Tem a palavra a família Aguiar e os seus amigos. Vamos abrir o "Círculo", com duas alternativas, que proponho: Este "Aguiaríssimo" ou o "blogguiar.blogspot.com"
quinta-feira, 13 de janeiro de 2022
TÓQUIO 2021 AS AURORAS QUE estão por DESCOBRIR
1 - A participação portuguesa nos últimos jogos olímpicos é incensada pela generalidade dos políticos, dos comentadores desportivos, como "a melhor de sempre". Dir-se-ia que marcou a transição para um patamar de desenvolvimento qualitativo. Pura ilusão... Na realidade, continuamos exatamente aonde estávamos antes - na cauda da Europa, em termos de investimento nas diversas modalidades desportivas (menos de metade da média europeia). de formação escolar): A Educação Física é menorizada nos "curricula" escolares, a compatibilização da vida desportiva e académica nas Universidades é descurada. É mínima a prática do exercício físico na infância, na juventude e em todas as idades é mínimo, como mostram as tabelas de comparação a nível internacional. Em suma, vivemos pouco acima do grau zero, no domínio da cultura desportiva, cuja falta é revelada pelo somatório de todas as referidas e muitas mais deficiências, com inevitável repercussão na "performance" global em alta competição.
Mais um deprimente sinal nos foi dado, recentemente, pela despreocupação com que a DGS, o Ministério da Educação, os próprios professores encararam a rotura da prática desportiva durante a pandemia, dentro e fora das escolas, em absoluto contraste com o alarme provocado pelo encerramento das aulas e a necessidade de recorrer a ensino não presencial...Ora, num balanço final, o que terá feito dano maior? Ter-se-ão perdido mais futuros doutores e engenheiros do que futuros campeões? E provocado mais insucesso escolar ou mais abandono desportivo?Perguntas para as quais não tenho resposta - só uma certeza: o desporto amador, o desporto para todos e até o desporto profissional foram altamente negligenciados e prejudicados. Há no governo um denominado "Secretário de Estado do Desporto", que não se sabe para o que serve, nem o que faz.
2 - A proclamada excecionalidade da participação nacional em Tóquio é relativa aos nossos próprios resultados olímpicos recentes, que, quando positivos, oscilam modestamente entre as duas ou três e estas celebradas quatro medalhas - parcas e limitadas ao atletismo em modalidades individuais, a evidenciar o mérito de cada atleta (e, eventualmente, dos seus clubes), muito mais do que o mérito de um projeto ou estratégia dos poderes públicos. Em boa verdade, na Europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a Lituânia, com2.794 milhões de habitantes, Chipre com 1, 224.216, o Luxemburgo com 643.196 e Malta com apenas 502, 633).
Muito se realçou, igualmente, o caráter "inclusivo" da delegação portuguesa, com esse adjetivo querendo significar a presença de estrangeiros naturalizados e de cidadãos de origem africana. Muito me regozijo com o facto de haver nesta modalidade maior abertura para o reconhecimento da dupla nacionalidades e para a atribuição do passaporte português. do que há, por exemplo, no futebol profissional, onde tanta polémica causou a justíssima chamada de Deco e de Pepe à seleção - dois brasileiros natos, que sempre deram provas de excelência desportiva e de dedicação à camisola das quinas(enfim, penso que o mesmo talvez não tivesse acontecido se representassem clubes de Lisboa, como é o caso de Pedro Pablo Pichero, de Nelson Évora, de Jorge Fonseca e como foi o do inesquecível Francis Obikwelo...).
Digo-o com todo o apreço pelos clubes que continuam a oferecer, hoje, medalhas e campeões de atletismo ao país, caso do SCP e o SLB, como, noutros tempos, o FCP o conseguiu, com os seus históricos títulosno feminino - o ouro de Aurora Cunha, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro.
E saúdo, naturalmente, o fenómeno de preponderância dos afro-portugueses na vanguarda do atletismo nacional, com três em quatro das nossas medalhas de Tóquio, a exceção sendo a do canoísta Fernando Pimenta, com fundas raízes nortenhas em Ponte de Lima, embora. do ponto de vista clubístico, se tenha mudado para sul. E só de Pedro Pichardo se pode afirmar que foi formado no estrangeiro (em Cuba) e se naturalizou já com um brilhantíssimo palmarés. Jorge Fonseca veio de São Tomé para Portugal com 11 anos e Nelson Évora, nascido em Abijan, de pais cabo-verdianos, também muito cedo aqui se integrou.
É portuguesa de ascendência angolana, Patrícia Mamona, a única mulher neste glorioso quarteto de campeões, com uma medalha de prata que vale mais do que o ouro. Ela é a pura encarnação do espírito olímpico, da vontade de se transcender a cada novo dia. Teimou em praticar o triplo salto e em atingir o Olimpo numa modalidade para a qual, sendo uma predestinada, lhe faltava, diziam-lhe todos, uma característica física, a altura. Mede apenas 1,66 e, não é demais destacá-lo, e só perdeu para uma gigante de quase dois metros (mais precisamente 1, 92).
Há uma outra medalha que Portugal não pode reclamar oficialmente, mas que é um pouco sua. Uma medalha de ouro, de que pouco se falou; a de Júlia Grosso, jogadora de 20 anos (da Universidade do Texas), que apontou, na final, de "penalty", o golo decisivo para fazer da equipa de futebol feminino do Canadá campeã olímpica! 3 - O que motiva, num país de mentalidade tão avessa ao fomento da atividade física, na infância, na escola - que é onde, por todo o lado, se começa - os futuros campeões, rapazes e, igualmente, raparigas, (feito maior numa sociedade ainda tão misógina)? O que leva crianças de minorias étnicas, em quase todos os outros domínios marginalizadas, assim como outras de meios rurais, não menos desprivilegiadas, a superarem horizontes estreitos pela glória desportiva? É uma investigação que está por aprofundar no meio académico... O historial vai.se escrevendo, casuisticamente, por comparação de semelhanças e diferenças de circunstâncias, e precisa de ser bem melhor analisado, melhor contado, sem deixar nenhum nome para trás.Talvez, um dia,possam, todos esses percursos e personalidades figurar num grande museu nacional do desporto (um "hall of fame" português). Até lá, cada terra vai homenageando os seus heróis, como faz Espinho, ao guardar a memória de António Leitão no seu Fórum, Ponte de Lima com o projetado Museu Pimenta, o Porto com o Pavilhão Rosa Mota ou a Madeira na denominação do Aeroporto Cristiano Ronaldo ...
Tóquio 2021 deixa-nos, pois, contentes com os atletas, em concreto, com os medalhados, com os que só não o foram por uma questão de má fortuna num momento decisivo, e com os que trouxeram diplomas olímpicos - indicadores bastante mais numerosos, promissores de qualidade e de potencial, - mas, bem vistas as coisas, globalmente descontentes com a falta de progresso geral, com o imenso desperdício de génios por achar.Lembremos o exemplo da campeoníssima Aurora Cunha, que, por sinal, nunca foi feliz nas suas várias participações olímpicas, mas ganhou ouro de igual valor em campeonatos da Europa e do Mundo (tricampeã mundial, na década de oitenta) e muitas maratonas importantes, com a camisola azul e branca do FCP ou com a da seleção nacional. A sua biografia, "Uma vida de paixões" é de leitura obrigatória. Aurora Cunha é um exemplo raro e intemporal, na sua trajetória de desportista e de cidadã, defensora dos valores do Desporto. Foi uma menina nascida com talento inato, uma jovem que teve a oportunidade de o cultivar graças a inexcedível energia e coragem, e, com o passar dos anos, cada vez mais é uma mulher de causas - o outro nome das suas paixões. . Sabem como foi descoberta para uma tão fantástica carreira? Por mero acaso, quando à saída da igreja, numa tarde de verão, alguém se lembrou de chamar adolescentes de ambos os sexos, para uma corrida popular, no estádio da terra. Aurora, de saia de malha e sapatos de cabedal, ganhou, destacadamente, à frente dos rapazes, muitos deles equipados a rigor. Tinha 14 anos, era operária fabril e sempre gostara de correr, sozinha, por montes e vales. O Clube Juventude de Ronfe logo ali a convidou para treinar e levar a competições, e, pouco depois, veio o contrato com o FCP.
Após a sua primeira grande vitória oficial, o "Mundo Desportivo" de 9 de junho de 1976 escrevia: "Quantas Auroras em potência haverá por esse país fora?" Quase meio século volvido, em Portugal, a pergunta mantém toda a sua pertinência.
-----------------------------------------------------
TÓQUIO - OS JOGOS DO NOSSO CONTENTAMENTO DESCONTENTE
1 - A participação portuguesa nos últimos jogos olímpicos é incensada pela generalidade dos políticos e dos comentadores desportivos, como "a melhor de sempre". Dir-se-ia que marcou a transição para um patamar de desenvolvimento qualitativo. Pura ilusão...Na realidade, continuamos na cauda da Europa, em matéria de investimento nas diversas modalidades desportivas (menos de metade da média europeia), de formação escolar e universitária - só no desporto federado se pode verdadeiramente fazer carreira - de exercício físico em todas as idades. É esta gritante falta de cultura desportiva que, fundamentalmente, determina o medíocre lugar que ocupamos no "ranking" europeu e mundial de alta competição. A proclamada excecionalidade da recente "performance" é relativa aos nossos próprios resultados olímpicos passados, que oscilaram, modestamente, entre as duas ou três e estas celebradas quatro medalhas de 2021 - limitadas ao atletismo, em modalidades individuais, a evidenciar o mérito de cada atleta (e, quando muito, também, dos seus clubes que os apoiam), muito mais do que de um projeto ou estratégia dos poderes públicos. Em boa verdade, na Europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a Lituânia, com 2.794 milhões de habitantes, Chipre com 1, 224.216, o Luxemburgo com 643.196 e Malta com apenas 502, 633).
2 -Muito se realçou, igualmente, o caráter "inclusivo" da delegação portuguesa, com esse adjetivo querendo significar a presença de estrangeiros naturalizados e de cidadãos de origem africana na nossa delegação. Devemos regozijar-nos com o facto haver neste domínio abertura para o reconhecimento da dupla nacionalidades e para a atribuição do passaporte português, ao contrário do que é corrente no futebol, onde tantapolémica causou a chamada de Deco e de Pepe à seleção. Talvez, porém, o mesmo não tivesse ocorrido se representassem clubes de Lisboa, como é o caso dos atuais atletas Pedro Pablo Pichardo, Nelson Évora, Jorge Fonseca ou do inesquecível Francis Obikwelu. Esta dúvida não é levantada contra esses clubes de Lisboa, cuja influência, a ter sido exercida, o foi por uma "boa causa", que, aliás, louvo por contribuirem para o sucesso do nosso atletismo, como, noutros tempos, o fez o FCP, com o seu trio "de ouro" feminino - Aurora Cunha, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro.
Igualmente me parece de saudar o fenómeno da preponderância dos afro-portugueses nesta modalidade, com três em quatro das nossas medalhas de Tóquio, a exceção sendo a do canoísta Fernando Pimenta, com raízes nortenhas em Ponte de Lima. E só de Pedro Pichardo se pode dizer que foi formado no estrangeiro e se naturalizou já com um brilhantíssimo palmarés. Jorge Fonseca veio de São Tomé para Portugal com 11 anos, e Nelson Évora, nascido em Abijan, de pais cabo-verdianos, também muito cedo aqui se integrou. Patrícia Mamona é portuguesa nata, de ascendência angolana. Única mulher neste histórico quarteto de enormes campeões, ganhou uma medalha de prata que vale mais do que o ouro. Ela é a pura encarnação do espírito olímpico, da vontade de se transcender, a cada novo dia. Teimou, desde menina, em praticar o triplo salto e em atingir o Olimpo numa modalidade para a qual, sendo uma predestinada, lhe faltava, diziam-lhe todos, uma característica física: a altura. Mede apenas 1,66 e, note-se, perdeu o ouro para uma gigante de quase dois metros (mais precisamente 1, 92). O que motiva, num país de mentalidade tão avessa ao fomento da atividade física na escola, desde a infância, os futuros campeões, rapazes e, igualmente, raparigas, (feito maior, numa sociedade ainda tão misógina)? O que leva crianças de minorias étnicas, em quase todos os outros setores marginalizadas, a superarem o destino pela glória desportiva? É uma história que se vai fazendo de comparações nas semelhanças e nas diferenças de circunstâncias, e que precisava de ser bem melhor contada e analisada. Talvez, um dia, possam dar origem a museu nacional do desporto...Até lá, cada terra vai homenageando os seus heróis, como Espinho muito bem tem conseguido, guardando a memória de António Leitão.3 - Tóquio 2021 deixa-nos, pois, por um lado, contentes com os atletas, em concreto, os medalhados, os que só não o foram por menos sorte num momento decisivo, os que trouxeram diplomas olímpicos - bem mais numerosos do que os pódios, e também significativos, como indicadores de qualidade e de potencial para 2024 - e, por outro lado, descontentes com a falta de progresso geral, com o imenso desperdício de talentos, os que já se perderam e os que estão por encontrar. Quando Aurora Cunha iniciou a sua meteórica carreira, com uma primeira grande vitória nacional, o "Mundo Desportivo", de 9 de junho de 1976, escrevia: "Quantas Auroras em potência haverá neste país?".O caso desta fantástica atleta é paradigmático. Aos 14 anos, a oitava de uma família numerosa de 10 filhos, menina franzina e irrequieta, era operária fabril. Um domingo, à saída da Igreja, depois do Terço das 15.00, alguém se lembrou de animar o fim de tarde com uma corrida popular para rapazes e raparigas, no estádio de Ronfe. Aurora lá foi, com o sua saia de malha domingueira e sapatos de cabedal, e ganhou, destacadamente, à frente de todos os rapazes, alguns deles equipados a rigor. O Clube Juventude de Ronfe logo ali a convidou para treinar e competir, e, pouco depois, viria o contrato com o FCP, o seu clube de coração. E, assim, se súbito, se alargaram os horizontes da menina.fenómeno, que, no meio fundo e fundo, havia de acumular recordes e medalhas de ouro, ser tricampeã mundial e vencedora das mais prestigiadas maratonas. Vale a pena colher, na sua inspiradora autobiografia "Uma vida de paixões", (prefaciada pelos Presidentes Ramalho Eanes e Rebelo de Sousa), os ensinamentos de uma carreira ímpar, que começou tarde e por puro acaso. 45 anos depois, a questão de "O Mundo Desportivo" mantém toda a pertinência. Quantas Auroras estarão por descobrir?
AS LETRAS NA DIÁSPORA HOMENAGEM AO PROF MAYONNE DIAS
HOMENAGEM D' ALÉM MAR ao AO PROF EDUARDO MATONNE DIAS
No âmbito dos colóquios organizados pelo Círculo Maria Archer, vimos informar que no próximo dia 10 de julho (sábado), às 18 h (hora de Portugal Continental), inserida na iniciativa “As Letras na Diáspora”, será realizada uma homenagem ao Professor Eduardo Mayonne Dias (1927-2021), que recentemente nos deixou, silenciando-se uma das mais importantes vozes da Língua Portuguesa na Diáspora Americana.
Subordinada ao tema “Homenagem d’Além Mar”, será oradora a Professora Doutora Rosa Simas, da Universidade dos Açores, cuja vida académica ficou indelevelmente marcada por este docente, quando teve o privilégio de ser sua aluna na Universidade da Califórnia, Los Angeles e Santa Bárbara.
Considerem-se todas/os convidadas/os através do link: https://us02web.zoom.us/j/7531842887?pwd=VTdDVFRySkgva2wyUXRJekhFSXA2dz09
quinta-feira, 6 de janeiro de 2022
Conheci o Mestre António Joaquim no início dos anos 80, durante uma visita a Santa Maria da Feira, já ele era um pintor muito famoso. A sua simplicidade, o feitio comunicativo e, ao mesmo tempo, discreto, cativaram-me desde esse primeiro dia. Era amável, gostava tanto das pessoas como da Natureza e, por isso, as retratava tão maravilhosamente nos seus quadros.
Ao longo de anos, não foram muitos os encontros que nos permitiram diferentes percursos - o meu largamente passado em lugares distantes - mas considero um privilégio todos os momentos de convívio animado pela sua inteligência e vivacidade, pelas histórias que contava da sua juventude, quando a vocação que adivinhava em si lhe traçou um outro destino. Admirava-o pela forma improvável, e quase se diria milagrosa, como rompera os limites do círculo em que as circunstâncias de nascimento e profissão pareciam querer confina-lo, para dar amplos horizontes ao génio inato de artista que, ao longo da vida, se aperfeiçoou em estudo e evolução constantes. Em todas as idades - porque o seu espírito nunca envelheceu - foi, sempre capaz de nos surpreender pela originalidade, pela ousadia da recriação da realidade em incessante procura da Beleza, que capta em cada traço, nas cores e sombras de uma paisagem, na perspetiva nova de uma cidade, onde tantas vezes andamos sem a ver assim, numa velha porta, que, num toque de magia, restitui a tanta vida que por ali correu, no permanente vaivém de passagens, apelando à nossa imaginação, sem revelar o seu mistério.
Não sei dizer o que mais me encanta - se a obra, se o pintor. Na verdade, ele está, inteiro, no mundo de arte que nos legou, tão intrinsecamente luminoso
como a sua própria personalidade. António Joaquim irradiava simpatia, era espontâneo, amigo e generoso - qualidades de que deu prova, quando num encontro ocasional, durante uma sua exposição na cidade do Porto, o desafiei a fazer uma retrospetiva de décadas de pintura na inauguração das galerias geminadas do Museu de Espinho. Disse-me imediatamente que sim.
Foi um evento histórico! Até aí, só uma das galerias estava aberta a eventos, invariavelmente, pouco concorridos. Recuperada a dimensão do plano de arquitetura originária, o amplíssimo espaço agradou plenamente ao Mestre, que não hesitou em organizar a grande mostra num curto espaço de tempo (para tal sendo, em boa hora, adiada uma outra, que chegara a estar prevista). Que sucesso! Da Feira, do Porto, e de outros pontos do país chegaram visitantes, em número que jamais se havia visto, dia após dia, nesses meses de setembro e outubro de 2010... Inesquecível, para todos os que puderam contemplar, como escrevi na altura, "aquelas paredes longas, transfiguradas em deslumbrante mural de obras primas".
E eu tive, então, o raro privilégio de poder recomeçar a visita, quotidianamente, em diálogo continuado, não só com as telas, mas também com o Autor ali presente, aprofundando laços de respeito e de afeto que se converteram, depois que partiu, numa imensa Saudade.
IRRITAÇÕES E INDIGNAÇÕES
1 - Fui buscar o título "Irritações"a um programa de televisão muito divertido, que costumo ver, à sexta.feira, porque tinha planeado falar daquilo que, em dias ainda recentes, mais me exasperou... Mas, à medida que alinhava uns tópicos, constatava como alguns me despertavam sentimentos mais fortes, na medida em que, na minha ótica, iam muito além da mera incoerência ou estupidez toleráveis. E acrescentei uma outra palavra, mais forte – indignações! Um plural vasto.. Tive de deixar de fora muitas "indignações" que poderão dar azo a futuros comentários.
Para começar brandamente e prosseguir em crescendo, direi que me irritaram as pré-campanhas eleitorais, sobretudo, as de Costa, Rio e Rangel (Ventura pertence ao capítulo das indignações permanentes, Chicão é demasiadamente desinteressante e os outros líderes partidários deixam-me indiferente).
Costa (de quem pessoalmente gosto por ser feminista e aberto à aceitação de refugiados e imigrantes, causas em que colaborámos num já distante passado parlamentar), desaguizou-se com os parceiros da defunta geringonça, viu o orçamento chumbado por eles e o governo derrubado e quer, agora, apresentar-se a eleições com a mesma estratégia, o mesmo orçamento, o mesmo programa, os mesmos "compagnons de route"! E, ainda por cima, (nova irritação!), depois de ter proclamado, repetidamente, durante seis anos, que preferia a queda do governo à sua possível manutenção com a ajuda do PSD, mudou de opinião, num ápice, e veio confidenciar ao País que esse eventual apoio da “direita” ascendeu às alturas de uma admissível, embora indesejada e improvável, alternativa…Mas porquê? O que justifica o volte-face? Mistério...
Rio tem vindo a ser um provocador de não menor irritação. Prosélito da sua própria badalada honestidade política e coerência, enreda-se, no dia a dia, em objetivas contradições –tal como criticar, só agora, o processo de resposta à pandemia, a que assistiu passiva ou silenciosamente, quando
não lhe deu expressa concordância, tornando-se conivente com todas as medidas, muitas delas incongruentes, ora excessivas, ora levianamente laxistas de Graça Freitas e da sua “entourage” de burocratas da saúde, durante cerca de dois anos de confinamentos de duvidosa eficácia e desconfinamentos apressados (oscilando, sempre, entre o oito e o oitenta). Desfiar, tarde e a más horas, um rosário de críticas, em tom de pura propaganda eleitoral, não se pode considerar nem convincente, nem dignificante da imagem da política e dos políticos.
Também me irrita bastante o seu despropositado uso da língua alemã, quando lhe faltam não tanto as palavras em português, como os argumentos (qualquer que seja o idioma falado). Um snobismo provinciano, que tem tido, ao longo dos anos, manifestações ainda piores, nomeadamente a sua sanha contra o futebol, desporto do povo, a par de uma (estimável, ainda que elitista) paixão pelas corridas de automóvel.
Em Rangel, (militante social-democrata que, tal como Rio, conheço superficialmente), irrita-me a estratégia anti-Costa, embora “tipo Costa”. Ambos são “negacionistas” de acordos ao centro ( ou de Bloco Central), que, como se tem visto, redundam em alianças contra natura, deslocando o arco da governação muito para a direita, no caso do PSD, e muito para a esquerda, no do PS. E, com isso, o país se torna ingovernável ou mal governado, incapaz de empreender as reformas de fundo de que precisamos para sair do patamar mais baixo da União Europeia. Poucos são, como é evidente, os que sonham com governos de "Bloco Central", como o que existiu em 1983/85, numa conjuntura irrepetível. O que muitos, como eu,
desejam é o entendimento daqueles que, em Portugal, partilham uma visão do Estado de Direito, da Democracia, da Europa, da NATO... Ou seja, a larga "maioria constitucional", que vem do tempo de Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Mota Pinto, de partidos moderados, não revolucionários, que o povo português sufragou, e continua a sufragar, em cerca de 80%.
Apesar do seu aparente "anti socialismo primário", votarei em Rangel nas eleições internas do partido. Estou cansada das bizarrias de Rio, uma das quais é a recusa, completamente imprópria de um democrata, de comparecer a debates com o adversário. E considero Rangel um centrista, que, se for imprescindível, mais depressa se aproximará do PS do que do Chega. Não esqueço que Ventura nasceu e desabrochou no seio da “facção passista” do PSD, que apoia este candidato à liderança, mas não o confundo com eles, É um político inteligente e cosmopolita demais para navegar nas mesmas águas - o Parlamento Europeu apura a sensibilidade democrática neste domínio... Acredito que não vai “descentrar” o partido, pelo contrário, manterá o equilíbrio entre uma direita mais ruidosa e uma esquerda, que ainda existe, ou resiste, e onde me situo (social-democrata "à sueca", como Sá Carneiro).
2 – Numa categoria híbrida, metade irritação/metade indignação, incluo o anúncio oficial da “libertação” da pandemia, acompanhado de um rol de medidas de apressado alívio de restrições e de cautelas. Na realidade, nada distinguia esse “dia D”, artificialmente inventado, do dia anterior e do seguinte – não havia chegada em massa, de reforços, de meios decisivos para pôr fim à guerra, que não tem fim à vista, pois o vírus, quer se considere ainda pandémico ou já endémico, anda por aí, à solta …A ideia era alcançar um (efémero) brilharete político, mas teve um efeito psicológico nefasto para o conjunto da população. Trouxe um falso sentimento de segurança, desmobilizou o esforço individual na luta contra o vírus - esforço individual que é, neste momento, a mais inteligente e legítima arma de combate. Com a nossa elevadíssima taxa de vacinação (obrigada, Almirante!), o número de mortos e internados em cuidados intensivos desceu enormemente e parece, por isso, desproporcionado - e, nessa medida, atentatório dos nossos Direitos Constitucionais - voltar às soluções de recolher obrigatório, de restrições à circulação, de encerramento de setores da economia, de comércios, serviços públicos, espetáculos. Temos de nos concentrar, sim, nos cuidados de que cada um de nós é capaz, apelar à consciência dos cidadãos, aconselhar o uso generalizado da máscara, o distanciamento físico. São pequenos incómodos, face àqueles outros remédios radicais, que paralisaram a vida económica, social e cultural do nosso e de tantos outros países, em todo o mundo. Que ninguém mais promova a “libertação” de cautelas e cuidados, como o Governo tão insensatamente fez, para logo desfazer, em clima de ameaças e temores… Estamos cansados de ilusões, inverdades, demagogia. Um exemplo muito"irritante": quem não se lembra de nos garantirem que a escola era segura, que não havia riscos de contágio na faixa etária dos alunos mais pequenos? Agora, está provado o contrário, e até aventam a possibilidade de vacinar as criancinhas, a partir dos cinco anos…
3 – Da minha longa lista de indignações, aqui deixo algumas que particularmente me chocaram, em matéria de Justiça. Penso num recente julgamento de um pedófilo condenado por abuso sexual de uma menina de quatro anos. Circunstância agravante: o criminoso era o próprio pai da vítima. A sentença foi de três anos de pena suspensa. O pedófilo saiu em liberdade!
A mesma reação me despertou, há alguns meses, a benigna sanção dos três inspetores do SEF, que assassinaram, no aeroporto de Lisboa, Yhor Homeniuk, cidadão ucraniano, que vinha simplesmente, como tantos milhões de portugueses, ao longo de séculos, procurar trabalho honesto no estrangeiro. Foram apenas nove anos de prisão para Duarte Loga e Luís Silva e sete para Bruno Sousa.
É neste contexto que se aguarda o desenrolar e desfecho de um processo, comparativamente menor, de um cidadão que, no final de uma partida de futebol, insultou e agrediu um operador de câmara de televisão, provocando-lhe ligeiras lesões e danificando o material. Ora, segundo os media – trata-se de um incidente muito mediático, é claro… - as penas por esta sucessão de atos delituosos poderão atingir doze anos! Isto é, uma sanção quatro vezes superior à de um ato repugnante de pedofilia parental e bastante mais elevada do que a aplicada numa história trágica e hedionda de tortura e de morte, em nome da autoridade do Estado. (Yhor, como sabemos, esteve dois dias confinado nas instalações/cárcere do SEF, e agonizou durante dez horas, falecendo de lenta asfixia).
Quem quer comparar esta barbaridade a uma indesculpável, mas essencialmente impulsiva e disparatada rixa de final de jogo? Passando da indignação à irritação, direi que, para já, pelo menos, um jornalista… A pena de doze anos é ainda apenas uma hipótese mirabolante, mas que essa hipótese possa ser tão naturalmente avançada por um profissional da comunicação social, é, em si, coisa estranha. Que mentalidade é esta, que, no campo da Justiça, impera no nosso Portugal, em fins de 2021?
MENSAGEM DE NATAL in Defesa de Espinho dez 2021
O TESTE DO NATAL
1 - O Natal de 2021 vai ficar na memória como aquele em que milhões de familiares ofereceram, uns aos outros, um presente que não terá faltado em nenhuma casa portuguesa - o cuidado e a solidariedade de um teste anti-Covid!
As longas filas para compras de última hora, desta vez, não aconteceram tanto nos centros comerciais como nas farmácias de bairro... Quatro ou cinco horas de espera à porta da botica constituíram ritual que chegou aos telejornais (nada de surpreendente num país, onde conseguem fazer intermináveis reportagens a propósito seja do que for, de uma banalidade simétrica em todos os canais, à mesma hora). Não me lembro de em algum momento terem particularmente assinalado o que me parece ser a perfeita singularidade deste gesto, milhões de vezes repetido: a preocupação altruísta, porque o teste é quase sempre feito mais a pensar na família e nos amigos do que na própria pessoa - assim é, muito em especial, no caso dos jovens na sua relação com os idosos.
A cadeia geracional ganha visibilidade numa girândola de afetos, no reencontro feliz, preparado com alguns sacrifícios e não apenas com o que aquilo que o dinheiro pode facilmente comprar numa loja, entre o cintilar das luzes e o som da música. E assim, por vias travessas, nesta atitude de responsabilidade e civismo no vai-vém de uma perturbante peste dos tempos modernos, se redescobre, de algum modo, o significado, que andava um pouco perdido, do
Natal cristão.
A celebração do Natal há muito se tornou apenas festa da família, de cada família, no seu círculo estreito. E esse enfoque lúdico, com a tradição dos presentes, há muito divorciada da saga dos Reis Magos, da condição do nascimento de Jesus e do seu destino na Terra, levou o Natal muito para além das fronteiras do cristianismo. Os tons de ouro e de prata cruzam-se com o vermelho vivo nas montras das lojas e nos enfeites das ruas, sejam as de Espinho, de Paris, de Nova Iorque, ou as de Tóquio. A árvore de Natal, a música, os reclames, os postais de Boas Festas, na forma digital ou física, de papel colorido, são iguais em quase todo o mundo. O papel de embrulho dos presentes, também, e até os presentes - os que os amigos trocam entre si, os que as empresas oferecem aos colaboradores e clientes, os que as crianças pedem aos pais (creio que já não ao Menino Jesus - ou cada vez menos...), a partir de catálogos e de anúncios de TV...
2 - A mensagem de Natal do Primeiro-Ministro, obsessivamente centrada na Covid 19, foi coisa para esquecer. Ou talvez não... Se a temática da pandemia vier a ser dominante no discurso de campanha eleitoral das legislativas, como é previsível, poderemos dizer, que a apagada tristeza da comunicação natalícia foi, afinal, o hábil lançamento de uma campanha, a colocar, em alternativa, "nós ou o caos".
Curiosamente, nas eleições autárquicas, o Primeiro Ministro andou de terra em terra a anunciar o próximo advento da "bazuca" europeia, prometendo mundos e fundos aos candidatos do seu partido. Agora, pelo Natal, em vésperas de legislativas, adota a tão contrastante estratégia de falar de combates (ao vírus), agitando. Nem parece ser, mas é o mesmo político que, há apenas algumas semanas, proclamou o "dia da libertação" pandémica e levantou medidas restritivas de direitos e liberdades, que agora reintroduz em dose reforçada... e com o despropósito e irracionalidade, a que a DGS, desde o início nos habituou.
Um exemplo: estamos todos lembrados do critério do distanciamento. Primeiro era um metro, mais tarde, dois metros, com x pessoas por metro quadrado. Nos estádios, ao fim de muitos meses, uma escassa percentagem da lotação total, que se foi alargando até aos 50% até que o dia da libertação permitiu "casa cheia". Concomitantemente, o "certificado de vacinação" dava livre acesso aos estádios e aos espetáculos que movem multidões. Agora, tudo mudou, e, mais uma vez, sem razão aparente - a vacinação, mesmo com 3ª dose, tornou-se, para este nobre fim, irrelevante e, em seu lugar, fica o "teste certificado",obrigatório: o antigénio, com validade de 48h, prestes, ao que consta, a ser reduzida a 24h (e depois se verá...talvez 12h , ou menos) e o PCR, válido por 72 h - para já.
O cúmulo dos cúmulos é ser exigido um destes testes para uma ida ao cinema! Onde, antes do "dia da libertação", o problema se solucionava com simples restrições de lotação, deixando cadeiras ou filas de intervalo, agora não - a sala pode encher, porque todos estão testados, logo, supostamente, "covid free"... É uma certeza política, não científica. No tempo em que a Senhora DGS era anti - máscaras, alegava, que, entre as suas imperfeições, se contava o facto de darem uma "falsa sensação de segurança" . Não era, como se sabe, verdade no que respeita à proteção assegurada pela máscara, mas é-o, sem dúvida, quando aplicado aos testes, que são falíveis, sobretudo os de antigénio. Pelo menos os negativos - ou porque o infetado tem ainda uma baixa carga viral, ou porque veio a sofrer o contágio nas horas seguintes...E nesse estado vão conviver, muito mais despreocupadamente do que se não estivessem testados.
Voltando à temática do teste obrigatório para ir ao cinema, direi que é o perfeito exemplo de uma medida nociva e insensata. Priva os cidadãos de um bem cultural a que têm direito e prejudica, gravemente, as salas de espetáculos, que ainda resistem à crise, ignorando o contexto atual em que, na sua maioria, funcionam - sobretudo as que não servem cartuxos de pipocas. É o caso daqueles que mais frequento: o Multimeios de Espinho e o Trindade, no Porto. À entrada, antes de comprar o bilhete, pergunto sempre quantas pessoas estão na sala e só concretizo a compra se tiver baixa ocupação. (não por causa da Ómicron, ou dos conselhos da DGS, mas por minha própria iniciativa, desde o início desta praga). Até hoje, tive de desistir... Aqui em Espinho, raramente estão mais de dez pessoas num espaço com capacidade para 280!
Ora, havendo, em geral, tão escassa assistência, os limites impostos não eram atingidos, pelo que ficavam salvaguardados tanto os interesses do negócio, como a saúde dos espectadores. A que propósito mudar o bom critério, que valeu anteriormente? Quem estará disponível para gastar mais horas na fila de espera dos testes do que no espetáculo que pode sempre ver mais tarde? Um filme não é um "happening" único e irrepetível como um jogo de futebol ou um concerto musical...
Estes ziguezagues não ajudam a manter a credibilidade que resta à DGS". Não dá para esquecer que, primeiramente, nos dizia não haver contágios nas escolas e agora, para convencer os pais a vacinar as criancinhas, já coloca as escolas no "ranking" dos maiores focos de contágio". Ao lado das discotecas...Estranhamente fora da lista de perigo continua tudo o que é da responsabilidade direta do Estado - caso dos transportes públicos...
Por favor, deixem-nos, ao menos, ir ao cinema, para esquecer desgraças... No dia de Natal, seguindo o conselho de Isabel II, fiquei em casa a ver um filme antigo. Gostei, mas não é a mesma coisa..
domingo, 31 de outubro de 2021
AS REPÚBLICAS AUTÁRQUICAS DOS HOMENS
1 - Que título dar a um comentário sobre a questão de género nas eleições locais, onde o desequilíbrio é mais ostensivo e muito mais persistente do que no Governo e na Assembleia da República? Há tantas maneiras de dizer o mesmo...Poderia citar Célia Marques, que fala de "mundo masculino", ou Sandra Ribeiro (uma voz "oficial", presidente da "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género" (CCIG), a apontar o obstáculo de "meios masculinizados", ou Luís de Sousa (ICS da Universidade de Lisboa) na mesma linha de pensamento a responsabilizar a "envolvente masculina", ou António Barreto que chega à mesma conclusão , escrevendo sobre a "invisibilidade - feminina - no país das autarquias". Alguns exemplos, entre muitos, que guardei na memória. Finalmente, decidi "plagiar-me" a mim própria, lembrando um colóquio que, como vereadora, organizei em Espinho, em 2010, durante as comemorações do centenário 5 de outubro: "Mulheres na República dos Homens".
A realidade, que os números e estatísticas revelam, é que as autarquias são, em Portugal, o último reduto do (quase) absoluto poder masculino. A lei da Paridade veio criar nos lugares secundários a ilusão de um crescente equilíbrio de género, mas deixou intocado o cargo onde reside todo o poder - a presidência das Câmaras, em sistema presidencialista. Os homens estão à frente de mais de 90% dos concelhos do continente e das Regiões Autónomas.
A paridade que, na economia do diploma original, de 2006, era atingida com uns modestos 33% subiu, em reforma recente, para 40%. Subiram, com ela, as expetativas de um progresso que nos deixaria perto da barreira das quarenta presidências femininas. Desde 1985, vínhamos a registar um crescimento pequeno mas consistente. Na meia década de oitenta, contávamos apenas 4 mulheres presidentes, em 2017 já eram 32. Pouco ultrapassando os 10%, não se tratava de um resultado excelente, mas alimentava a convicção de uma caminhada irreversível. Por isso, 2021 foi verdadeiramente dececionante. Pela primeira vez, em décadas, esse número desceu (de 32 para 29), continuando a deixar de fora as principais cidades do País - Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, e por aí adiante... .
2 -Há em Portugal, a meu ver, uma crença excessiva nas virtualidades do Direito para resolver os problemas do nosso atraso social e económico, de desequilíbrios e assimetrias herdados do passado. No que, em especial, se refere à discriminações de género não penso diferentemente. Sou favorável à Lei da Paridade, considero que há muito deveríamos ter aperfeiçoado disposições a que falta caráter vinculativo, e enquanto Deputada, na Assembleia da República, sempre me manifestei nesse sentido, pela palavra e pelo voto, em oposição a teses então indiscutíveis do meu partido, o PSD (onde apenas Leonor Beleza e Marcelo Rebelo de Sousa, que não era deputado. estavam do meu lado da barreira). Tenho, todavia, a consciência de que é preciso lutar também com outras armas, para alcançar a igualdade efetiva.
Há muito - logo após a Revolução de 1974, com a Constituição democrática de 1976 - está, em Portugal, consagrada a plena igualdade entre mulheres e homens. Nesse tempo histórico da meia década de setenta, terminou, assim, facilmente, pela pena do legislador, o longo e difícil combate das (e dos) sufragistas, que se centrava, e se ganhou, na esfera jurídica. Porém, removido o obstáculo que a própria Lei constituía, logo outros se levantaram nos domínios, em que a força vinculativa e sugestiva ou pedagógica do Direito tem as suas limitações. Podemos, é certo, ainda corrigir na legislação ordinária imperfeições ou desconformidades constitucionais, criar mecanismos de controle da aplicação dos comandos legais e da promoção de oportunidades iguais, do tipo da CITE (Comissão para a Igualdade do Trabalho e Emprego) , ou da CCIG. Contudo, o centro estratégico de uma mudança profunda de mentalidades e de práticas deslocou-se, definitivamente, do terreno da legiferação para o da vivência das leis. Não basta impor juridicamente a igualdade salarial, as mesmas oportunidades de progressão profissional ou de participação cívica e política para que elas aconteçam de facto. Não podemos ignorar os expedientes generalizadamente usados para manter o "status quo" - ou seja, 91% de homens presidentes de Câmara no todo nacional e uma percentagem superior, a rondar os 100%, nas capitais de distrito, nas mais importantes cidades.
Se a questão fosse, sobretudo, de "mentalidade", de "aceitação social", de "socialização", como pretendem alguns doutos investigadores, caso de Luís de Sousa (Instituto de Estudos Sociais), ou de "tradições preconceituosas", como defende Sandra Ribeiro, a Presidente da CCIG, o fenómeno deveria sentir-se muito mais no mundo rural do que nas grandes urbes cosmopolitas! Aquelas
condicionantes terão, sem dúvida, algum peso, mas verdadeiramente determinante é a organização partidária, o "baronato" instalado nas estruturas locais, que se defende "com unhas e dentes" da abertura desejada pelas cúpulas de Lisboa (e não em todos os quadrantes, como sabemos, mas, pelo menos, em alguns).
Di-lo, claramente, um sociólogo, um académico com grande experiência de governo e parlamento, António Barreto: "o sistema político e social está organizado de forma a favorecer os homens. O menu de escolha, de oferta, está enviesado a favor dos homens. Mantém o predomínio masculino".
A palavra chave é "menu de escolha".
A nível nacional, para o Parlamento e para o Governo, têm poder decisivo nas escolhas os órgãos máximos dos partidos, o Secretário-Geral ou Presidente do Partido, as Comissões Políticas, o Primeiro Ministro, no seu Executivo e, por isso, a Lei da Paridade é, mais ou menos, respeitada, e o progresso tem sido constante. A nível local, não , pois no "menu de oferta" as mulheres estão (quase) sempre colocadas nas listas o mais abaixo que o "diktat" legal permite. E são cabeças de lista (quase) só em circunscrições onde esse partido não tem perspetivas de vencer... Nas últimas eleições, o PCP escolheu 80 mulheres cabeças de lista, o PS 44, o PSD 31, o Chega 30, o BE 27, o CDS 17, o PAN 13, a IL 6, o Livre 3. Contas finais elucidativas: mais de 250 candidatas à presidência da Câmara e apenas 29 eleitas...
3 - No Porto e arredores, como vamos, neste campo?
Tal como em Lisboa, nunca no Porto se elegeu uma mulher para a presidência da Câmara, E, nas cidades vizinhas, a notável exceção é Matosinhos. Espinho constitui, também, caso raro, pois no seu historial já conta com uma antiga Presidente, Elsa Tavares, que a partir da Vice- presidência ascendeu ao cargo e, com um brilhante desempenho, abriu caminhos ainda não trilhados por nenhuma outra senhora. E, atualmente, apresenta um Executivo camarário que cumpre plenamente os ditames da Lei da Paridade, com 4 homens e 3 mulheres. Em termos da maioria socialista, é rigorosamente paritário - dois homens e duas mulheres. E, embora, na dimensão qualitativa, os homens ocupem os lugares cimeiros, as Vereadoras possuem currículo que permite esperar um desejável equilíbrio na obra a fazer pela terra.
No "ranking" da Igualdade de género em Executivos camarários (num pequeno, mas significativo círculo de concelhos que considerei neste levantamento (para além de Porto e Espinho, Gaia, Gondomar, Matosinho e Maia),só Gondomar apresenta uma maioria de mulheres, 6 em 11. Segue-se Espinho, com 3 mulheres em 7. Os restantes ficam aquém de expetativas e regras, se não nas listas, nos resultados finais, que são os seguintes: Porto - 5 mulheres em 13; Matosinhos - 4 em 11; Gaia - 3 em 9: Maia - 3 em 11.`
Uma referência é também devida ao contributo de cada partido no combate à desigualdade de género. O PS, que tem sido o grande paladino do sistema de quotas, levará alguma vantagem neste campo, mas diga-se, ao contrário do que se passa nas eleições nacionais, irregular e globalmente escassa. Neste quadro parcial, a ele se deve o bom posicionamento de Gondomar e Espinho, mas na Maia, em Matosinhos, em Gaia e no Porto de outro tanto se não pode vangloriar..
Uma última nota para uma incontornável comparação Norte/Sul, ou melhor, Porto/Lisboa. Na capital, o PSD não só venceu a Câmara, como respeitou a quota (3 vereadoras em 7). E no total, o resultado estatístico é de quase paridade - 8 mulheres e 9 homens. Temos de reconhecer que, neste aspeto, a capital fica bem melhor no retrato...
MEMÓRIAS POLÍTICAS PARA A NOSSA HISTÓRIA
1 - Não conhecemos ainda qualquer esboço do programa das anunciadas comemorações dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, que ocorrem em 2024. Bem à portuguesa, só sabemos, para já, dois nomes. O de quem preside, simbólica e honorificamente - o General Ramalho Eanes, que há muito devia ser o Marechal Ramalho Eanes, e é absolutamente indiscutível - e o de quem vai "presidir" ao Executivo, um jovem professor da área do PS, cuja notoriedade enquanto comentarista de vários "media" em muito suplanta o seu, para já, modesto currículo universitário. Apesar da sensatez e moderação com que sempre intervém, representa, face à escolha da personalidade do Presidente, o 8 perante o 80.
O perfil de académico é, a meu ver, o ideal para um coordenador da "comissão organizadora" das celebrações, se, como me parece fundamental para o seu êxito, se vierem a centrar em aprofundadas investigações interdisciplinares. Para fazer história e para "fazer futuro" - na linguagem de então, para "cumprir Abril", ou para dar a dimensão da modernidade às "conquistas da revolução". O que por tal se entende não é inequívoco ou consensual em todos os quadrantes, mas, da equidistância dos cientistas se espera que os considerem todos. Como escreveu Agostinho da Silva, o filósofo que adorava gatos, a história que mais interessa é a do futuro. Porém, não é menos verdade que o ponto de partida e a fonte de ensinamentos e de inspiração é a do passado...
Os trabalhos vão, suponho, começar em breve e prolongar-se por vários anos, antes e depois da efeméride nuclear. Nada tenho a opor a um tão extenso
período de preparação e de continuidade de esforços se eles envolverem abertura às diversas universidades e especialistas, (não se fechando em "lobbies"" ou capelinhas), se servirem a pesquisa académica rigorosa, a recolha de documentação, a reflexão e a divulgação da história, pensando, em particular, nos mais jovens, no diálogo intergeracional.
Eu atrever-me-ei, contudo, a afirmar que, num certo sentido, essa tarefa já teve o seu início num segmento particularmente importante da preservação da memória, com o testemunho direto de muitos dos protagonistas da revolução de 1974 e da edificação da democracia - ou seja, o seu "dia seguinte", na meia década de setenta e na de oitenta. Falo das autobiografias políticas, que não eram propriamente uma boa tradição nacional, mas que ganharam terreno entre os nossos contemporâneos. Cavaco Silva contribuiu com dois volumes, meticulosamente documentados, e mais os seus "diários" da presidência, na esteira de Jorge Sampaio. Mário Soares deixou-nos uma riquíssima coleção de publicações, tocando várias épocas e domínios, até o literário. Convidativos exemplos! As últimas publicações do género que tive a oportunidade de consultar, foram as de Diogo Freitas do Amaral, em 2019, - com o volume final de uma trilogia, "Mais de 35 anos de Democracia Um Percurso singular" Memórias Políticas III (1982-2017) - e de Francisco Pinto
Balsemão, intitulada, simplesmente, "Memórias".
Ambos nos oferecem a perspetiva diacrónica de uma fascinante e vertiginosa sucessão de eventos em duas décadas cruciais, tal como as atravessaram e marcaram, com um contributo individual para alicerçar a arquitetura do Estado democrático. E, não parando aí, trazem-nos com eles na viagem por mais um quarto de século de democracia estabilizada, até à atualidade. Para muitos, sobretudo os que que nunca souberam o que é o quotidiano de
gente comum ou dos ativos intervenientes sob a ditadura, é uma incursão num mundo desconhecido, norteado por normas estranhas, absurdas... Para outros tem o encanto de uma saga acompanhada de perto, ou, até, em alguns momentos, partilhada. Ao lado de Freitas do Amaral, no governo em que ele foi Vice-Primeiro Ministro de Sá Carneiro, como sua Secretária de Estado, vivi o melhor ano da minha vida, o de 1980, até ao dia 4 de dezembro. Lembrá-lo, página a página, torna-se, assim, uma espécie de romagem de saudade.
De Balsemão não posso dizer o mesmo, nunca fui amiga nem prosélita, mas, à distância de décadas, é um exercício estimulante constatar, com mais objetividade, não só divergências de análise sobre casos e pessoas, mas concordâncias e algumas bem relevantes, como a relativa à atual filiação do PSD, a nível europeu - o erro de trocar, em fins de século, a Internacional Liberal e Reformista por um PPE, cada vez mais conservador e menos cristão-democrata - ou a simpatia por um militar "presidenciável", que se chamava Mário Firmino Miguel.
2 - Embora abrangendo, no decorrer de um dado período, as vicissitudes da vida pública no mesmo espaço é muito distinta da de Balsemão a narrativa de
Diogo Freitas do Amaral - reflexo natural das diferenças de personalidade, de pensamento, de formação académica, de objetivos na profissão e na política, e de realização concreta nestes dois sectores.
Freitas do Amaral conjugou, na perfeição, uma fulgurante carreira universitária, (muito novo ascendendo a Professor Catedrático de Direito), e uma corajosa, determinada, e não menos brilhante trajetória cívica e política, ganhando o seu lugar entre os "pais fundadores" do regime nascido no do 25 de Abril - primeiro presidente do CDS, o "Homem de Estado", que, segundo Mário Soares, "ajudou a converter a direita portuguesa à democracia".
Escreveu muitas páginas de história, que é não apenas sua, mas do País, e, por isso, de leitura obrigatória. Uma obrigatoriedade que a leveza e a naturalidade com que se exprime, numa linguagem, em simultâneo, precisa, simples e acessível sobre os temas mais complexos, torna, afinal, muito grata e aliciante, não exclusivamente para especialistas em questões de política nacional e internacional, mas para qualquer um de nós.
Enquanto Balsemão nos apresenta a sua "narrativa de vida" de mais de oito décadas, Freitas do Amaral optou por se focar nas "memórias políticas", editadas ao longo de mais de 20 anos em três volumes - nos anos de 1995, 2008 e 2019. Neles vamos, fase a fase, seguindo o excecional trajeto de alguém que se preparou, com talento, rigor e dedicação, para ser o que foi. Numa expressão sua, lapidar. "Sonhei coisas grandes e, felizmente, vivi muitas"-
Bastante novo atingiu o topo da carreira académica, como professor catedrático de Direito, e muito novo se viu a liderar um dos quatros grandes partidos do pós 25 de Abril. Excecional se revelou, depois, em todos os cargos aos quais se candidatou e para os quais foi eleito, dentro e fora do país - Deputado, Vice Primeiro Ministro, Primeiro-Ministro interino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs (o primeiro português eleito para a presidência de uma grande "Internacional"), Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, candidato à presidência da República, numa eleição que ganhou na 1ª volta e perdeu na 2ª, para Mário Soares, por escassos 138.000 votos... Paradigmática é a
forma como analisa os vários factores determinantes dessa derrota, com uma objetividade de cientista político, e como aceita, democraticamente, o veredicto popular, não hesitando em afirmar: "O percurso e o currículo de Mário Soares eram nitidamente superiores aos meus".( Quase metade dos portugueses tinham mostrado, nas urnas, pensar o contrário...). Recusando contestar o resultado, o candidato vencido apressou-se a felicitar o vencedor. No dia seguinte, recebeu em casa "um enorme ramo de flores', com um cartão de cumprimentos, admiração e respeito do casal Maria Barroso e Mário Soares". Nas "Memórias", comenta: "Só o Mário Soares e a Maria de Jesus seriam capazes de fazer uma coisa destas". E eu acrescentarei: Só Freitas do Amaral seria capaz desta reação - a democracia portuguesa no seu melhor! Na era dos Trump e dos Bolsonaros, motivo, para nós, de renovado orgulho.
3 - Francisco Pinto Balsemão, em mil densas páginas, reúne, nos capítulos que sobre política se debruçam, um manancial de dados, desde os dias em que a revolução apenas se adivinhava, sem hora certa. Deputado da "ala liberal" na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano,
fundador de um semanário que soube antecipar o tempo da democracia,( "O Expresso"), co-fundador de um partido político, que pesou decisivamente na mudança de regime, o PPD/PSD, Ministro, Primeiro Ministro por dois anos (e dois governos), deputado europeu por 11 dias. E muitas coisas mais: milionário nato (ou seja, de fortuna herdada, que não dilapidou), jornalista, advogado, empresário da comunicação social, não lhe falta matéria de interesse para levar a conhecimento público. Passados os 80 anos, bem gozada a vida, satisfeitas as ambições, as que teve e até as que nem tinha
sonhado (nomeadamente ser Primeiro-Ministro, o que somente aconteceu por um trágico acaso), fala sem reservas nem resguardos. É ele próprio, retrata muitas figuras da nossa "res publica", tal como as vê e, ao fazê-lo, retrata-se a si também. Poucos são os que se autobiografam assim, emitindo opiniões, com o à vontade, de quem está numa roda de amigos. O jornalista vem ao de cima", redige com desembaraço e espontaneidade, sem floreados, sem excessivas subtilezas, sem poupar os alvos, ainda que estes hajam ocupado, ou ocupem hoje os mais altos cargos de Estado. As passagens agrestes sobre Marcelo Rebelo de Sousa, não só no livro, mas em entrevistas laterais ao seu lançamento, fazem furor, e, talvez expliquem, pelo menos em parte, que a 1ª edição esteja, (ao que consta), já esgotada. Da Bertrand, em Espinho, trouxe comigo o último exemplar, que só terei conseguido, por estar ligeiramente amolgado - nada que afete o conteúdo.
Em jeito de recomendação, terminarei confessando que tenho ficado a lê-lo pela noite dentro, refrescando lembranças, algumas já vagas, e confrontado as minhas com as suas interpretações sobre o encadeamento de ocorrências, de conflitos, polémicas, pessoas que os protagonizaram - exercício tão grato quando aquelas vão no mesmo sentido como quando são dissonantes.
Em suma, mais um significativo subsídio para a história de uma então tão jovem e esperançosa democracia.
9 out 2021
--------------------------------------------------------------------
S AUTARQUIAS, REPÚBLICAS DOS HOMENS
1 - Hesitei bastante no título deste comentário. Há tantas maneiras de dizer o mesmo. Célia Marques fala de "mundo masculino", Sandra Ribeiro (uma voz "oficial", presidente da "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género" (CCIG) de "meios masculinizados", Luís de Sousa (ICS da Universidade de Lisboa) de "envolvente masculina", António Barreto de "invisibilidade - feminina - no país das autarquias". Alguns exemplos, entre outros, que guardo na memória. Finalmente, decidi "plagiar-me" a mim própria, lembrando um colóquio organizado em Espinho, em 2010, durante as comemorações do centenário 5 de outubro de 1910: "Mulheres na República dos Homens".
A realidade, que os números e estatísticas revelam, é que as autarquias são, em Portugal, o último reduto do (quase) absoluto poder masculino. A lei da Paridade veio criar nos lugares secundários a ilusão de um crescente equilíbrio de género, mas deixou intocado o cargo onde reside todo o poder - a presidência das Câmaras, em sistema presidencialista. Os homens estão à frente de mais de 90% dos concelhos do continente e das Regiões Autónomas.
A paridade que, na economia do diploma original, de 2006, era atingida com uns modestos 33% subiu, em reforma recente, para 40%. Subiram, com ela, as expetativas de um progresso que nos deixaria perto da barreira das quarenta presidências femininas. Desde 1985, vínhamos registando um crescimento pequeno mas consistente. Na meia década de oitenta, contávamos apenas 4 mulheres presidentes, em 2017 já eram 32. Pouco ultrapassando os 10%, não se tratava de um resultado excelente, mas alimentava a convicção de progresso irreversível. Por isso, 2021 foi verdadeiramente dececionante, porque, pela primeira vez, em décadas, esse número desceu (de 32 para 29), continuando a deixar de fora as principais cidades do País - Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, e por aí adiante... .
2 -Há em Portugal, a meu ver, uma crença excessiva nas virtualidades do Direito para resolver os problemas do nosso atraso social e económico, de desequilíbrios e assimetrias herdados do passado. No que, em especial, se refere à discriminações de género não penso diferentemente. Sou favorável à Lei da Paridade, considero que há muito deveríamos ter aperfeiçoado disposições a que falta caráter vinculativo, e enquanto Deputada, na Assembleia da República, sempre me manifestei nesse sentido, pela palavra e pelo voto, em oposição a teses então oficiais do meu partido (onde apenas Leonor Beleza e Marcelo Rebelo de Sousa, que não era deputado. estavam do meu lado da barreira). Tenho, todavia, a consciência de que é preciso lutar também com outras armas, para alcançar a
igualdade efetiva.
Há muito - logo após a Revolução de 1974, com a Constituição democrática de 1976 - está a plena igualdade entre mulheres e homens consagrada no nosso sistema. Esse foi o tempo
histórico em que terminou o longo combate das (e dos) sufragistas, que se centrava, e se ganhou, na esfera jurídica. Porém, removido o obstáculo que a própria Leii constituia, logo outros se levantaram nos vários domínios, em que a força vinculativa e sugestiva, ou pedagógica, do Direito tem as suas limitações. Podemos, é certo, ainda corrigir na legislação ordinária imperfeições ou desconformidades constitucionais, criar mecanismos de controle da aplicação dos comandos legais e da promoção de oportunidades iguais, do tipo da CITE (Comissão para a Igualdade do Trabalho e Emprego) , ou da CCID. Contudo, o centro estratégico de uma mudança profunda de mentalidades e de práticas deslocou-se, definitivamente, do terreno da legiferação para o da vivência das leis. Não basta impor juridicamente a igualdade salarial, as mesmas oportunidades de progressão profissional ou de participação cívica e política para que elas aconteçam de facto..Não podemos ignorar os expedientes generalizadamente usados para manter o "status quo" - ou seja, 91% de homens presidentes de Câmara no todo nacional e uma percentagem superior, a rondar os 100%, nas capitais de distrito, nas mais importantes. Se a questão fosse, sobretudo, de "mentalidade", de "aceitação social", de "socialização", como pretendem alguns doutos investigadores, como Luís de Sousa (Instituto de Estudos Sociais), ou de "tradições preconceituosas", como defende Sandra Ribeiro, a Presidente da CCIG, o fenómeno deveria sentir-se muito mais no mundo rural do que nas grandes cidades cosmopolitas! Aquelas condicionantes terão algum peso, mas verdadeiramente eterminante é a organização partidária, o "baronato" instalado nas estruturas locais, que se defende "com unhas e dentes" da abertura desejada pelas cúpulas de Lisboa (e não em todos os quadrantes, como sabemos, mas, ao menos, em alguns). Di-lo, por exemplo, um sociólogo mais do que teórico, com a sua grande experiência de governo e parlamento, António Barreto: "o sistema político e social está organizado de forma a favorecer os homens. O menu de escolha, de oferta, está enviesado a favor dos homens. Mantém o predomínio masculino".
A palavra chave é "menu de escolha". A nível nacional, para o Parlamento e para o Governo, têm poder de decisão na escolha, os órgãos máximos dos partidos, e o nº 1, o Primeiro Ministro, o Secretário-Geral ou Presidente do partido e, por isso, a Lei da Paridade é, mais ou menos, respeitada, e o progresso tem sido constante e visível. A nível local, não , pois no "menu de oferta" as mulheres estão (quase) sempre colocadas nas listas o mais abaixo que o "diktat" legal permite. E são cabeças de lista (quase) só em circunscrições onde esse partido não tem perspetivas de vencer... Nas últimas eleições, o PCP escolheu 80 mulheres cabeças de lista, o PS 44, o PSD 31, o Chega, 30, o BE, 27, o CDS, 17, o PAN 13, a IL 6 e o Livre, 3.. Contas finais elucidativas : mais de 250 candidatas à presidência da Câmara e apenas 29 eleitas...
3 - E em Espinho, como vamos, neste aspeto? Tal como acontece nas maiores cidades do País, nunca aqui se elegeu uma mulher para a presidência, mas, por acaso, já houve uma que, a partir da Vice presidência, ascendeu ao cargo e fez história com um brilhante desempenho. A Senhora D.Elsa, de que todos nos podemos orgulhar.
Na presidência da Assembleia Municipal já contou com duas ilustre espinhenses e agora apresenta um Executivo camarário que cumpre plenamente os ditames da Lei da Paridade, com quatro homens e três mulheres. Em termos da maioria socialista, é rigorosamente paritário - dois homens e duas mulheres - e, embora, na dimensão qualitativa, os homens ocupem os lugares cimeiros, as Vereadoras possuem currículo que permite esperar um desejável equilíbrio na obra a fazer pela terra.
No panorama global do País, estamos, com certeza, nos lugares cimeiros.
21 out 2021
ETC E TAL
REPENSAR A HISTÓRIA DA NOSSA DEMOCRACIA
1 - Não conhecemos ainda qualquer esboço do programa das anunciadas comemorações dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, que ocorrem em 2024. Bem à portuguesa, só sabemos para já dois nomes: o de quem as vai presidir, simbólica e honorificamente - o General Ramalho Eanes, que há muito devia ser o Marechal Ramalho Eanes, e é absolutamente indiscutível - e o de quem chefiará o Executivo, um jovem professor da área política do Governo, cuja notoriedade enquanto comentarista de vários "media" em muito suplanta o seu (ainda) modesto currículo universitário. Apesar da sensatez e moderação com que, a meu ver, sempre intervém, representa, face à escolha da personalidade do Presidente, o 8 perante o 80.
O perfil de académico será o ideal para um coordenador da "comissão organizadora" das celebrações, se, como me parece fundamental para o seu êxito, se vierem a centrar em aprofundadas investigações interdisciplinares. Para fazer história e para "fazer futuro" - na linguagem de setenta, para "cumprir Abril", ou para dar a dimensão da modernidade às "conquistas da revolução". O que por tal se entende está longe de ser inequívoco ou consensual em todos os quadrantes, mas, da equidistância dos cientistas se espera que os considerem todos. Como escreveu Agostinho da Silva, o filósofo que adorava gatos, a história que mais interessa é a do futuro. Porém, não é menos verdade que o ponto de partida e a fonte de ensinamentos e de inspiração é a do passado...
Os trabalhos vão, supõe-se, começar em breve e prolongar-se por vários anos, antes e depois da efeméride nuclear. Nada a opor a um tão extenso
período de preparação e de continuidade de esforços se eles envolverem abertura às diversas universidades e especialistas, (não se fechando em "lobbies"" ou capelinhas), se servirem a pesquisa académica rigorosa, a recolha de documentação, a reflexão e a divulgação da história, que as gerações mais novas não viveram.
Num certo sentido, essa tarefa já teve o seu início no segmento particularmente importante da preservação da memória, com o testemunho direto de muitos dos protagonistas dos acontecimentos de 1974 e da construção da democracia - ou seja, o seu "dia seguinte" da Revolução, na meia década de setenta e na de oitenta. Refiro-me, em especial, a autobiografias políticas, que não eram propriamente uma boa tradição nacional, e que estão a tornar-se coisa comum entre os nossos contemporâneos. Cavaco Silva contribuiu com dois volumes, meticulosamente documentados, e mais os seus "diários" da presidência, na esteira de Jorge Sampaio. Mário Soares deixou-nos uma riquíssima coleção de publicações, tocando várias épocas e domínios, até o
literário. Bons exemplos! As últimas publicações do género que tive a oportunidade de consultar, foram as de Diogo Freitas do Amaral, em 2019, - "Mais de 35 anos de Democracia Um Percurso singular" Memórias Políticas III (1982-2017) - e de Francisco Pinto Balsemão, intitulada, simplesmente, "Memórias".
Ambos nos oferecem a perspetiva diacrónica de uma fascinante e vertiginosa sucessão de eventos em duas décadas cruciais, tal como eles as atravessaram, dando o seu contributo individual para alicerçar a arquitetura do Estado democrático. E, não parando aí, trazem-nos com eles na viagem de décadas de democracia estabilizada, até à atualidade. Para muitos, sobretudo os que que nunca souberam como era o quotidiano de
gente comum, mais ou menos passiva, ou de ativos contestatários sob a ditadura, é uma incursão num mundo desconhecido, regido por normas que hoje parecem estranhas, a tocar as raias do absurdo... Para outros, tem o encanto de uma saga seguida de perto, ou, até, em alguns momentos partilhada.
Ao lado de Freitas do Amaral, no governo em que ele foi Vice-Primeiro Ministro de Sá Carneiro, como sua Secretária de Estado (para a Emigração), vivi o melhor ano da minha vida, o de 1980, até ao dia 4 de dezembro. Lembrá-lo, página a página, torna-se, assim, uma espécie de romagem de saudade.
De Balsemão não posso dizer o mesmo, nunca fui amiga nem prosélita, mas, à distância de décadas, é um exercício estimulante constatar, porventura com mais objetividade, não só divergências de análise sobre casos e pessoas, mas concordâncias e algumas bem relevantes, como a relativa à atual filiação do PSD, a nível europeu - apontando o erro de trocar, em fins de século, a Internacional Liberal e Reformista por um PPE, cada vez mais
conservador e menos cristão-democrata - ou a simpatia por um militar "presidenciável", que se chamava Mário Firmino Miguel.
2 - Embora abrangendo as vicissitudes da vida pública no decorrer do mesmo período de tempo e no mesmo espaço é muito distinta da de Balsemão a narrativa de Diogo Freitas do Amaral - reflexo natural das diferenças de personalidade, de pensamento, de formação académica, de objetivos na profissão e na política e de realizações concretas nestes dois sectores.
Freitas do Amaral conjugou, na perfeição, a fulgurante carreira universitária, (muito novo ascendendo a Professor Catedrático de Direito), e a corajosa, determinada, e não menos brilhante política,caminhada política, ganhando o seu lugar entre os "pais fundadores" do regime nascido no do 25 de Abril - primeiro presidente do CDS. O "Homem de Estado", que, segundo Mário Soares, "ajudou a converter a direita portuguesa à democracia".
Escreveu muitas páginas de história, que é não apenas sua, mas do País, e, por isso, de leitura obrigatória. Uma obrigatoriedade que a leveza e a naturalidade com que se exprime, numa linguagem em simultâneo precisa, simples e acessível sobre os temas mais complexos, torna especialmente grata e aliciante, não só para especialistas em questões de política nacional e internacional, mas para qualquer um de nós.
Enquanto Balsemão apresenta aos leitores a sua "narrativa de vida" de mais de oito décadas, Freitas do Amaral optou pelo enfioque nas "memórias políticas", editadas ao longo de mais de 20 anos em 1995, 2008 e 2019. Neles vamos, fase a fase, seguindo o excecional trajeto de alguém que se preparou, com rigor, dedicação e muito talento, para chegar onde chegou. Numa expressão sua, lapidar. "Sonhei coisas grandes e, felizmente, vivi muitas"-
Muito novo se viu a liderar um dos quatros grandes partidos do pós 25 de Abril e atingiu o topo da carreira académica. Excecional se revelaria em todos os cargos aos quais se candidatou e para os quais foi eleito, dentro e fora do país - Deputado, Vice Primeiro Ministro, Primeiro-Ministro interino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs (o primeiro português eleito para a presidência de uma grande "Internacional"), Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, ou candidato à presidência da República, numa eleição que ganhou na 1ª
volta e perdeu na 2ª, para Mário Soares, por escassos 138.000 votos... Paradigmática é a forma como analisa os vários factores determinantes dessa derrota, com uma objetividade de cientista político, e como aceita, democraticamente, o veredicto popular, não hesitando em afirmar: "O percurso e o currículo de Mário Soares eram nitidamente superiores aos meus". (Quase metade dos portugueses tinham mostrado, nas urnas, pensar o contrário...). Recusando contestar o resultado, como alguns queriam, o candidato vencido apressou-se a felicitar o vencedor. No dia seguinte, recebeu em casa "um enorme ramo de flores', com um cartão de cumprimentos, admiração e respeito do casal Maria Barroso e Mário Soares". Nas "Memórias", comenta: "Só o Mário Soares e a Maria de Jesus seriam capazes de fazer uma coisa destas". E eu acrescentarei: Só Freitas do Amaral seria capaz desta reação. A democracia portuguesa no seu melhor! Na era dos Trump e dos Bolsonaros, motivo, para nós, de renovado orgulho.
3 - Francisco Pinto Balsemão, em mil densas páginas, reúne, nos capítulos que sobre política se debruçam, um manancial de dados, desde os dias em que a revolução apenas se adivinhava, sem hora certa. Deputado da "ala liberal" na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano,
fundador de um semanário, que soube antecipar o tempo da democracia, ("O Expresso"), co-fundador de um partido político, que pesou decisivamente na mudança de regime, o PPD/PSD, Ministro, Primeiro Ministro por dois anos e meio (em dois governos), deputado europeu por 11 dias. E muitas coisas mais: milionário nato (ou seja, de fortuna herdada, que não dilapidou), jornalista, advogado, empresário da comunicação social, não lhe falta matéria de interesse para levar ao seu público. Passados os 80 anos, bem gozada a vida, satisfeitas as ambições, as que teve e as que nem tinha
sonhado (nomeadamente ser Primeiro-Ministro, o que somente aconteceu por um trágico acaso), fala sem reservas nem resguardos. É ele próprio, retrata muitas figuras da "res publica", tal como as vê e, ao fazê-lo, retrata-se a si também. Poucos são os que se autobiografam assim, emitindo opiniões com o à vontade de quem está numa roda de amigos. O jornalista vem ao de cima", redige com desembaraço e espontaneidade, sem floreados, sem excessivas subtilezas, sem poupar os alvos, ainda que estes tenham ocupado, ou ocupem hoje os mais altos cargos de Estado. As passagens agrestes sobre Marcelo Rebelo de Sousa, não só no livro, mas em entrevistas laterais ao seu lançamento, fazem furor, e, talvez expliquem, pelo menos em parte, que a 1ª edição esteja já esgotada. Da Bertrand, em Espinho, trouxe comigo o último exemplar, que só terei conseguido, por estar ligeiramente amolgado - nada que afete o conteúdo.
Em jeito de recomendação, terminarei confessando que fiquei a lê-lo pela noite dentro, refrescando lembranças, algumas já vagas, e confrontado as minhas com as suas interpretações sobre o encadeamento de ocorrências, de conflitos, polémicas, pessoas que os protagonizaram - exercício tão grato quando aquelas vão no mesmo sentido como quando são dissonantes.
Em suma, mais um significativo subsídio para a história de uma então tão jovem e esperançosa democracia.
Subscrever:
Mensagens (Atom)