Tem a palavra a família Aguiar e os seus amigos. Vamos abrir o "Círculo", com duas alternativas, que proponho: Este "Aguiaríssimo" ou o "blogguiar.blogspot.com"
quarta-feira, 8 de novembro de 2023
MARIA LAMAS
Maria Lamas é uma mulher verdadeiramente intemporal, que tem um lugar ímpar na história portuguesa do jornalismo e das Letras, do movimento feminista em meados de novecentos, e da luta contra a violência de uma longa ditadura. Foi protagonista maior, em todos estes domínios, senhora de um destino extraordinário, num dado tempo, particularmente ingrato, que, sobretudo por ser mulher, a obrigou a vencer mil obstáculos, preconceitos misóginos e perseguições da polícia política. Figura intemporal, antes de mais, como paradigma de cidadania vivida audaciosa e apaixonadamente, com uma visão clara do devir português, uma crença na força criativa e subversiva das mulheres para mudar o velha Ordem, e o velho mundo anacrónico do chamado “Estado Novo”, sempre numa atitude coerente de generosidade.
Nascida ainda no século XIX, foi aluna do “Colégio das Teresianas Jesus, Maria e José”, estudando num ambiente religioso, onde se sentia bem integrada, e onde cedo terá despontado o sentido de missão, que, mais tarde, alargando horizontes com projetos de carreira profissional e de intervenção cívica, se consumou no humanismo laico e fraternalista com que fez percurso, num combate sem fim pela justiça, pela igualdade e pela paz.
Casou aos 18 anos, com um republicano, Oficial de Cavalaria, e com ele viveu três anos em Angola. No regresso a Torres Novas, ainda muito jovem , já vislumbramos, em iniciativas meritórias, a militante de ideias e causas que não tardaria a revelar-se plenamente: é voluntária da Cruz Vermelha, organiza saraus de beneficência para ajudar famílias dos soldados, publica na imprensa local artigos sobre a guerra (a 1ª Grande Guerra). Aos 26 anos, depois do divórcio – que, à época, era visto como um ato de rebeldia ou de afrontamento dos "bons costumes", de submissão feminina – fixa-se em Lisboa e torna-se pioneira no jornalismo, que era ofício de homens. Trabalha, primeiro, em “A Capital”, depois no grupo editorial de “O Século”, dirigindo, durante muitos anos, a revista feminina “Modas e Bordados” – o mais improvável dos instrumentos para empreender o que ousou: promover uma revolução de mentalidades, mobilizar as jovens da sua geração para a vivência cidadã e profissional. Usa o seu habilmente para aconselhamento, um “correio de leitoras”, que, é, para ela, um posto de observação e lhe permite a tomada de consciência dos problemas e dilemas de mulheres de todas as idades. A sua obra mais emblemática, que podemos classificar como “monumental”, " As Mulheres do meu País”, terá tido aí a sua pré-história.
É nesta sua forma de dar concretização pragmática e eficiente aos valores e ideais que a norteiam, e numa rara capacidade de realizar coisas grandes com meios parcos e banais, persistência e incomparável brilho, que Maria Lamas me parece singularmente inspiradora, hoje e em qualquer época.
O “correio” da popular revista feminina teve um enorme impacto, o mesmo se podendo dizer de grandiosas exposições que, sob o patrocínio de “O Século”, organizou, para dar do papel mulher sua contemporânea, em diversas sociedades, domínios e circunstâncias, uuma visão dignificante e mobilizadora, confirmada por factos e por feitos, com que desmentia, categoricamente, a ideologia misógina e opressiva do salazarismo - a última das quais, patenteando obras de mulheres escritoras de todo o mundo, lhe custou o emprego, uma sólida carreira e, até, a segurança pessoal. Daí em diante, Seria alvo de repetidos atos persecutórios do regime, que queria bani-la, implacavelmente, do espaço público. Em tempo de repressão e declínio do primeiro movimento feminista português, foi ela a última presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, expressão máxima desse associativismo revolucionário, que começara com Adelaide Cabete, nos primórdios da República. Um Decreto do Governador Civil de Lisboa extinguiu o CNMP, sem conseguir, contudo, silencia-la, ou erradicar os seus ideais de igualdade, (que, a par de algumas, poucas companheiras, encarnou, durante o interregno que iria até à formação da segunda vaga do movimento feminista, na década portuguesa de setenta) .
Maria Lamas estava, então, divorciada do segundo marido, o jornalista monárquico Alfredo da Cunha Lamas, tinha as filhas a cargo, dependia de si e do seu trabalho... Não se deixou abater - pelo contrário, recomeçou, com redobrado ânimo, um solitário e fecundo exercício de jornalismo de investigação, abraçando desafios cada vez maiores. Munida de uma máquina fotográfica, papel e caneta foi, pelo país adentro, em toda a espécie de deficientes meios detransporte, recolher depoimentos e testemunhos de mulheres de todos os misteres e condições, até às aldeias mais remotas e inacessíveis. Deu-lhes, livremente, voz e visibilidade num retrato coletivo, de alta precisão, de incomensurável valor humano, literário e científico. Uma obra prima do jornalismo português, que é também, um grito de revolta contra a exploração económica, a pobreza, quando não miséria, o confinamento de horizontes, num todo em que a metade feminina era duplamente vítima de subjugação.
Maria Lamas viveu, assim, corajosamente, nas décadas seguintes, sem ceder, ativista dos Direitos Humanos, tão eficaz a usar a escrita, como a recorrer à ação concreta. E não menos admirável foi na sua veste privada! Sozinha educou as filhas, influenciou e cativou as netas, os netos, através de cujos testemunhos sobre a “Avó Maria”, ficamos a conhecer melhor o seu encanto como pessoa, a sua irradiante beleza de rosto e de espírito, o temperamento afável e bondoso, a constante dedicação aos que tratava como família, num círculo que se ia alargando. Durante os anos de exílio, em Paris, tornou-se a "Avó Maria" de um sem número de expatriados, que nela encontravam, invariavelmente, amizade e apoio.
À terra voltou para gozar os seus últimos anos na democracia que ajudou a refundar. Ainda lúcida, combativa, carismática, aberta à modernidade! Ao Estado coube atribuir-lhe, como não podia deixar de ser, a Ordem da Liberdade. Aos Portugueses, em cada nova geração, cabe guardar a memória do exemplo de vida que legou às "Mulheres (e aos Homens) do seu País".
CINEMA EM SALA DE ESPETÁCULO - MORTE ANUNCIADA?
1 – Não nasci em Espinho, mas, tudo somado, aqui passei a maior parte de uma já longa existência. Foi escolha bem pensada e individual, embora seguindo uma tradição que é já de três gerações. Avós paternos e pais aqui quiseram gozar a reforma, como eu faço agora. Nos meus tempos de infância e juventude, Espinho era, para mim, sinónimo de lazer e de liberdade. E, na verdade, apesar de termos mudado muito, tanto eu como cidade, esta continua a sê-lo…. Tenho uma paixão pelo oceano de correntes fortes e águas frias, pelo “nosso mar”. Ainda por cima, se há coisa que evoluiu pela positiva é precisamente… o mar! Os paredões criaram, em frente à emblemática rua 19, uma autêntica piscina natural, onde é, agora, mais seguro e confortável nadar, sempre com surfistas ao largo. E a bonita piscina, inaugurada quando eu mal sabia andar, está como nova, e a marginal bem cuidada, do Rio Largo a Silvalde. Vão crescendo zonas de esplanada, restaurantes, cafés… Cafés que, todavia, não fazem esquecer os antigos, os da Avenida, os palcos perdidos de tertúlias memoráveis, e a própria movida de gente elegante no seu vaivém sob palmeiras majestosas… Esse Espinho da nossa nostalgia não volta mais. Mais vale valorizar o que é, talvez, ainda possível. O cinema, por exemplo.
2 - De entre todas as atrações que a vila, (e, depois, a cidade) de Espinho nos punha ao dispor, a mais extraordinária era, certamente, o cinema! Nem o Porto, com tantas e tão boas salas de espetáculos, se superiorizava, pois aqui o Teatro São Pedro e o Cine Teatro do Grande Casino de Espinho ofereciam-nos sessenta filmes por mês, graças á política de renovação diária da programação variada nas suas esplêndidas instalações! No início do mês, cumpríamos o ritual de ir às bilheteiras do São Pedro e do Casino pedir o programa quinzenal ou mensal e logo anotávamos os imperdíveis. Muitas vezes, dois bons filmes coincidiam no mesmo dia e lá íamos a um à tarde e a outro. À tarde, deixavam-nos ir sozinhas, á noite, não, mas os pais raramente estavam indisponíveis para nos levarem com eles. Éramos uma família de cinéfilos. Foi com meu avô Manuel que me “viciei”, desde cedo, em cinema. Lembro-me bem de ir pela sua mão, com cinco ou seis anos, a um Batalha recém-inaugurado. Via e gostava de tudo – comédias, dramas, operetas, “westerns” … tudo exceto filmes infantis.
Guardei alguns desses programas, em papel de variadas cores – azul ou rosa pálido, verde, laranja… - e com notas sobre cada filme. As notas são pura propaganda, à época eficaz – hoje hilariante. Do São Pedro, encontrei um programa de agosto de 1962 e outro de setembro de 1981. Com duas décadas de diferença, nada se alterara, nem o estilo redatorial, nem o horário das sessões (3,30 da tarde e 9,45 da noite). Porém, talvez por acaso, contudo, o nível da programação não é semelhante, com 62 a ganhar em qualidade com filmes como “Esplendor na relva”, “Rocco e os seus irmãos”, “O Desconhecido do Norte Expresso” (do “genial Hitchcock”, diz a nota), “O Rosto” (do “mestre Ingmar Bergman” não se esquecem de salientar), “A quimera do Ouro” (“com o incomparável e genial Charlot”) e, em “cinemascope”, em grande ecrã, “A Colina da Saudade, “Topaze”, “Austerlitz”.
Os realizadores, com a exceção de Hitchcock e de Bergman são omitidos (até Chaplin é apenas destacado como ator da sua obra prima!). Na primeira linha estão sempre os atores (Audrey Hepburn, a deliciosa “Boneca de luxo”, ou Vittorio de Sica em “O inimigo de minha mulher” e “O mundo dos milagres”). Coisa compreensível, pois era, sobretudo, as grandes estrelas que chamavam as multidões. Naquele agosto a minha assiduidade no S Pedro terá sido uma constante. Não assim em setembro de 81, com “Django”, “Mais forte que Bruce Lee” e similares… Mas certamente terei visto, na muito musculada seleção, Stuart Granger em “O grande atirador”, Sean Connery em “007 Só se vive duas vezes” e Steve Mc Queen em “Tom Horn”. Quanto ao Casino, de 1 a 10 de setembro de 1968, talvez não tenha perdido o anunciado “filme dos três óscares” com James Gardner, Eva Marie Saint e Yves Montand (“Grande Prémio”) e o Mr Solo (“em ação, Implacável! Atrevido! Eletrizante”, segundo o anúncio)
3 – Espinho é hoje, praticamente, uma cidade sem cinema! O São Pedro foi demolido sem piedade, na meia década de oitenta, e a moderna sala com que o Município garantia a sua continuidade, poucos anos depois, vendida a uma dessas novas religiões… E o Casino, que possui uma das mais belas e confortáveis salas de cinema do país, fechou portas. Finito – aparentemente, sem protestos de ninguém.
Resta, hoje, o imponente salão do novo “Centro Multimeios”, que, porém, na melhor das hipóteses, propicia aos espinhenses, um filme por semana - quatro por mês! Mas nem isso nos assegura, porque os hiatos na programação são frequentes e, note-se, vistos como coisa normal. As prioridades são outras, a última prioridade é o cinema… que parece querer limitar-se aos festivais – Cinanima, FEST. e cineclube. Neste dezembro de 2022, o “FEST -cineclube de Espinho” exibiu, no Auditório do Casino seis filmes (nos dias 3, 7, 10, 14, 17 e 19). Foi muito mais do que o Multimeios. É de saudar e louvar, sem sombra de dúvida. Tal como os Festivais, que mantêm Espinho no mapa- Mas isso não pode compensar a falta de regularidade e de variedade da oferta, que são os fatores fundamentais de uma política cultural capaz de fomentar o gosto pela frequência das salas de espetáculos, a resistência ao declínio das, que parece fatal, das audiências.
Eu estou entre os que não acreditam nessa fatalidade!
E não vou longe buscar paradigmas inspiradores. Não penso nos “shoppings”, com a sua multiplicidade de salas, que, finda a pandemia, vão recuperando o seu público. Não são exemplo para a nossa cidade, que, neste campo, não vai além de supermercados (todos do ramo alimentar). Mas há, aqui bem perto, no centro do Porto paradigmas admiráveis, que apostam em salas de dimensão modesta, perfeitamente ao alcance de Espinho – o Trindade e, agora, neste final de 2022, o mítico Batalha ressuscitado.
O futuro do Batalha está apenas a dar os primeiros passos. É cedo para celebrar o seu sucesso. Não assim o Trindade, que, com duas pequenas salas (excelentes!), prossegue, há anos, uma programação de qualidade. E em quantidade! Hoje, 5ª feira, 29 de dezembro, em diferentes horários, nas duas salas, há sete filmes em exibição: “Os Fabelmans” de Spielberg, os portugueses “O Natal de Bruno Aleixo”, e “Lobo e cão”, um filme premiado em Veneza, “Ossos e tudo”, a comédia “Ruído branco”, a evocação da Imperatriz Sissi em “Corsage” e o thrillher sul-coreano “decisão de partir”.
Eu gosto muito de ir ao Trindade, mas confesso que gostaria ainda mais de ver algumas dessas longas metragens, aqui, em Espinho. E nem peço sete por dia. Em 2023, apenas um ou dois.
O MEU PRIMEIRO EMPREGO - "AU PAIR" IN LONDON
Ainda não tinha feito 16 anos e já era vista como jovem cosmopolita. Tinha ido sozinha a Paris e Londres...Hoje, para obter o mesmo reconhecimento, uma rapariga precisa de ir sozinha para Bali ou Machu Picchu, como a minha jovem prima Francisca….
Por acaso, na viagem de ida, à última hora, arranjei compan viajei com a Margarida Losa, colega de Liceu. Os nossos pais ficaram no cais da partida, a belíssima estação de São Bento, a acenar um “adeus”, como se fossemos para muito longe. Paramos, primeiro em Paris, passámos uns dias no modesto “Grand Hotel St Michel” (que foi a morada de exílio de Maria Lamas), mas, à chegada a Londres, logo nos separaram diferentes empregos sazonais (“au pair”): ela como dama de companhia de excêntricas velhinhas inglesas, eu como “nanny” das duas meninas de um abastado casal de judeus ortodoxos. Tive sorte, fui com eles para férias nas praias sem areia de Brighton e Hove, durante dois meses. O marido e pai, que era simpático e bem-humorado, simples no trato, (não parecia um importante associado de uma grande firma de advogados...), apercebeu-se da pobreza do meu vocabulário e incentivou-me a ler Agatha Christie e W Somerset Maugham, cujo inglês era tão esplêndido, quanto acessível. Comecei por “The body in the library e não parei mais.
O casal depressa terá também constatado a minha patente inexperiência, quer em trabalhos domésticos, quer na lide com crianças, mas foram sempre compreensivos e amáveis e as meninas (de cinco e dois anos), surpreendentemente, gostavam do meu estilo único. Apreciavam o exotismo da portuguesa – uma “nanny” como nunca se vira.
Tu cá, tu lá, e, ao mesmo tempo, exigente. Quando fazia uma ameaça, era a valer: "Lilian, se não comeres a sopa, não te levo ao mar, ficas toda a manhã a brincar na areia". Habituada à cedência dos adultos às suas súplicas, ela deixava o prato da sopa a meio e, depois, ficava mesmo de castigo. Moral da história: passou a obedecer-me. Nunca tinha acontecido anteriormente,e, por certo, não voltou a acontecer...
Fiquei a gostar muito de judeus, desde esse verão distante.
Um verão esplendorosamente quente, dir-se-ia mediterrânico, e permeado de curiosíssimos episódios, (que, porém, não cabem nesta breve nota). Gratificante foi, sobretudo, mostrarem-se sempre prontos a elogiar os aspetos positivos da minha "performance", no conjunto tão desajeitada. Assim aconteceu, por exemplo, num fim de tarde, em que passeávamos as duas, Mrs Balin e eu, ela empurrando a cadeirinha de Ruth, eu dando a mão à maior, que facilmente fugia, se pudesse. Lilian, a temível – muito parecida comigo quando era da idade dela, sempre em movimento, e a fazer perguntas. Nesse dia, a certa altura, decidiu pedir colo à mamã, que acedeu imediatamente (acedia a tudo). Mas eu logo sugeri: “A Lilian é tão pesada. Porque não a senta na cadeirinha e leva a mais pequena ao colo?”. Assim fez, claro, não parando de me elogiar: “How clever, of you, Manuela!” (pronunciando o “u” como “iu”).
Também o Sr Balin foi muitíssimo simpático no meu maior falhanço, um caso em que praticamente lhe esburaquei uma camisa. Sem querer, evidentemente... Nunca tinha usado um ferro de engomar na minha vida e fiquei interiormente aflita quando me pediu que lhe passasse a ferro duas finíssimas camisas brancas, mas não fraquejei. Nessa manhã, enquanto eles foram passear com as meninas e eu levei horas a executar a minha ingrata incumbência. Devagar, devagarinho, para não enrugar o material. A primeira camisa saiu ilesa das minhas mãos. Na segunda, sentia-me mais confiante, descontraí-me, a ponto de me permitir uma escapadela da atenção, em modo de "day dreaming". Por um fatal momento, parei o movimento de vaivèm do ferro, que deixou no branco imaculado a sua impressão digital em castanho escuro, a esgaçar o tecido. Um horror! Coloquei cada camisa aberta sobre as costas de uma cadeira. Vistas de frente, tarefa cumprida a preceito, colarinhos e tudo... Quando o Mr Balin entrou na sala, olhou, satisfeito, e felicitou-me exuberantemente. "Oh, não - respondi eu - fui desastrada. Tem de ver a parte de trás... E ele foi ver, e disse: "Não tem importância nenhuma! Eu nunca tiro o casaco no escritório".
Gente boa! Foram impecáveis - nem sequer me pediram para desempenhar as tarefas mais assustadoras, como mudar as fraldas à pequena Ruth … As crianças dormiam no meu quarto, mas quando essa intervenção se revelava necessária, eu ia chamar um deles para a executar. Marido ou mulher, tanto fazia, eram ambos muito competentes.
UM TREPIDANTE MÊS DE AGOSTO
1 – Detesto o mês de agosto. É tempo de férias em massa. Há as cidades que se despovoam e as que mais do que duplicam o número dos seus residentes, entre estas se contando Espinho e as suas belas praias. Os aeroportos enchem-se, as greves tornam-se apetecíveis, há filas, atrasos, gente amontoada por todo o lado, cafés, restaurantes, comboios... Na televisão, os meus programas favoritos entram em pausa e as notícias escasseiam, nos cinemas é o “déjà vu”. Nunca faço férias em agosto! Prefiro trabalhar e, como estava ligada à emigração, nunca me faltavam convites para colóquios, convívios, festas e inaugurações no “país profundo”. O interior desertificado ganhava vida em mil e uma aldeias, e era-me grato testemunhar essa "ressurreição". Agora fico em casa, em frente a um computador, ou a ler um livro, ouvindo música, e passeio à beira-mar, contemplando as multidões de “espinhenses sazonais” - todos bem-vindos, naturalmente. Eu aguardo setembro para iniciar a época de banhos que, com um pouco de sorte, se estenderá por um ameno outubro, quando a praia da baía, para além dos surfistas, é frequentada por meia dúzia de castiços nadadores, quase todos da minha geração.
Em suma, não gosto da “silly season”... Todavia, este ano foi coisa que não houve, num mês intenso, cheio de movimentações sociais, políticas, desportivas. As Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), o Campeonato Mundial de Futebol Feminino, os Mundiais de Atletismo, a visita do Presidente Marcelo à Ucrânia, a Cimeira dos BRIC e a Cimeira da CPLP praticamente não deixaram vazios na minha agenda de agosto.
2 – Primeiro foi a grande aventura humana das JMJ, que atingiram, na verdade, a perfeição terrena, confirmando a tendência dos Portugueses para descurarem as rotinas e se superarem para fazer o impossível… Antes, atravessaramos a fase das questiúnculas mesquinhas, mas, na hora da verdade, calou-se o coro de maledicência e ausentou-se, para longe, o notório antiPapa Dr. Ventura. Era a vitória de uma Igreja que já está no século XXI, com Papa Francisco e o nosso Bispo (em breve cardeal) D. Américo Aguiar, a quererem jornadas mais ecuménicas do que prosélitas. Que impressionantes imagens uma religião vivida em comunidade, na procura de Deus pela procura solidária dos meios de combater as injustiças e desigualdades muito atuais, por uma abertura à celebração festiva da fraternidade, na harmoniasa conjugação da música, da dança e da palavra. E agora? Irá a Igreja retroceder? A energia que pulsava nas JMJ era um regresso às origens do cristianismo, à alegria de viver a fé em comunidade. Só podemos desejar que não haja, nos "days after" um regresso à igreja das hierarquias e dos sermões envelhecidos…
Mal terminavam as JMJ em Lisboa, e já nas antípodas, se desenrolava o Mundial de Futebol no feminino. Outro sucesso universal – pela beleza do jogo, pela ascensão de novas estrelas, pelas espantosas assistências (os estádios repletos, o olímpico de Sydney, a bater o recorde australiano absoluto para qualquer desporto, com 75.748 espectadores), pelas audiências televisivas internacionais e internas - logo no 1º “match”, para ver as suas “Matildes”, a Austrália parou, com uma audiência televisiva nacional de mais de 46 milhões. Na final, e, certamente, não por acaso, defrontaram-se, pela primeira vez, as equipas europeias dos países onde se jogam as principais Ligas de futebol (de ambos os sexos), a inglesa e a espanhola. É bem patente que o futebol feminino cresceu nos maiores clubes do mundo, os “Manchester” e os “Barça”, e não nas escolas ou nas ruas – a isso obstavam preconceitos que vão mudando devagar.
Confesso que “torci” pela seleção inglesa, porque a sua vitória daria muito mais visibilidade, influência e poder ao futebol feminino. A Grã-Bretanha conserva a força da sua língua universal e a aura de grande potência no campo militar, político, cultural, desportivo, etc, etc. A Espanha não. Contudo, não poderia imaginar quanta lama a sua liderança federativa ia lançar sobre o futebol e o desporto em geral. De pouco valeu a superioridade em campo das jogadoras, o seu “fair-play”. Delas, do seu futebol tecnicista e rendilhado, feito de muitos passes, já ninguém fala. Só se fala de um homem, que as substituiu, ocupando o palco, com o escândalo de gestos obscenos, mais o tristemente célebre "beijo a Jenni", e o discurso misógino que proferiu, não num comício fascista do Vox, mas na sede da Real Federação espanhola, aplaudido de pé pelos seus pares, que assim se tornaram cúmplices de uma conduta vergonhosa. Rubiales vai, é claro, sair de cena, vencido pela reação internacional e nacional, do Governo de Madrid, da opinião pública, de gente de bem do futebol - Casillas, Xavi, Iniesta, Simeoni, os jogadores das equipas de La Liga com os do Cadiz a adotarem o slogan “todos somos Jenni”. Contudo, a grande vitória desportiva, soterrada sob um caso vulgar de violência e exibicionismo sexual, nunca mais recuperará a sua plenitude.
O despudor de Rubiales (não só o beijo à atleta Jenni, mas o exibicionismo de um gesto obsceno que as câmaras mostraram sem filtro e que, segundo ele era dirigida ao selecionador) ganhou um significado de “guerra dos sexos”, de guerra de mundos, o masculino, ainda dominante, e o feminino. O conflito entre as jogadoras e estes dois machos latinos, como é sabido, já vinha de trás. No fim, talvez elas ganhem a competição, pela 2ª vez….
3 - No terreno da política internacional, sobre as duas cimeiras referidas, direi, de momento, apenas, que é cedo para tirar conclusões. O alargamento dos BRIC aos tenebrosos regimes do Irão e da Arábia Saudita poderá cavar um fosso entre ditaduras e democracias, dificultando consensos e solidariedades, e, sobretudo, criar um maior desequilíbrio entre as partes, pelo desmedido reforço da única potência mundial que emerge no coletivo: a China! Doravante, os BRIC serão, nada mais, nada menos do que "a China e os seus satélites". O que ganharão com isso países como o Brasil e a Argentina? ...
E a CPLP? Dentro do que dela se pode esperar, começou bem. Tal como queria o nosso país, pela voz uníssona de Presidente e Primeiro Ministro, a próxima presidência não será entregue à Guiné Equatorial, (esse terrível "erro de casting"...). Assim se evitou, ao menos para já, um golpe tremendo na credibilidade da organização… E o regresso do Brasil a um papel de primeiro plano, é um bom presságio para a sobrevivência da organização. O Presidente Lula parece querer, felizmente, recentrar a Comunidade na vertente cultural, na defesa do reconhecimento internacional da língua comum. É, sem dúvida, a que pode gerar projetos agregadores de países países que quase tudo o mais divide. A cultura é o máximo denominador comum. E é, sem dúvida, o domínio onde Portugal é mais igual, face à dimensão territorial, ao potencial e às legítimas ambições de "colossos" como o Brasil e Angola. Por isso, considero inteligentes as propostas portuguesas de promover os intercâmbios de jovens e instituir o equivalente a um esquema "Erasmus" no círculo da lusofonia. As nossas universidades são o que de melhor temos para oferecer a futuros líderes de cada um dos países unidos pela língua, ou seja, ao futuro da CPLP. Pensar no longo prazo é preciso…
Em plena forma está o Presidente Marcelo. Que bem lhe correu o mês, com o momento alto do seu discurso em ucraniano!
E, por fim, mais uma alegria, mais uma vitória: os mundiais de canoagem, carreiam para a Pátria duas medalhas de ouro - uma das quais do campeoníssimo Pimenta, que ainda juntou à sua coleção a prata e o bronze.
Assisti, no domingo, à prova em que arrecadou a prata. Prova difícil para ele, por não ser de pura velocidade, ponteada por sucessivas paragens nas plataformas, que os atletas têm de atravessar com a canoa às costas…. E lá estavam as mulheres a disputar a modalidade, a carregar, como eles, as pesadas canoas, em passo de corrida (tarefa bem mais ciclópica do que pontapear uma bola) e, depois, a receberem as medalhas no pódio, em perfeita normalidade, sem que se levantassem ondas de machismo. Que bela lição a canoagem dá ao futebol....
2000 Brasil 500 anos
BRASIL - uma ÚLTIMA VIAGEM
Depois de deixar a VP da AR, raramente fui indicada pelo PSD para integrar delegações parlamentares - não incluindo aqui 13 anos nas delegações institucionais ao Conselho da Europa e UEO. Apenas duas idas ao Brasil, (a primeira para a inauguração de uma estátua em S Paulo, num dia 25 de Abeil, na companhia de vários militares da revolução de 74, a segunda nas festividades do 5º centenário da Descoberta, no ano 2000) e uma missão aos EUA, para defender a independência de Timor, junto da Administração americana, ainda muito pró-Indonésia.
Em 2000, coincidi com o Dr. Mário Soares na comitiva do Presidente Sampaio.
Foram dias maravilhosos, revi os amigos da nossa comunidade, estive permanentemente entre muita gente interessante, sempre em movimento, de cidade em cidade - Salvador, Porto Seguro, São Paulo, Rio.... De avião ou em deslocações em mini autocarros, muito confortáveis (poucas limousines), em que me sentei ao lado da Secretária de Estado da Cultura, ou do José Lello, Secretário das Comunidades. Com o Zé Lello, de longe a longe, a discussão subia de tom e, para acalmar os ânimos, o Dr Mário Soares chamava-me para me sentar com ele no banco da frente...
Já do ponto de vista de uma avaliação das comemorações em si, com a exceção de algumas belas exposições, a nota só pode ser negativa. Em Porto Seguro atingiu-se o ponto alto do baixo nível da agenda comemorativa:uma caravela, "made in Brazil" que devia aportar ali e então, encalhou desastradamente; algures nos arredores, nesse e nos dias seguintes, houve cargas da polícia sobre manifestações de índios, a programação cultural oferecia um "show" próprio para meninos da escola primária, danças de roda, frouxas serenatas nas ruas antigas do belo centro histórico, um concerto numa pequena capelinha apinhada de ilustres personagens... e a assinatura de uma adenda ao Tratado de Igualdade entre Portugueses e Brasileiros, que se limitava a diminuir os prazos para pedir o estatuto de direitos políticos e a coligir documentos pré-existentes. Tudo insignificante face ao significado da efeméride, como Mário Soares haveria de dizer, no ano seguinte, em linguagem contundente, numa audição parlamentar, de que falarei adiante. Todavia, a jornada iria revelar-se decisiva para o futuro do Tratado da Igualdade, acidentalmente, graças a uma conversa tida pelo Dr Soares comigo, no átrio do hotel de Salvador da Bahía, que poderia ter acontecido em qualquer outro lugar e em qualquer outro momento. Estávamos ali, de pé, adiantados em relação à hora de sair, fazendo comentários soltos sobre já não sei sobre o quê. E eu comecei a criticar o facto de Portugal se mostrar incapaz de corresponder aos avanços da Constituição Brasileira, que, doze anos antes, conferira aos imigrantes portugueses, a plenitude de direitos da nacionalidade, sob condição de reciprocidade. A não dação de reciprocidade na Constituição portuguesa suspendia o alargamento do estatuto em vigor, do qual aproveitavam tantos dos nossos compatriotas. Era, no Brasil, uma situação insustentável, um escândalo. Temia-se a qualquer altura a revogação do texto constitucional brasileiro. A hora certa de por fim à polémica era aquela comemoração, que, assim, ganharia "dimensão". O Dr Soares concordava a cem por cento com as minhas diatribes. Logo ali, acordámos um plano para promover em Lisboa, ainda durante o ano de 2000, uma revisão extraordinária da Constituição, (que exigia o voto de 3/5 da Câmara...).
O passo seguinte foi reunir na Fundação Soares com deputados dos vários partidos - todos adeptos da "reciprocidade". Infelizmente, não encontrámos abertura da direção das bancadas, a começar no próprio PS, que, em 1997, fora o responsável pelo impasse em que permanecíamos (o PS de Almeida Santos, que foi, nesta questão, obstáculo intransponível, contra uma corrente largamente maioritária, onde se contavam Manuel Alegre, Alberto Martins, Carlos Luiz, Sampaístas, Soaristas...).
Tudo parecia perdido... Mas eis que, em 2001, acontece o inesperado, uma revisão constitucional com um ponto único: a criação das condições para Portugal poder aderir ao Tribunal Penal Internacional (TPI). A tentação de acrescentar outros pontos foi irresistível - alargou-se um pouco, mas pouco, o âmbito da revisão extraordinária. Óbviamente, eu tentei, de imediato, introduzir a questão da reciprocidade. A recetividade na direção do grupo parlamentar foi mínima, mas Durão Barroso interveio e não houve mais oposição. Criou-se a habitual Comissão Eventual para a revisão, com uma longa agenda de audições de personalidades. Sugeri ao representante do PSD, Marques Guedes, que incluísse o Dr Soares e ele ficou espantado. "Tem a certeza? Já contactou o Dr Mário Soares?"
"Não, não o contactei, porque não é preciso. Tenho a certeza absoluta de que vem aqui defender esta emenda".
Claro que tinha... naquela auspiciosa tarde em Salvador, o Dr Soares fora muito claro, nas diligência seguintes, em Lisboa, tamb+em - podia contar com ele em todas as propostas e diligências na matéria.
O argumento para chamar o Dr. Soares à audição foi o facto de ter sido ele o Presidente ao tempo da criação da CPLP (e o Estatuto de Igualdade na nossa Constituição não se limitava ao Brasil, alargava-se a todos os países de língua oficial portuguesa).
O Dr Soares compareceu na CERC e arrasou o que restava de oposição à emenda, o seu próprio partido, o amigo Almeida Santos, Jaime Gama... Foi tão contundente numa audição pública, cheia de jornalistas, que o representante do PS logo ali se rendeu à evidência do discurso. Declarou, expressamente, o seu apoio à nossa proposta de alteração. Estava finalmente alcançada a reciprocidade! A votação em plenário seria unânime (ou quase - houve uma abstenção, mas genérica, não direcionada à questão brasileira).
Terá sido essa a última grande intervenção parlamentar de Mário Soares!
Aconselho a sua leitura - é uma obra-prima, em estilo queirosiano!
FCP Revista Delegações
EDITORIAL, POR MANUELA AGUIAR (EX-DEPUTADA E ATUAL ADMINISTRADORA DA FC PORTO – FUTEBOL, SAD
O meu trabalho de mais de 40 anos como Secretária de Estado e Deputada da Emigração permitiu-me conhecer e reconhecer a enorme importância da nossa Diáspora, que está viva em todos os continentes onde os portugueses, sem qualquer apoio dos governos de Lisboa, se organizaram numa admirável panóplia de instituições culturais, sociais e desportivas. É a Nação das Comunidades, a Nação sem Estado, pura sociedade civil, independente e forte. Dentro dessas comunidades fui encontrar, muitos portistas, muitos clubes e casas regionais de bandeira azul e branca e vi crescer, ao longo dos anos, a rede de Delegações do próprio FCP.
Estávamos no início da era de ouro do Presidente Jorge Nuno Pinto da Costa e eu fui chamada a colaborar nos nossos dois primeiros congressos de filiais, que mostraram a dimensão mundial já conquistada pelo Clube. E, por essa altura, ganhei a alcunha “Dragona”, atribuída pelo presidente Pinto da Costa, que tanto me honra!
Na verdade, sou descendente em linha reta de portistas, desde os tempos da fundação do Clube e comecei a ver futebol, jornada a jornada, com o meu pai, a partir da inauguração do Estádio das Antas, numa época em que poucas meninas
frequentavam recintos desportivos. Ser do Porto e do FCP faz parte da minha identidade.
Sou naturalmente regionalista e sinto-me gratíssima ao nosso Presidente por ter conseguido, num país controlado por uma capital macrocéfala, fazer dos portistas campeões da Europa e do Mundo, e tornarem-se, assim, o símbolo máximo do futebol nacional. Presenciei ao vivo as épicas vitórias em Gelsenkirchen e Yokohama e foi em tão distantes lugares que me apercebi da grandeza dos sonhos azuis e brancos, que não conhecem limites.
A mensagem também não! Através das dezenas de Delegações espalhadas um pouco por todo o mundo, somos uma família cada vez maior e que se revela sempre capaz de atingir os mais ambiciosos desígnios, porque à paixão individual somamos a força coletiva de Casas e Delegações e a visão de uma liderança incomparável.
Mais de 40 anos depois, estamos ainda longe da igualdade no tratamento que a nossa e as outras regiões do país
merecem do Terreiro do Paço, mas dentro de campo alcançamos já tudo quanto parecia impossível e se tornou possível, a nível nacional e internacional.
Olhamos com orgulho esse passado e com esperança o futuro, a história ainda por fazer de um Clube em imparável expansão. O nosso FCP!
NATÁLIA
ETERNAMENTE NATÁLIA
Neste ano do centenário de Natália Correia, não lhe faltam merecidas homenagens, desde as ilhas açorianas onde nasceu e do retângulo continental, onde morou quase a vida toda, até à Diáspora, a que pertence pela Cultura. A Cultura de que essencialmente se tecem os laços com Pátria - ou Mátria, como ela própria preferia dizer.
Mulher de Letras foi, no mesmo tempo e movida pelo mesmo ímpeto, Mulher- Cidadã, agente de futuro pelo pensamento e pela ação, na esfera pública e privada. Na verdade, tão fascinante é a sua obra como a sua vida, a personagem, com a deslumbrante beleza da juventude, os quatro casamentos, as paixões, e uma invariável irreverência e genialidade em todas as idades!
A RTP retratou-a numa excelente série, em que a vemos interagir com amigas (Vera Lagoa e Snu Abecassis), também elas notáveis mulheres, todas, em vésperas da Revolução de 1974, na vanguarda luta contra a tacanhez anacrónica de uma ditadura.
Mais recentemente, a RTP traçou, em nova minissérie, com alto nível de rigor e qualidade humana, o seu perfil, a partir de múltiplos testemunhos - uma história feita de estórias.
E, a marcar o início deste ciclo comemorativo de 2023, foi dada à estampa uma extensa, muito bem documentada e bem escrita, biografia de Natália, da autoria de Filipa Martins, com um título saído a pena da própria biografada: “O dever de deslumbrar”. É uma publicação ambiciosa, que, com as limitações que a interpretação subjetiva de factos e idiossincrasias sempre comporta, nos desvenda Natália, a mulher arrebatada, a temida polemista, a literata (poetisa, contista, dramaturga, ensaísta), a jornalista, a convivial animadora de tertúlias e debates, a política, a deputada…
Apesar de reconhecer a valia e qualidade de “O dever de deslumbrar”, doravante, título de referência obrigatória no estudo da glamorosa, multifacetada personagem que a Autora, na sinopse, descreve como “Mulher deslumbrante e carismática, equiparada às maiores pensadoras europeias e às estrelas de Hollywood”, apesar de me rever, plenamente, nessa síntese feliz, guardo distância em relação a algumas das suas inferências ou conclusões. A Natália que recordo é mais a de Fernando Dacosta no seu “Botequim da Liberdade”, um despretensioso e esplêndido livro, regido por outro desígnio, quase caderno de memórias intimista e espontâneo, contudo, que ganhar em sensibilidade, em graça, e, antes de mais, no afeto, que ela tão facilmente despertava nos que lhe eram próximos. E não serão eles os seus melhores juízes? …
Eu conheci Natália, quando ambas estávamos envolvidas no projeto político de Sá Carneiro, eu no Governo, como Secretária de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas, ela no Parlamento, como Deputada, onde cumpria, exuberantemente, o seu "dever de deslumbrar" e estava destinada a ser uma das duas únicas deputadas que têm busto de mármore no Palácio de São Bento. Lindo, esculpido por Cutileiro!
A Assembleia da República conserva, nas páginas do Diário das Sessões, a magia da sua palavra, porventura a mais fulgurante, e, não raro, a mais agreste que algum dia se ouviu no hemiciclo (e, talvez lhe conceda, num futuro não muito distante, o privilégio de editar as suas intervenções dispersas em coletânea - até hoje, praticamente, exclusivo masculino…).
O meu primeiro encontro com ela aconteceu nos "Passos Perdidos". Conversámos apenas sobre leis - sobre uma em particular, já nem sei qual, que passara pelo meu gabinete, e que ela defenderia, em sede parlamentar, no dia seguinte. Combinámos que, para análise de todos os detalhes, lhe enviaria a casa um distinto jurista. De lá voltou o perito mais impressionado do que se tivesse privado com figuras históricas, como Catarina da Rússia, ou a Marquesa de Alorna! Ainda por cima, Natália elogiara aquele modo de colaboração - que deveria ser a regra, mas não era - entre o Executivo e a bancada parlamentar. Talvez tenha visto nisso uma das diferenças que podem fazer
as mulheres na república dos homens…
Reencontramo-nos, algumas vezes, no Botequim, que, não sendo eu notívaga, frequentava com pouca assiduidade, e, depois, no quotidiano, entre 81 e 83, na bancada da AD, a aliança partidária, que, desaparecido Sá Carneiro, entrara já no seu ocaso.
Como é lidar com o mito no quotidiano? É inevitável a sua "normalização"? No caso dela, não, de modo algum! Tinha as qualidades que "humanizavam" a sua grandeza, sem a diminuírem. No convívio, era amável, solidária, incrivelmente divertida e sempre formidável, sem intimidar.
Antes da minha primeira intervenção formal, nervosíssima, não ousando improvisar, escrevi umas linhas, que submeti ao seu parecer crítico. “Claro que está bem – a menina sabe que está bem”! Eu não tinha assim tanto a certeza, e aquele "nihil obstat" levou-me a subir à tribuna com alma nova! Na verdade, gostava imenso que ela me chamasse “a menina”, embora isso só acontecesse em forma de branda e simpática reprimenda ou discordância…
Porém, como opositora, num frente a frente, siderava qualquer um, sem exceção, com secos e contundentes argumentos ou com tiradas ribombantes, não menos contundentes - ordália a que os amigos não tinham de se submeter…
A sua tirada mais mediática foi a que incendiou o debate sobre o aborto - a resposta, em verso, a um deputado do CDS, de apelido Morgado, que se atrevera a legitimar o sexo exclusivamente para a reprodução da espécie. A diatribe poética ficou conhecida como o "truca-truca do Morgado”, pacato homem casado e procriador de uma prole de apenas dois descendentes. Tive a sorte de assistir à cena muito perto da Oradora...
Depois de fazer parte de dois governos sucessivos, regressei, em 1987, ao Palácio de São Bento e às conversas com Natália, então já no PRD. Nada que nos afastasse - afinal, partilhava o seu gosto pelo distanciamento dos aparelhos partidários e até a sua admiração pelo General Ramalho Eanes.
Em agosto de 1987, eu acabava de me tornar a primeira mulher eleita vice-presidente da Assembleia. Ao fim de poucos dias, aconteceu a inevitabilidade de ser chamada a dirigir a sessão – por acaso, sem pompa nem anúncio, a meio de um discurso de Basílio Horta, apenas para o Presidente Crespo fumar um cigarro nos bastidores. Tanto melhor para mim, que queria passar despercebida... Mas eis que Natália se levanta em aplausos, logo seguida por Helena Roseta e pelos demais deputados e, finalmente, por Basílio, que continuara a intervenção, muito perplexo, sem saber por que motivo a Câmara inteira aplaudia de pé. Foi uma estreia, a abertura de um precedente, um minuto feminista para a história parlamentar!
Não menos feminista foi outro momento, que, igualmente, se lhe ficou a dever: a original ideia de homenagear as pioneiras do movimento sufragista português, no "Dia Internacional da Mulher", a 8 de março de 1988. E, assim, oitenta anos depois da criação da Liga da Mulheres Republicanas, elas gozaram, enfim, do direito de serem ouvidas, ali, na casa da democracia, em longas citações dos seus discursos, através da voz de deputadas da geração das suas netas.
Em 1991, o Partido Renovador perdeu representação parlamentar e, com isso, a Assembleia da República perdeu Natália, a Mulher que acordava a Câmara da hibernação na mediocridade em que estava caída. A Mulher capaz de transformar, por exemplo, um simples jantar de portistas em S. Bento em tertúlia erudita, discorrendo brilhantemente sobre desporto, deuses e mitos, para concluir que a serpente símbolo da antiga Lusitânia e os dragões da "cidade invicta" pertenciam a uma mesma matriz.
Nesses tempos, quantas vezes, da terceira fila do hemiciclo, onde habitualmente me sentava, e Natália também, olhei em redor, pensando: "Daqui a cem anos estamos todos mortos - todos, menos a Natália".
Lembro-me de lho ter dito uma vez, perante o seu silêncio complacente e o esboço de um sorriso.
A profeta de futuros longínquos era ela, eu apenas ousava uma incursão em terreno proibido ao comum dos mortais. "Begginer's luck", sorte de principiante: a minha profecia vai a caminho de se cumprir!
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