Tem a palavra a família Aguiar e os seus amigos. Vamos abrir o "Círculo", com duas alternativas, que proponho: Este "Aguiaríssimo" ou o "blogguiar.blogspot.com"
domingo, 17 de julho de 2022
Maria da Conceição Vassalo e Silva da Cunha Lamas é uma mulher verdadeiramente intemporal, que tem um lugar ímpar na história portuguesa do jornalismo e das Letras, do movimento feminista em meados de novecentos, da luta contra a violência de uma longa ditadura.
Protagonista maior, em todos estes domínios, senhora de um destino extraordinário, num dado tempo, particularmente ingrato, que, sobretudo por ser mulher, a obrigou a vencer mil obstáculos, preconceitos misóginos e perseguições da polícia política, muitas vezes a levando a interrogatórios e prisões e, por fim, a um doloroso exílio. Figura intemporal, antes de mais, como paradigma de cidadania vivida audaciosa e apaixonadamente, com uma visão clara do devir português, uma crença na força criativa e subversiva das mulheres para mudar o velha Ordem, e o velho mundo anacrónico do chamado “Estado Novo”, sempre numa atitude coerente de generosidade.
Nascida ainda no século XIX, foi aluna do “Colégio das Teresianas Jesus, Maria e José”, estudando num ambiente religioso mas acolhedor, onde se sentia bem tratada, e onde cedo terá despontado o sentido de missão, que, mais tarde, alargando horizontes com projetos de carreira profissional e de intervenção cívica, se consumou no humanismo laico e fraternalista com que fez percurso, em gestos quotidianos de solidariedade, num combate sem fim pela justiça, pela igualdade e pela paz.
Casou aos 18 anos, com um republicano, Oficial de Cavalaria, e com ele viveu três anos em Angola. No regresso a Torres Novas, tão jovem ainda, já vislumbramos em iniciativas diversas, a militante de ideias e causas que não tardaria a revelar-se plenamente: é voluntária da Cruz Vermelha, organiza saraus de beneficência para ajudar famílias dos soldados, publica na imprensa local artigos sobre a guerra (a 1ª Grande Guerra). Aos 26 anos, depois do divórcio – que, à época, era ainda de considerar um ato de rebeldia, de afrontamento dos "bons costumes", que postulavam a submissão feminina – fixa-se em Lisboa e torna-se pioneira no jornalismo, que era ofício de homens. Trabalha, primeiro, no diário “A Capital”, depois no grupo editorial de “O Século”, dirigindo, durante muitos anos, a revista feminina “Modas e Bordados” – o mais improvável dos instrumentos instrumento para empreender o que ousou: promover uma revolução de mentalidades, mobilizar as jovens da sua geração para à vivência cidadã e profissional. para tal, usa o seu habilmente o “correio de leitoras”, constrói o seu "poder de aconselhamento que, para ela, é também, uma tomada de consciência dos problemas e dilemas das mulheres de todas as idades. A sua obra mais emblemática, que podemos classificar como “monumental” , " As Mulheres do meu País”, terá tido aí a sua pré-história.
É nesta sua forma de dar concretização pragmática e eficiente aos valores e ideais que a norteiam, numa rara capacidade de realizar coisas grandes com meios parcos e banais, com persistência e incomparável brilho, que Maria Lamas me parece singularmente inspiradora, hoje e sempre.
O “correio” da popular revista feminina teve um enorme sucesso e impacto, o mesmo se podendo dizer de grandiosas exposições que, sob o patrocínio de “O Século”, organizou, para dar do papel mulher sua contemporânea, em diversas sociedades, domínios e condicionalismos, uma visão empolgante e mobilizadora, confirmada por factos e por feitos, com que desmentia, categoricamente, a ideologia misógina e opressiva do salazarismo - a última das quais, patenteando obras de mulheres escritoras de todo o mundo, lhe custou o emprego, uma sólida carreira e até a segurança pessoal. A partir de então, seria alvo de repetidos atos persecutórios do regime, que queria bani-la, implacavelmente, do espaço público.. Em tempo de repressão e declínio do primeiro movimento feminista português, foi ela a última presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, expressão máxima desse associativismo revolucionário, que começara com Adelaide Cabete, nos primórdios da República. Um Decreto do Governador Civil de Lisboa extinguiu o CNMP, mas não conseguiria silencia-la, ou erradicar os ideais de igualdade, que, a par de algumas, poucas companheiras, encarnou, durante o interregno que vai até à formação da segunda vaga do movimento feminista, na década portuguesa de setenta .
Maria Lamas estava, então, divorciada do segundo marido, o jornalista monárquico Alfredo da Cunha Lamas, tinha as filhas a cargo, dependia de si e do seu trabalho... Não se deixou abater, pelo contrário, recomeçou, com redobrado ânimo, um solitário e fecundo exercício de jornalismo de investigação, abraçando desafios cada vez maiores. Munida de uma máquina fotográfica, papel e caneta foi, pelo país adentro, em toda a espécie de deficientes transportes, recolher depoimentos e testemunhos de mulheres de todos os misteres e condições, até às aldeias mais remotas e inacessíveis. Deu-lhes, livremente, voz e visibilidade num retrato coletivo, de alta precisão, de incomensurável valor humano, literário e científico. Uma obra prima do jornalismo português, que é também, um grito de revolta contra a exploração económica, a pobreza, quando não miséria, o confinamento de horizontes, num todo em que a metade feminina era duplamente vítima de subjugação.
Maria Lamas viveu, assim, corajosamente, nas décadas seguintes, sem ceder, sem abrandar ... tão eficaz a usar a escrita, como a recorrer à ação concreta. E não menos admirável foi na sua veste privada. Sozinha educou as duas filhas, influenciou e cativou as netas, os netos, através de cujos testemunhos sobre a “Avó Maria”, ficamos a conhecer melhor o seu encanto como pessoa, a sua irradiante beleza de rosto e de espírito, o seu temperamento afável e bondoso, a sua constante dedicação, num círculo alargado dos que tratava como família. Durante os anos de exílio, em Paris, tornou-se a Avó Maria de um sem número de expatriados, que nela encontravam, invariavelmente, amizade e apoio.
A terra voltou para gozar os seus últimos anos na democracia que ajudara a refundar. Lúcida e combativa, aberta à modernidade! Ao Estado coube atribuir-lhe, como não podia deixar de ser, a Ordem da Liberdade. Aos Portugueses, em cada nova geração, cabe guardar na memória do exemplo de vida que legou às Mulheres e aos Homens do seu País
O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES
A propósito do retorno de Balbina ao FACE
1 - Em 2010, quando Balbina Mendes veio a Espinho, pela primeira vez, o FACE, inaugurado a 16 de junho de 2009, dava os primeiros passos na que poderemos considerar o seu percurso de afirmação. De facto, os museus, as galerias de arte ganham nome e prestígio com a vivência do lugar, com a marca das pessoas que, sucessivamente, convidam para o habitar, cruzando o seu "curriculum” com o deles, numa apropriação desejada e consentida.
Balbina entrou na história das Galerias do FACE como a primeira Mulher a ocupá-las numa exposição individual, e a primeira a surpreender e a mobilizar largas audiências com as suas espantosas 'Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes" - uma pintura de matriz etnológica, que recuperava arquétipos primordiais emergindo, interpretados e recriados em toda a sua magia, nas telas de grande dimensão e impacto.
Nesse julho de 2010, ela foi também precursora numa outra vertente, ao promover no ato de inauguração um memorável espetáculo de danças dos caretos de Podence, que trouxeram o exotismo da "festa dos rapazes" às ruas de Espinho e, depois, aos corredores e salões do Museu.
No ano seguinte, com a Bienal, "Mulheres d' Artes", em que Balbina Mendes esteve presente, o Museu de Espinho antecipou, em cerca de uma década, a marcante exposição de pintura no feminino providenciada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em ambas as iniciativas, a de Espinho e a de Lisboa, adivinhamos o mesmo escopo - não, como é evidente, o de "excluir, segundo o sexo", mas o de valorizar a metade ancestralmente invisível, no sentido do alargamento e universalização das Artes.
Já quanto à complexa questão do modo como o "género" se exprime, (com caraterísticas próprias ou comuns e indistintas), a organização da 1ª Bienal guardou-se de tomar partido, reconhecendo, sim, por um ado, que o masculino avulta, desde tempos imemoriais e ainda hoje como "padrão", enquanto o feminino é "alteridade", e, por outro, a ideia de que o sucesso das "mulheres-exceção" não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade da maioria, que as estatísticas, na fria linguagem dos números, denunciam.
No catálogo da 1ª Bienal, o Dr. Armando Bouçon, Diretor do Museu, a quem se ficou a dever a proposta de a realizar, escrevia: "Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino". Foi. E não continuará a ser?
2 - Até um Museu que fez história, em Portugal, com quatro históricas bienais de Arte no feminino (entre 2011-2017) pode servir-nos para mostrar como, ao nível de mega exposições individuais, se mantém, nas suas Galerias, o predomínio masculino, enquanto nas coletivas, ou nas exibidas, mais modestamente, em pequenos recantos do Fórum, as mulheres já ultrapassam os homens, numa trajetória positiva, mas como se estivessem, ainda, em transição gradual do espaço privado para o público… É um exemplo que
poderemos extrapolar, em outras áreas, a nível nacional e até internacional. Na verdade, essa constatação terá estado na origem do movimento pela Arte no feminino, que teve, e tem, em Paula Rego uma das suas líderes mais insignes e mais ativas. Nas suas próprias palavras: "As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?". [...] "Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com aquilo em que jamais se tocou-as experiências de mulheres".
Um discurso com que a nova vaga feminista do último quartel do século XX incorporou o plano da expressão artística na globalidade da sua luta - discurso que, diga-se, neste como em qualquer outro campo, é tudo menos pacífico. Mais consensual será, certamente, a exortação de Gisele Breitling em favor de "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções".
3 - Balbina Mendes tem contribuído, poderosamente, para que as mulheres portuguesas assumam, na vida cultural e artística do nosso país, o seu "lugar de direito". Fá- lo, ocupando, simplesmente, o lugar, com ânimo e talento de sobra, sem em nada se julgar discriminada. É um caso exemplar, entre grandes artistas, cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém implícita a exigência do tratamento igualitário. À margem de uma teorização reivindicativa, alcança as metas que esta se propõe, com isso abrindo caminho a outras mulheres, destruindo preconceitos de género, pela força do seu traço, pela singularidade de temáticas e de técnicas....
Embora, como velha militante da igualdade, desde os bancos da escola, não me situe exatamente nesta linha, tenho de reconhecer a sua eficácia, assim como, também, de admitir os riscos da defesa "à outrance" da "arte com género" em que Paula Rego acredita...O que, sendo, no seu patamar de genialidade, sinal vanguardista de "contracultura", pode, a outros níveis, redundar em novos estereótipos do feminino, que, em sociedades patriarcais, são, fatalmente, menos valia. Por essa razão, num outro domínio, o literário, reservamos o feminino” poetisa” para o comum das mulheres, mas chamamos "poetas" a uma Sophia, ou a uma Ana Luísa Amaral...Por essa mesma razão, o crítico João Gaspar Simões, elogiando a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que abordava as problemáticas mais ousadas, a qualificava como "um grande escritor". Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone! Balbina não o apreciaria, mas é uma das mulheres a quem se poderia, nessa lógica, aplicar. A sua obra é original, audaciosa, inovadora, (nos temas, na estética, policromia, fusão de materiais...). Transpõe para a pintura a experiência dos muitos mundos que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra, numa vontade constante de transcendência.
Conheci-a na exposição em que nos contava a história do Douro, o “seu” rio, correndo entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens. Reencontrei-a no ciclo temático sobre as máscaras rituais, incursão telúrica à infância em terras de Miranda, em que se entrelaçam emoções e saberes, reinventados na tela, em explosões de cor...
Numa "leitura feminista” noto a naturalidade com que se apoderou, para a transfigurar em arte, da tradição masculina da máscara, símbolo da superioridade e camaradagem de sexo, em cerimoniais rigorosamente proibidos à mulher... Um prenúncio da força subversiva e libertária da sua aventura artística. Com o passo seguinte, ultrapassa uma última fronteira, numa fase em que a fragmentação ou transparência da máscara deixa o rosto a descoberto... o rosto feminino! É a definitiva rutura do interdito, que Paula Rego saudaria com o seu "gozo pela inversão e desalojar da ordem estabelecida"...
Na mostra agora aberta ao público nas Galeria Amadeo Souza-.Cardoso, intitulada "Segunda pele", o tropo narrativo de Balbina não nos revela, antes adensa o mistério dos jogos entre a face desocultada e as suas máscaras, mas revela-a como assombrosa retratista de rostos belíssimos e confirma o seu incessante questionamento sobre o ser, a aparência, o tangível e o intangível. Para o que vai encontrar inspiração na heteronímia Pessoana, glosando em linguagem pictórica um mote literário. O resultado é, pura e simplesmente, fantástico!
A não perder, até 28 de maio, em mais este capítulo do roteiro do FACE e da vida cultural que Espinho nos oferece.
terça-feira, 12 de julho de 2022
Maria Manuela Aguiar
segunda, 27/06, 02:42
para mim
O MEU VERÃO EM ESPINHO
1 - Tenho saudades do verão em Espinho, nos anos da minha infância. Esse verão, essa cidade (que ainda não o era), tinha a sua mítica Avenida bordejada de palmeiras gigantes, sempre cheia de multidões elegantes, nos seus trajes de passeio, sentadas em mesas coloridas nas esplanada dos cafés, ou desfilando num vaivém infindável, vagaroso, quase solene. Tinha quiosques graciosos - daqueles que Maluda gostava de pintar - , e onde eu, desde que aprendi as primeiras letras, comprava, às terças e sextas, "O Mosquito", e mais a sul, diariamente, chocolates. Chocolates sorteados...Éramos convidadas a perfurar a superfície de papelão de bonitas caixas retangulares, libertando bolinhas de cores, que tombavam, em baixo, num mostrador de vidro. A cada cor correspondia um diferente tamanho do produto. Uma espécie de máquinas de jogo para crianças - o nosso casino... Minha irmã acertava, muitas vezes, no prémio maior, que correspondia à pequena esfera dourada. Eu jamais! Ao Casino, é claro, só íamos ver cinema, alternando com as sessões do Teatro São Pedro. Ambas as salas de espetáculos eram grandes e esplêndidas, e ofereciam um filme por dia - o que elevava dava ao cartaz mensal uns fabulosos 60 títulos! A programação era divulgada quinzenalmente, em mini- livrinhos colecionáveis, que se desfolhavam como livros de contos - com sínteses de guiões muito chamativas. Ainda tenho alguns, guardados como relíquias.
Felizmente, os pais e os avós eram grandes cinéfilos, pelo que, em Espinho, raro era o dia em que, ou uns ou outros, não nos levavam ao seu e nosso “show” favorito.
Semanalmente, pelo menos uma vez (talvez à 4ª ou 5ª-feira, já não tenho a certeza), o Casino oferecia um bónus extraordinário, num dos dois intervalos mediante um ligeiro aumento do preço do bilhete: a exibição de um cantor ou cantora dos mais famosos do País - dos que, habitualmente, davam concertos nos seus salões. Recordo-me bem, por exemplo, de Tony de Matos ou das rivais Simone de Oliveira, ainda muito jovens e com vozes fantásticas...
Os intervalos eram obrigatórios, para ir ao barzinho tomar uma bebida, comer um bolo, porque os baldes de pipocas ainda não tinham sido inventados. No casino - que era um belo edifício, então moderno - até se podia vir às varandas ver o mar ou o movimento da Avenida..
2 - No que respeita à cronologia da minha agenda de férias espinhenses, devo dizer que comecei pelo meio, ou mesmo pelo fim, porque tanto os passeios na avenida, como as sessões da Sétima Arte ou eram noturnas, ou, quando muito, ocupam as tardes. Uma excelente alternativa era jogar dominó ou damas nos cafés – o Café Palácio, ou o Costa Verde, os nossos favoritos. O Chinês já não existia – era ainda do tempo de juventude da geração anterior, já não da nossa. Mas a tradição das tertúlias e do jogo no café, estavam bem vivas. Pedíamos uma limonada e uns pasteis, mais um tabuleiro de damas…(nada de Coca-cola, note-se, que fora banida pelo “Estado Novo” salazarista)
De manhã, com bom ou mau tempo, o destino era a Praia Azul, com as suas riscas azuis e brancas, à FCP. Ainda hoje mantenho o gosto de nadar com sol ou chuva - tanto me faz. Água por baixo, e água caindo do céu ligam bem – cedo aprendi isso com meu pai. Não que chuva fosse coisa frequente, em agosto ou setembro. A ventania, sim, todavia, as mais das vezes, só levantava a partir da tarde (do princípio da tarde). E o “nosso mar” nem sempre se mostrava hospitaleiro, mas quando se encrespava em vagas altas, e a corrente arrastava, à hora do banho havia, logo ali ao lado, sucedâneo de uma piscina, que era a quinta essência da modernidade. Para os frequentadores habituais, os preços atrativos (lembro-me de comprar as senhas de entrada em pacotes), e, em qualquer caso, nunca lhe faltava uma abundante e elegante clientela. E não tinha, ainda, a concorrência da verdadeira “piscina natural”, que é a praia da baía, mais recentemente formada por novo paredão, um mais eficiente quebra-mar…
No plano atmosférico, Espinho continua obviamente na mesma – com um clima que é, para mim, uma das suas simpáticas invariáveis, porque detesto o excessivo calor estival do nosso interior - e, neste aspeto, o interior começa a poucos quilómetros da costa.
E à vista, à superfície, havia o comboio, que chagava a apitar e atravessava o centro da vila com as suas máquinas negras, lançando nuvens de fumo para o ar. Comboios de passageiros, que paravam, todos, na estação, e logo seguiam viagem, e comboios de mercadorias, que, não poucas vezes, sabe-se lá porquê, na Rua 7, suspendiam a marcha e bloqueavam a passagem para a praia por tempo indeterminado. (o que nos levava, com alguma ousadia, a atravessar as carruagens, pelas extremidades). Ponte sobre a linha férrea só havia na Rua 19 – e bem pitoresca!
Sempre gostei de comboios, como quase todas as crianças e muitos adultos, entre os quais me conto ainda… Sempre imaginei Espinho, com uma série se pontes, ao longo da linha, entre o Rio Largo e o bairro piscatório – pontes de desenho variável, que poderiam tornar-se um original cartaz turístico, fazendo da nossa cidade, digamos, uma “Veneza ferroviária”.
Um amigo arquiteto, a quem eu, já muito depois de consumado o fatal enterramento da linha, descrevia o meu projeto imaginário, disse-me que não era tão mirabolante como eu julgava, e que teria, de facto, sido equacionado por uma minha alma gémea…
3 - Com este olhar nostálgico sobre uma outra época, que é de uma geração envelhecida, não pretendo sequer esboçar um julgamento da evolução que nos trouxe ao presente. Compreendo que Espinho mudou, em larga medida, enquanto parte de um todo, (o país, o mundo...). Esteve na vanguarda do turismo balnear, quando oferecia tudo quanto o veraneante esperava dos areais, do mar, de distrações lúdicas. O próprio conceito se transformou, deslocando geograficamente a massa de turistas, os mais e menos ricos, por igual, para os “paraísos” de sol escaldante e águas tépidas. E, assim, até os mais bairristas dos espinhenses natos, no verão, rumam aos Algarves, tal como o comum dos nortenhos. (o que eu só faria por penitência!).
Contudo, Espinho continua a ser uma terra perfeita para residir e não como “cidade-dormitório, mas como verdadeira comunidade, que mantém o seu caráter identitário, com as tradições populares, o admirável tecido organizacional, e, com ele, uma vida cultural absolutamente invejável, que anima a rede de modernas infraestruturas, públicas e privadas – de que são “ex-libris”, nomeadamente, a programação musical, os festivais de cinema, o desporto, o ballet, o teatro, a universidade sénior…
Nesta vertente cultural devo, porém, apontar a mais estranhas das lacunas: a falta de sessões regulares de cinema, apesar da existência de duas salas, que são das melhores do país inteiro - a do Casino e a do Multimeios. Não se lhes pede qua abram para oferecer 60 filmes por mês… só quatro, um por semana!
Tenho tudo o que preciso na cidade do Cinanima e do FEST - só vou ao Porto ou a Gaia para ver cinema nos centros comerciais, onde as salas são exíguas, mas a escolha é grande...
quarta-feira, 6 de julho de 2022
MARIA ARCHER E OUTRAS MULHERES DE REFERÊNCIA E DE (IR) REVERÂNCIA - Porto jan 2021 - Programa da Conferência
Programa - Conferencistas
MESA 1 | 10h30 -12h30 Moderação: Rosa Simas
• MARIA LUISA MALATO (FLUP - ILC), “Catarina de Lencastre e o tema da guerra no limiar do século XIX”
Maria Luísa Malato é Professora Associada, com Agregação, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Com vários estudos sobre Utopia, Teatro e Retórica, a sua investigação debruça-se essencialmente sobre a literatura dos séculos XVIII e XIX. Tem Mestrado (1988, pela Universidade de Coimbra) Doutoramento e Agregação (1999 e 2007, pela Universidade do Porto) em Literatura Comparada e Estudos Românicos. Numa perspetiva comparatística, os seus trabalhos visam comprovar a necessidade de uma prática que alargue o corpus de análise às relações que a Literatura estabelece com a Filosofia, os textos impressos com os textos manuscritos, os autores canónicos com os "menores". Membro ativo do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e colaboradora do Instituto de Filosofia (UP) e Centro de Estudos de Teatro (UL), unidades financiadas pela FCT. Vice-Presidente da Associação Portuguesa de Literatura Comparada (2013- 2018). Co-editora da Revista online de Filosofia e Literatura Pontes de Vista.
• CLAÚDIA PAZOS-ALONSO (Univ. Oxford - ILC), “Onde se lê ‘feminismo pioneiro’... leia-se Francisca Wood”
Cláudia Pazos-Alonso é professora de Estudos Portugueses e de Gênero, na Universidade de Oxford e na Fellow of Wadham College. Os seus interesses de pesquisa variam amplamente em literatura lusófona dos séculos XIX e XX. Atualmente é co-diretora de mestrado em Estudos da Mulher em Oxford e vice-presidente da Associação Internacional de Lusitanos. As principais publicações de livros incluem “Antigone Daughters? Gênero, Genealogia e Política de Autoria na Escrita de Mulheres Portuguesas do século XX” (2011, com Hilary Owen), “Imagens do Eu na Poesia de Florbela Espanca” (1997) e volumes co-editados, como “Reading Literature in Portuguese“, “Um Companheiro para a Literatura Portuguesa” (2009) e “Mais Perto do Coração Selvagem.
Ensaios sobre Clarice Lispector” (2002). Juntamente com Fábio Mário da Silva, é responsável pelas recentes edições de Florbela Espanca (Estampa) e Judith Teixeira (Dom Quixote). Cláudia Pazos-Alonso acaba de publicar em Portugal o livro Anticlericalismo e feminismo na imprensa oitocentista. Os artigos de fundo de Francisca de Assis Martins Wood (2021, Edições Afrontamento).
• M. LUÍSA TABORDA (FLUP - ILC), “Ana Plácido e uma cela só para si”
Maria Luísa Taborda Santiago, licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutoranda em Estudos Literários Culturais e Interartísticos pela Universidade do Porto. Atualmente é colaboradora de um projeto de pesquisa Luso-Brasileiro que pretende publicar as obras completas da escritora portuguesa oitocentista Ana Plácido, objeto de estudo da sua tese de doutoramento. Trabalha com literatura brasileira e portuguesa e interessa-se particularmente pela escrita de autoria feminina, questões de género e poéticas e políticas do corpo.
• ANA COSTA LOPES (Univ. Católica-CEPCEP), “Elisa Curado: uma progressista em tempos de cólera”
Ana Costa-Lopes, Doutorada em Língua e Cultura Portuguesa pela Universidade Católica Portuguesa com Imagens da Mulher na Imprensa Feminina de Oitocentos, Tese publicada pela Quimera, Lisboa (2005) e Mestre em Estudos Luso-Asiáticos com a Tese Confluências e divergências culturais nas tradições contísticas portuguesa e chinesa, publicada pelas Universidades de Macau (2000) e Católica de Lisboa (2000). Investigadora do CECC e CEPCEP (Universidade Católica). Colaboradora do CLEPUL, Universidade de Lisboa com uma biografia sobre Elisa Curado (1858-1933) e, também, como Conselheira Científica (Portugal) da publicação das «Senhoras do Almanaque» do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Autora de livros e artigos e de comunicações em congressos sobre a imprensa periódica feminina e história das mulheres; literatura tradicional; associações femininas.
MESA 2 | 14h30 - 16h00 Moderação: Maria de Lurdes Sampaio
~• ANA PAULA FERREIRA (Univ. Minnesota) - “Discurso imperialista e posicionamento anti-colonial: Maria Archer (1935-1963)”
Ana Paula Ferreira é Professora Titular de Estudos Portugueses na Universidade de Minnesota. Fez o doutoramento na New York University, sendo colega de Margarida Losa. A sua investigação tem-se centrado na ficção portuguesa contemporânea, com ênfase no neorealismo, em mulheres escritoras e feminismos, raça e colonialismo tardio, bem como seus efeitos e restos pós-coloniais. Entre as suas publicações em livro, A urgência de contar: contos de mulheres, anos 40 (2002), trouxe `a luz muitas das escritoras esquecidas do período do Estado Novo, entre elas Maria Archer. Desde meados da década de 1990 tem publicado estudos parciais dos romances de Lídia Jorge, editando o volume, Para um leitor ignorado: Ensaios sobre o O Vale da Paixão e outras ficções de Lídia Jorge (2009). Editou ainda, com Margarida Calafate Ribeiro, Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário português contemporâneo (2003); e com Ana Luísa Amaral e Marilena Freitas, New Portuguese Letters to the World: International Reception (2015). O seu último livro, Women Writing Portuguese Colonialism in Africa (2020), traça a história da agência que várias mulheres escritoras tiveram para a produção simbólica e não só do colonialismo português na África, desde finais do século XIX `a segunda década do século XXI.
• ANA PAULA COUTINHO (FLUP - ILC), “Maria Archer: deslocação e (in) conveniência”
Ana Paula Coutinho é Professora Associada com Agregação do Departamento de Estudos Portugueses e Românicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde tem lecionado sobretudo nas áreas da Literatura Comparada e dos Estudos Franceses. Doutorada em Literatura Comparada (1998) e com Agregação em Literaturas e Culturas Românicas (2010), sempre se dedicou à literatura contemporânea numa perspectiva comparatista, tendo nos últimos anos desenvolvido particular investigação no domínio das interculturalidades e das representações literárias e artísticas das migrações e do exílio. Foi Coordenadora Científica do Instituto de Literatura Comparada de Abril de 2015 até Janeiro de 2022. Coordena igualmente a base digital Ulyssei@s. Membro colaborador do CRIMIC (Université Paris IV), colabora ainda com o Programa Non-Lieux de l’Exil (Collège d’Études Mondiales – FMSH). É vice-presidente da Alliance Française do Porto. Dos livros publicados ou editados, destacam-se António Ramos Rosa. Mediação Crítica e Criação Poética (Quasi Edições, 2003. Prémio Ensaio Pen-Club); Lentes Bifocais – Representações literárias da Diáspora Portuguesa (Afrontamento, 2009), Passages et Naufrages migrants. Les fictions du détroit (com Maria de Fátima Outeirinho e José Domingues de Almeida), Paris, Harmattan, 2012; Nos & leurs Afriques. Images identitaires et regards croisés Constructions littéraires fictionnelles des identités africaines cinquante ans après les décolonisations (com Maria de Fátima Outeirinho e José Domingues de Almeida) Frankfurt, Berlin, Peter Lang, 2013.
ELISABETH BATTISTA (UNAMAT) Da dominação à resistência: percurso de Maria Archer
Elisabeth Battista é docente no Programa de Pós-graduação, Mestrado e Doutorado em Estudos Literários - PPGEL, da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT. Autora dos livros: MARIA ARCHER - O legado de uma escritora viajante, Editora Colibri, Lisboa, 2015; Sem o direito fundamental de voltar para casa? Maria Archer? Uma jornalista portuguesa no exílio, Editora Espaço Acadêmico, Goiãnia, 2019. Cultura e Literatura de Mato Grosso (organizado em parceria com Elizete Dall-Comune Hunhoff), Editora Espaço Acadêmico, Goiânia, GO, 2020; A Experiência Literária: Ensino e Leituras (organizado em parceria com Dagoberto Rosa de Jesus), Editora Espaço Acadêmico, Goiânia? GO, 2020. Possui quatro livros orgs; 40 capítulos de livros, 19 artigos publicados em periódicos; Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa (2011-2012), e Pós-doutorado sênior pela Universidade de Aveiro (2018), no Centro de Línguas e Culturas. Integrou a Equipe do Programa Novos Talentos, CAPES/UNEMAT, Subprojeto: LINGUAGEM E TECNOLOGIARESSIGNIFICANDO A RELAÇÃO UNIVERSIDADE/ESCOLA; Fundadora do Centro de Pesquisa em Literatura - CEPLIT/UNEMAT (2007-2010); Diretora da UNEMAT Editora (2011); Editora da Revista ATHENA - periódico de alunos de Pós-graduação (atual); Editora da Revista de Estudos Acadêmicos do Curso de Letras (2002); Membro do Conselho Universitário - CONSUNI/UNEMAT (2011-2013); Membro do Conselho Regional por dois mandatos (2013- 2016); Presidiu o Conselho da Faculdade de Educação e Linguagem (2015-2018); Coordenadora da Pesquisa em Grupo: No Centro Oeste da margem: Cem Anos de relações entre Cultura e Literatura em Mato Grosso. (2013-2016); Editora do periódico Revista Ciência e Estudos Acadêmicos de Medicina da UNEMAT (2013-2018); Coordenou o Projeto de Extensão Revista Ciência e Estudos Acadêmicos de Medicina da UNEMAT; Formação: Licenciatura Plena em Letras - Português/Inglês (UNEMAT), Mestrado (FFLCH-USP - 2002) e Doutorado (FFLCH-USP - 2007), com a Tese: Entre Literatura e Imprensa: Percursos de Maria Archer no Brasil; Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa (2011-2012), com Organização do Acervo Literário de Maria Archer, no Centro de Estudos Comparatistas, da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa. Pós-doutorado Sênior pela Universidade de Aveiro, sob a supervisão de Maria Fernanda Brasete, Portugal (2018)
MESA 3 | 16h30 - 18h00
Moderação: Cláudia Pazos-Alonso
• ISABEL PIRES DE LIMA (FLUP - ILC), “Mulheres na Revolução: das Três Marias a
Agustina”
Professora Emérita da Universidade do Porto. Doutora Honoris Causa pela Universidade de Sófia. Investigadora do Instituto de Literatutra Comparada Margarida Losa (I&D da FCT). Estudos em Literatura Portuguesa e Comparada e em Interartes. Autora de As Máscaras do Desengano - para uma
leitura sociológica de ‘Os Maias’ de Eça de Queirós (1987), Trajectos -o Porto na memória naturalista (1989), Retratos de Eça de Queirós (2000), Visualidades – A Paleta de Eça de Queirós (2008) e editora de Eça e "Os Maias" cem anos depois (1990), Antero de Quental e o Destino de uma Geração (1993), Eça de Queirós / Paula Rego, O Crime do Padre Amaro (2001), Vozes e Olhares no Feminino (2001), C. Castelo Branco / Paula Rego, Maria
Moisés (2005); co-editora de obras sobre Agustina Bessa-Luís, José Gomes Ferreira, Óscar Lopes,Vergílio Ferreira. Centenas de artigos em revistas como Camões, Colóquio/Letras, Dedalus, Metamorfoses, Portuguese Cultural Studies, Revista da Faculdade de Letras da UP, Semear, Trans-Humanities,
Via Atlântica. Deputada à Assembleia da República (1999-2005/2008-9). Ministra da Cultura (2005-8). VicePresidente da Fundação de Serralves (desde 2016).
• MÁRCIA OLIVEIRA (Univ. Minho/CEHUM), “Womanart: Mulheres, Artes, Ditadura”
Márcia Oliveira é bolseira de pós-doutoramento FCT em Estudos Artísticos/História da Arte no CEHUM (SFRH/BPD/110741/2015) e pertence ao grupo de investigação em Género Artes e Estudos Pós-Coloniais. Licenciada em Jornalismo pela Universidade de Coimbra e mestre em Estética pela FCSH-
Universidade Nova de Lisboa concluiu o doutoramento pela Universidade do Minho em 2013 com tese sobre arte e feminismo em Portugal no contexto pós-revolução. Foi visiting scholar no Centre for Women in the Arts, Rutgers University, NJ, USA, de Agosto a Novembro de 2016. É Investigadora Co-Responsável do Projeto WOMANART: Women, arts and dictatorship: Portugal, Brasil and Portuguese speaking African countries, financiado pela FCT PTDC/ARTOUT/28051/2017) tendo como investigadora responsável Ana Gabriela Macedo.
• DEOLINDA ADÃO (Univ. Berkeley), “A audácia de escrever: uma abordagem da produção literária feminina”
Deolinda Adão é Professora e Directora Executiva do Programa de Estudos Portugueses na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É licenciada em Literatura e Línguas Hispânicas na Universidade da Califórnia em Berkeley em 2002 e doutorada em Literaturas e Culturas Luso-AfroBrasileiras pela mesma universidade em 2007, com especialização em mulheres, género e sexualidade. O tema da sua dissertação foi “A study of the construction of feminine identity in Portuguese literature”. Publica regularmente livros e artigos sobre o género feminino, com destaque para migrações
femininas incluindo “As Herdeiras do Segredo: As Personagens Femininas na Ficção de Inês Pedrosa”. Em 2018, foi eleita Presidente da Luso-American Education Foundation, da qual já era membro desde 1996. Esta fundação dedica-se à promoção da Língua e Cultura Portuguesas no Estado da
Califórnia. É membro do Conselho da Diáspora Portuguesa desde 2013
quinta-feira, 9 de junho de 2022
quarta-feira, 1 de junho de 2022
BALBINA
VERSÃO MAIS LONGA
1 - BALBINA MENDES está de volta a Espinho,12 anos depois, na Galeria Amadeo Souza Cardoso, para preencher as longilíneas paredes de um branco neutral e expectante com a miríade de cores e a luz, de que se faz a intensidade da sua narrativa pictórica
.
Em 10 de julho de 2010, Balbina era uma pintora com um já fulgurante, um percurso artístico de duas décadas, e o Fórum de Arte e Cultura de Espinho, inaugurado a 16 de junho de 2009, dava os primeiros passos na sua trajetória de afirmação. Na verdade, tal como um ser humano, no tempo e na geografia da sua passagem pela terra, os museus e galerias de arte ganham nome e prestígio com a vivência do lugar, com a marca das pessoas que, sucessivamente, convidam para o habitar, cruzando o seu "curriculum" com a deles, numa apropriação desejada e consentida.
Balbina cedo entrou na História deste espaço, singular a tantos títulos. Foi a primeira Mulher a ocupá-lo, por inteiro, numa exposição individual e a primeira a trazer, com a temática das `'Máscaras Rituais do Douro e Trás-os Montes", numa pintura de raízes etnológicas e etnográficas, toda a magia de tradições primordiais aflorando, repensadas e dispostas em novos contextos, em telas de grande dimensão e impacto.
Nesse verão de 2010, Balbina tornou-se a primeira numa outra vertente, ao abrir um precedente desafiante, promovendo um espetáculo cultural inédito no ato de inauguração: trouxer às Galerias, metamorfoseadas pelas suas telas, as danças dos caretos vindos de Podence. A "Festa dos Rapazes" foi acontecendo por toda a cidade, nas ruas, entre um sem número de passantes que se manifestavam em gestos de aplauso, ou espontaneamente, se juntavam com eles, partilhavam o espírito dos folguedos, que, por fim, contagiou os presentes nos corredores e salões do Museu...Aí, os intérpretes de ritos, mistérios, ritmos nordestinos como que teatralizavam a realidade transfigurada nos quadros, cirandando nas duas galerias que correm, paralelamente, para a panorâmica janela rasgada sobre o mar atlântico... Assombrosa experiência, olharmos os caretos, por minutos, parados frente à sua própria figuração pictoral, vendo-se ao espelho, entre gestos lúdicos de espanto e de contentamento!...
No ano seguinte, a 1ª Bienal, com Balbina Mendes presente, antecipou, em cerca de uma década, a memorável exposição de pintura no feminino da iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, em cujo escopo adivinhamos semelhanças com o que animara o Museu de Espinho. Não era, como é evidente, o de excluir, segundo o sexo, ou o de erguer as barreiras entre dois guetos que se confrontam, mas, pelo contrário, o de uma descoberta e valorização da metade ancestralmente invisível, no sentido do alargamento e universalização das Artes. Já quanto ao modo, estilo, correntes, temáticas, como o "género" se expressa, para uns, ou umas,com uma criatividade própria, para outros, em facetas comuns e indistintas, não há consenso à vista - no domínio das Artes, ou em qualquer outro, das Letras, às Ciências, da Política a uma infinidade de misteres, outrora masculinos. Nas Bienais de Espinho, a organização guardou-se de tomar partido em querelas que prometem alongar-se, reconhecendo, antes de mais, que o masculino avulta, desde sempre e ainda, como "padrão", enquanto o feminino tende a ser visto como "alteridade", e admitindo a tese de que o sucesso das "mulheres-exceção" (as que estão entre os nomes cimeiros da pintura portuguesa na atualidade), não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade que os números, na sua globalidade, friamente denunciam, no que concerne às outras.
Em 2011, a partir de uma mostra coletiva de mulheres, em preparação, foi um homem, o Diretor da Museu, Armando Bouçon, quem teve a ideia de lhe dar um caráter recorrente, bienalmente. Acompanhamo-lo na sua citação de Michelle Perrot: "escrever foi difícil. Pintar, esculpir, compor música foi ainda mais difícil", assim como na sua avaliação do estado de coisas, que traça no catálogo da 1ª Bienal: "Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo
das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino". Foi. E ainda é?
De facto, até um Museu tão sensível e aberto a esta questão pode servir-nos para comprovar, como, no que respeita a mega exposições individuais, se mantém o largo predomínio masculino, enquanto, pelo contrário, nas exposições abertas nos pequenos e graciosos recantos em que o Museu abunda, ou nas exibições coletivas, as mulheres começam a ultrapassar os homens. São, assim, presença crescente, contudo, ainda muito aquém do arrojo, da dimensão da obra que a Galeria Amadeo Souza Cardoso reclama - quase como se estivessem ainda em transição gradual, segura mas lenta, do espaço privado para o público. É um exemplo que podemos, sem grande receio de erro, extrapolar a nível nacional e internacional. Na verdade, foi essa constatação que deu origem e força ao movimento de afirmação da "Arte no feminino", em que uma das líderes de vanguarda, no plano mundial, é Paula Rego. Nas suas próprias palavras: "As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher, As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?". [...] "Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes,
Tem a ver com aquilo em que jamais se tocou - as experiências de mulheres".
Um discurso com que este particular domínio se insere na nova vaga feminista do último quartel do século XX, mas que não tem, necessariamente, uma interpretação unívoca. Qualquer que seja a área considerada, a da expressão artística, como a da intervenção cívica e política - aquela em que, durante uma vida inteira me movi - o enfoque esencial, capaz de reunir correntes que vão em diferente direções, será o de querer, como Gisele Breitling: "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções".
2 - Balbina Mendes tem, a meu ver, contribuído, poderosamente, para que as mulheres portuguesas assumam, na vida cultural do país, o seu "lugar de direito".
Fá- lo, ocupando, simplesmente, esse lugar, com força anímica e talento de sobra, sem em nada se julgar discriminada, sem se sentir diferente, isto é, do lado de de lá de uma linha de fronteira... É um caso a seguir, no campo, que se vai alargando, das exceções à regra. Mulheres que, à partida, se sentem consideradas como iguais, e cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém, implícita, a exigência desse tratamento igualitário!
.À margem do discurso reivindicativo, alcançaram, por si, as metas que o movimento se propõe.
E será que a proclamação dogmática da especificidade de género, pode, no limite, paradoxalmente, dar azo `persistência de formas larvadas de discriminação?. É uma pergunta pertinente. A "arte com género" de que fala Paula Rego, pode, ou não, abaixo do patamar do génio a que ela subiu, transformar-se "de per si" não em sinal vanguardista de contracultura, mas em âncora de estereótipos de género, conotando o feminino com características convencionais que são, afinal, uma menos valia? O ponto
de interrogação vale para qualquer setor... Recordo o crítico literário João Gaspar Simões, que, ao elogiar a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que ela aborda temáticas ousadas, a qualificava não apenas como uma grande escritora, mas como"um grande escritor"... E não é verdade que às poetisas consagradas, como Sophia, ou Ana Luísa Amaral, ainda hoje preferimos chamar poetas? Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone... Certo é que para esta escola de pensamento, Balbina é uma das mulheres que merece o cumprimento, ainda que não se reveja na categoria "nobre" de "um grande pintor".
A sua arte não procura rivalizar com quem quer que seja, nem obedece a ditames ou limitações de qualquer natureza, numa trajetória ascensional de inovação, das temáticas, da estética e policromia, do ensaio de técnicas ou da fusão de materiais... É genuína e livremente Ela, transpondo para a pintura a experiência dos muitos mundos que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra. É original e inconfundível. Se me é permitida uma outra adjetivação, direi que tão carismática é a obra quanto a Autora... Uma
admirável contadora de histórias, de vários tempos, do tempo presente a tornar-se passado, ou do passado no movimento e nas significações que o trouxeram até nós, em memórias, rituais, crenças, que se reinventam no convívio com a natureza e as pessoas, figuradas em toda a sua magia e em todo o seu mistério.
No percurso narrativo de Balbina, para mim, no princípio era o rio... porque a conheci na exposição em que nos oferecia a história do Douro, deslizando entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens, onde as gentes apenas se pressentiam, sem se verem... . Reencontrei, depois, Balbina em novo e surpreendente ciclo temático, na exposição das Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes, em que os homens se faziam presentes, mas ainda sem se verem... O início de um tropo narrativo em torno da máscara, incursão etnográfica, num entrelaçamento telúrico de emoções e saberes, reinventados na tela, em explosões de cor... Voltando a uma visão feminista, que não sendo a da Artista, me é aqui permitida, noto a esplêndida audácia com que se apodera, para a eternizar em arte, da tradição masculina damáscara, símbolo por excelência, da superioridade e camaradagem de sexo, da festa e do cerimonial rigorosamente interditos à mulher... É já um prenúncio da força subversiva e libertária da sua aventura artística. E, logo depois, vai ultrapassar uma última fronteira, no momento em que a fragmentação ou transparência da máscara põe a descoberto... o rosto feminino, numa definitiva rutura pela transgressão, que Paula Rego saudaria com " o gozo pela inversão e desalojar da ordem estabelecida",.. Por isso, Balbina Mendes poderia estar, se quisesse, entre as maiores referências do movimento emancipatório de contracultura feminina nas Artes, como a emblemática Paula sobre quem Ana Gabriela Macedo (U Minho) escreve: [...] ela questiona continuamente os chamados "corolários naturais" da diferença de sexos, bem assim como a suposta "ordem natural das coisas", que se traduz na passividade, dependência e submissão, desmistificando o discurso estético e desmascarando o seu papel eminentemente ideológico e as relações do poder, que aí se encontram camufladas [...].
Nesta mostra intitulada "Segunda pele" o tropo narrativo da Pintora, não nos revela, antes adensa o segredo dos jogos entre a face desocultada e as suas máscaras, mas revela-a, definitivamente, como assombrosa retratista, do rosto e das suas metamorfoses, do tangível e do intangível. Confirma o seu incessante questionamento sobre o ser, as suas mutações e a sua aparência. É, agora, também, na literatura que busca inspiração, glosando em linguagem pictórica o mote Pessoano. As respostas que encontra na tela, serão sempre fonte de novas interrogações, no diálogo encetado com a literatura... Como diz Maria Anderson "Qualquer pessoa ficciona a sua própria identidade, Não nos ficcionamos sempre da mesma maneira. Vamos mudando o guião.... Ou Maria Velho da Costa: "Quem sou? Talvez seja quem vou sendo..." A pessoa, as personae
Quo vadis, Balbina Mendes? Para onde nos levará, no seu ímpeto de transcender limites, a grande cultora de mistérios e emoções, no seu diálogo com a literatura e com a vida, na sua cada vez mais acabada e fascinante mensagem visual??.
in DEFESA DE ESPINHO
O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES
A propósito do retorno de Balbina ao FACE
1 - Em 2010, quando Balbina Mendes veio a Espinho, pela primeira vez, o FACE, inaugurado a 16 de junho de 2009, dava os primeiros passos na que poderemos considerar o seu percurso de afirmação. De facto, os museus, as galerias de arte ganham nome e prestígio com a vivência do lugar, com a marca das pessoas que, sucessivamente, convidam para o habitar, cruzando o seu "curriculum” com o deles, numa apropriação desejada e consentida.
Balbina entrou na história das Galerias do FACE como a primeira Mulher a ocupá-las numa exposição individual, e a primeira a surpreender e a mobilizar largas audiências com as suas espantosas 'Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes" - uma pintura de matriz etnológica, que recuperava arquétipos primordiais emergindo, interpretados e recriados em toda a sua magia, nas telas de grande dimensão e impacto.
Nesse julho de 2010, ela foi também precursora numa outra vertente, ao promover no ato de inauguração um memorável espetáculo de danças dos caretos de Podence, que trouxeram o exotismo da "festa dos rapazes" às ruas de Espinho e, depois, aos corredores e salões do Museu.
No ano seguinte, com a Bienal, "Mulheres d' Artes", em que Balbina esteve presente, o Museu de Espinho antecipou, em cerca de uma década, a marcante exposição de pintura no feminino providenciada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em ambas as iniciativas, a de Espinho e a de Lisboa, adivinhamos o mesmo escopo - não, como é evidente, o de "excluir, segundo o sexo", mas o de valorizar a metade ancestralmente invisível, no sentido do alargamento e universalização das Artes.
Já quanto à complexa questão do modo como o "género" se exprime, (com caraterísticas próprias ou comuns e indistintas), a organização da 1ª Bienal guardou-se de tomar partido, reconhecendo, sim, por um ado, que o masculino avulta, desde tempos imemoriais e ainda hoje como "padrão", enquanto o feminino é "alteridade", e, por outro, a ideia de que o sucesso das "mulheres-exceção" não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade da maioria, que as estatísticas, na fria linguagem dos números, denunciam.
No catálogo da 1ª Bienal, o Dr. Armando Bouçon, Diretor do Museu, a quem se ficou a dever a proposta de a realizar, escrevia: "Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino". Foi. E não continuará a ser?
2 - Até um Museu que fez história, em Portugal, com quatro históricas bienais de Arte no feminino (entre 2011-2017) pode servir-nos para mostrar como, ao nível de mega exposições individuais, se mantém, nas suas Galerias, o predomínio masculino, enquanto nas coletivas, ou nas exibidas, mais modestamente, em pequenos recantos do Fórum, as mulheres já ultrapassam os homens, numa trajetória positiva, mas como se estivessem, ainda, em transição gradual do espaço privado para o público… É um exemplo que poderemos extrapolar, em outras áreas, a nível nacional e até internacional. Na verdade, essa constatação terá estado na origem do movimento pela Arte no feminino, que teve, e tem, em Paula Rego uma das suas líderes mais insignes e mais ativas. Nas suas próprias palavras: "As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?". [...] "Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com aquilo em que jamais se tocou-as experiências de mulheres".
Um discurso com que a nova vaga feminista do último quartel do século XX incorporou o plano da expressão artística na globalidade da sua luta - discurso que, diga-se, neste como em qualquer outro campo, é tudo menos pacífico. Mais consensual será, certamente, a exortação de Gisele Breitling em favor de "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções".
3 - Balbina Mendes tem contribuído, poderosamente, para que as mulheres portuguesas assumam, na vida cultural e artística do nosso país, o seu "lugar de direito". Fá-lo, ocupando, simplesmente, o lugar, com ânimo e talento de sobra, sem em nada se julgar discriminada. É um caso exemplar, entre grandes artistas, cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém implícita a exigência do tratamento igualitário. À margem de uma teorização reivindicativa, alcança as metas que esta se propõe, com isso abrindo caminho a outras mulheres, destruindo preconceitos de género, pela força do seu traço, pela singularidade de temáticas e de técnicas....
Embora, como velha militante da igualdade, desde os bancos da escola, não me situe exatamente nesta linha, tenho de reconhecer a sua eficácia, assim como, também, de admitir os riscos da defesa "à outrance" da "arte com género" em que Paula Rego acredita. O que, sendo, no seu patamar de genialidade, sinal vanguardista de "contracultura", pode, a outros níveis, redundar em novos estereótipos do feminino, que, em sociedades patriarcais, são, fatalmente, menos valia. Por essa razão, num outro domínio, o literário, reservamos o feminino” poetisa” para o comum das mulheres, mas chamamos "poetas" a uma Sophia, ou a uma Ana Luísa Amaral... E, precisamente por isso, o crítico João Gaspar Simões, elogiando a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que abordava as problemáticas mais ousadas, a qualificava como "um grande escritor". Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone! Balbina não o apreciaria, mas é uma das mulheres a quem se poderia, nessa lógica, aplicar. A sua obra é original, audaciosa, inovadora, (nos temas, na estética, policromia, fusão de materiais...). Transpõe para a pintura a experiência dos muitos mundos que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra, numa vontade constante de transcendência.
Conheci-a na exposição em que nos contava a história do Douro, o “seu” rio, correndo entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens. Reencontrei-a no ciclo temático sobre as máscaras rituais, incursão telúrica à infância em terras de Miranda, em que se entrelaçam emoções e saberes, reinventados na tela, em explosões de cor...
Numa "leitura feminista”, é de notar a naturalidade com que se apoderou, para a transfigurar em arte, da tradição masculina da máscara, símbolo da superioridade e camaradagem de sexo, em cerimoniais rigorosamente proibidos à mulher... Um sinal da força subversiva e libertária da sua aventura artística. Com o passo seguinte, ultrapassa uma última fronteira, na fase em que a fragmentação ou transparência da máscara deixa o rosto a descoberto... o rosto feminino! É a definitiva rutura do interdito, que Paula Rego saudaria com o seu "gozo pela inversão e desalojar da ordem estabelecida"...
Na mostra agora aberta ao público nas Galeria Amadeo Souza-.Cardoso, intitulada "Segunda pele", o tropo narrativo de Balbina não nos revela, antes adensa o mistério dos jogos entre a face desocultada e as suas máscaras, mas revela-a como assombrosa retratista do rosto e confirma o seu incessante questionamento sobre o ser, a aparência, o tangível e o intangível. Para o que vai encontrar inspiração na heteronímia Pessoana, glosando em linguagem pictórica um mote literário. O resultado é, pura e simplesmente, fantástico!
A não perder, até 28 de maio, em mais este capítulo do roteiro do FACE e da vida cultural que Espinho nos propicia.
Maria Manuela Aguiar
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O PORTO É UMA NAÇÃO!
Na era de Jorge Nuno Pinto da Costa
1 - Há um FCP antes e outro depois de Pinto da Costa. Como portista de nascença, prestes a fazer 80 anos, posso dizer que vivi 40 com cada um deles...
O FCP que vai da minha infância à meia idade era um dos clubes grandes de um país pequeno no mundo do futebol, mas raramente ganhava um campeonato e não pensava em altos voos internacionais. Tinha eu já uns 13 ou 14 anos quando, pela primeira vez na minha vida, em 1956, vi o Porto ser campeão nacional - o Porto de Dorival Knipel, brasileiro de origem alemã, oriundo de Minas Gerais. O mítico Yustrich!
Quanto à Seleção Nacional, digamos que o seu forte, por essa altura, eram as chamadas "vitórias morais". A exceção, que confirma a regra, foi um 3º lugar no Mundial de 1966, sob o comando de um outro famoso treinador brasileiro Otto Glória. Os escolhidos de Otto Glória (que receberam a honrosa designação de "Magriços", ou não fosse a fase final do torneio disputada na Inglaterra...) exemplificam bem a profunda desigualdade Norte/Sul, que se vivia no antigo regime: Dos 23 convocados, 19 eram do sul (mais exatamente,18 de Lisboa, a capital do Império, e um dos arredores, de Setúbal) e só 4 eram do norte (3 do FCP e 1 do Leixões). Na realidade, o fosso era ainda maior, pois desse quarteto nortenho, composto pelo guarda-redes Américo, por Custódio Pinto e Festa, do FCP, e por Manuel Duarte do Leixões, apenas o defesa Festa era titular. Para os mais jovens, há que dizer que, nessa remota era, não havia substituições de jogadores durante os noventa minutos, nem sequer por lesão, e que poucas alterações se registavam no onze base de qualquer equipa, durante uma época inteira.
Mas havia mais e pior! Todos os cargos das instâncias dirigentes do futebol português eram, exclusivamente, repartidos entre os clubes dominantes da capital (Sporting, Benfica e Belenenses), que temos de considerar decisores e juízes em causa própria, com fama e proveito, dentro e fora do campo. Lisboa tratava as colónias e a "província", da mesma maneira, ou, pelo menos, com a mesma sobranceria - na política, nas áreas económicas, no desporto, etc, etc, etc... Em suma, Lisboa (ou o seu sinónimo "Terreiro do Paço"), era o Poder absoluto, autocrático! A capital mandava, sem preocupação de equilíbrio, sem controle, sem oposição (a que havia, mais tarde ou mais cedo, acabava nas prisões ou no exílio...).
A Revolução de 1974 trouxe aos Portugueses a Liberdade, deu-lhe direitos de cidadania proclamados na letra da Constituição e das Leis. Os progressos, não foram, porém, alcançados, a idêntico ritmo ou velocidade, por todo o lado. Não basta declarar a igualdade, é sempre preciso sempre saber conquistá-la contra o "status quo", contra interesses instalados. E em nenhum setor foi mais e melhor conseguida do que no futebol. Não porque fosse mais fácil, mas porque houve quem fizesse a revolução fática, no terreno: Jorge Nuno Pinto da Costa.
2 - Sem prévia revolução democrática não teria havido Pinto da Costa, com o seu inigualável currículo de vitórias, em termos planetários, e sem Pinto da Costa não teria havido revolução no futebol português! Com a sua visão e liderança, ele alcandorou o FCP ao topo do mundo do Desporto (do Desporto-Rei) e, por natural repercussão, levou o País, anos depois, a um protagonismo crescente. Portugal, os Portugueses!. Os nossos Mourinhos.... os Decos, os Ronaldos, os Pepes.. .as equipas técnicas, os gestores, os agentes das estrelas... os dirigentes federativos,... o reconhecimento que nos entregou a (sempre impecável) organização de grandes competições internacionais... O que era, antes do 25 de Abril, uma absoluta impossibilidade, e, depois do 25 de Abril, extremamente improvável, aconteceu.
Não estou com isto a dizer que esta extraordinária evolução se deve diretamente ao Presidente do FCP, mas não tenho dúvida de que deriva da dinâmica por ele criada, de uma verdadeira "regionalização" no futebol nacional. Ou seja, a partilha ou o equilíbrio de poder de "fazer coisas", de progredir, de ser uma bandeira do País em qualquer ponto geográfico, de acordo somente com a capacidade de empreendimento, o querer, o mérito dos cidadãos e das suas coletividades.
Pinto da Costa foi eleito presidente do FCP há 40 anos, em 23 de abril de 1982, exatamente oito anos depois da Revolução (um ano, por sinal, tão importante no futebol como na política, pois foi o da primeira Revisão Constitucional, que consagrou a democracia plena, com a extinção do Conselho da Revolução...). O clube tinha ganho, até então, meia dúzia de campeonatos... Este ano festejou o seu 30º título de campeão! Cumpriu, ao longo das últimas quatro décadas, o nosso sonho de sermos os melhores do País. E foi muito, muito mais longe, ao cumprir o projeto de Pinto da Costa, aquele que, para nós, era pura utopia: tornar o FCP campeão da Europa e campeão do mundo! Por duas vezes. Sete títulos internacionais só em futebol sénior!
E, ele próprio, como presidente de clube, mais titulado do mundo, um recordista insaciável, à espera de mais e mais vitórias no futuro... O seu fabuloso legado inclui ainda um Estádio e um Pavilhão desportivo, que são duas obras de arte arquitetónicas, e um Museu como não há outro igual - o mais visitado da cidade, um seu autêntico "ex-libris.
3 - No 40º ano do mandato de Pinto da Costa é tempo de lhe dizer: obrigada! Não apenas como portista, mas como portuense e portuguesa, porque considero que tem um lugar na História do País e não só estritamente na História do futebol português e universal.
O seu feito maior, que o leva a transcender as fronteiras do desporto é ter mostrado, de uma forma muito concreta, a Portugal, (porventura o Estado mais centralizado da Europa!), quanto a macrocefalia da capital, ao criar uns "mais iguais do que os outros", é inimiga fatal do progresso. E como, quando alguém a consegue afrontar e abrir caminho à ascensão dos melhores, toda a sociedade ascende com eles. Nenhum político conseguiu, ainda, seguir-lhe o exemplo. O centralismo continua a asfixiar as energias e as potencialidades de um país mal gerido. E, assim continuando, não há solução para os nossos males. Meio século após a democratização, e quase quatro décadas após a adesão à CEE/UE, Portugal permanece "na cauda da Europa". É urgente, a todos os níveis do País, em todos os setores, a Revolução que Pinto da Costa fez no campo do Desporto
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