sábado, 1 de agosto de 2020

BIOG

1 -INFÂNCIA_ ADOLESCÊNCIA

Tive uma infância muito feliz. Tudo corria bem. Gostava do meu mundo, que eram casas grandes, corredores compridos, quintais e jardins cheios de recantos convidativos para constantes correrias e diversões. (As casas da Avó Maria e da Tia Rozaura, em Gondomar e
dos Avós paternos em Avintes). Havia árvores, cães, gatos, flores. E, sobretudo, o mundo estava de bem comigo, porque todos tinham paciência para me aturar, apesar de me manter sempre vertiginosamente em movimento, de fazer muitas asneiras, muitas perguntas, e de contar histórias inverosímeis.
Foi a minha época de ouro! Achavam-me precoce e engraçada e, por isso, assim eu me considerava. Tinha uma autoconfiança ilimitada e indestrutível, sentia-me o centro daquele mundo perfeito e divertido. O pior era a noite, porque me obrigavam a deitar cedo e eu achava que dormir era um desperdício.
Imparável no ambiente doméstico, tornava-me um modelo de bom comportamento quando se tratava de passear, de carro, aos fins- de-semana. Os pais levavam-me com eles, à cautela, nessas excursões familiares, com muitos tios e primos, numa fila de vários carros, quase sempre por terras do Minho, ... Com a Avó Maria ia muitas vezes ao Porto, lanchar à Confeitaria Villares, depois de ela comprar coisas várias em Santa Catarina e Sá da Bandeira (para mim brinquedos, que pedia, sem insistir demais...), com o Avô Manuel, desde os 5 ou 6 anos de idade, aos teatros e aos cinemas do Porto (os filmes de que ele e eu apreciávamos, nada de desenhos animados ou outras infantilidades...). Com o Pai, um pouco mais tarde, aos 9, 10 anos, frequentava, como sócia do FCP, quinzenalmente, o Estádio das Antas(estive na inauguração, vi jogar o Barrigana, o Virgílio, o Carvalho...).
A escola foi uma outra experiência bem sucedida e esperada impacientemente. Nascida no mês de Junho, não me deixaram principiar a escolaridade com 6 anos, em Outubro de 1948. A regra era os 7 anos e a minha mãe - que acabava por mandar mais do que o resto da família... - achou que era melhor não tentar abrir excepções. Mas eu estava cheia de pressa de aprender. Ir para as aulas, decifrar o mistério da escrita (e apenas um pouco menos o da matemática) foi um verdadeiro prazer! Comecei na Escola do Crasto, em Gondomar. Na 2º classe, depois de uma passagem curta pela escola da Rua 23 em Espinho (porque os pais decidiram prolongar a época de férias, sempre passadas na praia) fui uma aluna aplicada e feliz na Escola do
Magarão em Avintes. A partir da 3ª classe, e durante sete longos anos lectivos, eis-me aluna interna do Colégio do Sardão, em Gaia, onde fui uma "recruta" forçada, a cumprir uma espécie de serviço militar obrigatório. Num elegante "quartel" de Doroteias. A minha irmã também lá andava e contente da vida... O problema não era do colégio, a muitos títulos excelente, sem dúvida. O problema era meu - sentia-me enclausurada.
Apesar disso também lá se sucederam os momentos bons. Depressa me integrei, tirando partido das facilidades para praticar desporto, que era aquilo de que mais gostava - volei, andebol, até futebol (clandestinamente, porque era considerado modalidade imprópria para meninas). Tinha nota alta a tudo, excepto a “comportamento”. Estive perto de ser expulsa, por ter escrito uma crónica jocosa da vida colegial. Cheguei a ser suspensa, mas venceu a facção das Doroteias que me compreendiam e apoiavam (a ser expulsa não estaria a abrir precedentes na família, porque dois irmãos da minha mãe, mais exactamente, um irmão e uma irmã já tinham tido essa sorte, ela também por delitos de escrita, ele porque fez explodir o laboratório de química). De qualquer maneira, terminado o 5º ano (agora 9º), saí, de vez, como queria, para o Liceu Rainha Santa Isabel, no Porto, onde fui incrivelmente afortunada - até recebi o "prémio nacional" no fim do 7º ano (chamado curso complementar do liceu, não era?) e, com os premiados dos outros liceus do país, ganhei, como "extra", uma viagem emgrupo ao norte de África, Ceuta, Tânger, Alcácer-Kibir, porque estávamos em 1960, ano de comemorações Henriquinas.
Mas este tempo de adolescência é bem mais difícil de definir claramente, em termos de felicidade de alma, porque foi feito de mais contrastes, de muito mais incertezas, muito mais descontentamento, melancolia, rebeldia... O que se explica, em parte, por causas exteriores, a começar pelo internato no Sardão, mas também por estados de alma subjectivíssimos. Foi a altura de escrever versos tristes, e de olhar com pessimismo o meu futuro, sobretudo o académico (o pavor que tinha dos exames, sempre convencida que se aproximava a hora do um fracasso, que, todavia, nunca aconteceria!). Fora dos círculos da família e amigos, onde mantinha intacta a antiga exuberância, tornara-me uma adolescente mais ou menos tímida e instável. Estranha metamorfose, que não atingiu, porém, outros traços de temperamento que suponho inatos, como a combatividade (quando surge o desafio ou a crise), o gosto pelo movimento constante, físico e mental, o entusiasmo por certas ideais ou actividades - "maxime", o desporto!
Recordo, por exemplo, tanto o delírio vivido nas Antas, ao lado do meu pai, com o 1º campeonato ganho pelo FCP (desde o meu nascimento...), como, pela negativa, o ano em que uma das Tias (a que fora expulsa do colégio…) mandou para o director da revista "Modas e Bordados" um dos meus sonetos, que foi publicado, com foto e tudo, em pleno verão (de 55?). Estava em Espinho. As amigas da mãe todas me vinham dar os parabéns e eu ficava envergonhadíssima, queria desaparecer dali para um deserto, por milagre...
Muito desse desconforto de crescimento iria lançar as mesmas sombras ao longo da juventude, dos 5 anos de Coimbra, na Faculdade de Direito. O mesmo pavor, a mesma absoluta falta de confiança em mim, em cada uma das escritas e das orais, que tive de fazer. Tanto "stress" para nada, a entravar o gosto genuíno pelas matérias... Correu tudo, finalmente, bem, não valeu a pena o sofrimento. Nunca consegui mudar este quadro psicológico... Ficam dessa época, grandes amizades e o primeiro namoro longo - 5 anos - que acabou em casamento (breve, outros 5 anos, e o casamento é suposto, ao contrário do namoro, ser para sempre). No conjunto, uma década, que não deixou mal-estar. Nem havia razão para tanto. Desajustamento de feitios e de modos de praticar a “fidelidade” rigorosa…. Ficamos bons amigos, e ele como amigo não tem defeitos. (de mim dirá ele outro tanto…).
Esse jovem, mais ou menos da mesma idade, era colega de curso e uma fonte de preocupações suplementar, porque também achava que ele ia chumbar sistematicamente (não foi o caso, apenas um ou dois desaires, o que não foi mau de todo, atendendo ao pouco que estudava , devido às muitas actividades extra-escolares, CADC, Cinema…- o curso dele deu-me mais trabalho do que o meu!...).
Em fins de 64, quando entrava na última etapa do curso, aconteceu-me o que mudou definitivamente a forma como encarava e queria o futuro: a morte, para mim tão inesperada, da minha única irmã, com apenas 20 anos. (ela estava doente, mas há tanto tempo, e tinha tanto ânimo... eu não acreditava que ela estivesse em perigo). A partir daí, nada mais foi tão importante como dantes. A vontade de andar à frente, a extrema competitividade, que era uma imagem de marca, deixou de ter verdadeira correspondência na realidade. Pode até parecer que não, porque sou sempre muito "reactiva". Mas é coisa epidérmica, questão de hábito, de feitio. Ou de princípios... frequentemente reacção "feminista" num mundo onde as mulheres continuam a ser o 2º sexo. Este é um domínio onde estive e, se for preciso, ainda estou em pé de guerra.
Já em criança, com 5 ou 6 anos, quando me proibiam uma brincadeira, porque não era "própria para uma menina", eu desobedecia de imediato e mostrava que era tão capaz de a executar a brincadeira como qualquer rapaz. Quando necessário, desobedecia clandestinamente. Assim joguei futebol na rua com os miúdos de Gondomar (graças a um primo, que era "craque" e que garantia a minha capacidade de resistência, vencendo preconceitos - foi obra, porque isto aconteceu há 60 anos...). Assim saltava e descia dos carros eléctricos, em andamento, a caminho da escola... Só me surpreende nunca ter sido denunciada à Avó Maria por algum pressuroso vizinho. Acho que não fui, porque se fosse não me deixariam continuar a fazer sozinha o curto trajecto para o Crasto. (ainda hoje gosto de saltar do "intercidades" em andamento, com a técnica que então aperfeiçoei...).

2 - Motivação para a Política

Não tendo eu ingressado no mundo da política por acto voluntário, mas pelo contrário, com a maior relutância, não sei se poderei falar de "motivação para a política". Registo é um sucedâneo, que acabou por levar a que me aliciassem para esse ingresso: a motivação para a debate de ideias, a manifestação fácil e descontraída de opções muito claras em favor dos direitos das mulheres, dos direitos humanos, da democracia, da social democracia (à sueca, note-se... Suécia, vanguarda mundial em todos estes domínios em fins de cinquenta).
Nisso, posso à partida ter sido influenciada pelo meio em que cresci.
Na geração dos Avós, no ramo materno sobretudo, havia monárquicos convictos e republicanos radicais e até anarquistas, que em casa conviviam fraternalmente. No pós guerra, a família continuava muito dividida entra os Aliados e o Eixo entre o Salazaristas e oposicionistas de vários matizes, do conservadorismo britânico de meu pai ao socialismo de uma minoria. Discutiam, discutiam, mas davam-se todos bem, como mandava a tradição. Aprendi que há gente boa de um lado e de outro. Alguns estavam redondamente errados, eu achava as suas posições absurdas, mas, na qualidade de avós, tios ou primos, eram uns queridos.
Depois, pela vida fora, assim foi com colegas de faculdade, de empregos, da própria política. Tive sempre amigos do "lado de lá". Sou rigorosamente despida de preconceitos neste aspecto.
Curiosamente, ou talvez não, estou muito próxima do que pensava aos 18 anos...
Continuo muito pró-sueca, muito centro esquerda, muito feminista, etc, etc... Não sei se isto é bom ou mau sinal, mas é um facto. A minha 1ª incursão num processo eleitoral aconteceu em Coimbra. Concorri, obviamente "empurrada" pelos colegas do "Conselho de Repúblicas", às eleições para uma "secção feminina", com esse ou outro nome... Sei que, na altura, por inerência dava acesso à direcção da Associação Académica. Perdi, como seria mais ou menos previsível, porque era a lista mais à esquerda e as mulheres, ao contrário dos rapazes, votavam, em regra, mais à direita, na "LIA". Não havia 3ª via. Era a esquerda, com comunistas à mistura, ou direita, na companhia da direita ou extrema direita... Eu, claro, preferia os primeiros.
Mesmo sendo previsível, a derrota convenceu-me que não era fadada para campanhas eleitorais. Só 20 anos depois, me vi, de novo, nesses trabalhos: fui candidata a pela deputada pela emigração, pela coligação AD, com uma grandiosa votação de mais de 80%... Foi a 1ª de muitas: encabecei o círculo de "Emigração Fora da Europa", repetidas vezes, sempre com votações excelentes, o da Emigração da Europa, por uma vez (recuperando o 1º lugar para o PSD, conseguindo por pequena margem de votos o que para nós foi uma grande vitória - até porque como Secretária de Estado do sector criava bastantes anti-corpos e porque, para piorar as coisas, metade da direcção da secção do PSD de Paris tinha aderido às hostes do emergente partido Eanista...).
Recuperei um pouco de auto-estima. Todavia, o meu 1º cargo político, não foi o de deputada, mas o de Secretária de Estado do Trabalho num governo de independentes - o IV Governo Constitucional, chefiado pelo Prof Mota Pinto. Por isso, quando me perguntam a razão porque escolhi a vida política, respondo que não escolhi, e que, paradoxalmente, me foi dada a oportunidade pela pouco recomendável circunstância de não pertencer a qualquer partido...
Entrei na aventura, que à partida se estimava de curta duração, por não saber dizer "não" aos amigos - e não só o Primeiro Mº era um amigo, como o era também o "vizinho do lado", no Ministério do Trabalho, o João Padrão, um simpático e brilhantíssimo colega de curso, que ocupava a pasta do Emprego. À mistura com o receio de falhar - uma constante desde os bancos da faculdade - havia uma boa dose de curiosidade por conhecer o outro lado da "sociedade civil" - o lado do "poder" (ainda que muito relativo...). A "casa" era conhecida: estava no ministério onde começara o trabalho profissional, cerca de 11 anos antes. Apesar da mudança de regime, a boa qualidade dos funcionários, dos serviços estava intacta. Tudo era familiar - assuntos, problemas e até algumas das caras que via nos corredores - o que facilitava muito. Escolhi os adjuntos dentro da "casa", trouxe para chefe de gabinete um colega do Serviço do Provedor de Justiça (onde ambos éramos assessores, eu na área da segurança social, ele, providencialmente, na área do Direito Administrativo, que ali era bem preciso). Ajudaram-me naqueles tempos de iniciação a um novo ofício - fizemos uma equipa unida nos bons e maus momentos. E destes, houve alguns. Não tanto pelos conflitos sociais, negociações, greves... Houve, por vezes, verdadeiros "braços de ferro", uma requisição civil... mas com o "adversário exterior" podíamos nós bem. O que incomodava era o interno... Foi por vezes complicado o relacionamento entre a equipa do ministro, que vinha do sector privado, com preconceitos contra o público e a minha que era 100% "funcionalismo público" (e do muito bom, que também havia e ainda há, aqui e ali). A competência dos quadros daquele ministério acabou mesmo por o convencer. Pior era o seu chefe de gabinete, que eu tive de "pôr na ordem", porque se julgava superior hierárquico do meu chefe de gabinete e tentava comandá-lo. Eu podia ser "caloira" no Governo, mas intromissões no meu "território" não estava disposta a admitir - e não admiti. O homem era pouco esperto e custou-lhe a perceber que nem mesmo ao ministro eu consentia semelhante comportamento. Fui sempre melhor a defender "os meus" do que a defender-me a mim própria. Eu, sim, tinha de actuar de acordo com orientações do ministro e ou concordava com ele ou me demitia. Não o fiz, porque não houve divergências de fundo - pude ir sempre por onde queria, ou quase sempre. Como disse, o pior foram questões pessoais, de "maneiras"...
Curiosamente, o estilo "impaciente" (e também muito frontal e corajoso) de Eusébio Marques de Carvalho (igualmente "estreante" em lides governativa...) acabou por me influenciar bastante. Como ele, dei por mim a tomar decisões rápidas, a promover mudanças sem medo das reacções e a exigir execução pronta. Foi fácil, porque as pessoas corresponderam! Tive muita sorte...
O Governo Mota Pinto, foi o primeiro governo "não socialista" depois da revolução de 74. O ter combatido pelo seu programa, o ter resistido às pressões da rua (como então se dizia) o ter conseguido "governar", ainda que apenas durante 9 meses, foi mais importante do que parece para a história da democracia em Portugal - porque não há democracia sem alternativa, sem a possibilidade concreta e concretizada de viragem. Sá Carneiro haveria de salientar esta faceta, no discurso de tomada de posse, reivindicando o título de 1º governo de alternativa saído do sufrágio popular. O que era exacto, já que o de Mota Pinto não resultava directamente de sufrágio, mas de nomeação presidencial. Mas eu acredito que sem a experiência vivida ("ver para crer"...) que representou a acção governativa de Mota Pinto, a maioria do povo português não teria dado a vitória à AD, em fins de 1979...
Muitos dos independente da área social-democrata (que era a do Primeiro ministro Mota Pinto e, naturalmente, a de quase toda a sua equipa), acabariam por integrar o executivo da AD e por se filiar no PSD. Eu fui um caso entre tantos outros (a única mulher, claro e que, por isso, seria também a primeira militante do PSD num Governo da República).
Não conhecia pessoalmente Sá Carneiro até ao dia em que me convidou para ser a Secretária de Estado da Emigração, numa tarde do início de Janeiro de 1980.
A conversa foi divertidíssima. Senti-me tão à vontade, que falei com ele como quem fala com velhos amigos (com Mota Pinto ou com Rui Machete, por exemplo). Sá Carneiro estava "bem-dispostíssimo"! A certa altura, chamou ao gabinete o MNE Freitas do Amaral, com quem eu viria a trabalhar directamente, mas mesmo a três, o tom do diálogo não sofreu grande alteração - mais parecia uma tertúlia!
Saí pela porta a dizer "Senhor 1º Mº, por si faço tudo: vou de escadote colar o seu “poster” nas paredes. Vou de balde e pá pintar AD nas ruas. Tudo, menos ser Secretária de Estado!
Deu-me o prazo de 24 horas, para decidir. Pedi, acto contínuo, conselho ao Doutor Mota Pinto pelo telefone (estava em Coimbra, não havia outra hipótese) e fui jantar com Rui Machete, que tinha sido responsável pela mesma Secretaria de Estado, por uns meses, antes de se tornar Ministro dos Assuntos Sociais (em cujo gabinete colaborei, e do qual saí, por sua sugestão, para assessora do SPJ). Ambos, mais a Branca Amaral, sua cunhada e minha colega no SPJ, que se juntou a nós no jantar, me incitaram a aceitar. Aceitei, não sem repetir ao Dr Sá Carneiro que não me considerava à altura do cargo. Respondeu-me que não me preocupasse, porque assumia, por inteiro, a responsabilidade, pela sua escolha.
Acho que se apercebeu que eu "queria e não queria" envolver-me naquelas funções, que estava genuinamente insegura e deu-me um grande acompanhamento nas duas ou três primeiras semanas. Foi extraordinário! Telefonava-me para me dar informação sobre casos concretos de emigração, para me dizer como esta ou aquela das minhas iniciativas tinha resultado bem... Pretextos para me dar ânimo - e dava!
Gastou comigo, alguém que não conhecia previamente, muito do seu tempo de primeiro-ministro, até ter a certeza de que eu seguia caminho perfeitamente segura... Um Sá carneiro bem diferente do que preferem traçar para a história... Um líder singularíssimo, não só, mas também pela forma como estava atento a tudo e a todos... E verdadeiramente empenhado em levar o país para patamares mais altos.
Para mim, ele foi sempre o a “anti-Salazar” por excelência, - na medida em que confiava, sem sombra de dúvida, tanto quanto o velho ditador desconfiava da capacidade dos portugueses viverem em democracia, como os outros europeus do Ocidente. Toda a sua pressa, e o que chamavam perigoso “radicalismo” ou teimosia, era a manifestação da vontade de pôr o sistema a funcionar de imediato, sem tutelas militares ou outras… (era, quando muito um “radicalismo” absolutamente democrático.)
Na emigração, como globalmente, o grande princípio norteador era o diálogo com a sociedade civil - dito de outra maneira, ouvir o povo, seguir o povo. Manifestação da ideia personalista, que animava o seu pensamento e que foi prática do seu percurso político! Na “diáspora”, o grande projecto era, por isso ou para isso, a criação de uma assembleia de representantes das comunidades do estrangeiro: o Conselho das Comunidades Portugueses (CCP), de algum modo inspirado, (tal como os que, alguns anos depois do nosso, vieram a estabelecer-se na Itália e na Espanha, e, bastante mais tarde, na Grécia) no “Conselho Superior dos Franceses do Estrangeiro” – hoje, Assembleia dos Franceses do estrangeiro. Em suma, um órgão de representação específica dos emigrantes. Na altura, como o modele francês, com conselheiros eleitos num colégio de associações das comunidades. (o francês elegia, seguidamente, os Senadores da emigração. Isso não acontecia no nosso caso, desde logo porque não temos sequer uma segunda câmara e porque temos no Parlamento 4 deputados (apenas 4!), em dois círculos da emigração. Sá Carneiro falava de Portugal com “Nação de Comunidades”, mais uma “cultura” do que uma organização rígida, mais Povo do que território. São palavras dele, que muitas vezes me são atribuídas a mim, só porque, naturalmente, as repeti, sempre, ao longo de anos e anos. Fiquei, por vezes com um grande sentimento de solidão, a tentar levar por diante a política de Sá carneiro, sem Sá Carneiro. Porque nela acreditava e acredito e usei para a defender, os meios ao meu alcance - para além da valorização do CCP, como órgão para a co-participação nas política das emigração, uma visão que privilegiava a colaboração com as instituições das próprias comunidades, porque sem elas não há comunidades orgânicas(uma visão bastante “institucionalista”, que é a minha, não obstante a tendência inata para o individualismo…). E, também, a defesa da dupla nacionalidade, de plenos direitos políticos, as campanhas para o recenseamento e a participação efectiva, que, hoje em dia, decresce lamentavelmente, em cada novo acto eleitoral.
No tempo de Sá Carneiro, o afrontamento com o Presidente Eanes e com o Conselho da Revolução passou, em larga medida pelo MNE. Pela política externa e da emigração. Para mim, que reajo sempre gostosa e fortemente a afrontamentos, isso não me custou nada. Pelo contrário, estive, como voluntária, na linha da frente! Falava-se de “diplomacia paralela”: o MNE de Eanes era Melo Antunes, o seu Ministro da Emigração, Victor Alves. Claro, com Victor Alves, mantive alguns “braços de ferro” que muito me regalaram e a Sá Carneiro também… Sei que, então, a minha imagem em Belém era péssima… Curiosamente, em governos seguintes, quando comecei a falar pessoalmente com o General Eanes (sobretudo nas longas cerimónias da entrega de credenciais de Embaixadores, a que Jaime Gama se furtava quando tinha bom pretexto) o relacionamento mudou muito. Mudei a minha opinião acerca dele, e julgo que a recíproca também é verdadeira. Não há nada como boas oportunidades de diálogo, com homens inteligentes e com sentido de humor… Mas em 1980, nenhum dos lados da contenda nstalada estava com disposição para tanto…




iSobre se esquerda ou direita faz sentido, hoje:

Para mim, faz, como sempre fez. No Portugal do "Estado Novo" isso era meridianamente claro. O regime era de direita, a oposição era de esquerda. O salazarismo era, dentro da direita, a direita pior, anti-democrática, repressiva, "patrioteira", colonialista, paternalista, misógena, absolutamente anacrónica... Por contraste, a esquerda era a imagem da modernidade, da inteligência do seu tempo, do inconformismo perante a desigualdade e a injustiça reinantes, da coragem, da utopia criativa. As coisas hoje não se colocam num quadro tão maniqueísta. É evidente que há muitas direitas e muitas esquerdas, uma ou várias direitas com vocação democrática e marcadas preocupações sociais, esquerdas revolucionárias e não revolucionárias, estas últimas em alguns aspectos próximas da direita "centrista"... Haverá uma fronteira mais nítida entre revolucionários e reformistas.
Olhemos os grandes partidos portugueses. Em 74 e 75, do PS para a sua direita, todos se apresentaram como mais esquerdistas do que eram, na realidade... "Partido socialista, partido marxista" era um dos slogans das grandes "arruadas" do PS. O PPD, do alto da sua proclamada ideologia social-democrata tudo fez para ser aceite na "Internacional
Socialista"e não foi por oposição do PS. (é mau demais que, anos depois de deixar, por razões nunca devidamente explicadas, a internacional "Liberal e Reformista" esteja agora no PPE da Srª Merkl...) O CDS dizia-se "rigorosamente ao centro". (actualmente, em termos europeus, é parceiro do PSD no PPE).Sempre me considerei "centro-esquerda", social-democrata “à sueca”. Não tendo mudado de posicionamento, nem de "causas", já fui vista como mulher de direita e como mulher de esquerda, dependendo das épocas e do ponto de vista do observador... Há domínios em que acho que sou mais de esquerda (direitos das mulheres, dos estrangeiros, da nacionalidade, abertura de fronteiras, tolerância de costumes...) outros em que sou mais "centrista", (mais "sociedade civil", mais iniciativa privada, mais "personalismo cristão, Estado qb dentro do paradigma do "Welfare State"...) Sou do PSD, mas pouco ortodoxa. Melhor dizendo, sou Sá Carneirista e desde que Sá Carneiro morreu, sempre tive muitas discordâncias com quase todas as lideranças partidárias. É natural. Não posso exigir um partido à minha medida...
Na Assembleia do Conselho da Europa sentia-me bem no Grupo Liberal, onde, por definição e por praxis, cada qual era livre para tomar as suas posições - e a minha sintonia com o Presidente, Russel Johnston, foi uma constante. No PPE, aconteceu precisamente o contrário, Tinha pouco a ver com eles, desde as questões de refugiados à da guerra do Iraque... O presidente Van der Linden, que depois foi presidente da Assembleia, chegou a votar contra relatórios meus. Eu paguei na mesma moeda.



Esquerda e direita nas políticas de emigração


A emigração, os direitos dos emigrantes, a especificidade da sua situação face aos países a que se sentem ligados, acabaram por se tornar questões que me interessam, muito para além daquilo que foi exigência de exercício de cargos, no governo, no parlamento e no Conselho da Europa. Mas este é um campo em que nem sempre é evidente o que é ser de esquerda ou de direita. .. Por exemplo: no que respeita à aceitação de dupla nacionalidade e a da dupla participação política, no país de origem e no da residência.Eu sempre fui a favor. O PSD, também, assim como o CDS, pelo menos no tempo da AD, quando a Lei da nacionalidade foi alterada neste sentido.O PS e o PCP eram contra. Contra a abertura de recenseamento por 60 dias no estrangeiro (foi a única votação que a AD perdeu em S. Bento, no ano de 1980...). Contra o direito de voto dos emigrantes na eleição para o Presidente da República. Contra o aumento do número de deputados pela emigração. Contra o voto dos portugueses residentes fora da UE para o Parlamento Europeu...Significa isto uma definitiva conotação direita e esquerda destas posições? Com a esquerda a ser aberta ao exercício da cidadania no país de residência, mas menos quando está em causa o país de origem (o que se verificará, de algum modo, igualmente em termos europeus). Ou outros factores, como um previsível desfavorecimento ou favorecimento pelo voto dos expatriados, jogarão um papel, mais determinante do que a pura ideologia? Factores culturais, também, isso é evidente no contexto europeu - os países nórdicos, e sobretudo a Alemanha, são militantemente contra a dupla cidadania... Entretanto, em Portugal, as coisas mudaram muito: o Bloco de Esquerda veio mostrar que, nesse quadrante, é possível defender, com igual empenho, os direitos políticos dos imigrantes no país onde vivem e os dos emigrantes na Constituição e nas leis do país de origem. E eis que eu me vejo - evidentemente que só nesta área... - em perfeita consonância com o BE! Direitos iguais para os portugueses dos estrangeiros, mas também direitos iguais para os estrangeiros em Portugal (aqui não me parece que o PSD me acompanhe, incondicionalmente - e o PS também não...).Defendo o direito de todos os que nascem no território à nacionalidade. Automaticamente, sem quaisquer restrições. O direito de todos os estrangeiros à habitação social, à educação e à participação cívica e política (neste último caso, após um tempo de permanência, obviamente). Defendo a proibição da pena acessória de expulsão do país para os emigrantes que aqui vivem desde crianças e para os que aqui residem há largos anos (acima de uma década, digamos)...Defendo o direito à ligação cultural e afectiva ao país de origem. Fico estarrecida com recentes declarações de Sarkozy ou David Cameron a negá-lo, em nome de uma ideia de coesão nacional. Não é assim que a vão conseguir, bem pelo contrário...


Evocação de alguns políticos

Há os que eram amigos muito antes de serem políticos. Os meus professores de Coimbra, por exemplo - Mota Pinto, Barbosa de Melo, Figueiredo Dias, Xavier de Basto... Em Coimbra o convívio era fácil à mesa dos cafés, nos cinemas, num passeio pelas ruas da "baixa", nos "Gerais"...
Não sei se há uma predisposição "social-democrata" , para a convivialidade com os mais novos. Pode até ser mera coincidência, mas todos os que considerava mais próximos e mais "descontraídos"antes do 25 de Abril, aderiram, logo depois, ao PPD! Nesse tempo, como lhe disse, tinha acabado de regressar a Coimbra, para dar aulas na Universidade. Foi na hora certa! As conversas tinham agora novos tópicos, que nasciam a velocidade vertiginosa. O país fervilhava, mais em Lisboa do que em Coimbra, claro, e eles passavam muito tempo por lá, estavam por dentro do que acontecia na governação ou desgovernação - e no partido. Quantas histórias, algumas bem divertidas, sobretudo de personagens como Vasco Gonçalves, Pinheiro de Azevedo - sem dúvida os mais extravagantes, que nunca cheguei a ver de perto, mas que imaginava, através desses relatos saborosos, para além do que a todo o país abundantemente mostrava a TV...De Sá Carneiro, os meus amigos de Coimbra não eram incondicionais admiradores como eu... Sobre isso, não há sombra de dúvida. Todos, uns mais cedo outros mais tarde, deixaram o partido, do lado de lá do Sacarneirismo - embora, depois tenham regressado (com a excepção do Prof Figueiredo Dias ). Eu não tinha ficha no PPD, nem queria ter, mas era simpatizante assumida e tive muita pena daqueles irremediáveis dissensos... Não escondia o meu Sácarneirismo . o grande "ismo" político da minha vida. Mas não conhecia Sá Carneiro. (Se calhar, isso era uma vantagem, pensava depois de ouvir a argumentação de tão ilustres oponentes, os citados e muitos outros, de menor nomeada na altura - assistentes como eu). Quando, em 1980, fui ao encontro de Sá Carneiro, já 1º Ministro, no gabinete da Gomes Teixeira, o meu maior temor era o de não simpatizar com ele, como pessoa, o que destruiria a atracção e o "mistério" do "mito". Com o crónico pessimismo de que sofro nestas matérias, achava mesmo que isso era o mais provável. Enganei-me, fiquei encantada! Ele irradiava entusiasmo, carisma (à sua contida e aristocrática maneira). Lembro sempre a 1ª impressão, o olhar, o sorriso... Se me perguntarem como era o gabinete, a secretária, o seu fato, a cor da gravata, não sei. Não fixei nada, para além da figura, da expressão, da cortesia, das palavras, que ainda ouço, na memória...Quando o cumprimentei como " Senhor 1º Ministro", disse-me de imediato: "Não me chame 1ª Ministro" . Ao que respondi: "Desculpe, mas vou sempre chamar-lhe 1º Ministro, porque esperei tempo demais para lhe poder chamar assim!"
E assim sempre fiz.

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