sábado, 1 de agosto de 2020

Histórias minhas...

INFÂNCIA e DEPOIS

Tive uma infância muito feliz. Tudo corria bem. Gostava do meu mundo, que eram casas grandes, corredores compridos, quintais e jardins cheios de recantos convidativos para constantes correrias e diversões(nas casas da Avó Maria e da Tia Rozaura, em Gondomar e dos Avós paternos em Avintes). Havia árvores, cães, gatos, flores. E, sobretudo, o mundo estava de bem comigo, porque todos tinham paciência para me aturar, apesar de me manter sempre vertiginosamente em movimento, de fazer muitas asneiras, muitas perguntas e de contar histórias inverosímeis. Foi a minha época de ouro! Achavam-me precoce e engraçada e, por isso, assim eu me considerava. Tinha uma autoconfiança ilimitada e indestrutível, sentia-me o centro daquele mundo perfeito e divertido. O pior era a noite, porque me obrigavam a deitar cedo e, para mim, dormir era um desperdício. Imparável no ambiente doméstico, tornava-me um modelo de bom comportamento quando se tratava de passear, de carro, aos fins-de-semana. Os pais levavam-me com eles, prudentemente (para não causar dano, algures), nessas excursões familiares, com muitos tios e primos, numa fila de vários carros, quase sempre por terras do Minho, com paragens para almoços e jantares... Com a Avó Maria ia, muitas vezes, ao Porto, lanchar à Confeitaria Villares, depois de ela andar às compras em Santa Catarina e Sá da Bandeira, com o Avô Manuel, desde os 5 ou 6 anos de idade, aos teatros e aos cinemas do Porto (os filmes que ele e eu apreciávamos, nada de desenhos animados ou outras infantilidades...). Com o Pai, um pouco mais tarde, desde os 9 ou 10 anos, frequentava, como sócia do FCP, habitualmente, o Estádio das Antas (estive na inauguração, o resultado foi mau, mas vi jogar o Barrigana, o Virgílio, o Carvalho...).
A escola foi uma outra experiência bem sucedida e esperada impacientemente. Nascida no mês de Junho, não me deixaram principiar a escolaridade com 6 anos, em Outubro de 1948. A regra era os 7 anos e a minha mãe - que acabava por mandar mais do que o resto da família... - achou que era melhor não tentar abrir excepções, deixar que a criança gozasse, por mais uma época, o "dolce far niente". Porém, a criança estava cheia de pressa de mudar de vida. Via a escola como uma etapa de crescimento, a transição para uma outra idade. E foi - ganhei juízo, acalmei os ímpetos infantis, tornei-me confiável, bani a mentira pela mentira, por desporto, passei ao extremo contrário, a dizer escrupulosamente a verdade, a cumprir os deveres, pelo menos os que considerava exigíveis. Assumi a promoção a um estatuto superior. Lembro-me exactamente de como pensava, então. Ir para as aulas, orgulhosa, de pasta nova, cheia de cadernos e de livros, para decifrar o mistério da escrita foi um verdadeiro prazer. Era excelente aluna, tinha, porém, uma feiíssima caligrafia... Comecei na Escola do Crasto, em Gondomar. Na 2º classe, uma passagem curta e tempestuosa pela escola da Rua 23 em Espinho (porque os pais decidiram prolongar a época de férias, na casa de praia). Desentendi-me com a professora, uma mulheraça imponente, gorda e implicativa. Fui salva pela transferência para a Escola do Magarão, em Avintes, voltei a ser aluna bem cotada e realizada. A partir da 3ª classe, e durante sete longos anos lectivos, eis-me aluna interna do Colégio do Sardão, em Gaia, onde cumpri uma espécie de serviço militar obrigatório. Num distinto "quartel" de Doroteias, que são, ou eram, o feminino dos Jesuítas. A minha irmã também lá andava e contentíssima... O problema não era do colégio, a muitos títulos admirável, sem dúvida. O problema era meu - sentia-me enclausurada.
Apesar disso também lá se sucederam os momentos bons. Depressa me envolvi activamente na pequena comunidade de gente da minha idade. O Sardão era uma antiga quinta (de Almeida Garrett? – era o que constava…), com jardins, pequenos lagos, árvores, alamedas e caminhos, onde podíamos fazer quilómetros de marchas e corridas. Havia campos de jogos, courts de ténis, ringue de patinagem... Tirei o devido partido dessas amenidades. O desporto era aquilo de que mais gostava – “volei”, andebol, "basquete", até futebol (clandestino, visto ser considerado, definitivamente, modalidade imprópria para meninas - e só fui apanhada uma vez, mas sem castigo, porque a Mestra-Geral deu mostras de bom humor, dizendo-me: tu já que tens uma paixão tão grande pelo futebol estás autorizada a jogar, as outras não...).
Não obstante esta preferência, era, creio eu, mais dotada para os estudos - tinha notas altas, excepto a “comportamento”. Por fim, estive perto de ser expulsa, por ter escrito uma crónica jocosa sobre o colégio, o “sistema” (mais o sistema do que as pessoas – muitas das religiosas, foram amigas e conselheiras, professoras excepcionais). Cheguei a ser suspensa, mas venceu a facção das Doroteias que me era favorável. Ao ser expulsa não estaria a abrir precedentes na família, porque dois irmãos da minha mãe, mais exactamente, um irmão e uma irmã já tinham tido essa sorte, ela também por "delito de opinião", ele porque fez explodir o laboratório de química).
As melhores recordações são as de fora de portas – os jogos, os recreios, quilómetros de saltos e correrias. Dentro da casa, tudo era frio, enorme, desconfortável - pelo menos para mim. Detestava os dormitórios, o compridíssimo refeitório - onde me obrigavam a comer bacalhau, com frequência - o labirinto de corredores, onde marchávamos aos pares, com as mãos atrás das costas. Deprimente! A capela era mais acolhedora. Havia uma imagem do Menino Jesus de Praga, que fazia os meus encantos. E o confessionário, também. O meu director espiritual era o Padre Leão, um jovem Padre muito inteligente e muito culto, homem de poucas e brilhantes palavras (sucinto e lapidar!), que dizia a missa quotidiana em 20 minutos e a missa solene em pouco mais de meia hora. No confessionário, ouvia a enumeração dos meus pecados, que pouco variavam, e depois respondia às minhas perguntas e comentários sobre leituras. Teve muito mais influência na minha formação neste campo do que qualquer das minhas professoras... Ler foi sempre um dos meus passatempos preferidos. Gostava, porque gostava, mas a família também estimulava esse gosto. Ofereciam-me mais livros do que brinquedos. Com as "mesadas", eu própria comprava sobretudo livros e, desde que aprendi as primeiras letras, uma revista, "O Mosquito", que saía duas vezes por semana. Às escondidas, folheava, no sótão da casa de Avintes, uma Bíblia antiga, que tinha sido de um tio bisavô padre - uma edição preciosa, com muitas gravuras e iluminuras. Um dia desapareceu. Soube-se depois, que a Avó Olívia a deu ao pároco da terra - não sei se por me ter surpreendido em flagrante, a desvendar os segredos do Antigo Testamento... Tive de voltar aos contos de Anderson ou às aventuras da Condessa de Ségur...Mas rapidamente passei a George Elliot, às irmãs Bronte, a Charles Dickens, a Júlio Dinis, ao Eça de "A cidade e as Serras" e da "Ilustre Casa de Ramires".... Das edições de "Os livros do Brasil", incluindo a colecção de "Miniaturas" poucos me escaparam. Nessa fase, dos 12-13 anos, um dos livros que mais me impressionou foi "O velho e o mar", um dos que mais me divertiu foi "In illo tempore" de Trindade Coelho" (aí terá começado o projecto de me formar em Coimbra, se bem que numa era mais mortiça...). E também alguns dos humoristas que o Pai recomendava, como Jerome K Jerome ("Os 3 homens num bote") e Guareschi (a série de de Dom Camilo)... Depois, os policiais da "Vampiro" foram ganhando o seu lugar, com Agatha Christie e Erle Standley Gardner à cabeça. (muito desaconselhados pelo Padre Leão, que os achava um desperdício de tempo e uma perigosa, porque atractiva, concorrência à melhor literatura - mas no meu caso só muitíssimo mais tarde é que os "misteries", na língua original, ganhariam ascendente, nas viagens, nos aeroportos, nas pausas de reuniões, entre a consulta de dossiers e relatórios.

Do colégio privado para o Liceu público

Entretanto, aproximava-se a data da "libertação": terminado o 5º ano (agora 9º), saí, de vez, como queria, para o Liceu Rainha Santa Isabel, no Porto, onde fui muitíssimo afortunada - até recebi um prémio dos Rotários , mais o "prémio nacional" no fim do 7º ano. Com os premiados dos outros liceus do país, ganhei, como "extra", uma viagem em grupo ao norte de África, Ceuta, Tânger, Alcácer-Kibir, porque estávamos em 1960, ano de comemorações Henriquinas. Fiz o meu baptismo de voo, porque não tinha alternativa, a não ser recusar o convite. Lá em cima, achei o espectáculo deslumbrante, e toda a visita foi uma festa, mas não fiquei cliente da aviação por muitos anos ainda - até que voar se tornou parte do trabalho profissional. Imagine quem era o rapaz que representava o liceu de Ponta Delgada… Mota Amaral, muito novo, mas já com a pose que tem hoje.

O tempo de adolescência, que tão longo me pareceu, é bem mais difícil de definir claramente, em termos de felicidade de alma, do que o anterior - foi feito de mais contrastes, de muito mais incertezas, muito mais descontentamento e rebeldia... O que se explica, em parte, por causas exteriores, a começar pelo internato no Sardão, mas também por estados de alma subjectivíssimos. Foi a altura de escrever versos tristes, de alinhavar um diário inspirado no incomparável livro de Anne Frank (uma fracassadíssima imitação, a minha!), de olhar com pessimismo o futuro, sobretudo o académico (o pavor que tinha dos exames, sempre convencida que se aproximava a hora do grande desaire, que nunca aconteceu). Fora dos círculos da família e amigos, onde mantinha intacta a antiga exuberância, era, então, uma adolescente mais ou menos tímida e desageitada. Estranha metamorfose, que não atingiu, porém, outros traços de temperamento que suponho inatos, como a combatividade (quando surge o desafio ou a crise), o gosto pelo movimento constante, físico e mental, o entusiasmo por certas ideais ou actividades – sobretudo pelo desporto! Recordo, por exemplo, o delírio vivido nas Antas, ao lado do meu pai, com o 1º campeonato ganho pelo FCP de yustrich (o 1º desde o meu nascimento...).
Pela negativa, lembro o ano em que uma das Tias (a que foi expulsa do Colégio, a célebre Tia Lola, que tem, na realidade, o mais solene nome de Glória Doroteia…) mandou para o director da revista "Modas e Bordados" um dos meus sonetos, que foi publicado, com foto e tudo, em pleno verão (de 55?). Estava em Espinho. As amigas da mãe todas me vinham dar os parabéns e eu ficava envergonhadíssima, queria desaparecer dali para um deserto...
Muita dessa tardia timidez, dessa falta de auto-confiança iriam lançar as suas sombras ao longo da juventude, dos 5 anos de Coimbra, na Faculdade de Direito.
Falta de confiança mais notória em época de exames, em cada uma das escritas e das orais, que tive de fazer. Tanto "stress" para nada, a entravar o gosto genuíno pelas matérias... Acabou tudo, finalmente, bem, não valeu a pena o sofrimento. Nunca consegui mudar este quadro psicológico...
Ficam dessa época, grandes amizades e o primeiro namoro, longo - cinco anos - que acabou em casamento (breve, outros cinco anos, o que para casamento é pouco). No conjunto, uma década, que não deixou mal-estar. Nem havia razão para tanto. Desajustamento de feitios e de modos de encarar a a vida…. Ficamos bons amigos, e ele, como amigo, não tem defeitos.
Esse rapaz praticante de vela, desporto mais chique do que o meu voleibol, era colega de curso e uma fonte de preocupações suplementar, porque achava que ele também ia chumbar sistematicamente (não foi o caso, apenas dois ou três "chumbos"
, o que não foi mau de todo, atendendo ao pouco que estudava , devido às muitas actividades extra-curriculares, o CADC, o Clube de Cinema, as tertúlias de café, a vela… - o curso dele deu-me ainda mais trabalho do que o meu.
Em fins de 64, quando entrava na última etapa do curso, aconteceu-me o que mudou definitivamente a forma como encarava e queria o futuro: a morte inesperada da minha única irmã, com apenas 20 anos. Estava doente, mas há tanto tempo, e tinha tanto ânimo, cantava, dançava, era uma imagem de alegria de viver, sem os meus medos e preságios... Nunca acreditei que ela estivesse em perigo. A partir daí, nada mais foi tão importante como dantes. A vontade de andar à frente, a extrema competitividade, que era imagem de marca, deixou de ter verdadeira correspondência na realidade. Pode até parecer que não, porque sou sempre muito "reactiva". Mas é coisa epidérmica, questão de hábito, de feitio. Ou de princípios... frequentemente reacção "feminista" num mundo onde as mulheres continuam a ser o 2º sexo. Este é um domínio onde estive e, se for preciso, estou pronta para a luta.
Já em criança, com 5 ou 6 anos, quando me proibiam uma brincadeira, porque não era "própria para uma menina", eu desobedecia de imediato e mostrava que era tão capaz de a executar como qualquer rapaz. Quando necessário, desobedecia clandestinamente. Assim joguei futebol na rua com os miúdos de Gondomar (graças a um primo, que era "craque" e que garantia a minha resistência, vencendo preconceitos - foi obra, porque isto aconteceu há 60 anos...). Assim entrava e saía dos carros eléctricos, em andamento, a caminho da escola... Só me surpreende nunca ter sido denunciada à Avó Maria por algum pressuroso vizinho. Acho que não fui, porque se fosse não me deixariam continuar a fazer sozinha o curto trajecto para o Crasto. (ainda hoje gosto de saltar do "intercidades" em andamento, com a técnica que aperfeiçoei aos 7 anos, única rapariga no meio de um magote de rapazes...).

2 - Motivação para a Política

Não tendo eu ingressado no mundo da política por acto voluntário, mas pelo contrário, com relutância, não sei se poderei falar de "motivação para a política". Registo é um sucedâneo, que acabou por me levarpara a política: a motivação para o debate de ideias, a manifestação fácil e descontraída de opções muito claras em favor dos direitos das mulheres, dos direitos humanos, da democracia, da social-democracia (à sueca, note-se...).
Nisso, posso à partida ter sido influenciada pelo meio em que cresci. Na geração dos Avós, no ramo materno sobretudo, havia monárquicos convictos e republicanos radicais e até anarquistas, que em casa conviviam fraternalmente. No pós guerra, nos anos 40 e 50, a família continuava muito dividida entra os Aliados e o Eixo entre o Salazaristas e oposicionistas de vários matizes, do conservadorismo britânico de meu pai ao socialismo de uma minoria. Discutiam, discutiam, mas davam-se todos bem, como mandava a tradição. Aprendi que há gente boa de um lado e de outro. Alguns estavam errados, achava as suas posições absurdas, mas, na qualidade de avós, tios ou primos, eram igualmente queridos. Depois, pela vida fora, assim foi com colegas de faculdade, de empregos, da própria política. Tive sempre amigos do "lado de lá". Sou rigorosamente despida de preconceitos neste aspecto.
Eu própria, sempre considerada uma contestatária e "esquerdista" numa família maioritariamente das direitas, família, estou próxima do que pensava aos 18 anos...
Continuo pro-sueca, reformista, feminista, etc, etc... Não sei se isto é bom ou mau sinal, mas é um facto.

A minha 1ª incursão num processo eleitoral aconteceu em Coimbra. Concorri, obviamente "empurrada" pelos colegas do "Conselho de Repúblicas", às eleições para uma "secção feminina" da Associação Académica, com esse ou outro nome... Sei que, na altura, por inerência dava acesso à direcção da "Associação". Perdi, como seria mais ou menos previsível, porque era a lista mais à esquerda e as mulheres, ao contrário dos rapazes, votavam, em regra, na LIA, mais à direita. Não havia 3ª via. Era a esquerda, com comunistas à mistura, ou direita, na companhia da direita ou extrema-direita...
Mesmo sendo previsível, a derrota convenceu-me que não era fadada para campanhas eleitorais. Só 20 anos depois, me vi, de novo, nesses trabalhos: fui candidata a pela deputada pela emigração, pela coligação AD, com uma grandiosa votação de mais de 80%... Foi a 1ª de muitas: encabecei o círculo de "Emigração Fora da Europa", sempre com votações excelentes, o da Emigração da Europa, por uma vez (recuperando o 1º lugar para o PSD, conseguindo por pequena margem de votos o que para nós foi uma grande vitória - até porque como Secretária de Estado oriunda do PSD criava bastantes anti-corpos e porque, para piorar as coisas, metade da direcção da secção do PSD de Paris tinha aderido às hostes do emergente partido Eanista... (um dos meus antecessores, do fim da década de 70, diplomata de carreira, dizia, com muita graça, que Paris era a melhor das cidades para todos os cidadãos do mundo, excepto um, o Secretário de Estado da Emigração de Portugal...)

O meu 1º cargo político, não foi o de deputada, mas o de Secretária de Estado do Trabalho num Governo de independentes - o IV Governo Constitucional, chefiado pelo Prof Mota Pinto. Por isso, quando me perguntam a razão porque escolhi a vida política, respondo que não escolhi, e que, paradoxalmente, me foi dada a oportunidade pela circunstância de não pertencer a qualquer partido. Uma mulher, num governo quase 100% masculino...
Entrei na aventura, que à partida se estimava de curta duração, por não saber dizer "não" aos amigos - e não só o Primeiro Ministro era um amigo de Coimbra, como o era também o "vizinho do lado", no Ministério do Trabalho, o João Padrão, um brilhantíssimo colega de curso, que ocupava a pasta do Emprego. À mistura com o receio de falhar - uma constante desde os bancos da faculdade - havia uma boa dose de curiosidade por conhecer o outro lado - o lado do "poder" (ainda que muito relativo...). A "casa" era conhecida: estava no ministério que conhecia profissionalmente, desde 66 ou 67. Apesar da mudança de regime, a qualidade dos funcionários, dos serviços estava intacta. Tudo era familiar - assuntos, problemas e até algumas das caras que via nos corredores - o que me facilitou muito o desmpenho. Escolhi os adjuntos dentro da "casa", trouxe para chefe de gabinete um colega do Serviço do Provedor de Justiça (onde ambos éramos assessores, eu na área da segurança social, ele, providencialmente, na área do Direito Administrativo, que ali era o mais preciso). Ajudaram-me imenso naqueles tempos de iniciação - fizemos uma equipa unida nos bons e maus momentos. E destes, houve alguns. Não tanto pelos conflitos sociais, negociações, greves... verdadeiros "braços de ferro", uma requisição civil, etc, etc. Mas com o "adversário exterior" podíamos nós bem. O que incomodava era o interno... Foi por vezes complicado o relacionamento entre a equipa do ministro, que vinha do sector privado, com preconceitos contra o público, e a minha que era 100% "funcionalismo público" (e muito bom). A competência dos quadros daquele ministério acabou mesmo por convencer o próprio Ministro. Pior era o seu chefe de gabinete, que eu tive de "chamar a capítulo", porque se julgava superior hierárquico do meu chefe de gabinete - e não era. Eu podia ser "caloira" no Governo, mas intromissões no meu "território" não estava disposta a admitir - e não admiti. Eu, sim, tinha de actuar de acordo com orientações do ministro - ou o levava a concordar comigo ou me demitia. Não foi preciso, não houve divergências de fundo - pude ir sempre por onde queria, ou quase sempre. O pior veio de questões pessoais, de falta de" boas maneiras"...
Curiosamente, o estilo "impaciente" e dinâmico de Eusébio Marques de Carvalho (igualmente "estreante" em lides governativa...) acabou por me influenciar bastante. Como ele, dei por mim a tomar decisões rápidas, a promover mudanças sem medo das reacções e a exigir execução pronta. Creio que foi por isso que recebi o convite seguinte, para a pasta da emigração...

O Governo Mota Pinto, foi o primeiro governo "não socialista" depois da revolução de 74. O ter combatido pelo seu programa, o ter resistido às pressões "da rua" (como então se dizia) o ter conseguido "governar", ainda que apenas durante uns nove meses, foi importante para a história da democracia em Portugal - porque não há democracia sem a possibilidade concreta e concretizada de viragem. Sá Carneiro haveria de salientar que não há democracia sem alternativa, no discurso de tomada de posse, reivindicando o título de primeiro governo de alternativa saído do sufrágio popular. O que era exacto, já que o de Mota Pinto não resultava directamente do voto, mas de nomeação presidencial. Acredito, porém, que sem a experiência vivida ("ver para crer"...) que representou a acção governativa de Mota Pinto, a maioria do povo português não teria dado a vitória à AD, em fins de 1979...
Muitos dos independente da área social-democrata (que era a do Primeiro ministro Mota Pinto e a de quase toda a sua equipa), foram chamados para o executivo da AD. Eu fui um caso entre tantos outros (a única mulher, claro e que, como me filiei no partido, seria também a primeira militante do PSD num Governo da República).
Não conhecia pessoalmente Sá Carneiro até ao dia em que me convidou para Secretária de Estado da Emigração, numa tarde do início de Janeiro de 1980. A conversa foi surpreendente, para ambos, suponho - para mim, certamente. Senti-me tão à vontade, que falei com ele como quem fala com velhos amigos de Coimbra. Sá Carneiro estava obviamente bem-disposto, gostava de receber respostas do género "não, não posso ir para o MNE, porque ando sempre mal penteada e mal vestida" (o que é uma constatação de facto...). Com isso não se ralou, o que quis foi saber se falava línguas, francês e inglês. A certa altura, chamou ao gabinete o MNE Freitas do Amaral, com quem eu viria a trabalhar directamente, mas mesmo a três, o tom do diálogo não sofreu grande alteração - mais parecia uma tertúlia!
Saí pela porta a dizer "Senhor Primeiro Ministro, por si faço tudo: vou de escadote colar o seu “poster” nas paredes. Vou de balde e pá pintar AD nas ruas. Tudo, menos ser Secretária de Estado!
Deu-me o prazo de 24 horas, para decidir. Dali fui logo pedir conselho ao Doutor Mota Pinto (pelo telefone, porque ele estava em Coimbra, não havia outra hipótese) e, depois, jantar com Rui Machete, que já tinha sido responsável pela mesma Secretaria de Estado, por uns meses, antes de se tornar Ministro dos Assuntos Sociais. Colaborei nesse seu gabinete, quando dava aulas em Coimbra, e de lá saí, por sua indicação, para assessorar o Provedor de Justiça. Um e outro - mais a Branca Amaral, cunhada do Rui e minha colega na Provedoria, que se juntou a nós no tal jantar, para tirar dúvidas - me convenceram a aceitar. Aceitei, não sem repetir ao Dr Sá Carneiro que não me considerava à altura do cargo. Respondeu-me que não me preocupasse, porque assumia, por inteiro, a responsabilidade pela sua escolha.
Penso que se apercebeu de que eu "queria e não queria" envolver-me naquelas funções, que estava genuinamente interessada, mas também insegura e deu-me um grande acompanhamento nas primeiras semanas de trabalho. Foi extraordinário! Telefonava-me para me dar informação sobre casos concretos de emigração, para me dizer como esta ou aquela das minhas iniciativas tinha resultado bem... Pretextos para me dar ânimo - e dava! Gastou comigo, alguém que acabara de conhecer, muito do seu tempo de primeiro-ministro, até ter a certeza de que estava perfeitamente à vontade... Um Sá Carneiro bem diferente do que preferem traçar para a história...
Estava, acima de tudo, empenhado em levar o país para patamares mais altos, acreditava que isso era possível, de imediato, sem períodos de transição, e caminhava em linha recta para o objectivo. Para mim, ele foi o “anti-Salazar” por excelência, - na medida em que confiava tanto quanto o ditador desconfiava da capacidade dos portugueses para viverem em democracia, como os outros europeus do Ocidente. Toda a sua pressa, e o que chamavam perigoso “radicalismo” ou teimosia, eram a manifestação da vontade de pôr o sistema a funcionar democraticamente, sem tutelas militares ou outras…
No domínio particular da emigração, como no todo, era essencial o diálogo com a sociedade civil, o fortalecimento da sociedade civil. Manifestação da ideia personalista, que animava o seu pensamento e que foi prática do seu percurso político! A criação de uma assembleia de representantes das comunidades do estrangeiro era a grande novidade do programa da AD. Toda a prioridade foi dada ao Conselho das Comunidades Portugueses (CCP), de algum modo inspirado no modelo francês, (tal como os que, alguns anos depois do nosso, vieram a estabelecer-se na Itália e na Espanha, e, bastante mais tarde, na Grécia). Um órgão de representação específica dos emigrantes, para além dos quatro deputados, que são eleitos nos dois círculos da emigração.
Sá Carneiro falava de Portugal com “Nação de Comunidades”, mais uma “cultura” do que uma organização rígida, mais Povo do que território. São palavras dele, que muitas vezes me são atribuídas a mim, só porque, naturalmente, as repeti, ao longo de anos e anos.

Nos governos seguintes, sempre tentei levar por diante "a política de Sá carneiro, sem Sá Carneiro": A valorização do CCP, como órgão para a co-participação nas política das emigração, o diálogo, tanto nesse órgão como fora dele, com as instituições das comunidades, sem as quais não há comunidades orgânicas. Uma visão bastante “institucionalista”, que é a minha, sem prejuízo da afirmação de direitos individuais, que são bem mais protegidos se houver uma afirmação colectiva.
A defesa da dupla nacionalidade, de plenos direitos políticos face ao país de origem, as campanhas para o recenseamento (que, em 1980, em 30 dias quase duplicou!).
Nesse ano, o afrontamento do Governo com o Presidente Eanes e com o Conselho da Revolução passou, em larga medida, pelo MNE, pelo sector da política externa e da emigração. Estive, com convicção, nessa luta quotidiana contra o que chamávamos “diplomacia paralela”: o MNE de Eanes era Melo Antunes, o seu Ministro da Emigração, Victor Alves. Com Victor Alves, mantive, inevitavelmente, algumas vivas querelas que muito divertiram Sá Carneiro. A minha imagem em Belém devia ser péssima… Todavia, em governos seguintes, quando conheci pessoalmente o General Eanes (sobretudo nas longas cerimónias da entrega de credenciais de Embaixadores, em substituição do Ministro Jaime Gama) o relacionamento alterou-se radicalmente. Descobri um PR dialogante, inteligente, simples e com muito sentido de humor. Os homens e as circunstâncias...


Sobre se esquerda ou direita faz sentido, hoje:

Para mim, faz, como sempre fez. No Portugal do "Estado Novo" não havia que duvidar. O regime era de direita, a oposição era de esquerda. O salazarismo era, dentro da direita, a direita pior, anti-democrática, repressiva, nacionalista e colonialista, paternalista e misógina… Um anacronismo, no extremo ocidental da Europa... Por contraste, a esquerda era a imagem da modernidade, da inteligência do seu tempo, do inconformismo perante a desigualdade e a injustiça reinantes. As coisas hoje não se colocam num quadro tão maniqueísta. É evidente que há muitas direitas e muitas esquerdas, uma ou várias direitas com vocação democrática e marcadas preocupações sociais, esquerdas revolucionárias e não revolucionárias, estas últimas em alguns aspectos próximas do "centrismo". A fronteira mais marcada é ainda entre revolucionários e reformistas...

Olhemos os partidos portugueses com representação parlamentar. Em 74 e 75, do PS para a sua direita, todos se apresentaram como mais esquerdistas do que eram... Modismo ou auto-defesa... "Partido socialista, partido marxista" era um dos slogans das grandes "arruadas" do PS. O PPD, do alto da sua proclamada ideologia social-democrata tudo fez para ser aceite na "Internacional Socialista" e, após anos e anos na internacional "Liberal e Reformista", está agora, tal como o CDS, no PPE da Srª Merkl...).

Sempre me considerei "centro-esquerda", social-democrata “Olaf Palme”.
Não tendo mudado de posicionamento, nem de "causas", já fui vista como mulher de direita e como mulher de esquerda, dependendo das épocas e do ponto de vista do observador...
Há domínios em que acho que sou mais de esquerda (direitos das mulheres, dos estrangeiros, da nacionalidade, abertura de fronteiras, tolerância de costumes...), outros em que serei mais "centrista", (mais "sociedade civil", mais iniciativa privada, Estado "qb", dentro do paradigma do "Welfare State"...) Sou do PSD, mas não ortodoxa. Melhor dizendo, sou Sá Carneirista e desde que Sá Carneiro morreu, quase sempre tive discordâncias com as lideranças partidárias. É natural. Não posso exigir um partido à minha medida...

Na Assembleia do Conselho da Europa estava bem no Grupo Liberal, onde, por definição e por praxis, cada qual era livre para tomar as suas posições - e a minha sintonia com o Presidente, Lord Russel Johnston, que era um político dos mais notáveis que passaram pelo Conselho da Europa, foi perfeita. No PPE, aconteceu precisamente o contrário. Tinha pouco a ver com eles, desde as questões de refugiados à guerra do Iraque... O presidente Van der Linden, que depois foi presidente da Assembleia Parlamentar (tal como Lord Russel tinha sido), chegou a votar contra relatórios meus. Eu paguei na mesma moeda.

Esquerda e direita nas políticas de emigração

Este é um campo em que nem sempre é evidente o que é ser de esquerda ou de direita... Por exemplo: no que respeita à aceitação de dupla nacionalidade e da dupla participação política, no país de origem e no da residência. Sou a favor. O PSD, também, assim como o CDS, pelo menos no tempo da AD, quando a Lei da nacionalidade foi alterada neste sentido.
O PS e o PCP eram contra. E até eram contra o mero alargamento do prazo de recenseamento no estrangeiro de 30 para 60 dias (foi a única votação que a AD perdeu em S. Bento, no ano de 1980...). Também contra o direito de voto dos emigrantes na eleição para o Presidente da República e contra o aumento do número de deputados pela emigração ou o voto dos portugueses residentes fora da UE para o Parlamento Europeu... Significa isto uma definitiva conotação de esquerda destas posições? Ou é apenas reacção ao previsível desfavorecimento pelo voto dos expatriados?
A nível europeu, é evidente a influência de factores culturais, da própria história das migrações - os países nórdicos, e, sobretudo, a Alemanha, países de emigração escassa e antiga e de imigração recente, são insensíveis às vantagens da dupla cidadania...
Entretanto, em Portugal, as coisas mudaram muito: o Bloco de Esquerda veio mostrar que, nesse quadrante, é possível defender, com igual empenho, os direitos políticos dos imigrantes no país onde vivem e os dos emigrantes na Constituição e nas leis do país de origem. E eis que eu me vejo - evidentemente que só nesta área... - em perfeita consonância com o BE! Direitos iguais para os portugueses dos estrangeiros, mas também direitos iguais para os estrangeiros em Portugal (aqui, não me parece que o PSD me acompanhe, incondicionalmente - e o PS também não...). Sou pelo direito de todos os nascidos no território à nacionalidade. Automaticamente, sem quaisquer restrições ("jus solis", puro e duro, ainda que combinado com o "jus sanguinis", como se exige numa nação de diáspora). Sou também, militantemente, pelo direito dos estrangeiros à igualdade, incluindo a participação cívica e política (neste último caso, após um tempo de permanência, obviamente). Defendi, no Conselho da Europa, num relatório que passou dificilmente, mas passou, a proibição da pena acessória de expulsão do país para os imigrantes que vivem num país desde crianças e para os que aí residem há largos anos. Defendo o direito à ligação cultural e afectiva ao país de origem. Fico estarrecida com recentes declarações de Sarkozy ou David Cameron a negá-lo, em nome de uma ideia de coesão nacional. Não é assim que a vão conseguir, bem pelo contrário...Conversão à força, só sob a ameaça de novas inquisições...



Evocação de alguns políticos

Há os que eram amigos muito antes de serem políticos. Os meus professores de Coimbra, por exemplo - Mota Pinto, Barbosa de Melo, Figueiredo Dias, Xavier de Basto... Em Coimbra o convívio era fácil à mesa dos cafés, nos cinemas, num passeio pelas ruas da "baixa", nos "Gerais"...
Não sei se há uma predisposição "social-democrata" , para a convivialidade com os mais novos. Pode até ser mera coincidência, mas todos os que considerava mais próximos e mais "descontraídos"antes do 25 de Abril, aderiram, logo depois, ao PPD! Nesse tempo, como lhe disse, tinha acabado de regressar a Coimbra, para dar aulas na Universidade. Foi na hora certa! As conversas tinham agora novos tópicos, que nasciam a velocidade vertiginosa. O país fervilhava, muito mais em Lisboa do que em Coimbra, claro, e eles passavam muito tempo por lá, estavam por dentro do que acontecia na governação ou desgovernação - e no partido. Quantas histórias, algumas hilariantes, sobre casos e personagens, soube por eles!
De Sá Carneiro, os meus amigos de Coimbra não eram incondicionais admiradores como eu... Todos, uns mais cedo outros mais tarde, deixaram o partido, do lado de lá do Sacarneirismo - embora, depois muitos tenham regressado. Eu não conhecia Sá Carneiro. Se calhar, isso era uma vantagem, pensava eu, ao ouvir as críticas deles ... Quando, em 1980, fui ao encontro de Sá Carneiro, já 1º Ministro, no gabinete da Gomes Teixeira, o meu maior temor era o de não simpatizar com ele, como pessoa, o que destruiria a atracção e o "mistério" do "mito".
Enganei-me, fiquei encantada! Ele irradiava entusiasmo, carisma (à sua contida e aristocrática maneira). Lembro sempre a 1ª impressão, o olhar, o sorriso... Se me perguntarem como era o gabinete, a secretária, o seu fato, a cor da gravata, não sei. Não fixei nada, para além da figura, da expressão, da cortesia, das palavras, que ainda ouço, na memória...Quando o cumprimentei como " Senhor 1º Ministro", disse-me de imediato: "Não me chame 1ª Ministro". Ao que respondi: "Desculpe, mas vou sempre chamar-lhe 1º Ministro, porque esperei tempo demais para lhe poder chamar assim!"
E assim sempre fiz.


Uma longevidade política acidental

Ainda hoje estranho ter andado tanto tempo na política nacional.
Quase 3 décadas, entre 1978 e 2005, com um único hiato, durante os 5 meses do Executivo Pintasilgo, logo em 79. Fui ficando, dia após dia, ano após ano. Quando vai havendo um fio de meada, é difícil cortar o fio. Acho que as situações, os trabalhos, se foram encadeando e só isso explica uma longevidade política que, à partida não entrava nos planos (planos que foram sempre pouco detalhados – baseados na preferência genérica por qualquer tipo de investigação ou assessoria técnico-jurídica – nada de competição feroz, de luta por lugares... E não queria mandar em ninguém… Gostava da vida que tinha: escrever um artigo, uma recensão para a revista do Centro de Estudos, analisar ou reformular o articulado de um projecto de decreto-lei (no simpático gabinete do 1º andar da Praça de Londres, que partilhava com o Carlos Branco); anos depois, despachar os processos que me cabia informar no Serviço do Provedor de Justiça, na 5 de Outubro, onde dividia o gabinete com a Branca Amaral. E depois, livre de toda e qualquer preocupação, ia à sessão das 18.00 a um dos muitos cinemas próximos (quase todos os dias da semana). Em casa, na Av, do Uruguai (a partir de 1970), tudo estava em ordem. Tinha "governanta" - uma velha amiga, que era mais do que família, tinha andado com a minha Mãe ao colo - a Maria Póvoas. Cozinhava muito bem, tomava todas as decisões domésticas. Adorava animais, tal como eu, e, por isso, aventurei-me a comprar uma cadelinha lindíssima, a um vendedor de jornais, (e, nesse dia, também de uma grande ninhada de cachorros...) em plena Praça dos Restauradores, junto ao Palácio Foz. Bem vistas as coisas, foi um dos tempos mais felizes da minha vida.
Tinha acabado de me separar, judicialmente, do meu ex-marido, logo depois do regresso de Paris, onde passei dois anos (que já tinham sido de separação de facto...). Encarei, pois, muito bem o desenlace, sem fazer dramas. Não havia razão para tanto. Ele foi sempre um homem amável, gostava de cinema e de animais, como eu. Escrevia, desenhava e pintava talentosamente. Mas foi um estudante cabula e boémio - logo por aí devia ter adivinhado que tinha uma filosofia de vida completamente diferente da minha. Em tempo de namoro, não se dá importância a coisas dessas... Enfim, perdi o marido, mas não o amigo.

Paris 68...

Parêntesis, para dizer que vivi em Paris entre Outubro de 68 e Julho de 70, com uma bolsa da Gulbenkian, e com o beneplácito do meu Centro de Estudos. Fiz uma pós graduação em sociologia.
Um tempo que deixou saudades! Residia na Cidade Universitária, primeiro na Casa de Portugal, depois na da Argentina - vi-me logo num grupo de gente interessante, que os outros chamavam "os católicos progressistas", ainda que alguns não fossem muito católicos e outros só fossem progressistas no sentido de serem democratas num país ainda em ditadura... Depois, no 2º ano foi como se tivesse emigrado para o sul da América do Sul. Fiquei pró -Argentina para o resto da vida...

Voltando à política:

Fui para o governo Mota Pinto, sem ter, como disse, prévia experiência de qualquer forma de “mando”… E, coisa determinante da disponibilidade, sabendo que seria por pouco tempo. Exactamente como quando fui para Coimbra, dar aulas. Levada pela curiosidade, para experimentar coisa nova e ver se, como pareciam pensar os ilustres professores que me convidavam, eu dava conta do recado. Procurando fazer o melhor que me fosse possível (é claro, porque num mundo de homens, uma feminista não deve falhar, sob pena de pôr em causa, porventura, a progressão futura de outras mulheres...). Mas não queria subir muitos degraus na política, como não queria passar anos e anos fechada num gabinete a preparar uma infindável tese de doutoramento em Direito. (investigação, pareceres, sim, mas em dose curta…).
Estas duas intromissões em universos alheios, que não sentia como verdadeiramente meus, estão, aliás, interligadas. Nunca teria aceite um cargo público, um palco de exposição tamanha, se não tivesse passado antes pelo palco um pouco mais resguardado da docência... O contacto com "multidões" de alunos funcionou como um estágio de formação para o contacto com outras multidões. Além disso, não posso esquecer que entrei na política pela mão dos professores com quem colaborava na universidade.

A universidade, sem problemas, em tempos agitados

...A relação com os alunos correu sempre muito bem - não me lembro de ter tido com eles o mais pequeno problema, nem na "Católica, onde dei aulas práticas de sociologia, como assistente de Álvaro Melo e Sousa, pouco depois do regresso de Paris,(anos 1970), nem na Faculdade de Direito de Coimbra (74-76), nem depois, nos anos 90, no mestrado de Relações Interculturais, onde regi um curso sobre Políticas e Estratégias para as Comunidades Portuguesas.
Bem vistas as coisas, foram experiências bem melhores do que as da política.
E há vários políticos entre os meus ex-alunos, caso de Marques Mendes, Júlio Meirinhos, José Ribeiro...

Mas a política também teve poder de atracção, com o seu lado ético, a par do tal lado lúdico, de que falava Sá Carneiro. Boa parte do tempo, deu-me gozo tomar as decisões que pude tomar, (uma vez por outra, em guerra com os ministros ou o governo inteiro…), estabelecer pontes com pessoas, associações, governantes estrangeiros, que nos apreciam mais do que os domésticos... Ía bem comigo estar em movimento constante, de continente em continente. Falar em nome de portugueses quase sempre os mais esquecidos, como são os emigrantes. Tentar mudar alguma coisa, ao nível em que me situava - que nunca foi o mais alto nível. Às vezes dizia para mim própria, só continuo por aqui, por falta de concorrência… As dificuldades são tantas, tantas as batalhas contra o muro da indiferença geral, que tornam a pasta ingrata, desgastante. Quem trabalha com a emigração acaba por ser tão marginalizado como os emigrantes…
Das questões, das pessoas gostei: quando saí dos lugares políticos, deixei-me ficar no “lugar afectivo” da emigração (parece exagero sentimental, mas é verdade…).

Do ponto de vista muito pessoal - que, evidentemente, não é o que mais interessa, mas como estou a falar de mim, porque não dizê-lo? - o trabalho na emigração deu-me ilimitadas oportunidades de me surpreender a mim mesma. Não imaginava que iria habituar-me a viver dias e noites inteiros dentro de aviões, como quem está em solo firme... A falar em público, horas a fio - certamente uma praga, para quem tinha de me ouvir... A fazer tantos amigos, que, noutras circunstâncias não encontraria... A conhecer por dentro tantas comunidades do estrangeiro, que são insolitamente mais portuguesas do que Portugal. Incrível a sensação de atravessar continentes inteiros, parando aqui e ali, sempre em ambientes familiares, nossos, como se não tivesse saído das fronteiras! Depois, a gente habitua-se, mas nem por isso este mundo é menos estimulante, porque é cheio de dinâmica, ainda quando procura sobretudo "conservar" (costumes, tradições, músicas, sabores... uma graça!). Um mundo de feição muito masculino - nessa ânsia de preservar a essência das coisas, guardando todos os preconceitos de “género” - as mulheres sempre nos bastidores, de onde começaram a sair, mas devagar.
Surpresa das surpresas: o aceitarem-me tão bem. Ainda não terminara a 1ª visita às comunidades e já me apercebia de que o facto de ser mulher era uma vantagem. Disse-mo, no ano seguinte, um jornalista de San Diego, depois de uma entrevista, num descontraído almoço (eu a saborear uma posta de tubarão frito, porque não resisto a experimentar pratos “exóticos” e quase sempre gosto). Segundo ele, Secretários de Estado populares na Califórnia, só o João Lima e eu. Ficou um minuto silencioso, olhou para mim e continuou: "mas bem vistas as coisas, ele até tem mais valor. Para ele foi mais difícil, porque é homem e socialista"
Socialista é óbvio - na América desqualifica seriamente e desperta “fantasmas”, porque Mc Carthy deixou larga descendência espiritual. O "género" não pareceria tão óbvio. Mas concordo com ele. ( vox populi…).
Não é difícil a uma mulher exercer estas funções, difícil é chegar lá, através dos labirintos dos partidos do poder. Mesmo que apenas de um poder pequeno… Fiz o meu quinhão normal de inimigos, mas nunca acredirei que fosse em razão do sexo. Era antipatia pela pessoa, ou pela minha posição política – não necessariamente em quadrantes opostos, às vezes dentro de facções do próprio partido - ataques maldosos, pretextos obtusos para o “deita abaixo”, que começaram logo na fase seguinte à morte do Dr. Sá Carneiro. Visto retrospectivamente, não foi nada demais, era de esperar. A luta partidária é assim mesmo. Estava, internamente, na oposição (como não-balsemista), e não tinha raízes no PSD. Oficialmente, tinha assinado a ficha - porque quis, ninguém me pressionou - quando aceitei a emigração ("ubi commoda, ibi incommoda", julguei eu…). Normal, pois, que os “balsemistas” achassem que era a hora de correr comigo, do governo, e, depois, do parlamento. Do governo foi fácil, na 1ª remodelação, em Agosto de 1981. (primeiro o MNE chegou a convidar-me para continuar com ele, no barco onde já vínhamos a navegar, depois, com algum desconforto, teve de me dizer que Balsemão recusava o meu nome, insistia num dos seus fieis, nada mais nada menos do que o José Vitorino, que aspirava ao Turismo, ou às Pescas e teve de contentar-se com as Comunidades - em vez de Raquel lhe deram Lia, e com ela, ao contrário de Labão, se contentou...).Veio este episódio contado no jornal Tempo, com o título "O desconvite"..

Da AR, em 1983, não conseguiram banir-me, apesar de ainda terem sido eles a fazer as listas, num tempo em que Mota Pinto já era o futuro imediato. O meu caso discutiu-se durante horas, à mistura com uma interpretação dos estatutos (as listas não podiam ser alteradas pela instância que as estava a alterar, nomeadamente no meu caso, ali, em pleno Conselho Nacional...). De um lado, Alberto João Jardim, a terçar armas por mim, do outro o inevitável Mota Amaral e mais algumas figuras do clã Balsemista. Assim dividi os dois presidentes das regiões! Vencedor absoluto: AJJ. Estou a vê-lo, na sua veste de advogado da minha causa… Depois disso (essa era a hora H!), tornou-se muito mais complicado removerem-me… Saí, pelo meu pé, com o lugar ainda disponível no círculo de Fora da Europa, 24 anos depois!
A paciência, que foi preciso ter! E que até tive, alternando com muitas irrupções de irritação… No calor da batalha, nem sempre poupei as palavras, e quantas vezes terei exagerado… Sabe bem quem me viu em acção… Não foi um grande percurso ascensional – mas também, da minha parte, não fiz muito para que fosse.

Comecei pelo Governo, daí passei ao Parlamento e, abandonada, aos 62 anos, a política no plano nacional, vi-me aliciada para a participação ao nível autárquico. Vereadora da Câmara de Espinho (aonde há décadas resido). Só me falta a experiência numa junta de Freguesia, para correr, no sentido inverso, é claro, todos os degraus de uma carreira política.
Na transição do Governo para a AR, um candidato do PRD, um castiço chamado Laceiras, durante um debate numa rádio meio pirata (belo tempo esse das rádios livres, em Paris, como em Portugal!) comentava: Não se percebe o que ela vem fazer aqui. Está no governo e quer concorrer para a AR. Quer passar de cavalo para burro!
A “cabeça de lista” que era um modelo de comportamento ético, de contenção verbal, de boas maneiras, a Teresa Santa Clara Gomes, ficou lívida, sem palavras!
Mas a verdade é que eu nunca vi as coisas “à Laceira”. Todos os cargos são equivalentes, dependendo do que lhes conseguimos dar, que é mais importante do que aquilo que nos dão.

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