento de Carolina, elegante jovem, transformada em imponente matriarca, depois de oito vezes grávida (a última das quais já quase na casa dos cinquenta, para dar à luz Maria da Conceição, que viria a ser a conhecida e reconhecida Maria Aguiar). Mulher forte e determinada, embora mais comedida do que as terríveis antepassadas, parece ter reinado, sem oposição, dentro dos muros de sua casa, como manda a tradição matriarcal nortenha, mantendo sobre o marido e sobre os filhos, mesmo já depois de adultos e independentes, um ascendente natural, compatível com imenso afeto e condescendência da parte de todos eles. Por regra, era feita a sua vontade! Um pequeno diálogo conjugal (dos poucos e fragmentados que o raconto oral traz até nós...), é revelador da permanente busca e facilidade de concórdia na intimidade do casal. Passa-se na última década do século XIX, num tempo em que os apelidos dados aos recém- nascidos eram de arbitrária escolha de quem os registava. Os quatro primeiros rapazes receberam apenas os apelidos do pai. E só quando estava à espera do seguinte, Carolina se deu conta disso e comentou, causticamente: "Os meus filhos não têm o meu nome!". Não ocorrera ao marido, que a tratava carinhosamente por "mamã", ter isso especial relevância para ela. Daí em diante, não só reparou a omissão, como tratou de colocar o apelido da mulher no último lugar, no nosso sistema, é o dominante. Os quatro filhos mais velhos são Mendes Barboza, os quatro mais novos Barbosa Ramos, (independentemente do sexo, pormenor que não é despiciendo). A partir do 15º ano do casamento, em 1985, Joaquim Mendes Barboza tornou-se, com foi dito, tabelião do concelho de Gondomar, e ocupou o cargo, com universal aceitação e agrado, até se reformar, em 1916. Na vila que o acolheu, foi personalidade ímpar e prestigiada, sempre discreto e confiável, dando de si, nas muitas fotografias em que figura, a imagem da pessoa serena e gentil, que, de facto, era para com todos, ricos e pobres. Um santo", nas palavras da filha Rosaura Barbosa Ramos, a primeira das meninas, depois de quatros rapazes. O seu nome, que se distingue pela raridade, foi escolhido por ele, inspirado num livro, que andava a ler, por essa altura, um romance de cavalaria com o longo título de "Retiro de Cuidados e Vida de Carlos, e Rozaura". Mais uma nota a acrescentar ao seu perfil humano: o gosto pela leitura, romântica e sentimental. È fácil imaginá-lo ao serão, enquanto a mulher bordava peças de enxoval (e muitos bordados seus, primorosos, chegaram, em perfeito estado de conservação, ao século XXI), sentado em cadeirões de pau canto e palhinha, igualmente bem preservados, a deleitar-se com a aventuras e desventuras de Rosaura, à luz do candeeiro de "abat jour" de vidro branco e translúcido, e de pé de bronze elaboradamente trabalhado, que, intacto, resistiu ao passar do tempo. A saga, que lhe ocupava as horas livres, começa auspiciosamente numa madrugada ( "Rompia a aurora..."), continua em extensas narrativas de guerras, conflitos e mil e um obstáculos que vão adiando a união dos jovens, só alcançada no final feliz, com a etnográfica descrição do cortejo nupcial em direção à Igreja: "levando a Marqueza Rozaura da mão e Dom Manrique a Carlos ao lado direitto e assistiao ao seu recebimento e quando voltaram por quantas ruas passarao choviam infinitas flores das janelas, com repetidos “vivas. Cedo com sua espoza Rozaura para Rezzo virao. Laus Deo". (Rosaura Barbosa Ramos não teria tão vistoso casamento, nem iria para Rezzo, permaneceria em Gondomar, feliz, com um viúvo muito afável, chamado simplesmente Manuel Marques).O pesado livro de capas de couro ser-lhe -ia, mais tarde, dado como presente, que legaria à sobrinha preferida, Mariazinha, por sinal, fiel e diligente guardiã de quaisquer antiguidades. Joaquim Mendes Barboza, ogrande amador de romances, era um monárquico firme, mas tolerante, muito sociável, participava na vida cultural da vila e suas instituições, em tertúlias, em teatros e concertos e celebrações reliiosas. Com as origens (Bitarães. Penafiel, Paredes), parece ele ter mantido escassos contactos. Talvez os pais, quando casou, em 1970, tivessem já falecido, porque deles não há rasto personalizado nas relatos orais. A exceção é um sobrinho, que era Visconde de Paredes (ou um dos filhos do Visconde) e namorou a filha mais nova, Maria da Conceição. Visitava-a, segundo várias vozes, entre elas a da Tia Rosaura, chegava esbelto e sedutor, montado no seu cavalo, e à despedida ela vinha ao mirante dizer-lhe adeus. (Mais um mirante na geografia dos romances gondomarense!). Porém, aí por volta de 1906 ou 1907, Maria pôs fim ao namoro, preferiu o "brasileiro" António Carlos, que, nas suas próprias palavras, a fitava, apaixonado, com uns grandes e expressivos olhos verdes, como jamais vira outros. È facto assente que ela não tardaria a corresponder aos sentimentos e aos olhares. Maria, a menina mais nova, tal como, mais tarde, Rosaura contaram sempre com o apoio dos pais nas suas decisões. E dos homens também não há qualquer eco de afetos contrariados. O único desgosto que pesou sempre na vida deste casal exemplar foi a morte, aos 21 anos, da encantadora e sempre lembrada filha Glorinha, a professora. OS IRMÃOS DE CAROLINA Carolina e as suas irmãs foram educadas para o casamento, e todas elas terão casadobem, ou medianamente bem, não deixando marcas na cronografia da família, onde só destinos ou acontecimentos excepcionais, para o melhor ou o pior, trouxeram à ribalta mulheres das gerações passadas – daquelas gerações sobre as quais não há testemunho de quem com elas privou. De entre os filhos houve os que continuarm, no modo masculino, as tradições da família, em vários ramos de negócio. Com grande sucesso, o conseguiram, por exemplo, MANUEL GUEDES FERREIRA RAMOS, que dá o nome à praça do Município em Gondomar (antigo Largo de Quintã), e ANTÓNIO FERREIRA RAMOS, emigrado para o Brasil, onde lançou com um Salgado Zenha, (decerto antepassado do que ficou na história da nossa democracia), uma sociedade próspera, a "Ramos e Zenha". Desse tio gostava muito a pequena Maria (mais tarde, Aguiar), e com ele manteve correspondência assídua e trocou retratos, que ocupam várias páginas num precioso álbum de capa de veludo arroxeado e folhas douradas. Este tio António casou com Carolina Silveira Martins, irmã do Silveira Martins,que foi Governador do Rio Grande do Sul, e se notabilizou nos primeiros anos da República brasileira. A sua incontável descendência, está hoje espalhada pelo sul do Brasil, desde Bagé, onde se radicou, a São Paulo, e aos confins do Uruguai. Dos inúmeros primos que, separados por mais de 15.000 milhas de mar e terra, totalmente se desconhecem, só dois se encontrariam, uma tarde, em fins do século XX, no hemiciclo de Brasília: Maria Manuela Aguiar, então Vice-Presidente da Assembleia da República Portuguesa, e Sá Azambuja, Senador da República Federativa do Brasil, ambos descendentes diretos, e no mesmo grau, de Anna e Joaquim Ferreira Ramos, dos quais nenhum deles guardava os apelidos Um outro ANTÓNIO FERREIRA RAMOS, sobrinho do que emigrou para O Rio Grande, era filho de Manuel Guedes, e também muito próximo da prima direita Maria. A vida levou-o para longe, embora um longe menos longínquo, (Lisboa), depois do casamento com uma filha de Ramalho Ortigão, Berta, de quem descendem todos os Ortigão Ramos. Entre vários outros negócios e investimentos, foi proprietário do teatro que é hoje o São Luís e, tal como o pai, um benfeitor da sua terra. Camilo de Oliveira, na monografia de Gondomar, salienta que instituiu bolsas de estudos, em igual quantidade e montante para rapazes e raparigas. A instrução feminina foi uma das causas republicanas, defendida pelo movimento feminista, e, também por muitos homens, companheiros de crenças revolucionárias, como este gondomarense, genro de Ramalho. Manuel Guedes, conhecido pelo republicanismo militante, não viveu para ver o fim do regime monárquico, mas o seu ativismo não fora esquecido e, nos alvores do novo regime, foi dado o seu nome ao Largo de Quintã, onde tivera, antes de se fixar no Porto, uma loja comercial, no casarão de azulejos, que ainda hoje existe, em frente à Câmara Municipal. É o que, infelizmente, se não pode dizer da Vila Maria, que foi demolida, (e da qual apenas se conservam apenas, graças ao cuidado ao bisneto de Maria e António, Carlos Manuel Aguiar, os azulejos com a grande águia castanha segurando um “R” no bico) ou da Quinta da Boavista, (da qual resta um pequeno lago de pedra, transplantado para junto da capela do Monte Crasto - a crer numa história contada por um frequentador do café do Crasto, simpático velhinho anónimo, que se gabava de ter visitado, muitas vezes, a propriedade). JOAQUIM e CAROLNA NA PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR Só pelas cartas que escreveram às filhas, os podemos conhecer mais de perto. Infelizmente, são poucas as que chegaram até hoje, e todas da última fase das suas vidas, enviadas a Maria para o Brasil, entre os anos de 1914 e 1918, e a Rosaura, durante ausências curtas nas termas ou na praia. Se as da bisavó Carolina quase se limitam ao relato de problemas de saúde, mostrando-a certamente muito diferente do que fora em jovem, cheia de preocupações com a saúde, que a idade ia avolumando, as do marido, pelo contrário, revelam um espírito atento ao mundo, a acontecimentos que marcavam os destinos de milhões, como o progresso da 1ª Grande Guerra, ou a gripe espanhola, tanto quanto ao pequeno mundo de São Cosme, onde se sucediam casamentos, mortes, temporais, festas religiosas, espectáculos culturais, e onde frutos amadureciam e flores desabrochavam no seu jardim. Retrata-se a si mesmo nestes relatos de época, escritos ao correr da pena, em linguagem muito sóbria, mas, aqui e ali, colorida por uma expressão engraçada, um populismo, a dizer que o sentido de humor que se atribui ao ADN dos Ferreira Ramos, também não está ausente no legado genético dos Barboza…Pequenas achegas, em que o podemos imaginar a sorrir brandamente, por exemplo, quando descreve a mãe a ralhar com o filho padre, por passar tempo demais no confessionário, sujeito ao frio sepulcral das alas laterais da igreja matriz, ele que, mal curado de uma tuberculose, era sempre um doente de risco. No ano de 1914 Na primeira dessas cartas, de 11 de Julho de 1914, enviada para o paquete Araguaya, nas vésperas da chegada de filha, genro e neta Carolina a Portugal, começa, como era previsível, assim: “Que, com a Lininha, tenhais tido boa viagem são os nossos votos a Deus e a Nossa Senhora”, para logo os prevenir que não poderá estar presente no cais de chegada: “Não deveis contar connosco em Lisboa, nem mesmo em Leixões, porque os 75 tiram todas as vontades de fazer as viagens, ainda que curtas – além do risco de um trambolhão que atire a gente para a outra banda, pois o caruncho é bastante. Com o que podeis contar ao certo é encontrar-nos na nossa choupana de braços abertos para vos receber e à pequenina” A “choupana” era, de facto, uma casa grande, de dois andares e traça tradicional, e jardim com frente de mais de cinquenta metros para a rua principal (onde não faltava o mirante rasgado no muro, e um terreno extenso para sul e nascente, que terá sido, possivelmente, comprada com dinheiros de herança de um dos cônjuges, ou dos dois, porque, mesmo a preços do último quartel do século XIX, parece propriedade demasiado dispendiosa para os réditos de um funcionário público com numerosa prole. Seguem-se as notícias: ”É hoje a festividade de São Bento, que este ano reveste uma pompa superior à de anos anteriores. (…). “O Américo está esta semana em Tuy, onde foi assistir a exercícios religiosos, visto não os haver no Porto”. Mas, acrescenta, o tio padre viria, dentro de dias, visitá-los e ver a menina. No Clube, havia espectáculo em benefício dos Bombeiros, que já não chegariam a tempo de ver, e em que ele, apesar dos seus 75 anos, pelo visto, marcaria presença Em casa, não perdia, também, qualquer oportunidade para organizar uma festa, Num recorte de jornal, não identificado nem datado, tomámos conhecimento da “celebração do aniversário natalício da Senhora D. Carolina Ramos Barboza, esposa do estimado e benquisto notário local, Sr. Joaquim Mendes Barboza, Por esse motivo, vieram a esta vila seu filho, Dr. José Barbosa Ramos, novel advogado e proprietário do semanário “O Progresso de Gondomar, e o Sr. Deolindo Oliveira, colaborador do mesmo periódico” No ano de1916 22 de Janeiro Os primeiros parágrafos abordam, como era habitual, questões de saúde. Nesse mês de inverno, do seu lado do oceano, problemas tinha “a Rosaurinha, que conquanto de pé, anda afetada com alguma tosse, que lhe desapareceria com pontas de fogo” e, do outro, queria saber como passavam, no verão austral, “a Lininha, o Antoninho com o apartamento que há muito devias ter feito” (pertinente observação, porque o menino estava prestes a fazer um ano, idade avançada para mamar ainda no seio materno) e o Manelzinho com o trambolhão, que não será o último. Eles consomem-te a paciência, é verdade, mas também ajudam a passar os dias”. No capítulo da vida social de S Cosme, não faltavam novidades: “Casaram-se o Coruja com a irmã da Margarida telegrafista, No próximo domingo, representa-se no teatro do Club o drama Amor de Perdição, tirado do romance com o mesmo nome do grande Camilo Castelo Branco (sem surpresa descobrimos o seu pendor Camilianos, depois de conhecer o gosto por novelas de cavalaria). Da malta de gatunos, que infestavam estes sítios, vários já estão presos. Os pequenos do Alfredo estão com bexigas. Se o Antoninho ainda não está vacinado, deve sê-lo. Morreu aí a Maria (apelido ilegível) e, no Rio Grande do Sul, tua tia D, Carolina Silveira, mãe do Eduardo Ramos, a quem escrevi dando os pêsames (trata-se da mulher do tio António Ferreira Ramos, certamente já falecido, de contrário, a ele, não ao filho Eduardo, teria escrito – notícia que aponta para o facto da filha Maria não manter já estreito contacto com esse ramo da família) “Hoje foi dita missa pela nossa chorada Glorinha Especialmente interessante é a que se referente à sua aposentação, aos 77 anos de idade “Estou substituído, mas sempre no trabalho, porque o substituto, conquanto hábil com conhecimentos de direito, não tem prática, e sem ela não pode confiar em si, nem quanto aos; serviços mais rudimentares” Significativa é, ainda, a exortação feita à jovem filha: “Faz por te distrair e levar a vida sem inquietação, recebendo bem qualquer contrariedade”.” No ano de 1918 São Cosme, 22 de Fevereiro No Rio e em Gondomar todos estavam bem e, por essa benção, dava Graças a Deus o catolicíssimo bisavô. Esperava, em breve, tê-los perto de si, depois de deixarem, de vez, o Brasil. O enfoque da carta é a procura de terrenos onde pudessem construir casa: “Como já te informei, a Regedora não vende a propriedade (…). E, como há dias o Alexandre informou o vosso mano Augusto, há o terreno do Paciência, que conheceis, e o do Fonte, que está entre o club o José Semana, e o da Rosa, filha do Manuel Marques e, ainda, a propriedade de Serafim Pacheco, contígua à quinta de D. Carolina Novais(…). São Cosme, 23 de agosto Nestas primeiras décadas do século XX, a crença nas qualidades terapêuticas das termas estava no seu auge, e os bisavós rumavam anualmente a Vizela, acompanhados por alguns dos familiares, ritual que a filha Maria haveria de cumprir toda a , a Vizela ajuntando as caldas de Aregos ou do Gerês. “Regressámos ontem de Vizela, onde estivemos 5 dias com a Rosaura, o marido, Alexandre e mulher e também a tua prima Amélia de Quintã, com a criada, e todos chegámos bem e assim continuamos (…). “ O José ia este mês para o Funchal, mas ainda não está lá, por não haver conseguido lugar no vapor que para ali seguiu no mês passado. Ele foi, há dias, a Viana, donde ainda não chegou. O Américo está tentado a ir passar 15 dias ao Bom Jesus em Braga. Ele no próximo S Miguel muda de casa para o Souto do Rosário, para poder estar mais perto da igreja. Depois de várias referências à seca e aos seus efeitos na lavoura gondomarense, vem a única menção escrita, que se conhece, ao exílio para São Tomé, por razões políticas, do seu filho primogénito, António durante o mandato de Sidónio. Ficam, assim, confirmados relatos orais, mais vagos “O António está em África onde, quando chegou lhe ofereceram três lugares, dos quais, todos bons, se colocará no que mais lhe agradar. Ele está bem, e não lhe falta a saúde, também o disse em carta para a esposa o Dr. Marcelino. Foi a maldita política, que para ali o atirou, da qual os desgostos são sempre a pagar para os que têm a fragilidade de nela se meterem manifestamente. Passaram no 1º ano do liceu os dois pequenos do Alberto, o Mário com boa classificação, o Américo, que é doente e cábula, com baixa classificação. O Alberto pede para eles virem com a Maria Izabel passar cá uns dias. (nas fotos de família em S Cosme, a neta Izabel, Mimi, é presença frequente, ao contrário do que acontece com os rapazes, o bom aluno, Mário, que viria a formar-se em medicina e o mau aluno, Américo, que, por certo, se chamava assim em homenagem ao tio Padre. Termina com a notícia da morte do marido da prima Maria, filha da Tia Joaquina da Travagem São Cosme, 15 de outubro Tinham, nessa data, acabado de chegar duas cartas escritas pela filha Maria em agosto, um enorme atraso, que lhe causara grandes apreensões, receando que estivessem doentes. (…) “Eu e a mãe, atrouxados, sim, mas vamos indo de pé. O José adoeceu com gripe na Póvoa do Varzim, em casa de um amigo, de onde veio para casa, achando-se actualmente, em franca convalescença. A Rosaurinha também recolheu à cama, com a sua doença de que ainda está convalescente. Oferece sempre gravidade, porque sofre da pleura e dos pulmões. Acrescenta que a criada foi para o hospital, parecendo que é broncopneumonia gripal, de que tem morrido quase todos os atacados. O Alexandre também teve gripe simples, que felizmente foi muito benigna. Sem lhe chamar assim, porque não era certamente a designação corrente, está a falar da epidemia mortífera da “gripe espanhola”, a que escapou a família, mesmo os Barbozas mais vulneráveis, por terem, anos antes, sobrevivido a tuberculose, Rosaura e Américo. Nem por isso traça uma situação geral menos dramática: “Poucas pessoas têm sido poupadas por estas doenças, e os casos fatais, principalmente de bronco pneumonia (se não se trata de alguma peste) tem sido tantos, que poucos dias tem decorrido sem seis ou oito óbitos na freguesia. E o que se dá por aqui, está-se dando por todo o nosso continente, tendo estas doenças sido importadas da Espanha, onde ainda grassam. A Mimi, receosa das doenças raspou-se para o Porto. Está com os pais e os irmãos, que passam regularmente.” (Mais um indício de que a neta Mimi lhes era particularmente querida e com eles passava com grandes temporadas em São Cosme, como faria, depois de desaparecidos esses avós, em frequentes e prolongadas visitas à tia Maria Aguiar, que era poucos anos mais velha do que ela - mais pareciam irmãs) O tema dos terrenos para a casa que viria a ser a “Vila Maria” é retomado: “O Alexandre havia de procurar o vosso mano Augusto para o informar de que se vende um campo próprio para casa, tem frente para a estrada que conduz à igreja e está da parte de baixo da propriedade do Monteiro da música entre esta propriedade e o campo do Zé do Paço, que tem um engenho de água” A descrição dos terrenos para potencial aquisição, nesta e na missiva anterior, parece coincidir com a situação de boa parte das propriedades que vieram a ser efectivamente compradas pelo avô António Aguiar. Os mais ativos aliados, na procura de alternativas, foram o sogro e o cunhado Alexandre, e o irmão Augusto é referido como uma espécie de seu procurador, reforçando a ideia de que eram, além de muito amigos, parceiros de negócios. Os netinhos, naturalmente, não são esquecidos e sobre eles recaem, por vezes opiniões muito categóricas: “Não metas a menina em barafundas, acho que só aos 9 ou 10 anos deve ocupar-se do piano. Quem tudo quer, tudo perde. Adiante recomenda à filha que não se esqueça de dar o remédio contra as lombrigas aos meninos, “de quando em quando, para evitar os ataques, que oferecem tanto perigo, como já tens tido ocasião de ver” Já se sabe em São Cosme que a Lininha há-de ter uma cruzinha com pedras e o Manelzinho uma bengala muito linda” (…) (…) Há dias, colhemos na nossa figueira, uma cesta de deliciosos figos. Bem nos lembramos de vós, mas… As festas do Rosário, que, por causa das doenças, chegaram a ser proibidas, e, depois, foram consentidas, estão pouco animadas, ainda assim mais do que seria de esperar Sobre o filho mais novo, que, desde agosto, esperava rumar ao Funchal, a fim de tomar posse do seu lugar de magistrado dá conta do impasse: “ O José ainda não foi para o Funchal, porque precisava de licença do Ministro para embarcar e este não lha concedeu, com a fundamentação de que estava próximo de receber a instrução preparatória de oficiais milicianos, mas é quase certo que a guerra está no fim, ou pelo pedido de paz, por parte dos alemães, ou pela derrota destes já começada, e, por isso, é de supor que fique sem efeito a lei que a tal obriga, Deus o queira, O Américo está na sua nova casa, defronte do Vicente, e do largo do souto do rosário, e, conquanto doentinho, celebra sempre a sua missa, menos num dia ou outro em que o tempo está muito mau, ou em que se sente constipado” No final de uma das suas mais longas cartas, pergunta se já foi recebido “o grupo de retratos que te enviei, tirado no nosso quintal. Deve ter chegado há muito tempo”, (chegar, chegaram, porque algumas ainda se herdaram do espólio da avó Maria, mas entre o dever e o acontecer por vezes mediavam semanas, como anterior correspondência evidenciava...).. O “post.scripum” e uma discreta forma de dizer à filha que pode retomar as travessias oceânicas e as visitas a São Cosme, interrompidas pela guerra: “Lembro-te que deve estar afugentado o perigo dos submarinos dos scelerados alemães” Muito menos numerosa e muito mais sintética é a produção epistolar da Mãe, que devia repousar, largamente, no gosto do marido em escrever Querida filha Recebemos a tua carta pela qual vejo que ainda continuas constipada e fraca, tens, pois, filha de ter cuidado, porque dos enfraquecimentos vem todas as doenças, e quando se não tem o cuidado preciso a tempo, quando se quer reagir, já não se pode. Não te aflijas por causa nenhuma e deves sahir de vez em quando, pois teu marido não te podendo acompanhar vae com a tua filhinha e criada. Ansiosa espero a vossa vinda, um dia melhor, outro pior, e assim hei-de passar o resto da vida. O Pae agora passa melhor e a Rosaura tem andado um pouco constipada. Recorda-me muito ao Aguiar e dá muitos beijos na nossa querida menina (…) Adeus filha, envia-te mil beijos cheios das mais vivas saudades, a tua mãe Carolina Embora a carta não esteja datada, podemos situa-la entre 1913 e 1914, porque apenas refere a neta primogénita, sinal de que ainda não existiam os outros, e fala de uma próxima chegada da filha a Gondomar. Os avós viajaram na segunda metade deste último ano, para que filho, esperado para breve, que seria o Manuel Joaquim, nascesse em São Cosme OS MENDES BARBOZA RAMOS Nenhum dos filhos de Carolina e Joaquim se aventurou no mundo empresarial, onde tinham feito fortuna avós e parentes maternos. Os três mais velhos, António, Alberto e Alexandre enveredaram, como seu pai, por carreiras do funcionalismo público, e o mais novo, José Barbosa Ramos, após ter sido advogado e deputado pelo Porto, acabaria por ingressar na magistratura judicial. Américo, em vez de servir o Estado, Américo dedicou-se ao serviço de Deus, e foi um padre muito querido dos paroquianos, pela sua extrema bondade e abnegação. Temperamentalmente, o mais próximo do pai, que teria, com certeza sido tão devotado e generoso à frente de uma paróquia, como foi no seu cartório e dentro de sua casa. A mesma vocação, exercida num outro domínio... ALEXANDRE MENDES BARBOSA A monografia do Concelho de Gondomar, dá nota de que foi Secretário da Administração local e, mais tarde, tal como fora seu pai, Administrador do Concelho. Sempre envolvido na vida cultural de São Cosme, esteve entre os fundadores do Clube Gondomarense e pertenceu aos seus executivos, assim como aos de várias outras irmandades locais. Era um jovem alto, bonito e elegante, apreciador de teatro, assíduo frequentador do Sá da Bandeira e das tertúlias da "Brasileira". E, ocasionalmente, poeta. Dos seus versos, resta uma quadra, preservada pela sobrinha Maria Antónia: "Morre um afeto, outro nasce Passa um desejo, outro vem Depois de um sonho, outro sonho De tantos que a vida tem" Afetos femininos não lhe terão faltado na juventude. Era, como as fotos de juventude evidenciam, muito bem-parecido. Casou-se com HERMÍNIA, jovem de boas famílias nortenhas, educada num colégio de freiras, onde o pai, tendo enviuvado quando ela era ainda pequena, entendeu que seria bem cuidada e bem formada. Aí parece ter sido feliz , tornando-se uma jovem serena e autoconfiante, e, ao longo do casamento com Alexandre, uma sensata e competente dona de casa, que não mostrava, sob a capa da placidez e da conformidade aos padrões de comportamento de uma pequena vila, o seu potencial de cultura e inteligência. Não interveio nunca ativamente na sociedade, mas soube aceitar, talvez mesmo encorajar, a constante intervenção cívica e cultural.do marido. Um só grande desgosto na vida a dois, a morte da sua única filha, recém-nascida. Ambos gostavam de crianças e dedicaram-se aos sobrinhos, os de Hermínia e os dele, filhos da irmã/cunhada Maria, que tão cedo enviuvara. A mais nova, Maria Madalena, foi criada mais com eles do que com a própria mãe. Moravam em frente à Vila Maria, bastava-lhes atravessar a rua, para irem, diariamente, buscar a menina, que a mãe nunca deixava pernoitar fora da Vila Maria. O ambiente de concórdia e tranquilidade do seu lar, de tal modo moldou o espírito e o comportamento dessa menina, que nem se diria ser parte do grupo dos buliçosos manos Barbosa Aguiar. Era doce e sossegada, embora soubesse mostrar-se, em criança como pela vida fora, inesperadamente firme e determinada, em qualquer questão realmente importante. Adorava animais, em geral, e gatinhos, em particular, tal como os tios de quem era inseparável. Assim se fez muito mais uma “segunda Hermínia”, do que uma segunda Maria Aguiar, com o seu perfil de liderança e filantropia, que, aliás, não teve também seguidoras nas filhas de génio mais temperamental ou turbulento. Nem verdadeiramente nos filhos. O Tio Alexandre era o padrinho de Manuel Joaquim, o primogénito dos rapazes, dado que, só por si, claramente indicia a estima de que gozava por parte da irmã e do cunhado António. O bonito, espirituoso miúdo era um aluno brilhante e o padrinho fez questão de assumir o encargo com os estudos, que o levaram dos colégios e liceus do Porto à Faculdade de Medicina de Coimbra. Mas, em boa verdade, apoiava, com a mesma atenção e afeto os sete sobrinhos órfãos. Visitava-os todas as semanas nos colégios do Porto, levava-os a passeios e a compras na cidade, dava-lhes mesadas generosas. Todos o consideravam um segundo pai, generoso e compreensivo, quebrando a severidade das exigências maternas Uma prova da facilidade com que se entendia com os jovens, os da família e os outros, foi o terem-lhe pedido, e ele ter acedido, a ser o encenador de uma peça de teatro, escrita e representada por jovens estudantes gondomarenses em Setembro de 1933 que ficou nos anais da Vila. Uma revista à portuguesa, alegre e mordaz, de crítica hilariante de costumes e acontecimentos locais, com o sugestivo título “O Nabo”. Nunca se tinha visto, nem voltou a ver-se nada de semelhante. Gondomar, terra de ourivesaria artística e de fértil agricultura tem, como “ex-libris” naturais, quer o coração ou a caravela de filigrana, quer o nabo, de incomparável qualidade. O nabo era mais apelativo à paródia do que a gloriosa caravela e nele recaiu a escolha da comunidades académica, designadamente dos quatro autores principais, entre os quais se destacava o Manuel Aguiar O papel do tio Alexandre nesse retumbante êxito teatral era desconhecido, até ao momento em que foi encontrado numa mala, no meio de cartas e postais antigos, um exemplar do jornal comemorativo do 25º aniversário dessa récita sensacional. O verão de 33 foi inteiramente dedicado aquele projecto colectivo, coisa de rapazes no seu fim de curso liceal ou começo de faculdade, com a exceção de três colaboradores da geração mais velha, o Maestro Moura, que musicou os poemas e dirigiu a orquestra, Alexandre Mendes Barbosa, que foi o paciente e bem-disposto ensaiador, e o Abade Crispim, que , com a sua autoridade, deu o aval ao ousado cometimento da juventude académica. Curioso o convívio entre o laicíssimo Alexandre e o Padre Crispim, aliás, grande amigo de sua mana Maria. Em vão, diga-se, tentava ele moderar os ímpetos de excessiva generosidade com que ela enchia as caixas de peditórios da igreja. Não fora acostumada, durante o casamento, a preocupações de economizar em coisa alguma, e muito menos nas dádivas para iniciativas da paróquia. Há um curioso bilhete escrito por Alexandre a essa irmã, em que se revela, como é sabido que era, o seu conselheiro para a gestão de património. Nesse dia ele procurara a irmã ao longo do sia, fora três vezes à Vila Maria sem a encontrar, até que desistiu e lhe deixou aquela nota. Ela precisava demais dinheiro, não é dito para o quê, e queria desfazer-se de algumas acções (sua principal fonte de rendimentos), o que ele achava contra indicado, recomendando preferentemente a venda de jóias, que não davam dividendos. O que tais diligências indirectamente revelam é como era ocupada a agenda quotidiana de voluntariado, a que a irmã se votava… (CARTA) Educado como católico, pelos pais, o Tio Alexandre foi ateu, ou agnóstico, na maturidade, mas sentiu o apelo da fé na hora da morte, (provocada por cancro nos pulmões). Quis que lhe chamassem um padre para se confessar e receber a extrema-unção. Ao abade Crispim sucedera, o Abade Andrade, irmão do Bispo do Porto, Dom Florentino, igualmente amigo da benemerente D. Maria Aguiar. Chamado por ela, chegou, de imediato. Ouviu, longamente, o moribundo e escutou as suas últimas palavras. Voltou do quarto muito comovido e disse à família, reunida na sala de visitas: "Acaba de morrer um santo". Os amigos republicanos e laicos, (laicos como ele fora até aos momentos derradeiros), e anticlericais, diriam o mesmo, de outra forma. Talvez: "morreu um justo". Os sobrinhos Barbosa Aguiar choravam a partida de um insubstituível amigo e protector. A tia Hermínia sobreviveu por alguns anos, mantendo a convivência preferencial com a Leninha. Foi de sua casa que esta sobrinha dileta, logo que atingiu a maioridade legal (então 21 anos), saiu para casar, contra a vontade da mãe, com o namorado David D’ Almeida Ribeiro. Um muito longo e feliz casamento provou que quem estava certa era a perspicaz tia Hermínia. CARTAS DE HERMÍNIA PARA A CUNHADA MARIA Do tio Alexandre não se encontraram as cartas, que terão sido frequentemente enviadas à irmã Maria no Rio de Janeiro. Já da tia Hermínia sobrevivem duas longas e interessantes missivas enviadas à cunhada, em 1912 e em 1914. ANTÓNIO MENDES BARBOSA O primogénito dos oito filhos de Carolina Ferreira Ramos foi de todos o que mais se envolveu na política, e o que pagou o preço mais alto pelo seu radicalismo, Terá sido, desde a mocidade o mais rebelde? Não há informação alguma sobre esse período. As irmãs contavam histórias só da fase das prisões e do degredo por razões políticas. Era republicano, como o eram a maioria dos irmãos e dos tios Ferreira Ramos. Mas António era mais do que isso: anarquista, revolucionário, talvez, embora isso nunca tenha sido dito, membro da Carbonária. Preso no Aljube esteve várias vezes e o pior aconteceu-lhe, durante o consulado de Sidónio, em 1918, com a condenação e exílio para São Tomé São Tomé foi não só uma pausa forçada nas escaramuças partidárias, como a oportunidade de conhecer paisagens, gente e costumes, e de ter rapidamente acedido a empregos bem remunerado. Desse tempo só há uma notícia e bem reveladora do seu impagável sentido de humor. Já então tinha perdido os dentes e usava uma dentadura postiça, que era coisa completamente desconhecida entre os nativos da colónia. Pois bem, descobriu que os podia espantar “arrancando” a prótese e exibindo-a na mão. Assim se tornou um personagem deveras temido e reverenciado… Desaparecido Sidónio, pode regressar, e trouxe consigo com um bom pecúlio. Tê-lo-á investido num "café -concerto", onde, não surpreendentemente, não o ajudaram a sorte e a boa gestão. Voltou a um emprego, já não na administração pública, para o qual o activismo político o tornava indesejável, durante a ditadura do Estado Novo, a que não sobreviveria. Por esta altura já estava viúvo. Da mulher, que seria mais ou menos da sua idade e terá falecida muito cedo, ninguém nunca falou, ao contrário das muitas referências feitas a consecutivas companheiras espanholas, manifestamente mal aceites pelas irmãs. Viúvo e frequentador do meio boémio, ele sentia-se livre para procurar, no corpo de bailado dos teatros e casinos, as suas espanholas, a última das quais foi a Teresita, Uma ligação duradoura, e, por isso, tolerada, a custo, pela cunhada Maria, menos flexível do que Jesus Cristo na indulgência para com as pecadoras. Ou das “sobrinhas” por afinidade, não pelas mesmas razões, porque a Teresita era metediça e sempre pronta a denunciar qualquer “pecadilho” por elas cometido. Coisas do género de: “Vi a Lolita – ou a Mariazinha – à conversa com um rapaz”… Delações que desencadeavam, de imediato, reprimendas e castigos. Era usual, António refugiar-se em casa da irmã, senhora insuspeita, para escapar a perseguição política e a mais uma estada no “Aljube”, levando consigo, para a Vila Maria, a Teresita e um cãozinho (tinha sempre um cãozinho e punha-lhes nomes ambíguas, que permitiam segundos sentidos – incorrigível em velho, como fora em novo. As sobrinhas, dele gostavam imensamente, assim como do cão, mas tinham de suportar a vigilância e as denúncias da intrometida Teresita. Consequente até ao fim, António deixou a exigência de enterro civil, para desgosto das irmãs, que se fecharam em casa. O velório decorreu à sombra não do crucifixo mas de um busto da República e ninguém quis, ou conseguiu, afastar do caixão o seu último e fidelíssimo cão. Um enterro laico era, para os católicos daquela geração, uma morte eterna pior do que a morte terrena. Ainda não viam Deus como suficientemente justo para receber nos céus um bom ateu, como hoje crescentemente se acredita, tanto ou mais do que num Deus mesquinho e sectário. Teresita viu-se abandonada e teve um triste fim – velha e demente. ALBERTO MENDES BARBOSA De Alberto não há histórias que nos permita traçar-lhe um perfil humano. Só há fotografias e factos que não ajudam à sua individualização. Tal como o irmão Alexandre, foi secretário da Administração da Câmara, no seu caso, Gaia ou o Porto, cidade onde passou a morar. Era certamente próximo de António e Alexandre, e é de supor que se encontrariam frequentemente nas tertúlias da “Brasileira" e nos teatros da cidade. Como os irmãos, exceptuado o Padre Américo, escolheu uma carreira no funcionalismo público e era um republicano militante, e terá, ele também, estado enclausurado no Aljube, ainda rapaz solteiro. O casamento com a jovem Maria do Rosário, Zarita, não o desviou das convicções ideológicas, mas abrandou os rasgos revolucionários. Tornou-se um sereno pai de família – pai de três filhos, Américo, descrito numa carta do avô Joaquim com doente e muito cábula, Mário Barbosa, o bom aluno, que se formaria em Medicina e uma filha, invulgarmente bonita e inteligente, Maria Isabel (Mimi), que viria a dar-lhe por genro o pintor Mário Ferreira. Mais do que os pais e os irmãos, Mimi era uma assídua visita da Vila Maria, íntima amiga das Tias Rosaura e Maria Era apenas poucos anos mais nova do que a tia Maria. Como ela ficou viúva, ainda jovem. A sua única filha, Maria Laura, aparece em muitas fotografias com a Mariazinha e a Lolita, que eram, quase da mesma idade. Veio a casar, alguns anos mais tarde do que elas, com Luís Aragão, um homem cheio de “charme”. Tinha, ao que se dizia, de ascendência francesa, loiro e de olhos azuis, elegante e distinto. A seu lado, Maria Laura marcava o contraste, morena, viva, de aspeto e temperamento bem latinos. Sempre tão chique quanto extravagante, não hesitava em passear pelas ruas do Porto o seu casaco de leopardo, (ao tempo ainda não assumido como espécie protegida…). Luís Aragão era despachante da Alfândega do Porto, quando esse cargo estava no seu mais alto patamar. Ficaram famosas as receções na sua casa no Porto, onde as primas Aguiares nunca faltavam. O casal tinha dois filhos, Anabela (Bebinha e Luís). Também nesta terceira geração, havia uma diferença de idade, as primas de Gondomar eram mais velhas, mas não o suficiente para prejudicar o convívio de igual para igual. Todas as meninas gostavam da dança que fazia furor, o rock and rol, que animava as tais memoráveis festas. JOSÉ BARBOSA RAMOS O último dos rapazes, nascido quando a mãe estava já na casa dos quarenta. Depois dele só uma menina, Maria da Conceição, veio aumentar a família. Aluno excecional, José seria o único a estudar em Coimbra, onde se formou em Direito. Foi contemporâneo, se não mesmo colega de curso de António de Oliveira Salazar, com quem não partilhava ideologias, mas com quem parece ter convivido de perto. Os bons alunos tendem a constituir um círculo pequeno e essa pertença terá constituído a maior das sintonias. José não enveredou pela carreira académica, voltou ao norte, exerceu a advocacia, envolveu.se na política, como deputado eleito pelo círculo do Porto. Ativista incansável, foi proprietário e diretor de um jornal de combate, “O Progresso de Gondomar", antes de ingressar na magistratura. Um outro colega de Coimbra, Dá Mesquita acabaria por marcar mais duradouramente o seu destino, não na profissão, embora ambos viessem a ser juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, ou na política, pois se supõe ter sido este amigo mais conservador, mas na vida pessoal. Através dele conheceu uma irmã por quem, em Coimbra se apaixonou e com quem casou, Maria Celestina Mesquita de Abreu, a muito estimável tia Celestina, de perfil não muito diverso do da Tia Hermínia, a cunhada minhota. As perfeitas donas de casa. Hermínia menina de colégio elitista, Celestina criada numa casa senhorial em Avô. T José e Celestina tiveram dois filhos, José Joaquim (Zé Quim) e Maria Celestina (Tininha) Mesquita d' Abreu Barbosa. O juiz José Barbosa Ramos cumpriu uma trajectória fulgurante, tornou-se o mais jovem juiz de sempre a ascender ao Supremo Tribunal de Justiça. Acabaria aposentado compulsivamente, quando ainda tinha muitos anos pela frente, por uma questão política, devido ao seu envolvimento em tentativas de derrube do regime. Durante o seu percurso, a família acompanhou-o na deambulação por várias comarcas do país (Santo Tirso foi uma das primeiras), mas mantinham em São Cosme, a casa que fora dos pais Carolina e Joaquim, perto da Praça Manuel Guedes.. O Zé Quim e a Tininha foram bons companheiros de brincadeira dos primos Barbosa Aguiar, como comprovam muitas fotografias na Vila Maria, na Foz, em Vizela Tininha foi uma pioneira, a primeira mulher da família a completar um curso universitário (Farmácia), que exerceu, por várias décadas, como proprietária e diretora de uma farmácia em Valongo. José Joaquim licenciou-se em Histórico-Filosóficas e foi Bibliotecário da Universidade de Coimbra. Na geração anterior, o pai distinguira-se, como político, republicano progressista. José Joaquim transportaria o progressismo paterno para dentro das fronteiras do PCP, afastando-se, depois da revolução de 74 para a área adjacente do MDP/CDE, mais compatível, supõe-se com a sua irreverência de espírito. Grande cultor de Letras e Artes, e coleccionador de estatuária religiosa, quem o visitasse, sem o conhecer bem, e olhasse trípticos e quadros dependurados nas paredes do seu andar da Rua dos Combatente, em Coimbra, julgá-lo-ia um muito devoto cristão e não, como realmente era, um ateu convicto. Herdara o sentido de humor mordaz, que costuma conotar-se com os Barbozas, (embora venha, de facto, mais no ADN dos Ferreira Ramos. Jovem bonito, muito moreno, fisicamente mais Mesquita do que Barbosa, teve mil e uma namoradas, até casar com Maria da Luz Biscaia (Luzinha). Após divórcio de Luzinha, nos anos setenta, a sua companheira foi uma americana leitora de inglês na Faculdade de Letras, Janice, Teve cinco filhos, dois de Luzinha (José Severo e Madalena) três de Janice, que gostava de ser chamada Nina (Daniel, Paulo e André). O terceiro e o mais feliz dos casamentos foi o último, com uma colega bibliotecária, Maria Teresa. Celestina foi casada com José Martins – um casamento sem descendência. Contudo José tinha filhos de uma outra ligação, que a Tininha, com uma pouco usual (e, por grande parte da família, não muito apreciada) complacência, acolheu como se fossem seus). J AMÉRICO MENDES BARBOZA Dos cinco homens da família, Américo foi o único que sentiu, desde menino, tal como o pai da sua idade, o chamamento religioso. Foi, também, o único monárquico, que acompanhava, ideologicamente, os pais e as três irmãs, Rosaura, Glória e Maria. De Carolina, a mãe, se ignoram, em rigor, as convicções políticas, embora não custe admitir que fosse monárquica, como tendia a ser, nesse tempo, o género feminino. Divididos nas escolhas políticas, mas afetivamente unidos, nunca deixaram que divergências de opinião interferissem na sempre boa relação entre todos. Prova disso é o facto de António, ter sempre encontrado refúgio na Vila Maria, onde a polícia do regime não se lembraria de o procurar, junto da irmã, dirigente local da "Obra das Mães" e de outras obras patrocinadas pelo regime. Às criadas, a avó Maria Aguiar dizia: "Daquele Senhor, que está lá em cima, não se fala a ninguém". E elas não falaram nunca. Ao irmão padre talvez não tenha ele querido recorrer, por razões várias, entre as quais, a vontade de não o comprometer e o desconforto que lhe causaria um ambiente de intensa religiosidade. Na verdade, o Padre Américo Barbosa não era aquele tipo de pároco sociável e folgazão, sempre pronto a aceitar a hospitalidade à volta de uma mesa farta, era exactamente o contrário, muito piedoso e austero, mais pronto à meditação e à oração do que a grandes festanças, mas adorado pelos paroquianos, porque era também, um guia espiritual, amigo e compreensivo, sempre pronto a prestar ajuda e a dar uma palavra solidária. Muito afectuoso, muito ligado à família, visitava os pais, com frequência, esperava, com ansiedade e alegria, as visitas da família, não faltava ao reencontro dos sobrinhos Maria e de António e dos meninos, quando chegavam do Brasil. Era esse o retrato psicológico que dele esquiçavam as irmãs, confirmado em breves menções nas cartas de seu pai. Numa delas, refere a ausência do filho padre, para frequentar um curto retiro na Galiza, porque não havia igual no Porto ou no norte do país. Noutra, com alguma graça, conta que a mãe fora repreende-lo, porque passava tempo demais no desconfortável e gélido confessionário da Igreja. Compreende-se porquê, atendendo ao estado de saúde desse filho, que era muito débil. Sofrera de tuberculose, no princípio do século, resistira a um primeiro contágio, que vitimou a irmã Glória, ambos cuidados, dedicadamente, por Rosaura, Depois, na década de 20, o reaparecimento da doença ser-lhe-ia fatal. Na correspondência do pai muitas das referência visando Américo são a vulgares gripes, constipações, ataques de tosse, que nele faziam recear o pior. Foi pároco em terras do Minho e nos arredores do Porto, Gondalães e Rio Tinto Morreu com aura de santidade, entre os paroquianos, que o invocavam nas suas preces e lhe faziam promessas. Santo, na voz do povo. “Vox populi, vox Dei”! A referência a esse tributo popular passou de geração em geração, no círculo familiar. Uma sobrinha neta que se atreveu a conta-la num colégio de freiras foi chamada a capítulo e proibida de a repetir. A menina não podia obrigar as madres a irem a Gondalães ou Rio Tinto ouvir a voz de paroquianos, pelo que se calou, vencida pelo veto, mas não convencida, no seu íntimo, mais crente no sentir popular do que no preconceito das religiosas… GLÓRIA BARBOSA RAMOS Glória, das filhas de Carolina e Joaquim, a única que quis continuar estudos, no Porto. Os rapazes seguiram, um para o seminário, todos os outros para os colégios da cidade. Não era caminho aberto às raparigas, embora também não lhes fosse interdito. Depois do ciclo primário, podiam limitar-se a ter, em casa, aulas de piano de língua e cultura geral, sem grande rigor ou obrigação e a aprender as artes domésticas de cozinhar e bordar. Glória escolheu continuar o ensino oficial e terminou, com facilidade, o curso do Magistério na Escola Normal, tornando-se a exceção. Contudo, não chegou a exercer o cargo de professora - a tuberculose levou-a aos 21 anos. Do Porto, terá trazido, além do diploma, doença incurável, a tuberculose. Preferiu ficar em casa, não ir para um sanatório de montanha, como quem vai para o exílio. Rosaura, a irmã mais velha, ofereceu-se para a tratar, dia e noite, como trataria, seguidamente, o irmão, o bem-amado Padre Américo Barbosa Ao contrário de Rosaura, a mais recatada e tradicionalista das irmãs, Glória era uma rapariga moderna, de uma formosura exuberante. Não hesitava em passear, na modesta vila de São Cosme, os seus vestidos citadinos, levando com ela, lado a lado, igualmente alta e chique, Maria, e, atrás, consumida e vigilante, a mana mais baixinha e modesta, com nome de heroína de romance. Paravam os moços de Gondomar, espantados para as ver pisar caminhos de terra batida como quem desliza em passadeira vermelha e atiravam às meninas os costumeiros galanteio e gracejos, a, que, às vezes, elas ripostavam (ou melhor, no singular, ripostava Glória, ria Maria, discretamente, e quase chorava a conservadora Rosaurinha, com o despropósito). Seria a jovem professora uma adepta do movimento "feminista"? Não é hipótese que se possa provar, porque morreu antes desse movimento ter ganho visibilidade pública, o que só aconteceu depois de proclamada a República. O mais que se pode dizer é que tinha o perfil e a audácia exigíveis, e convivia, dentro de casa, com as ideias revolucionárias dos irmãos mais velhos. Vai permanecer dúvida. As manas não se lhe assemelhavam e, voluntária ou involuntariamente omitiram a questão que não as interessava especialmente. Apenas contaram que era determinada, inconformista e excelente amazona. E inspirava paixões. Um primo Lobão dedicava-lhe bonitos poemas, supõe-se que fosse correspondido. Um namoro em fase incipiente. São muitas fotografias que dela nos dão uma imagem de autoconfiança e determinação, de alguém que sabe o que quer, e é capaz de aceitar desafios. Se não foi ideologicamente feminista, foi-a na sua prática quotidiana. Apesar de tão cedo ter partido, aos vinte anos, é única mulher da família a figurar na monografia do concelho de Gondomar., Um quadro seu, de grandes dimensões, dominava a galeria dos retratos da Vila Maria. Entre os muitos gestos de voluntária cooperação da avó Maria na vida social da vila, conta-se, curiosamente, o repetido empréstimo desse retrato, para récitas e peças de teatro da Ala Nuno Álvares, como ornamentação de parede das salas de estar de palco. O mesmo acontecia com o piano (incrível a cedência do pesadíssimo piano alemão, "Riese", que fazia o curto trajeto para o Souto em carro de bois, segundo os relatos de Maria Antónia, ela própria executante musical e atriz de várias das comédias, que divertiram a boa sociedade gondomarense. O empréstimo do retrato era, possivelmente, visto por Maria Aguiar, como uma forma de a a fazer presente, de a lembrar, em toda a sua beleza e juventude. ROSAURA BARBOSA RAMOS Rosaura frequentou a escola primária oficial em São Cosme, como as irmãs, depois teve lições particulares. Desses tempos, guardou cadernos de exercício de caligrafia e, também letras e assinaturas bordados em lã e muito graciosas. Ao longo da vida, teve sempre essa virtuosa tendência para conservar coisas - tudo, objectos, cartas, fotografias, loiças e móveis. Talvez por sua influência a sobrinha Maria Antónia, desde cedo, revelou semelhante inclinação A uma e outra se deve a preservação da boa parte do que resta de espólio de documentação sobre a família, assim como mobiliário e louças antigas. Ambas eram, também, grandes contadoras de histórias, mais precisa e minuciosa a tia do que a sobrinha, que muitas vezes se deixava confundir com nomes e graus de parentesco e até misturava mais do que na realidade estavam entrelaçados, os ramos da família. A tia Rozaura, pelo contrário, comprazia-se no detalhe, nunca falhava um pormenor, dando colorido a todas as descrições, fosse dos disparates do Zezinho da Travagem (um primo com deficiências mentais e comportamentais divertidas), quer da sua peregrinação a Lourdes – onde não faltava a tragédia de uma peregrina que se debruçou da janela do comboio e ficou com a cara esfacelada (nunca mais nós, as crianças que escutamos esse episódio de estarrecer, ousámos pôr a nossa cabeça de fora dos limites fosse em que veículo fosse …). Extraordinariamente dotada para delicados trabalhos manuais, rendas e bordados, era perspicaz e inteligente, mas muito discreta, despretensiosa no vestir, e poupada nos gastos consigo e com a casa, o que lhe permitiu resistir, depois de enviuvar, a uma vida de dificuldades económicas, mantendo sempre uma casa confortável, aberta e hospitaleira e uma criada fiel, porque era exímia em ganhar a sua estima (das que conheci, primeiro a Maria Póvoas, durante cerca de trinta anos, e depois a Olívia Pessegueiro, por mais de trinta). Na senda do pai e do irmão Américo, viveu para os outros, como pessoa bondosíssima, sempre pronta a ajudar e a partilhar o que tinha de seu, a casa, os serviços da criada, bons conselhos e até dinheiro. Foi a incansável enfermeira dos dois irmãos, não pode, por fim, evitar o contágio...Ela porém, não ficaria a ser tratada em casa - decisão sua certamente para poupar mais riscos no círculo próximo, no que foi apoiada pelos pais, talvez cada vez mais crentes na solução hospitalar Partiu para o sanatório do Caramulo, onde ficou por muitos e muitos meses. Aí viveria uma grande paixão, com um médico que lhe retribuía os sentimentos, o Dr Manso, ou Amâncio, também ele já afectado pela tuberculose. A doença os reuniu e os acabaria por os separar, porque ela se curou e ele não, pelo menos, nessa fase. A tia Rosaura guardou numa caixinha, atadas com uma fita de seda, as cartas por ele escritas, deixando pedido de que fossem enterradas com ela. E assim seguiram com ela, para o seu jazigo em São Cosme, sem que ninguém ousasse abri-las e lê-las, muito embora fosse grande a tentação de as preservar, e a todas as histórias que continham A Gondomar regressou, pois, saudável, tendo resistido a dietas espantosas, (que incluíam uma dúzia de ovos por dia) e fazendo muitas amigas, sobretudo do sul do país, meninas da alta burguesia, igualmente arrancadas à morte certa pela competência do Dr Manso (ou Amâncio). Com elas se correspondia e, por várias vezes, visitou as melhores amigas nas suas quintas dos arredores de Lisboa. Estava num solar de Benfica, em 1908, aquando do regicídio, e pode assistir, com a anfitriã, às exéquias do Rei D Carlos e do Príncipe Real Luís Filipe, muito loiro no caixão, com os vestígios impossíveis de disfarçar da bala que lhe atravessou a têmpora. Se monárquica já era, mais intransigente se sentiu. Foi reduto em que não conseguiu influencia-la o médico beirão republicano, e amigo de Afonso Costa, que, um dia, lhe apresentara durante um passeio na serra, O político não teve receio de fazer companhia a um seleto grupo de doentes já no bom caminho da cura. Desses passeios frequentes há imagens muito bonitas, junto a quedas de águas, algumas encaixilhadas que, com a exposição à luz chegaram bastante sumidas ao presente. Em nenhuma delas se vê o famoso Afonso. Certo é que a jovem de Gondomar teve no sanatório, numa verdadeira Suíça portuguesa, entre tempos de repouso forçado, uma intensa vida social, de que falava com entusiasmo. Sobreviveu, rija e saudável, até ao ano em que completaria o seu centenário (1979). Casou, anos mais tarde, já com mais de 30 anos, com o simpático viúvo, funcionário da Contrastaria, MANUEL MARQUES. O facto de ter sido o padrinho da Mariazinha é a melhor prova da estima em que tinham os cunhados Do primeiro casamento tinha ele um filho já adulto, Armando, de quem todos gostavam, mas com quem conviviam pouco. Morava, talvez em Braga, de onde, tal como o pai, era natural. De Braga, ficou famosa nos Natais de Gondomar uma receita regional de "formigos" ou “mexidos", doce delicioso, à base de pão, mel, pinhões e passas, que ninguém fazia tão bem como a Tia Rozaura - artista incomparável, tanto na cozinha, como nas rendas e bordados, que saiam das sua mãos. Aos 95 anos, terminou uma enorme colcha em crochet, da mais alta complexidade técnica! - e mais teria empreendido, se as sobrinhas não a dissuadissem, receando pela sua saúde, porque exagerava no andamento do trabalho, com receio de morrer e deixar a obra inacabada... Foi uma velhinha encantadora, com uns olhos vivos e perspicazes, gostava de falar por aforismos e provérbios, e até de usar um "calão" ligeiro, (que escandalizava a irmã e afilhada Maria, incapaz de dizer uma palavra imprópria). Eram radicalmente diferentes, Maria sempre pronta a sair, a passear, a conviver, a liderar iniciativas e a influenciar o seu círculo social, enquanto Rosaura de bom grado se quedava em casa, tricotando, conversando e lendo (sobretudo jornais, analisados de ponta a ponta), vendo televisão, sempre recatada e serena, embora pudesse fazer comentários certeiros e ácidos, a quem, perante ela, caía no ridículo ou a quem conseguia desmascarar jogadas de intriga ou oportunismo. Numa pessoa tão prudente, hábil e sábia se estranha a decisão mais errada que tomou na vida e de que haveria de se arrepender: - um segundo casamento, já quase sexagenária, com um "brasileiro" de torna-viagem. MANUEL LIMA. Revelou-se homem de mau feitio, que a sua serenidade foi suportando, até que se viu viúva, de novo, e em pior situação financeira, depois da dispendiosa doença que levou o falecido. Com muito sentido prático, hábitos antigos de poupança e o apoio de uma criada dedicadíssima, Maria da Conceição Póvoas, atravessou aqueles tempos em que não existia segurança social, vendendo apenas uma pequena quinta, "a Passagem. A quinta, com a sua pequena casa rústica estava arrendada a um caseiro, mas havia uma parte de árvores de fruta que a Tia Rosaura mantinha para si, entre elas nespereiras que davam frutos ainda hoje lembrados como magníficos espécimes. Conservou tudo o resto, as "relíquias de família" - móveis, loiças, relógios, jóias, bordados, linhos e "bibelots" - contando à Maria Antónia, que sendo afilhada do marido era como se fosse sua, e as suas filhas, minha irmã Madalena (Lecas) e eu, o historial de cada objecto. Os meus pais passaram mais de sete anos na Vila Maria, numa parte do primeiro andar da casa (o segundo andar passou a ser ocupado, no fim dos anos quarenta, pela tia Lina e família, que pagavam à mãe uma pequena renda e fizeram obras, retirando à casa de banho um espaço onde construíram a cozinha, ficando, ainda assim, as duas divisões suficientemente amplas), mas uma querela entre a mãe e filha Mariazinha, levou esta a ser, juntamente com toda a família, hóspede da Tia Rosaura, que já estava viúva do segundo marido, e ficou encantada por ter consigo as sobrinhas preferidas. Foram anos, sete ou oito, muito felizes. A Tia Rosaura e a criada Maria adoravam as meninas. A casa da Pedreira tinha um mirante, coberto de Glicínias, com vista para o imponente tanque de pedra retangular, lavandaria coletiva, onde, todos os dias, dezenas de mulheres esfregavam energicamente cestos e cestos de roupa, no meio de grande vozearia. Um espectáculo... O terreno era bastante grande e plano, plantado de flores, videiras e árvores de fruta, pessegueiros, pereiras, laranjeiras e junto ao galinheiro e ao tanque um quadrado relvado, muito próprio para jogos de bola, que muitas vezes ia parar abaixo, ao quintal da Adriana, que a inclinação natural da colina, situava num plano cerca de dois metros abaixo. Recuperá-la implicava negociações difíceis, quando a bola causava estragos. A casa de pedra de pedra com oito divisões amplas, tinha sido originariamente destinada a lavoura. O andar de baixo era de terra batida, e, para a Tia Rosaura, servia só de adega e arrecadação, onde guardava grandes quantidades de carvão e de lenha. O gato da casa era preto e branco, chamava-se Lulu e não apreciava as brincadeiras das crianças, aliás muito amigas de animais. Levámos para lá a nossa cadela Chinita, (pequinois, de raça pura) que teve também um relacionamento distante, mas pacífico com o insondável Lulu. A tia adorava o gatarrão, a nossa cadelinha mansa e as suas galinhas poedeiras. Esses foram, para a Lecas e para mim, os anos de internato no colégio do Sardão e, como, nas férias, passávamos temporadas em Avintes, o verão em Espinho e dividíamos as estadas em Gondomar entre a Pedreira e a Vila Maria (eu, sobretudo, ficava frequentemente com a Avó Maria), a permanência na Pedreira não era constante, mas foi sempre agradável. A tia estava, afectivamente, no mesmo plano da avó Maria e dos avós de Avintes. Em 1958, muito influenciados pelos insistentes pedidos das filhas os meus pais arrendaram, um andar no Porto, na rua Latino Coelho, a dois passos do Colégio da Paz, um externato, onde as meninas deviam continuar como alunas das irmãs Doroteias (só a minha irmã para lá foi, eu escolhi, contra vontade da família, um Liceu, o Rainha Santa, a considerável distância, mas mais a meu gosto). E a situação inverteu-se – foi a Tia Rosaura que passou a vir passar dias de visita ao Porto, e, por fim, porque a idade já era avançada, ficou a morar connosco, ela e a sua criada Olívia. E, quando nos mudámos para Espinho, para um andar bem maior e mais confortável, com varandas para a rua 16 e vista para o mar, ela acompanhou-nos. Consigo trouxe recordações, pertences do maior valor afectivo, e o seu dom de criar bom ambiente e de nos falar de outros tempos. Era difícil arranca-la de dentro de casa. Andou sempre pelo seu pé, mas com crescente dificuldade. Lá dentro, porém, estava a par de tudo, lia os jornais, via televisão até ao fecho da emissão, telefonava à família, interessava-se pelo que acontecia à sua volta, mantinha os olhos muito vivos e a sua memória prodigiosa Custou-lhe, com certeza, muito desfazer a casa da Pedreira, onde tudo tinha o seu lugar, tantas mobílias antigas, de seus pais, que exigiam espaço e pé direito, paredes altas, embora a maior parte tenha transitado para Espinho, para um andar então arrendado para férias. Manteve-a ainda por alguns anos, depois de residir no Porto, fazendo à Pedreira, de vez em quando, romagens de saudade. Em vão o senhorio, desejoso de dar destino mais rentável à propriedade, lhe moveu um processo de despejo. Perdeu a acção. A tia, como associada de uma união de inquilinos, teve direito a advogado e alegou, sem faltar à verdade, que estava ausente no Porto, junto de uma sobrinha, por razões de saúde. Já antes, na década de cinquenta, tinha corrido o risco de perder a casa e, dessa época, há correspondência sua, que revela a sua aflição e o seu completo desânimo. A Câmara ameaçava obrigar à demolição de parte do edifício, para alargamento das vias de acesso, o que podia deixa-la sem teto, se as paredes antigas ruíssem como castelos de cartas. Em qualquer caso, já então o senhorio se mostrava indisponível para custear a reconstrução Os móveis e mais bens poderiam ser facilmente recolhidos nas enormes caves da Vila Maria, mas não era solução que lhe conviesse. A dar bem a medida das diferenças entre a tia Rosaura e a avó Maria, na forma como se organizavam e cuidavam dos seus haveres, desabafa que tudo o que para lá fosse se desperdiçaria, pois a irmã nem as coisas dela conservava, deixava que tudo ao Deus dará - o que não era propriamente um exagero, pois a Avó até pequenos larápios recrutava par o seu serviço, na bela e cristã intenção de os regenerar, é claro, e, uma vez, até encarregou um deles de procurar um valioso brilhante, que se tinha desprendido de um anel, quando manuseara roupas, num dos quartos. Como era previsível, o brilhante nunca mais foi achado… Num dos muitos pequenos bilhetes escrito nesse período agitado à sobrinha Mariazinha, também dá conta de muitos outros desaguisados com a mana (e afilhada), habituada a impor-lhe afazeres, a ela e à sua criada, que tratava como se fosse sua, sem nunca ter a noção dos sacrifícios que Rosaura suportava. E sempre fora assim. Prestável e disponível, em excesso, chegou ao ponto de lhe exigirem o impossível… Mas teve a compensação de um fim de vida confortável e despreocupado junto da sobrinha que a tratou como sua mãe, e com isso se limitou a retribuir o que dela tinha recebido GLÓRIA BARBOSA RAMOS FALTA O INÍCIO Glória foi a única das filhas de Carolina e Joaquim, que se aventurou a viver fora de casa para, no Porto, onde concluiu, com facilidade, o curso do Magistério Primário. Dos rapazes se esperava que terminassem o liceu, frequentados bons colégios, (ou, no caso de um deles, Américo, o seu equivalente no seminário), seguindo, eventualmente, para a universidade, onde só o mais novo, José, se formaria, em Direito. Para as meninas, o ensino oficial era facultativo. Depois de terminada a primária, podiam ficar em casa, com aulas particulares de piano, de línguas, de cultura geral, sem grande rigor ou obrigação, e aprendiam, sim, o que se considerava primordial, as artes domésticas de cozinhar e bordar. Mas a impressão que se insinuava no tom das narrativas tanto da avó Maria como da sua irmã Rosaura, era a de um ambiente familiar bastante conservador nos valores, mas muito aberto no relacionamento entre as gerações, os pais confiantes nas escolhas individuais dos filhos. Não há o mais leve indício de que tenham contrariado noivados ou casamentos, influenciados opções profissionais, criado conflitos ou feito oposição à diversidade de posicionamentos políticos. Glória pretendeu fazer estudos no Porto e foi encorajada e admirada por isso, mas não sentia grande queda para o ensino, segundo o testemunho de Rosaura, nunca quis procurar colocação, terá buscado, sobretudo, uma forma de aprendizagem de conhecimentos e de vivência em horizontes mais largos. Distinguia-se pelo seu espírito forte, independente, interventivo, era uma hábil cavaleira, gostava de cavalgar a égua do pai (que ele mantinha não tanto por desporto, mas para se deslocar em serviço, num concelho vasto, como é o de Gondomar). A tragédia da sua morte abalou a família profundamente e foi muito sentida na vila. Para além de ser a bonita filha do prestigiado tabelião e de gente com tradições na terra, brilhava com luz própria. Chegou às páginas da imprensa gondomarense, guardadas cuidadosamente, embora sem datas precisas, nem indicação do título do jornal. "Gondomar, 25 - Falleceu hontem, na primavera da vida, quando tudo lhe sorria, com a idade de 21 anos, a Srª D. Glória Mendes Barbosa, gentil e adorada filha do digno tabelião deste concelho Sr Joaquim Mendes Barbosa. Era uma menina simpática, prendada e de finas qualidades de educação. Aos seus pais, que a adoravam, e aos irmãos Alexandre Mendes Barbosa, secretário da administração deste Concelho e Américo Barbosa, abbade de Gondalães e à restante família enlutada os nosso profundos sentimentos. O seu enterro realiza-se amanhã, à 9.00, na Paroquial igreja de Gondomar". A mais destemida e a mais culta das raparigas, terá sido, realmente, especial - "adorada", como diz e repete o periodista. Mulher pensante e atuante, querida de todos. Fora o centro de um grupo alegre de jovens, de que os irmãos faziam parte. Um seleto círculo, ou, como diriam então, "a fina flor” da terra. Ao primo Lobão, que era o seu namorado, inspirou poemas lindos, que se perderam. O seu retrato estava num lugar destacado, nas paredes das casas de todos os irmãos. E, como pioneira que foi, tem o seu nome inscrito e destacado na monografia do concelho de Gondomar. De nenhuma outra mulher da família, no seu tempo ou no que a antecedeu, se pode dizer o mesmo. MARIA DA CONCEIÇÃO Maria, em criança, parecia a mais frágil das meninas, mas estava destinada a ter uma vida longa, um marido apaixonado e oito filhos num casamento muito feliz, durante os 16 anos que durou, e, depois, um notável percurso de intervenção cívica. Também ela fez jus a figurar nos anais da Vila. A Senhora Dona Maria Aguiar era conhecida e reconhecida em todo o Gondomar, por si própria, pela sua incansável acção na paróquia e na comunidade – ainda que com o apelido do marido fielmente adotado e mantido. Coisa rara, pois as senhoras, eram identificadas, quase sempre, apenas, como "mulheres dos seus maridos". ou "mães dos seus filhos", até nas notícias de jornal, nas colunas sociais. Assim vemos referida, por exemplo a bisavó Carolina, a propósito de uma simples festa: "Passou no último domingo o aniversário natalício da Srº D. Carolina Ramos Barbosa, esposa do estimado e bemquisto notário local, Sr Joaquim Mendes Barbosa. Por esse motivo vieram a esta vila seu filho, Sr Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e ilustre director e proprietário do semanário local "O Progresso de Gondomar" e o Sr Deolindo Oliveira, collaborador do mesmo periódico". A formatura desse filho José merecera, aliás, pouco antes, destaque semelhante. "Estiveram domingo último nesta vila os nossos conterrâneos Camilo Martins de Oliveira, António Barbosa, Thomaz Pessoa e César de Moura, do Porto, que vieram assistir a um lauto jantar "offerecido, pelo novo bacharel dr José Barbosa Ramos, festejando a conclusão recente da sua formatura em direito. Escusado será dizermos que o jantar decorreu no meio da mais franca e eloquente cordialidade e com immenso enthusiasmo. Ao jantar, além dos cavalheiros citados assistiu a família do novo bacharel, que partilhou a alegria da festa. Assistiu mais ao jantar o nosso patrício António Pereira de Aguiar, antigo companheiro da vida escolar do sr dr José ramos Barbosa". A pequena notícia oferece-nos o colorido da celebração de um feito, então, relativamente raro, como era uma formatura coimbrã... De menor interesse etnográfico, mas muito mais interessante para a reconstituição do mosaico de relacionamentos familiares é o facto de salientar a presença de um ilustre "patrício" (forma, porventura, de designar, um expatriado no Brasil...) António Aguiar, que tinha sido companheiro de escola do novo jurista. Um dado novo, que nos mostra como, já então, o jovem emigrante no Rio e futuro marido de Maria, era considerado figura grada da vila e nela mantinha, em visitas frequentes, uma rede de contactos com pessoas e instituições. Maria casaria com ele, já homem de posses e cultura acima da média, nas vésperas da revolução republicana e, antes e durante o período do casamento, também ela seria referenciada apenas como a sua mulher. O mais curioso é que também ela falava de si quase só a partir da data em que conheceu o marido. Dos 20 anos anteriores dava, “em passant”, uma imagem de pintura impressionista, traçada a cores suaves, sem um enfoque em episódios particulares. Infância feliz, pais que se entenderam bem e se completavam, com a grande diferença de temperamentos, mas não de caráter, a imperial matriarca Carolina e o complacente Joaquim, tão sensato e afectivo e tão culto, ambos bons educadores, sem precisarem de se impor intransigentemente, sobretudo com a mais pequenina, Maria. Talvez a preferida fosse a estrela mais brilhante, Glória, a que não obstante ser Rosaura a sua madrinha, mais a influenciava, mas o ambiente em que cresceram não criou entre eles conflitos nem pequenas rivalidades. Teria havido, sim, sintonias especiais, entre a avó Maria e sua mãe, entre Rosaura e seu pai. Feitios mais consonantes, apenas isso. Desde cedo, a pequena Maria revelou tendência para a música e para a poesia, gosto certamente muito estimulado pelo pai, que era com certeza a orientava, como a todos os outros, nas leituras e os levava ao teatro e a concertos em Gondomar e, talvez, de longe a longe, ao Porto. Pela correspondência que, mais tarde, manteria com a filha, ausente no Brasil, se vê que não faltava a nada do que animava a vida social da terra e, se assim era em idade já avançada, assim teria sido evidentemente quando mais novo. A mãe, que escrevia fluentemente, mesmo com a sua letra de velhinha (num tom tendencialmente mais pessimista do que o do marido, mais voltada para mágoas e doenças) terá complementado o pendor intectual da educação paterna, no reino feminino das faculdades domésticas, fazendo de Rosaura e Maria, verdadeiras mestras de rendas, bordados e de segredos culinários, Por muito que ensinassem às criadas, ninguém sabia fazer compotas de chila ou de cerejas, ou o recheio do perú de Natal, como a avó Maria. No verão passavam algum tempo na Foz, nas caldas de Vizela, nas terras onde paroquava o filho Américo, Dos alegres convívios com parentes e amigos, falam, exuberantemente, pela força da imagem, algumas fotografias do início do século XX, e de pretendentes (para além do primo visconde), a carta de uma prima, em tom cúmplice e juvenil, referindo um apaixonado que queria muito revê-la, mas tarde demais, num tempo em que ela já estava voltada para mais distantes horizontes. E é só a partir de 1908 que os seus postais para o bem-amado António Carlos no-la dão a conhecer, na sua faceta de jovem romântica, citando ou elaborando doutas sentenças sobre as virtudes do amor.

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