domingo, 18 de março de 2018

LEMBRANDO MÁRIO LAGES

Com que satisfação dou a minha pequena contribuição para este livro, que é um ponto de encontro das memórias de cada um de nós sobre histórias passadas com Mário Lages. Um livro que é, assim, uma "viagem de descoberta" de um ser humano admirável, dotado de muitos e variados talentos, alguns insuspeitados...Em cada depoimento esperamos surpresas, sempre boas, porque há na sua vida uma essencial coerência de ideias e de ações. Homem de causas e, igualmente, de imensa energia e generosidade concreta. Comunicativo, alegre e cheio de sentido de humor, embora muito discreto. Um militante do humanismo no quotidiano, um cristão verdadeiro, de quem, depois de partir do nosso convívio, poderemos, em definitivo, dizer que "passou por esta terra fazendo o bem" Conheci-o há quase 50 anos, na Casa de Portugal da Cidade Universitária de Paris. no início do ano académico, que se seguia a maio 68. Tornou-se, desde então, a figura central de um grupo de jovens portugueses, (estudantes, bolseiros, investigadores em diferentes áreas , quase todos a viverem uma primeira experiência fora do país), graças a um dom natural de convivialidade, ao seu gosto de partilha, que começava na partilha de informações utilíssimas - sobre como lidar com a burocracia local, onde obter livros com descontos para estudantes, onde fazer refeições económicas fora do perímetro da "Cité"... Mas também partilha de ideias, de preocupações sociais, de envolvência cívica. Os ventos políticos que agitavam a França e Portugal, embora de origem e direção diversa, convidavam igualmente à participação. Um duplo convite a que dissemos "sim". Resolvemos começar ali mesmo, na Casa de Portugal - com eleições, naturalmente! Uma das regras inovadoras que maio de 68 tinha imposto na "Cité", era o "droit d' affichage" - um passo largo no sentido da co-gestão.... No exercício desse direito, sem consulta ou pedido de autorização ao Diretor da Casa (que, nessa altura, pertencia à Fundação Gulbenkian), afixámos a respetiva convocatória, apresentámos listas, realizámos e vencemos o ato eleitoral. Digo "nós", porque estive entre os proponentes, juntamente com Mário Lajes e muitos dos que constituiriam o grupo de amigos, que se consolidou a partir daí, e ainda existe. Não me recordo já dos nomes que compunham essa lista, para além do presidente da assembleia de estudantes, o Luís Galvão Teles. O desenlace eleitoral não agradou ao Diretor que o contestou, de imediato, afixando um aviso em que acusava "uma trintena de residentes" de terem desencadeado aquele processo, à margem dos estatutos da instituição. Pas de "droit d' afichage"! O ato eleitoral foi repetido, nós afastámo-nos, de vez, desse campo de ensaio democrático incompleto, não guardando da contenda mágoas ou ressentimentos, mas apenas o rótulo de "católicos progressistas" e a vontade de assumir essa pertença. Passámos, sem mais, à preparação de combates futuros, pelo debate e reflexão no interior do grupo e, o que não foi menos importante, pelo ameno e constante convívio, em que se teceram laços de afecto indestrutíveis. Gostei de saber, agora, há pouco, por acaso, em conversa, que também Mário Lages falava sempre dessa estada na " Cité", como um tempo muito feliz. Qual de nós não diz o mesmo? Tudo, então, era pretexto para festas e celebrações - os aniversários, por exemplo. Uma trintena de aniversários! Nos tempos livres, visitávamos catedrais e museus, frequentávamos cinemas, livrarias, cafés, sobretudo no "Quartier Latin", e discorríamos sobre mil e um assuntos, infindavelmente! E, assim, nesta perfeita junção das vertentes de tertúlia e de reflexão cívica se construiu uma comunidade coesa, em terra estrangeira, como tantas outras em que os expatriados recriam um espaço nacional, sem rejeição do que o circunda - emigrantes "temporários", com uma situação bem diferente da maioria dos trabalhadores portugueses que, em massa, demandavam Paris, mas nem por isso inibidos de exprimir, do mesmo modo, a solidariedade entre pessoas na adaptação a um mundo novo. Compartilhávamos valores, saberes, lazer, como uma grande família no interior de um lugar pequeno - como numa aldeia portuguesa em que todos são parentes, para não dizer "como numa república de Coimbra", porque acho que nos faltava completamente o toque boémio. Com as nossas diferenças, mas sem conflitos, nem cisões, entre iguais, porque havia uma liderança espontânea, não imposta, não declarada e nem sequer assumida, e, nem por isso, menos decisiva. Responsável, em primeira linha, pela harmonia reinante foi a personalidade de Mário Lages. Disponibilidade constante, simpatia, e bom senso, conselho dado de um modo simples e direto, faziam dele um improvável, até porque involuntário, mas autêntico "primus inter pares". Era sensível aos problemas de cada um, com a perfeita inteligência das situações e das pessoas. Um Homem de Ciência, ou melhor, no plural, de ciências - teologia, sociologia, etnografia... - . já com um brilhante doutoramento em Roma e outro em curso, ali, em Paris. Um Homem voltado para as Artes, a escrita, a música (cantava, tocava órgão e outros instrumentos), a fotografia. Um amador de todas estas e de outras Artes, exímio em tudo o que empreendia, facilmente superando os profissionais. Foi ele quem, na altura, fotografou as telas de Nadir Afonso para uma sumptuosa edição das suas obras. Nadir, outro inesquecível personagem da Casa de Portugal, em fins da década da década mítica de sessenta Um génio da pintura, com um esfuziante sentido de humor, faceta que o terá aproximado de Mário Lages. Tenho pena de não ter gravado os divertidíssimos momentos que passei a ouvi-los... Com Nadir não tínhamos contacto diário, tal como com outros amigos que moravam fora da "Cité", mas que nos faziam visitas muito apreciadas e se integravam perfeitamente no nosso círculo de conversação, como o Padre Januário Torgal Ferreira (trazido pelo Mário) ou o Alfredo de Sousa, compadre da Eduarda Cruzeiro. Ainda sobre o tema fotografia, devo acrescentar que Mário Lages não se limitava a tirar retratos com uma máquina "topo de gama", pois se comprazia a completar o ciclo criativo, revelando as suas próprias fotos, num pequeno laboratório de uma das residências bem perto da nossa - não me lembro exatamente qual (a da Suiça, suponho). Sempre pronto a ensinar, convidou-nos para uma espécie de curso prático e logo viu crescer o número de discípulos aplicados, entre os quais me contava. Os meus álbuns ainda hoje exibem algumas dessas fotos, em muito bom estado de conservação, sinal da competência do mestre. Outro terreno em que se distinguiu: o automobilismo, condução, corridas! Ao volante transformava-se por completo, como pudemos testemunhar depois que comprou um Austin mini. O tranquilo e erudito professor que media as palavras e não era dado a qualquer tipo de radicalismo, abria aqui uma exceção e fazia autênticos ralis, por entre as filas de trânsito parisiense, onde vale (quase) tudo, inclusive ultrapassar pela esquerda e pela direita. Ninguém o conseguia seguir. Era normal tomar a dianteira e desaparecer lá à frente, num ápice. Por isso, nos passeios dominicais, em excursão de várias viaturas, traçávamos um plano prévio, com, paragens e destino final pré- definidos... E uma vez em que não o fizemos, em viagem para Portugal, no verão de 1969, perdemo-lo praticamente à saída da "Cité" , no "péripherique", para nunca mais o vermos. Ia eu no Volkswagen da Eduarda Cruzeiro, (por acaso, também excelente condutora, mas não tanto!) e ela, quase até chegar à fronteira portuguesa, insistia em almoçarmos em esplanadas junto à estrada, na esperança de o reencontrar, com o seu "equipa". Esperança vã, antes da invenção do telemóvel Aliás, as peripécias com o famoso "mini" começaram cedo, na "rodagem", completada numa ida e volta a Amsterdão (1000 km de boa estrada plana). Chegado à chamada Veneza do norte, com dois ou três colegas, decidiu estacionar junto ao primeiro canal que lhes oferecia uma vista pitoresca e aparentemente singular. Daí, seguiram todos a pé para o centro, onde jantaram. Pelo caminho, atravessaram pontes, trechos parecidos, mas isso não os preocupou. O problema surgiu, na hora do regresso, para localizar o "mini", numa densa rede de canais, excessivamente semelhantes na sua beleza pitoresca. Foram horas de deambulação... Depois, em Paris, não raramente, à noite, quando a visibilidade o permitia, passava sinais vermelhos - o que os franceses designam, aliás benignamente, por "bruler les rouges". Era rápido e ágil na argumentação e na condução automóvel, como no desporto, que praticávamos, quando as condições meteorológicas deixavam, nos campos de jogos situados convenientemente em frente à Casa de Portugal. Os relvados que a separam da vizinha Casa do Brasil eram um espaço tranquilo, onde descansávamos dos exercícios atléticos, ou, onde, em dias de sol, nos sentávamos à conversa, após tomarmos um cafezinho brasileiro. Mas café ótimo, delicioso era o que Mário nos brindava, muitas vezes. Café arménio, que ele sabia preparar a preceito, numa cafeteira própria, de metal, com uma base larga, remexendo o pó na água fervente. Como eu era a maior apreciadora dessa bebida exótica (em que o líquido se mistura com o pó, quando não o deixamos assentar), deu -me uma cafeteira igualzinha à sua, que eu conservo como inestimável lembrança de animadíssimas discussões "à volta de uma chávena de café" -muito embora não saiba usá-la. Aquele café oriental era uma raridade, sem dúvida, e, sobretudo, era mais uma evidência de como o nosso Amigo passava dos estudos arménios ao relacionamento fraterno com pessoas concretas e adotava, desenvolto, os seus costumes. Tinha colegas arménios, de quem falava com entusiasmo, do mesmo modo que nos descrevia avanços na investigação académica. A típica cafeteira não seria o único presente que dele recebi. Os outros foram livros, a que dei muito frequente utilização. " Le Nouveau Testament", traduzido para o francês, sob a direção da Escola Bíblica de Jerusalém (na sequência de muitas conversas sobre religião - no meu caso, então, realmente, em busca de respostas para uma crise de fé...), um álbum de arte africana, "um pocket book" de PG Wodehouse, por sinal um dos mais hilariantes da série de Blandings Castle (PG tornar-se-ia o meu autor favorito!) e, por fim, o seu ensaio etnológico sobre "Vida/Morte e Diafania do Mundo na História da Carochinha", que é absolutamente fascinante, tanto do ponto de vista científico como literário. Livros que abrem horizontes. Uma das grandes missões da sua vida... Tantas e tão boas recordações! Hoje também já o é a única que podia não ter sido: um 14 de julho, que comemorávamos pacificamente numa esplanada do "Quartier", De repente, sem razão aparente, eis que irrompe a polícia no alto da rua, que era íngreme e estreita, varrendo os turistas à bastonada! Logo se formou um tropel de criaturas vindas de os lados, ruela abaixo, em que ficámos irremediavelmente separados uns dos outros. A Eduarda e eu conseguimos correr no pelotão da frente e, ao virar de uma esquina, entrámos por um portão, que estava oportunamente aberto, e fomos recolhidas, com palavras amáveis dos donos da casa (pareciam-nos gente muito habituada a recolher passantes em fuga). Foi, pois, com eles, que, do alto de uma janela, assistimos à cena de inusitada violência de que foram vítimas alguns dos nossos queridos compatriotas, entre eles, o Mário. Um susto enorme, que se saldou, do mal, o menos, apenas nuns "galos" na cabeça de respeitáveis cidadãos. Foi o mais próximo que eu estive de uma das "bagarres" do pós Maio 68, numa França ainda não recomposta de múltiplas formas de sobressalto. Regressados a Portugal, tentámos lutar contra a dispersão na geografia lisboeta, continuámos a reunir, com frequência, por alguns anos. Contudo, no meu caso, (como no de outros), as ocupações, as ausências constantes de Lisboa, do país, levaram-me a perder a ligação assídua com "o meu grupo de Paris", durante mais de três décadas. A data da homenagem prestada a Mário Lages, aquando da sua jubilação, que foi s jeguida de um jantar de homenagem em que o reencontrei assim como à Luísa e ao António e conheci a Ana Costa Lopes (rimos tanto, que me parecia estar de volta a Paris, à "Cité", à nossa cidade dentro da cidade !). Recomecei a participar em convívios, já não de uma "trintena", mas de uma dezena de bons amigos. Reatámos o diálogo, à volta do Mário, como nos velhos tempos, como se não tivesse havido hiatos. Com o mesmo contentamento, a mesma espontaneidade. Acho que só não esculpimos um boneco de neve e não arremessamos bolas de neve uns aos outros, porque nos faltava a matéria prima... Tão iguais ao que fomos, apesar dos cabelos brancos. Os verdadeiros amigos têm, sempre, a idade com que os conhecemos. E, para nós, nunca morrem. Maria Manuela Aguiar

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