domingo, 17 de julho de 2022

Maria da Conceição Vassalo e Silva da Cunha Lamas é uma mulher verdadeiramente intemporal, que tem um lugar ímpar na história portuguesa do jornalismo e das Letras, do movimento feminista em meados de novecentos, da luta contra a violência de uma longa ditadura. Protagonista maior, em todos estes domínios, senhora de um destino extraordinário, num dado tempo, particularmente ingrato, que, sobretudo por ser mulher, a obrigou a vencer mil obstáculos, preconceitos misóginos e perseguições da polícia política, muitas vezes a levando a interrogatórios e prisões e, por fim, a um doloroso exílio. Figura intemporal, antes de mais, como paradigma de cidadania vivida audaciosa e apaixonadamente, com uma visão clara do devir português, uma crença na força criativa e subversiva das mulheres para mudar o velha Ordem, e o velho mundo anacrónico do chamado “Estado Novo”, sempre numa atitude coerente de generosidade. Nascida ainda no século XIX, foi aluna do “Colégio das Teresianas Jesus, Maria e José”, estudando num ambiente religioso mas acolhedor, onde se sentia bem tratada, e onde cedo terá despontado o sentido de missão, que, mais tarde, alargando horizontes com projetos de carreira profissional e de intervenção cívica, se consumou no humanismo laico e fraternalista com que fez percurso, em gestos quotidianos de solidariedade, num combate sem fim pela justiça, pela igualdade e pela paz. Casou aos 18 anos, com um republicano, Oficial de Cavalaria, e com ele viveu três anos em Angola. No regresso a Torres Novas, tão jovem ainda, já vislumbramos em iniciativas diversas, a militante de ideias e causas que não tardaria a revelar-se plenamente: é voluntária da Cruz Vermelha, organiza saraus de beneficência para ajudar famílias dos soldados, publica na imprensa local artigos sobre a guerra (a 1ª Grande Guerra). Aos 26 anos, depois do divórcio – que, à época, era ainda de considerar um ato de rebeldia, de afrontamento dos "bons costumes", que postulavam a submissão feminina – fixa-se em Lisboa e torna-se pioneira no jornalismo, que era ofício de homens. Trabalha, primeiro, no diário “A Capital”, depois no grupo editorial de “O Século”, dirigindo, durante muitos anos, a revista feminina “Modas e Bordados” – o mais improvável dos instrumentos instrumento para empreender o que ousou: promover uma revolução de mentalidades, mobilizar as jovens da sua geração para à vivência cidadã e profissional. para tal, usa o seu habilmente o “correio de leitoras”, constrói o seu "poder de aconselhamento que, para ela, é também, uma tomada de consciência dos problemas e dilemas das mulheres de todas as idades. A sua obra mais emblemática, que podemos classificar como “monumental” , " As Mulheres do meu País”, terá tido aí a sua pré-história. É nesta sua forma de dar concretização pragmática e eficiente aos valores e ideais que a norteiam, numa rara capacidade de realizar coisas grandes com meios parcos e banais, com persistência e incomparável brilho, que Maria Lamas me parece singularmente inspiradora, hoje e sempre. O “correio” da popular revista feminina teve um enorme sucesso e impacto, o mesmo se podendo dizer de grandiosas exposições que, sob o patrocínio de “O Século”, organizou, para dar do papel mulher sua contemporânea, em diversas sociedades, domínios e condicionalismos, uma visão empolgante e mobilizadora, confirmada por factos e por feitos, com que desmentia, categoricamente, a ideologia misógina e opressiva do salazarismo - a última das quais, patenteando obras de mulheres escritoras de todo o mundo, lhe custou o emprego, uma sólida carreira e até a segurança pessoal. A partir de então, seria alvo de repetidos atos persecutórios do regime, que queria bani-la, implacavelmente, do espaço público.. Em tempo de repressão e declínio do primeiro movimento feminista português, foi ela a última presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, expressão máxima desse associativismo revolucionário, que começara com Adelaide Cabete, nos primórdios da República. Um Decreto do Governador Civil de Lisboa extinguiu o CNMP, mas não conseguiria silencia-la, ou erradicar os ideais de igualdade, que, a par de algumas, poucas companheiras, encarnou, durante o interregno que vai até à formação da segunda vaga do movimento feminista, na década portuguesa de setenta . Maria Lamas estava, então, divorciada do segundo marido, o jornalista monárquico Alfredo da Cunha Lamas, tinha as filhas a cargo, dependia de si e do seu trabalho... Não se deixou abater, pelo contrário, recomeçou, com redobrado ânimo, um solitário e fecundo exercício de jornalismo de investigação, abraçando desafios cada vez maiores. Munida de uma máquina fotográfica, papel e caneta foi, pelo país adentro, em toda a espécie de deficientes transportes, recolher depoimentos e testemunhos de mulheres de todos os misteres e condições, até às aldeias mais remotas e inacessíveis. Deu-lhes, livremente, voz e visibilidade num retrato coletivo, de alta precisão, de incomensurável valor humano, literário e científico. Uma obra prima do jornalismo português, que é também, um grito de revolta contra a exploração económica, a pobreza, quando não miséria, o confinamento de horizontes, num todo em que a metade feminina era duplamente vítima de subjugação. Maria Lamas viveu, assim, corajosamente, nas décadas seguintes, sem ceder, sem abrandar ... tão eficaz a usar a escrita, como a recorrer à ação concreta. E não menos admirável foi na sua veste privada. Sozinha educou as duas filhas, influenciou e cativou as netas, os netos, através de cujos testemunhos sobre a “Avó Maria”, ficamos a conhecer melhor o seu encanto como pessoa, a sua irradiante beleza de rosto e de espírito, o seu temperamento afável e bondoso, a sua constante dedicação, num círculo alargado dos que tratava como família. Durante os anos de exílio, em Paris, tornou-se a Avó Maria de um sem número de expatriados, que nela encontravam, invariavelmente, amizade e apoio. A terra voltou para gozar os seus últimos anos na democracia que ajudara a refundar. Lúcida e combativa, aberta à modernidade! Ao Estado coube atribuir-lhe, como não podia deixar de ser, a Ordem da Liberdade. Aos Portugueses, em cada nova geração, cabe guardar na memória do exemplo de vida que legou às Mulheres e aos Homens do seu País

Sem comentários:

Enviar um comentário