quarta-feira, 8 de novembro de 2023

MARIA LAMAS

Maria Lamas é uma mulher verdadeiramente intemporal, que tem um lugar ímpar na história portuguesa do jornalismo e das Letras, do movimento feminista em meados de novecentos, e da luta contra a violência de uma longa ditadura. Foi protagonista maior, em todos estes domínios, senhora de um destino extraordinário, num dado tempo, particularmente ingrato, que, sobretudo por ser mulher, a obrigou a vencer mil obstáculos, preconceitos misóginos e perseguições da polícia política. Figura intemporal, antes de mais, como paradigma de cidadania vivida audaciosa e apaixonadamente, com uma visão clara do devir português, uma crença na força criativa e subversiva das mulheres para mudar o velha Ordem, e o velho mundo anacrónico do chamado “Estado Novo”, sempre numa atitude coerente de generosidade. Nascida ainda no século XIX, foi aluna do “Colégio das Teresianas Jesus, Maria e José”, estudando num ambiente religioso, onde se sentia bem integrada, e onde cedo terá despontado o sentido de missão, que, mais tarde, alargando horizontes com projetos de carreira profissional e de intervenção cívica, se consumou no humanismo laico e fraternalista com que fez percurso, num combate sem fim pela justiça, pela igualdade e pela paz. Casou aos 18 anos, com um republicano, Oficial de Cavalaria, e com ele viveu três anos em Angola. No regresso a Torres Novas, ainda muito jovem , já vislumbramos, em iniciativas meritórias, a militante de ideias e causas que não tardaria a revelar-se plenamente: é voluntária da Cruz Vermelha, organiza saraus de beneficência para ajudar famílias dos soldados, publica na imprensa local artigos sobre a guerra (a 1ª Grande Guerra). Aos 26 anos, depois do divórcio – que, à época, era visto como um ato de rebeldia ou de afrontamento dos "bons costumes", de submissão feminina – fixa-se em Lisboa e torna-se pioneira no jornalismo, que era ofício de homens. Trabalha, primeiro, em “A Capital”, depois no grupo editorial de “O Século”, dirigindo, durante muitos anos, a revista feminina “Modas e Bordados” – o mais improvável dos instrumentos para empreender o que ousou: promover uma revolução de mentalidades, mobilizar as jovens da sua geração para a vivência cidadã e profissional. Usa o seu habilmente para aconselhamento, um “correio de leitoras”, que, é, para ela, um posto de observação e lhe permite a tomada de consciência dos problemas e dilemas de mulheres de todas as idades. A sua obra mais emblemática, que podemos classificar como “monumental”, " As Mulheres do meu País”, terá tido aí a sua pré-história. É nesta sua forma de dar concretização pragmática e eficiente aos valores e ideais que a norteiam, e numa rara capacidade de realizar coisas grandes com meios parcos e banais, persistência e incomparável brilho, que Maria Lamas me parece singularmente inspiradora, hoje e em qualquer época. O “correio” da popular revista feminina teve um enorme impacto, o mesmo se podendo dizer de grandiosas exposições que, sob o patrocínio de “O Século”, organizou, para dar do papel mulher sua contemporânea, em diversas sociedades, domínios e circunstâncias, uuma visão dignificante e mobilizadora, confirmada por factos e por feitos, com que desmentia, categoricamente, a ideologia misógina e opressiva do salazarismo - a última das quais, patenteando obras de mulheres escritoras de todo o mundo, lhe custou o emprego, uma sólida carreira e, até, a segurança pessoal. Daí em diante, Seria alvo de repetidos atos persecutórios do regime, que queria bani-la, implacavelmente, do espaço público. Em tempo de repressão e declínio do primeiro movimento feminista português, foi ela a última presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, expressão máxima desse associativismo revolucionário, que começara com Adelaide Cabete, nos primórdios da República. Um Decreto do Governador Civil de Lisboa extinguiu o CNMP, sem conseguir, contudo, silencia-la, ou erradicar os seus ideais de igualdade, (que, a par de algumas, poucas companheiras, encarnou, durante o interregno que iria até à formação da segunda vaga do movimento feminista, na década portuguesa de setenta) . Maria Lamas estava, então, divorciada do segundo marido, o jornalista monárquico Alfredo da Cunha Lamas, tinha as filhas a cargo, dependia de si e do seu trabalho... Não se deixou abater - pelo contrário, recomeçou, com redobrado ânimo, um solitário e fecundo exercício de jornalismo de investigação, abraçando desafios cada vez maiores. Munida de uma máquina fotográfica, papel e caneta foi, pelo país adentro, em toda a espécie de deficientes meios detransporte, recolher depoimentos e testemunhos de mulheres de todos os misteres e condições, até às aldeias mais remotas e inacessíveis. Deu-lhes, livremente, voz e visibilidade num retrato coletivo, de alta precisão, de incomensurável valor humano, literário e científico. Uma obra prima do jornalismo português, que é também, um grito de revolta contra a exploração económica, a pobreza, quando não miséria, o confinamento de horizontes, num todo em que a metade feminina era duplamente vítima de subjugação. Maria Lamas viveu, assim, corajosamente, nas décadas seguintes, sem ceder, ativista dos Direitos Humanos, tão eficaz a usar a escrita, como a recorrer à ação concreta. E não menos admirável foi na sua veste privada! Sozinha educou as filhas, influenciou e cativou as netas, os netos, através de cujos testemunhos sobre a “Avó Maria”, ficamos a conhecer melhor o seu encanto como pessoa, a sua irradiante beleza de rosto e de espírito, o temperamento afável e bondoso, a constante dedicação aos que tratava como família, num círculo que se ia alargando. Durante os anos de exílio, em Paris, tornou-se a "Avó Maria" de um sem número de expatriados, que nela encontravam, invariavelmente, amizade e apoio. À terra voltou para gozar os seus últimos anos na democracia que ajudou a refundar. Ainda lúcida, combativa, carismática, aberta à modernidade! Ao Estado coube atribuir-lhe, como não podia deixar de ser, a Ordem da Liberdade. Aos Portugueses, em cada nova geração, cabe guardar a memória do exemplo de vida que legou às "Mulheres (e aos Homens) do seu País".

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