domingo, 2 de agosto de 2020

A AVÓ MARIA

A Avó Maria Aguiar era figura pública proeminente em Gondomar, vila antiga, na fronteira 
sudeste do Porto. Os seus sete filhos, incluindo minha mãe, e todos os netos eram referidos,
 falados e considerados em função dela, para sempre umbilicalmente ligados à aura e ao 
nome da matriarca, quase sem luz própria, por mais brilhantes que fossem. 
Nasci na sua casa, cercada de jardins murados, com um mirante florido na frente de rua e 
pomares e vinhedos a perder de vista, por detrás da mansão grande de "brasileiro", de cor 
rosada e venezianas verde escuro. A Vila Maria.  Aí, com ela e meus Pais, fui tão feliz 
quanto se pode desejar, nos primeiros oito anos de vida. Com ela, aprendi a gostar de
 histórias, (e mais de narrativas engraçadas sobre si e a família do que de contos infantis), a
 declamar poemas de Guerra Junqueiro, exercitando a memória em alguns dos que parecem
 intermináveis ("O melro, eu conheci-o, era preto, brilhante e luzidio... ), a bordar pequenos
 quadrados de linho a ponto de cruz, com o mínimo possível de habilidade inata. E a 
comportar-me surpreendentemente bem, tanto em procissões e novenas de Igreja, como 
nos lanches das confeitarias portuenses, a Villares ou a Ateneia, onde lhe fazia boa 
companhia. Criança rebelde, com reputação de indomável, várias vezes, emboscada atrás 
de um móvel, ou de uma porta, ouvi a Avó levantar a voz para me defender, dizendo:
 "Ninguém compreende esta menina! É preciso explicar-lhe a razão das coisas. Se ela
perceber, aceita tudo muito bem". Na verdade, eu gostava de satisfazer expetativas, era 
sempre  muito capaz de corresponder, na ação imediata, ao pior ou ou melhor que 
esperavam de mim...
A esta persuasiva pedagoga e querida Avó devo algumas das mais extraordinárias alegrias 
da infância, entre as quais se contam: a compra de uma carteirinha de verniz vermelho, 
usada a tiracolo, (a contragosto dos pais, naturalmente...), a oferta de um grande boneco 
pretinho, por muito tempo mirado e namorado na montra do bazar de Sá da Bandeira, e o
 traje de anjo amarelo, de grandes asas brancas, com que desfilei pelas ruas de São Cosme,
 em cortejo procissional, depois de vencida, uma vez mais, pela avó a relutância de mãe e pai
 em satisfazer tão ardente e desvalorizada ambição infantil. 
Todavia, à Avó devo, igualmente, a remota origem do meu feminismo - o que não era, de 
todo, resultado que ela desejasse. De uma família de mulheres fortes, as mais heterodoxas
 das quais pareciam saídas de romances de Agustina, herdeira da sua fibra, era, porém, ela
 própria, um assumido expoente de conservadorismo e da prática das virtudes consideradas 
femininas, primeiro durante um casamento de dezasseis  felizes anos, e, depois, ao longo de
 uma sofrida viuvez de mais de meio século. A sua influência na "res publica", crescera 
circunscrita ao pequeno círculo bem frequentado e bem visto das obras paroquiais, onde 
debutou, e extravazou, numa dinâmica natural, para o da comunidade, como um todo, do 
campo da assitência e do atendimento de casos sociais, ao da cultura, organizando 
peregrinações, a par de récitas e concertos beneficentes, cujos ensaios, muitas vezes, 
decorriam na sua sala do piano (piano que era emprestado para os espetáculos, fazendo,
 entre a Vila Maria e o Cine Teatro Nun' Álvares, uma curta e improvável viagem em carros
 de bois, necessariamente seguida de intervenção de um afinador). Outras vezes, as arcadas
 e a espaçosa adega do piso térreo transformavam-se em estaleiros de produção de carros
alegóricos, ornamentados com flores de papel, confecionadas, aos milhares, por ruidosos
 bandos de meninas, a que as netas tinham licença de se juntar. 
Para tudo havia regras, naquele mundo que se movia, sob o impulso de Maria Aguiar, a 
intransigente defensora do recato e das "boas maneiras" feminis, ao serviço das quais, 
tantas vezes, brandamente, me repreendia: "as meninas não fazem isso!".
 Isso sendo o que era permitido aos primos da minha idade, como subir às árvores do jardim,
 ou até aos telhados, saltar de carros eléctricos em andamento, jogar à bola com os garotos 
da rua...  Enfeitar altares ou colar florinhas de papel colorido em painés, ao som de canções
 populares, ou de Cânticos religiosos, sim, eram tarefas de  meninas... O plural "as meninas" 
intrigava-me... A argumentação da Avó, neste capítulo, não me soava convincentemente, 
não respondia aos meus "porquês"... Achei por bem provar, a mim mesma e aos outros, 
pela "praxis", que "as meninas" podiam tornar-se, com o continuado exercitar, tão aptas 
como os rapazes a cumprir objetivos nos muitos domínios interditos. E assim me converti, a 
partir dos seis ou sete anos, ainda que sem consciência clara da existência das questões de
 género, em feminista praticante... Por sinal, os homens da família, o pai e o avô paterno, o
 inequecível Avô Manuel, cedo me iniciaram na paixão pelo cinema, pelo teatro e pelo futebol,
 não mostrando partilhar as preocupações das avós, ambas a Avó Maria e a Avó Olívia, em
 completa sintonia nas suas teses sobre a construção cultural do feminino... .
Numa altura em que tanto já ressentia, em causa própria, as discriminações de sexo, não me
 ocorreu, nunca, indagar o porquê da posição singular que a Avó Maria ocupava na 
sociedade local, a tal ponto a via como decorrente de uma autoridade natural, de um estatuto
 seu, inquestionável. Só muito mais tarde me apercebi de que o ganhara num trabalho 
incansável, e interminável, que, mais do que vocação, fora destino, fatalidade de se ver 
mulher só, e ter de encontrar os modos de se realizar numa outra vida. Ela e a “sua
 circunstância”…
Maria da Conceição Barboza Ramos era a mais nova de oito filhos de Carolina Ferreira
 Ramos, (de uma família enraizada, há séculos, em Gondomar) e de Joaquim Mendes 
Barboza, o tabelião, que viera do norte (Bitarães, Paredes), para nunca mais deixar a terra 
de adoção. Em tudo fora menina do seu tempo e condição social. Depois da escola primária,
 recebeu, em casa, os ensinamentos de explicadores e dos pais (o pai fora professor, por
 pura vocação, antes de enveredar por carreiras jurídicas e,  ser,finalmente, por décadas, o 
notário de Gondomar). À espera de encontrar noivo. Das três raparigas, só uma, Glória, se
 formou na Escola do Magistério, no Porto, e nunca exerceu. A tuberculose levou-as aos 21 
anos. O curso, pela raridade, bastou para que fosse uma das poucas mulheres biografadas 
na monografia “O Concelho de Gondomar”, ao lado do pai, irmãos e vários parentes 
masculinos, com largo “curriculum” de intervenção cívica e política.
A Maria, jovem inteligente, prendada, e lindíssima, não faltaram pretendentes. A sua escolha
 recaíu num conterrâneo emigrado no Brasil. António Carlos Pereira de Aguiar, nas suas
 próprias palavras, pessoa “muito ilustrada”, homem bonito, com enormes e expressivos 
olhos verdes, como nunca vira outros. O Avô António partira para o Rio de Janeiro em 1996, 
om 16 anos, levado por um dos seus quinze irmãos, João, bastante mais velho, quase com
 idade para ser seu pai, e, por essa altura, já um muito próspero joalheiro. O jovem António
 Carlos, revelando-se exemplar discípulo do melhor mestre, numa época aurea de 
desenvolvimento do país, como foi, para o Brasil, o início de novecentos, fez fortuna rápida
 e honesta, e era, então, o dono de uma joalharia da moda, na rua do Ouvidor. Sendo a Avó
 Maria uma incondicional entusiasta de viagens e excursões, de muita movimentação e
 convívio social, até aos seus últimos dias dos seus mais de noventa anos, é possível que a
 perspetiva de viver, por uns anos, no mundo novo brasileiro, com frequentes visitas à sua 
terra, a bordo de esplêndidos paquetes,  tenha sido fator de peso na aceitação daquele 
pedido de namoro, logo depois convertido em pedido de casamento. Da parte do Avô Aguiar, 
fora o "coup de foudre", "amor à primeira vista" e até que a morte os separou... No mais 
clássico modelo de papeis conjugais, com rígida divisão de tarefas, uma união perfeita! Dos
 oito filhos, só três nasceram no Rio. Maria preferia ter os meninos em São Cosme, no conforto
 da casa materna... Vinha o marido, de bom grado, trazê-la e buscá-la e, durante o tempo de s
separação, escrevia-lhe extensas cartas de amor, em tudo idênticas às dos tempos idos de
 noivado...O noivado durou dois anos e está documentado por uma preciosa sucessão de
 postais ilustrados, com breves mensagens, que diríamos uma espécie de “tweets” do início 
do século passado, para troca de breves saudações amorosas e anúncio do próximo envio de 
longas cartas,infelizmente, quase todas desaparecidas....
A Gondomar regressaram em 1920, e viveram, por breves anos, na terra e na casa dos seus
 sonhos. A morte súbita do Avô António, aos 46 anos, deixou a viúva num estado de
 depressão profunda, que ameaçava eternizar-se. A senhora elegante e mundana das salas
 de festas transformou-se em vulto negro e austero (não menos elegante) dos salões 
paroquiais... Os retratos contam, sem necessidade de palavras, a tragédia da sua vida, na
 forma e colorido dos chapéus, das "capelines" floridas da senhora casada a que se sucedem
 os pequenos chapéus de viúva, rentes à testa, enfeitados por uma simples "aigrette" (a que 
chamávamos, na sua ausência, "os quicos da Avó"). O momento da grande mutação foi o da
 perda do papel de esposa perfeita, em que teve de se assumir como mãe e o pai de sete 
crianças (difícéis e desafiantes...), com idades entre os dois meses e os catorze anos. Do 
torpor de muitos, muitos meses saiu, buscando orientação na fé, nas crenças e práticas 
religiosas, fonte inesgotável de novas energias, e razão de viver, intensamento, para a 
família e para os outros..   
Fora a mulher do empresário António Aguiar, que o  caráter extrovertido e generoso, tornara tão 
estimado e popular no Rio de janeiro, como em Gondomar. Enquanto a sua memória permanecia 
entre os daquela geração, foi a sua respeitabilíssima sua  viúva. E, por fim, ela própria, Maria Aguiar, 
líder no feminino, universalmente querida e  admirada. Protetora dos pobres, confidente e conselheira 
nas horas difíceis. Do seu apostolado de leiga, da organização de peditórios, peregrinações, 
festividades religiosas, passara aos domínios adjacentes da animação cultural, organização de récitas
 e concertos beneficentes, deixando, vir, de novo, à superfície o seu gosto pela música, poesia e 
teatro, num mesmo quadro de voluntariado socialmente aprovado para as senhoras. Latente, 
sempre, o culto do marido, simbolizado na sobriedade dos trajes escuros (em que se permitia o
 roxo e o cinza), ou no cuidado com que podava, por suas mãos, as rosas, com as quais ele se a
presentava em exposições, (nunca filhos, netos nem os criados saídos das cadeias lhes puderam
 tocar). E no uso do seu apelido Aguiar. . O nome que, hoje, descendentes de quarta e quinta geração
 continuam a usar, preterindo outros, do ramo materno e paterno, apenas por ser o dela. 
E não só por ter sido essa notável cidadã. Mais ainda, por ter sido a nossa Avô, a prodigiosa 
contadora de histórias, a grande matriarca, a força que reunia à volta da mesa na casa, que, sendo
 dela, era de todos, da família inteira, uma família enorme, na intimidade das ceias de Natal ou nas 
festivas visitas do compasso pascal, em casamento e batizados e em todas as reuniões  que se 
inventavam para juntar o todo. Na mais completa fragmentação familiar, que se seguiu ao seu tempo, 
é ainda, afinal, a memória da Avó Maria Aguiar, que nos reune, à volta do seu nome, na árvore 
genealógica de afetos.  

Sem comentários:

Enviar um comentário