quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

TÓQUIO 2021 AS AURORAS QUE estão por DESCOBRIR 1 - A participação portuguesa nos últimos jogos olímpicos é incensada pela generalidade dos políticos, dos comentadores desportivos, como "a melhor de sempre". Dir-se-ia que marcou a transição para um patamar de desenvolvimento qualitativo. Pura ilusão... Na realidade, continuamos exatamente aonde estávamos antes - na cauda da Europa, em termos de investimento nas diversas modalidades desportivas (menos de metade da média europeia). de formação escolar): A Educação Física é menorizada nos "curricula" escolares, a compatibilização da vida desportiva e académica nas Universidades é descurada. É mínima a prática do exercício físico na infância, na juventude e em todas as idades é mínimo,  como mostram as tabelas de comparação a nível internacional. Em suma, vivemos pouco acima do grau zero, no domínio da cultura desportiva, cuja falta é revelada pelo somatório de todas as referidas e muitas mais deficiências, com inevitável repercussão na "performance" global em alta competição. Mais um deprimente sinal nos foi dado, recentemente, pela despreocupação com que a DGS, o Ministério da Educação, os próprios professores encararam a rotura da prática desportiva durante a pandemia, dentro e fora das escolas, em absoluto  contraste com o alarme provocado pelo encerramento das aulas e a necessidade de recorrer a ensino não presencial...Ora, num balanço final, o que terá feito dano maior? Ter-se-ão perdido mais futuros doutores e engenheiros do que futuros campeões? E provocado mais insucesso escolar ou mais abandono desportivo?Perguntas para as quais não tenho resposta - só uma certeza: o desporto amador, o desporto para todos e até o desporto profissional foram altamente negligenciados e prejudicados. Há no governo um denominado "Secretário de Estado do Desporto", que não se sabe para o que serve, nem o que faz.   2 - A proclamada excecionalidade da participação nacional em Tóquio é relativa aos nossos próprios resultados olímpicos recentes, que, quando positivos, oscilam modestamente entre as duas ou três e estas celebradas quatro medalhas - parcas e limitadas ao atletismo em modalidades individuais, a evidenciar o mérito de cada atleta (e, eventualmente, dos seus clubes), muito mais do que o mérito de um projeto ou estratégia dos poderes públicos. Em boa verdade, na Europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a Lituânia, com2.794 milhões de habitantes, Chipre com 1, 224.216, o Luxemburgo com 643.196 e Malta com apenas 502, 633). Muito se realçou, igualmente, o caráter "inclusivo" da delegação portuguesa, com esse adjetivo querendo significar a presença de estrangeiros naturalizados e de cidadãos de origem africana. Muito me regozijo com o facto de haver nesta modalidade maior abertura para o reconhecimento da dupla nacionalidades e para a atribuição do passaporte português. do que há, por exemplo, no futebol profissional, onde tanta polémica causou a justíssima chamada de Deco e de Pepe à seleção - dois brasileiros natos, que sempre deram provas de excelência desportiva e de dedicação à camisola das quinas(enfim, penso que o mesmo talvez não tivesse acontecido se representassem clubes de Lisboa, como é o caso de Pedro Pablo Pichero, de Nelson Évora, de Jorge Fonseca e como foi o do inesquecível Francis Obikwelo...). Digo-o com todo o apreço pelos clubes que continuam a oferecer, hoje, medalhas e campeões de atletismo ao país, caso do SCP e o SLB, como, noutros tempos, o FCP o conseguiu, com os seus históricos títulosno feminino - o ouro de Aurora Cunha, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro. E saúdo, naturalmente, o fenómeno de preponderância dos afro-portugueses na vanguarda do atletismo nacional, com três em quatro das nossas medalhas de Tóquio, a exceção sendo a do canoísta Fernando Pimenta, com fundas raízes nortenhas em Ponte de Lima, embora. do ponto de vista clubístico, se tenha mudado para sul. E só de Pedro Pichardo se pode afirmar que foi formado no estrangeiro (em Cuba) e se naturalizou já com um brilhantíssimo palmarés. Jorge Fonseca veio de São Tomé para Portugal com 11 anos e Nelson Évora, nascido em Abijan, de pais cabo-verdianos, também muito cedo aqui se integrou. É portuguesa de ascendência angolana, Patrícia Mamona, a única mulher neste glorioso quarteto de campeões, com uma medalha de prata que vale mais do que o ouro. Ela é a pura encarnação do espírito olímpico, da vontade de se transcender a cada novo dia. Teimou em praticar o triplo salto e em atingir o Olimpo numa modalidade para a qual, sendo uma predestinada, lhe faltava, diziam-lhe todos, uma característica física, a altura. Mede apenas 1,66 e, não é demais destacá-lo, e só perdeu para uma gigante de quase dois metros (mais precisamente 1, 92). Há uma outra medalha que Portugal não pode reclamar oficialmente, mas que é um pouco sua. Uma medalha de ouro, de que pouco se falou; a de Júlia Grosso, jogadora de 20 anos (da Universidade do Texas), que apontou, na final, de "penalty", o golo decisivo para fazer da equipa de futebol feminino do Canadá campeã olímpica! 3 - O que motiva, num país de mentalidade tão avessa ao fomento da atividade física, na infância, na escola - que é onde, por todo o lado, se começa - os futuros campeões, rapazes e, igualmente, raparigas, (feito maior numa sociedade ainda tão misógina)? O que leva crianças de minorias étnicas, em quase todos os outros domínios marginalizadas, assim como outras de meios rurais, não menos desprivilegiadas, a superarem horizontes estreitos pela glória desportiva? É uma investigação que está por aprofundar no meio académico... O historial vai.se escrevendo, casuisticamente, por comparação de semelhanças e diferenças de circunstâncias, e precisa de ser bem melhor analisado, melhor contado, sem deixar nenhum nome para trás.Talvez, um dia,possam, todos esses percursos e personalidades figurar num grande museu nacional do desporto (um "hall of fame" português). Até lá, cada terra vai homenageando os seus heróis, como faz Espinho, ao guardar a memória de António Leitão no seu Fórum, Ponte de Lima com o projetado Museu Pimenta, o Porto com o Pavilhão Rosa Mota ou a Madeira na denominação do Aeroporto Cristiano Ronaldo ... Tóquio 2021 deixa-nos, pois, contentes com os atletas, em concreto, com os medalhados, com os que só não o foram por uma questão de má fortuna num momento decisivo, e com os que trouxeram diplomas olímpicos -  indicadores bastante mais numerosos, promissores de qualidade e de potencial, - mas, bem vistas as coisas, globalmente descontentes com  a falta de progresso geral, com o imenso desperdício de génios por achar.Lembremos o exemplo da campeoníssima Aurora Cunha, que, por sinal, nunca foi feliz nas suas várias participações olímpicas, mas ganhou ouro de igual valor em campeonatos da Europa e do Mundo (tricampeã mundial, na década de oitenta) e muitas maratonas importantes, com a camisola azul e branca do FCP ou com a da seleção nacional. A sua biografia, "Uma vida de paixões" é de leitura obrigatória. Aurora Cunha é um exemplo raro e intemporal, na sua trajetória de desportista e de cidadã, defensora dos valores do Desporto. Foi uma menina nascida com talento inato, uma jovem que teve a oportunidade de o cultivar graças a inexcedível energia e coragem, e, com o passar dos anos, cada vez mais é uma  mulher de causas -  o outro nome das suas paixões.  . Sabem como foi descoberta para uma tão fantástica carreira? Por mero acaso, quando à saída da igreja, numa tarde de verão, alguém se lembrou de chamar adolescentes de ambos os sexos, para uma corrida popular, no estádio da terra. Aurora, de saia de malha e sapatos de cabedal, ganhou, destacadamente, à frente dos rapazes, muitos deles equipados a rigor. Tinha 14 anos, era operária fabril e sempre gostara de correr, sozinha, por montes e vales. O Clube Juventude de Ronfe logo ali a convidou para treinar e levar a competições, e, pouco depois, veio o contrato com o FCP. Após a sua primeira grande vitória oficial, o "Mundo Desportivo" de 9 de junho de 1976 escrevia: "Quantas Auroras em potência haverá por esse país fora?" Quase meio século volvido, em Portugal, a pergunta mantém toda a sua pertinência. ----------------------------------------------------- TÓQUIO - OS JOGOS DO NOSSO CONTENTAMENTO DESCONTENTE 1 - A participação portuguesa nos últimos jogos olímpicos é incensada pela generalidade dos políticos e dos comentadores desportivos, como "a melhor de sempre". Dir-se-ia que marcou a transição para um patamar de desenvolvimento qualitativo. Pura ilusão...Na realidade, continuamos na cauda da Europa, em matéria de investimento nas diversas modalidades desportivas (menos de metade da média europeia), de formação escolar e universitária - só no desporto federado se pode verdadeiramente fazer carreira  - de exercício físico em todas as idades. É esta gritante falta de cultura desportiva que, fundamentalmente, determina o medíocre lugar que ocupamos no "ranking" europeu e mundial de alta competição. A proclamada excecionalidade da recente "performance" é relativa aos nossos próprios resultados olímpicos passados, que oscilaram, modestamente, entre as duas ou três e estas celebradas quatro medalhas de 2021 - limitadas ao atletismo, em modalidades individuais, a evidenciar o mérito de cada atleta (e, quando muito, também, dos seus clubes que os apoiam), muito mais do que de um projeto ou estratégia dos poderes públicos. Em boa verdade, na Europa, só estamos à frente de quatro países com populações entre três, seis ou cerca de vinte vezes inferiores à nossa (a Lituânia, com 2.794 milhões de habitantes, Chipre com 1, 224.216, o Luxemburgo com 643.196 e Malta com apenas 502, 633).  2 -Muito se realçou, igualmente, o caráter "inclusivo" da delegação portuguesa, com esse adjetivo querendo significar a presença de estrangeiros naturalizados e de cidadãos de origem africana na nossa delegação. Devemos regozijar-nos com o facto haver neste domínio abertura para o reconhecimento da dupla nacionalidades e para a atribuição do passaporte português, ao contrário do que é corrente no futebol, onde tantapolémica causou a chamada de Deco e de Pepe à seleção. Talvez, porém, o mesmo não tivesse ocorrido se representassem clubes de Lisboa, como é o caso dos atuais atletas Pedro Pablo Pichardo, Nelson Évora, Jorge Fonseca ou do inesquecível Francis Obikwelu. Esta dúvida não é levantada contra esses clubes de Lisboa, cuja influência, a ter sido exercida, o foi por uma "boa causa",  que, aliás, louvo por contribuirem para o sucesso do nosso atletismo, como, noutros tempos, o fez o FCP, com o seu trio "de ouro" feminino - Aurora Cunha, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro. Igualmente me parece de saudar o fenómeno da preponderância dos afro-portugueses nesta modalidade, com três em quatro das nossas medalhas de Tóquio, a exceção sendo a do canoísta Fernando Pimenta, com raízes nortenhas em Ponte de Lima. E só de Pedro Pichardo se pode dizer que foi formado no estrangeiro e se naturalizou já com um brilhantíssimo palmarés. Jorge Fonseca veio de São Tomé para Portugal com 11 anos, e Nelson Évora, nascido em Abijan, de pais cabo-verdianos, também muito cedo aqui se integrou. Patrícia Mamona é portuguesa nata, de ascendência angolana. Única mulher neste histórico quarteto de enormes campeões, ganhou uma medalha de prata que vale mais do que o ouro. Ela é a pura encarnação do espírito olímpico, da vontade de se transcender, a cada novo dia. Teimou, desde menina, em praticar o triplo salto e em atingir o Olimpo numa modalidade para a qual, sendo uma predestinada, lhe faltava, diziam-lhe todos, uma característica física: a altura. Mede apenas 1,66 e, note-se, perdeu o ouro para uma gigante de quase dois metros (mais precisamente 1, 92).  O que motiva, num país de mentalidade tão avessa ao fomento da atividade física na escola, desde a infância, os futuros campeões, rapazes e, igualmente, raparigas, (feito maior, numa sociedade ainda tão misógina)? O que leva crianças de minorias étnicas, em quase todos os outros setores marginalizadas, a superarem o destino pela glória desportiva? É uma história que se vai fazendo de comparações nas semelhanças e nas diferenças de circunstâncias, e que precisava de ser bem melhor contada e analisada. Talvez, um dia, possam dar origem a museu nacional do desporto...Até lá, cada terra vai homenageando os seus heróis, como Espinho muito bem tem conseguido, guardando a memória de António Leitão.3 - Tóquio 2021 deixa-nos, pois, por um lado, contentes com os atletas, em concreto, os medalhados, os que só não o foram por menos sorte num momento decisivo, os que trouxeram diplomas olímpicos -  bem mais numerosos do que os pódios, e também significativos, como indicadores de qualidade e de potencial para 2024 -  e, por outro lado, descontentes com a falta de progresso geral, com o imenso desperdício de talentos, os que já se perderam e os que estão por encontrar. Quando Aurora Cunha iniciou a sua meteórica carreira, com uma primeira grande vitória nacional, o "Mundo Desportivo", de 9 de junho de 1976, escrevia: "Quantas Auroras em potência haverá neste país?".O caso desta fantástica atleta é paradigmático. Aos 14 anos, a oitava de uma família numerosa de 10 filhos, menina franzina e irrequieta, era operária fabril. Um domingo, à saída da Igreja, depois do Terço das 15.00, alguém se lembrou de animar o fim de tarde com uma corrida popular para rapazes e raparigas, no estádio de Ronfe. Aurora lá foi, com o sua saia de malha domingueira e sapatos de cabedal, e ganhou, destacadamente, à frente de todos os rapazes, alguns deles equipados a rigor. O Clube Juventude de Ronfe logo ali a convidou para treinar e competir, e, pouco depois, viria o contrato com o FCP, o seu clube de coração. E, assim, se súbito, se alargaram os horizontes da menina.fenómeno, que, no meio fundo e fundo, havia de acumular recordes e medalhas de ouro, ser tricampeã mundial e vencedora das mais prestigiadas maratonas. Vale a pena colher, na sua inspiradora autobiografia "Uma vida de paixões", (prefaciada pelos Presidentes Ramalho Eanes e Rebelo de Sousa), os ensinamentos de uma carreira ímpar, que começou tarde e por puro acaso. 45 anos depois, a questão de "O Mundo Desportivo" mantém toda a pertinência. Quantas Auroras estarão por descobrir?

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