Tem a palavra a família Aguiar e os seus amigos. Vamos abrir o "Círculo", com duas alternativas, que proponho: Este "Aguiaríssimo" ou o "blogguiar.blogspot.com"
quarta-feira, 8 de novembro de 2023
O MEU PRIMEIRO EMPREGO - "AU PAIR" IN LONDON
Ainda não tinha feito 16 anos e já era vista como jovem cosmopolita. Tinha ido sozinha a Paris e Londres...Hoje, para obter o mesmo reconhecimento, uma rapariga precisa de ir sozinha para Bali ou Machu Picchu, como a minha jovem prima Francisca….
Por acaso, na viagem de ida, à última hora, arranjei compan viajei com a Margarida Losa, colega de Liceu. Os nossos pais ficaram no cais da partida, a belíssima estação de São Bento, a acenar um “adeus”, como se fossemos para muito longe. Paramos, primeiro em Paris, passámos uns dias no modesto “Grand Hotel St Michel” (que foi a morada de exílio de Maria Lamas), mas, à chegada a Londres, logo nos separaram diferentes empregos sazonais (“au pair”): ela como dama de companhia de excêntricas velhinhas inglesas, eu como “nanny” das duas meninas de um abastado casal de judeus ortodoxos. Tive sorte, fui com eles para férias nas praias sem areia de Brighton e Hove, durante dois meses. O marido e pai, que era simpático e bem-humorado, simples no trato, (não parecia um importante associado de uma grande firma de advogados...), apercebeu-se da pobreza do meu vocabulário e incentivou-me a ler Agatha Christie e W Somerset Maugham, cujo inglês era tão esplêndido, quanto acessível. Comecei por “The body in the library e não parei mais.
O casal depressa terá também constatado a minha patente inexperiência, quer em trabalhos domésticos, quer na lide com crianças, mas foram sempre compreensivos e amáveis e as meninas (de cinco e dois anos), surpreendentemente, gostavam do meu estilo único. Apreciavam o exotismo da portuguesa – uma “nanny” como nunca se vira.
Tu cá, tu lá, e, ao mesmo tempo, exigente. Quando fazia uma ameaça, era a valer: "Lilian, se não comeres a sopa, não te levo ao mar, ficas toda a manhã a brincar na areia". Habituada à cedência dos adultos às suas súplicas, ela deixava o prato da sopa a meio e, depois, ficava mesmo de castigo. Moral da história: passou a obedecer-me. Nunca tinha acontecido anteriormente,e, por certo, não voltou a acontecer...
Fiquei a gostar muito de judeus, desde esse verão distante.
Um verão esplendorosamente quente, dir-se-ia mediterrânico, e permeado de curiosíssimos episódios, (que, porém, não cabem nesta breve nota). Gratificante foi, sobretudo, mostrarem-se sempre prontos a elogiar os aspetos positivos da minha "performance", no conjunto tão desajeitada. Assim aconteceu, por exemplo, num fim de tarde, em que passeávamos as duas, Mrs Balin e eu, ela empurrando a cadeirinha de Ruth, eu dando a mão à maior, que facilmente fugia, se pudesse. Lilian, a temível – muito parecida comigo quando era da idade dela, sempre em movimento, e a fazer perguntas. Nesse dia, a certa altura, decidiu pedir colo à mamã, que acedeu imediatamente (acedia a tudo). Mas eu logo sugeri: “A Lilian é tão pesada. Porque não a senta na cadeirinha e leva a mais pequena ao colo?”. Assim fez, claro, não parando de me elogiar: “How clever, of you, Manuela!” (pronunciando o “u” como “iu”).
Também o Sr Balin foi muitíssimo simpático no meu maior falhanço, um caso em que praticamente lhe esburaquei uma camisa. Sem querer, evidentemente... Nunca tinha usado um ferro de engomar na minha vida e fiquei interiormente aflita quando me pediu que lhe passasse a ferro duas finíssimas camisas brancas, mas não fraquejei. Nessa manhã, enquanto eles foram passear com as meninas e eu levei horas a executar a minha ingrata incumbência. Devagar, devagarinho, para não enrugar o material. A primeira camisa saiu ilesa das minhas mãos. Na segunda, sentia-me mais confiante, descontraí-me, a ponto de me permitir uma escapadela da atenção, em modo de "day dreaming". Por um fatal momento, parei o movimento de vaivèm do ferro, que deixou no branco imaculado a sua impressão digital em castanho escuro, a esgaçar o tecido. Um horror! Coloquei cada camisa aberta sobre as costas de uma cadeira. Vistas de frente, tarefa cumprida a preceito, colarinhos e tudo... Quando o Mr Balin entrou na sala, olhou, satisfeito, e felicitou-me exuberantemente. "Oh, não - respondi eu - fui desastrada. Tem de ver a parte de trás... E ele foi ver, e disse: "Não tem importância nenhuma! Eu nunca tiro o casaco no escritório".
Gente boa! Foram impecáveis - nem sequer me pediram para desempenhar as tarefas mais assustadoras, como mudar as fraldas à pequena Ruth … As crianças dormiam no meu quarto, mas quando essa intervenção se revelava necessária, eu ia chamar um deles para a executar. Marido ou mulher, tanto fazia, eram ambos muito competentes.
UM TREPIDANTE MÊS DE AGOSTO
1 – Detesto o mês de agosto. É tempo de férias em massa. Há as cidades que se despovoam e as que mais do que duplicam o número dos seus residentes, entre estas se contando Espinho e as suas belas praias. Os aeroportos enchem-se, as greves tornam-se apetecíveis, há filas, atrasos, gente amontoada por todo o lado, cafés, restaurantes, comboios... Na televisão, os meus programas favoritos entram em pausa e as notícias escasseiam, nos cinemas é o “déjà vu”. Nunca faço férias em agosto! Prefiro trabalhar e, como estava ligada à emigração, nunca me faltavam convites para colóquios, convívios, festas e inaugurações no “país profundo”. O interior desertificado ganhava vida em mil e uma aldeias, e era-me grato testemunhar essa "ressurreição". Agora fico em casa, em frente a um computador, ou a ler um livro, ouvindo música, e passeio à beira-mar, contemplando as multidões de “espinhenses sazonais” - todos bem-vindos, naturalmente. Eu aguardo setembro para iniciar a época de banhos que, com um pouco de sorte, se estenderá por um ameno outubro, quando a praia da baía, para além dos surfistas, é frequentada por meia dúzia de castiços nadadores, quase todos da minha geração.
Em suma, não gosto da “silly season”... Todavia, este ano foi coisa que não houve, num mês intenso, cheio de movimentações sociais, políticas, desportivas. As Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), o Campeonato Mundial de Futebol Feminino, os Mundiais de Atletismo, a visita do Presidente Marcelo à Ucrânia, a Cimeira dos BRIC e a Cimeira da CPLP praticamente não deixaram vazios na minha agenda de agosto.
2 – Primeiro foi a grande aventura humana das JMJ, que atingiram, na verdade, a perfeição terrena, confirmando a tendência dos Portugueses para descurarem as rotinas e se superarem para fazer o impossível… Antes, atravessaramos a fase das questiúnculas mesquinhas, mas, na hora da verdade, calou-se o coro de maledicência e ausentou-se, para longe, o notório antiPapa Dr. Ventura. Era a vitória de uma Igreja que já está no século XXI, com Papa Francisco e o nosso Bispo (em breve cardeal) D. Américo Aguiar, a quererem jornadas mais ecuménicas do que prosélitas. Que impressionantes imagens uma religião vivida em comunidade, na procura de Deus pela procura solidária dos meios de combater as injustiças e desigualdades muito atuais, por uma abertura à celebração festiva da fraternidade, na harmoniasa conjugação da música, da dança e da palavra. E agora? Irá a Igreja retroceder? A energia que pulsava nas JMJ era um regresso às origens do cristianismo, à alegria de viver a fé em comunidade. Só podemos desejar que não haja, nos "days after" um regresso à igreja das hierarquias e dos sermões envelhecidos…
Mal terminavam as JMJ em Lisboa, e já nas antípodas, se desenrolava o Mundial de Futebol no feminino. Outro sucesso universal – pela beleza do jogo, pela ascensão de novas estrelas, pelas espantosas assistências (os estádios repletos, o olímpico de Sydney, a bater o recorde australiano absoluto para qualquer desporto, com 75.748 espectadores), pelas audiências televisivas internacionais e internas - logo no 1º “match”, para ver as suas “Matildes”, a Austrália parou, com uma audiência televisiva nacional de mais de 46 milhões. Na final, e, certamente, não por acaso, defrontaram-se, pela primeira vez, as equipas europeias dos países onde se jogam as principais Ligas de futebol (de ambos os sexos), a inglesa e a espanhola. É bem patente que o futebol feminino cresceu nos maiores clubes do mundo, os “Manchester” e os “Barça”, e não nas escolas ou nas ruas – a isso obstavam preconceitos que vão mudando devagar.
Confesso que “torci” pela seleção inglesa, porque a sua vitória daria muito mais visibilidade, influência e poder ao futebol feminino. A Grã-Bretanha conserva a força da sua língua universal e a aura de grande potência no campo militar, político, cultural, desportivo, etc, etc. A Espanha não. Contudo, não poderia imaginar quanta lama a sua liderança federativa ia lançar sobre o futebol e o desporto em geral. De pouco valeu a superioridade em campo das jogadoras, o seu “fair-play”. Delas, do seu futebol tecnicista e rendilhado, feito de muitos passes, já ninguém fala. Só se fala de um homem, que as substituiu, ocupando o palco, com o escândalo de gestos obscenos, mais o tristemente célebre "beijo a Jenni", e o discurso misógino que proferiu, não num comício fascista do Vox, mas na sede da Real Federação espanhola, aplaudido de pé pelos seus pares, que assim se tornaram cúmplices de uma conduta vergonhosa. Rubiales vai, é claro, sair de cena, vencido pela reação internacional e nacional, do Governo de Madrid, da opinião pública, de gente de bem do futebol - Casillas, Xavi, Iniesta, Simeoni, os jogadores das equipas de La Liga com os do Cadiz a adotarem o slogan “todos somos Jenni”. Contudo, a grande vitória desportiva, soterrada sob um caso vulgar de violência e exibicionismo sexual, nunca mais recuperará a sua plenitude.
O despudor de Rubiales (não só o beijo à atleta Jenni, mas o exibicionismo de um gesto obsceno que as câmaras mostraram sem filtro e que, segundo ele era dirigida ao selecionador) ganhou um significado de “guerra dos sexos”, de guerra de mundos, o masculino, ainda dominante, e o feminino. O conflito entre as jogadoras e estes dois machos latinos, como é sabido, já vinha de trás. No fim, talvez elas ganhem a competição, pela 2ª vez….
3 - No terreno da política internacional, sobre as duas cimeiras referidas, direi, de momento, apenas, que é cedo para tirar conclusões. O alargamento dos BRIC aos tenebrosos regimes do Irão e da Arábia Saudita poderá cavar um fosso entre ditaduras e democracias, dificultando consensos e solidariedades, e, sobretudo, criar um maior desequilíbrio entre as partes, pelo desmedido reforço da única potência mundial que emerge no coletivo: a China! Doravante, os BRIC serão, nada mais, nada menos do que "a China e os seus satélites". O que ganharão com isso países como o Brasil e a Argentina? ...
E a CPLP? Dentro do que dela se pode esperar, começou bem. Tal como queria o nosso país, pela voz uníssona de Presidente e Primeiro Ministro, a próxima presidência não será entregue à Guiné Equatorial, (esse terrível "erro de casting"...). Assim se evitou, ao menos para já, um golpe tremendo na credibilidade da organização… E o regresso do Brasil a um papel de primeiro plano, é um bom presságio para a sobrevivência da organização. O Presidente Lula parece querer, felizmente, recentrar a Comunidade na vertente cultural, na defesa do reconhecimento internacional da língua comum. É, sem dúvida, a que pode gerar projetos agregadores de países países que quase tudo o mais divide. A cultura é o máximo denominador comum. E é, sem dúvida, o domínio onde Portugal é mais igual, face à dimensão territorial, ao potencial e às legítimas ambições de "colossos" como o Brasil e Angola. Por isso, considero inteligentes as propostas portuguesas de promover os intercâmbios de jovens e instituir o equivalente a um esquema "Erasmus" no círculo da lusofonia. As nossas universidades são o que de melhor temos para oferecer a futuros líderes de cada um dos países unidos pela língua, ou seja, ao futuro da CPLP. Pensar no longo prazo é preciso…
Em plena forma está o Presidente Marcelo. Que bem lhe correu o mês, com o momento alto do seu discurso em ucraniano!
E, por fim, mais uma alegria, mais uma vitória: os mundiais de canoagem, carreiam para a Pátria duas medalhas de ouro - uma das quais do campeoníssimo Pimenta, que ainda juntou à sua coleção a prata e o bronze.
Assisti, no domingo, à prova em que arrecadou a prata. Prova difícil para ele, por não ser de pura velocidade, ponteada por sucessivas paragens nas plataformas, que os atletas têm de atravessar com a canoa às costas…. E lá estavam as mulheres a disputar a modalidade, a carregar, como eles, as pesadas canoas, em passo de corrida (tarefa bem mais ciclópica do que pontapear uma bola) e, depois, a receberem as medalhas no pódio, em perfeita normalidade, sem que se levantassem ondas de machismo. Que bela lição a canoagem dá ao futebol....
2000 Brasil 500 anos
BRASIL - uma ÚLTIMA VIAGEM
Depois de deixar a VP da AR, raramente fui indicada pelo PSD para integrar delegações parlamentares - não incluindo aqui 13 anos nas delegações institucionais ao Conselho da Europa e UEO. Apenas duas idas ao Brasil, (a primeira para a inauguração de uma estátua em S Paulo, num dia 25 de Abeil, na companhia de vários militares da revolução de 74, a segunda nas festividades do 5º centenário da Descoberta, no ano 2000) e uma missão aos EUA, para defender a independência de Timor, junto da Administração americana, ainda muito pró-Indonésia.
Em 2000, coincidi com o Dr. Mário Soares na comitiva do Presidente Sampaio.
Foram dias maravilhosos, revi os amigos da nossa comunidade, estive permanentemente entre muita gente interessante, sempre em movimento, de cidade em cidade - Salvador, Porto Seguro, São Paulo, Rio.... De avião ou em deslocações em mini autocarros, muito confortáveis (poucas limousines), em que me sentei ao lado da Secretária de Estado da Cultura, ou do José Lello, Secretário das Comunidades. Com o Zé Lello, de longe a longe, a discussão subia de tom e, para acalmar os ânimos, o Dr Mário Soares chamava-me para me sentar com ele no banco da frente...
Já do ponto de vista de uma avaliação das comemorações em si, com a exceção de algumas belas exposições, a nota só pode ser negativa. Em Porto Seguro atingiu-se o ponto alto do baixo nível da agenda comemorativa:uma caravela, "made in Brazil" que devia aportar ali e então, encalhou desastradamente; algures nos arredores, nesse e nos dias seguintes, houve cargas da polícia sobre manifestações de índios, a programação cultural oferecia um "show" próprio para meninos da escola primária, danças de roda, frouxas serenatas nas ruas antigas do belo centro histórico, um concerto numa pequena capelinha apinhada de ilustres personagens... e a assinatura de uma adenda ao Tratado de Igualdade entre Portugueses e Brasileiros, que se limitava a diminuir os prazos para pedir o estatuto de direitos políticos e a coligir documentos pré-existentes. Tudo insignificante face ao significado da efeméride, como Mário Soares haveria de dizer, no ano seguinte, em linguagem contundente, numa audição parlamentar, de que falarei adiante. Todavia, a jornada iria revelar-se decisiva para o futuro do Tratado da Igualdade, acidentalmente, graças a uma conversa tida pelo Dr Soares comigo, no átrio do hotel de Salvador da Bahía, que poderia ter acontecido em qualquer outro lugar e em qualquer outro momento. Estávamos ali, de pé, adiantados em relação à hora de sair, fazendo comentários soltos sobre já não sei sobre o quê. E eu comecei a criticar o facto de Portugal se mostrar incapaz de corresponder aos avanços da Constituição Brasileira, que, doze anos antes, conferira aos imigrantes portugueses, a plenitude de direitos da nacionalidade, sob condição de reciprocidade. A não dação de reciprocidade na Constituição portuguesa suspendia o alargamento do estatuto em vigor, do qual aproveitavam tantos dos nossos compatriotas. Era, no Brasil, uma situação insustentável, um escândalo. Temia-se a qualquer altura a revogação do texto constitucional brasileiro. A hora certa de por fim à polémica era aquela comemoração, que, assim, ganharia "dimensão". O Dr Soares concordava a cem por cento com as minhas diatribes. Logo ali, acordámos um plano para promover em Lisboa, ainda durante o ano de 2000, uma revisão extraordinária da Constituição, (que exigia o voto de 3/5 da Câmara...).
O passo seguinte foi reunir na Fundação Soares com deputados dos vários partidos - todos adeptos da "reciprocidade". Infelizmente, não encontrámos abertura da direção das bancadas, a começar no próprio PS, que, em 1997, fora o responsável pelo impasse em que permanecíamos (o PS de Almeida Santos, que foi, nesta questão, obstáculo intransponível, contra uma corrente largamente maioritária, onde se contavam Manuel Alegre, Alberto Martins, Carlos Luiz, Sampaístas, Soaristas...).
Tudo parecia perdido... Mas eis que, em 2001, acontece o inesperado, uma revisão constitucional com um ponto único: a criação das condições para Portugal poder aderir ao Tribunal Penal Internacional (TPI). A tentação de acrescentar outros pontos foi irresistível - alargou-se um pouco, mas pouco, o âmbito da revisão extraordinária. Óbviamente, eu tentei, de imediato, introduzir a questão da reciprocidade. A recetividade na direção do grupo parlamentar foi mínima, mas Durão Barroso interveio e não houve mais oposição. Criou-se a habitual Comissão Eventual para a revisão, com uma longa agenda de audições de personalidades. Sugeri ao representante do PSD, Marques Guedes, que incluísse o Dr Soares e ele ficou espantado. "Tem a certeza? Já contactou o Dr Mário Soares?"
"Não, não o contactei, porque não é preciso. Tenho a certeza absoluta de que vem aqui defender esta emenda".
Claro que tinha... naquela auspiciosa tarde em Salvador, o Dr Soares fora muito claro, nas diligência seguintes, em Lisboa, tamb+em - podia contar com ele em todas as propostas e diligências na matéria.
O argumento para chamar o Dr. Soares à audição foi o facto de ter sido ele o Presidente ao tempo da criação da CPLP (e o Estatuto de Igualdade na nossa Constituição não se limitava ao Brasil, alargava-se a todos os países de língua oficial portuguesa).
O Dr Soares compareceu na CERC e arrasou o que restava de oposição à emenda, o seu próprio partido, o amigo Almeida Santos, Jaime Gama... Foi tão contundente numa audição pública, cheia de jornalistas, que o representante do PS logo ali se rendeu à evidência do discurso. Declarou, expressamente, o seu apoio à nossa proposta de alteração. Estava finalmente alcançada a reciprocidade! A votação em plenário seria unânime (ou quase - houve uma abstenção, mas genérica, não direcionada à questão brasileira).
Terá sido essa a última grande intervenção parlamentar de Mário Soares!
Aconselho a sua leitura - é uma obra-prima, em estilo queirosiano!
FCP Revista Delegações
EDITORIAL, POR MANUELA AGUIAR (EX-DEPUTADA E ATUAL ADMINISTRADORA DA FC PORTO – FUTEBOL, SAD
O meu trabalho de mais de 40 anos como Secretária de Estado e Deputada da Emigração permitiu-me conhecer e reconhecer a enorme importância da nossa Diáspora, que está viva em todos os continentes onde os portugueses, sem qualquer apoio dos governos de Lisboa, se organizaram numa admirável panóplia de instituições culturais, sociais e desportivas. É a Nação das Comunidades, a Nação sem Estado, pura sociedade civil, independente e forte. Dentro dessas comunidades fui encontrar, muitos portistas, muitos clubes e casas regionais de bandeira azul e branca e vi crescer, ao longo dos anos, a rede de Delegações do próprio FCP.
Estávamos no início da era de ouro do Presidente Jorge Nuno Pinto da Costa e eu fui chamada a colaborar nos nossos dois primeiros congressos de filiais, que mostraram a dimensão mundial já conquistada pelo Clube. E, por essa altura, ganhei a alcunha “Dragona”, atribuída pelo presidente Pinto da Costa, que tanto me honra!
Na verdade, sou descendente em linha reta de portistas, desde os tempos da fundação do Clube e comecei a ver futebol, jornada a jornada, com o meu pai, a partir da inauguração do Estádio das Antas, numa época em que poucas meninas
frequentavam recintos desportivos. Ser do Porto e do FCP faz parte da minha identidade.
Sou naturalmente regionalista e sinto-me gratíssima ao nosso Presidente por ter conseguido, num país controlado por uma capital macrocéfala, fazer dos portistas campeões da Europa e do Mundo, e tornarem-se, assim, o símbolo máximo do futebol nacional. Presenciei ao vivo as épicas vitórias em Gelsenkirchen e Yokohama e foi em tão distantes lugares que me apercebi da grandeza dos sonhos azuis e brancos, que não conhecem limites.
A mensagem também não! Através das dezenas de Delegações espalhadas um pouco por todo o mundo, somos uma família cada vez maior e que se revela sempre capaz de atingir os mais ambiciosos desígnios, porque à paixão individual somamos a força coletiva de Casas e Delegações e a visão de uma liderança incomparável.
Mais de 40 anos depois, estamos ainda longe da igualdade no tratamento que a nossa e as outras regiões do país
merecem do Terreiro do Paço, mas dentro de campo alcançamos já tudo quanto parecia impossível e se tornou possível, a nível nacional e internacional.
Olhamos com orgulho esse passado e com esperança o futuro, a história ainda por fazer de um Clube em imparável expansão. O nosso FCP!
NATÁLIA
ETERNAMENTE NATÁLIA
Neste ano do centenário de Natália Correia, não lhe faltam merecidas homenagens, desde as ilhas açorianas onde nasceu e do retângulo continental, onde morou quase a vida toda, até à Diáspora, a que pertence pela Cultura. A Cultura de que essencialmente se tecem os laços com Pátria - ou Mátria, como ela própria preferia dizer.
Mulher de Letras foi, no mesmo tempo e movida pelo mesmo ímpeto, Mulher- Cidadã, agente de futuro pelo pensamento e pela ação, na esfera pública e privada. Na verdade, tão fascinante é a sua obra como a sua vida, a personagem, com a deslumbrante beleza da juventude, os quatro casamentos, as paixões, e uma invariável irreverência e genialidade em todas as idades!
A RTP retratou-a numa excelente série, em que a vemos interagir com amigas (Vera Lagoa e Snu Abecassis), também elas notáveis mulheres, todas, em vésperas da Revolução de 1974, na vanguarda luta contra a tacanhez anacrónica de uma ditadura.
Mais recentemente, a RTP traçou, em nova minissérie, com alto nível de rigor e qualidade humana, o seu perfil, a partir de múltiplos testemunhos - uma história feita de estórias.
E, a marcar o início deste ciclo comemorativo de 2023, foi dada à estampa uma extensa, muito bem documentada e bem escrita, biografia de Natália, da autoria de Filipa Martins, com um título saído a pena da própria biografada: “O dever de deslumbrar”. É uma publicação ambiciosa, que, com as limitações que a interpretação subjetiva de factos e idiossincrasias sempre comporta, nos desvenda Natália, a mulher arrebatada, a temida polemista, a literata (poetisa, contista, dramaturga, ensaísta), a jornalista, a convivial animadora de tertúlias e debates, a política, a deputada…
Apesar de reconhecer a valia e qualidade de “O dever de deslumbrar”, doravante, título de referência obrigatória no estudo da glamorosa, multifacetada personagem que a Autora, na sinopse, descreve como “Mulher deslumbrante e carismática, equiparada às maiores pensadoras europeias e às estrelas de Hollywood”, apesar de me rever, plenamente, nessa síntese feliz, guardo distância em relação a algumas das suas inferências ou conclusões. A Natália que recordo é mais a de Fernando Dacosta no seu “Botequim da Liberdade”, um despretensioso e esplêndido livro, regido por outro desígnio, quase caderno de memórias intimista e espontâneo, contudo, que ganhar em sensibilidade, em graça, e, antes de mais, no afeto, que ela tão facilmente despertava nos que lhe eram próximos. E não serão eles os seus melhores juízes? …
Eu conheci Natália, quando ambas estávamos envolvidas no projeto político de Sá Carneiro, eu no Governo, como Secretária de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas, ela no Parlamento, como Deputada, onde cumpria, exuberantemente, o seu "dever de deslumbrar" e estava destinada a ser uma das duas únicas deputadas que têm busto de mármore no Palácio de São Bento. Lindo, esculpido por Cutileiro!
A Assembleia da República conserva, nas páginas do Diário das Sessões, a magia da sua palavra, porventura a mais fulgurante, e, não raro, a mais agreste que algum dia se ouviu no hemiciclo (e, talvez lhe conceda, num futuro não muito distante, o privilégio de editar as suas intervenções dispersas em coletânea - até hoje, praticamente, exclusivo masculino…).
O meu primeiro encontro com ela aconteceu nos "Passos Perdidos". Conversámos apenas sobre leis - sobre uma em particular, já nem sei qual, que passara pelo meu gabinete, e que ela defenderia, em sede parlamentar, no dia seguinte. Combinámos que, para análise de todos os detalhes, lhe enviaria a casa um distinto jurista. De lá voltou o perito mais impressionado do que se tivesse privado com figuras históricas, como Catarina da Rússia, ou a Marquesa de Alorna! Ainda por cima, Natália elogiara aquele modo de colaboração - que deveria ser a regra, mas não era - entre o Executivo e a bancada parlamentar. Talvez tenha visto nisso uma das diferenças que podem fazer
as mulheres na república dos homens…
Reencontramo-nos, algumas vezes, no Botequim, que, não sendo eu notívaga, frequentava com pouca assiduidade, e, depois, no quotidiano, entre 81 e 83, na bancada da AD, a aliança partidária, que, desaparecido Sá Carneiro, entrara já no seu ocaso.
Como é lidar com o mito no quotidiano? É inevitável a sua "normalização"? No caso dela, não, de modo algum! Tinha as qualidades que "humanizavam" a sua grandeza, sem a diminuírem. No convívio, era amável, solidária, incrivelmente divertida e sempre formidável, sem intimidar.
Antes da minha primeira intervenção formal, nervosíssima, não ousando improvisar, escrevi umas linhas, que submeti ao seu parecer crítico. “Claro que está bem – a menina sabe que está bem”! Eu não tinha assim tanto a certeza, e aquele "nihil obstat" levou-me a subir à tribuna com alma nova! Na verdade, gostava imenso que ela me chamasse “a menina”, embora isso só acontecesse em forma de branda e simpática reprimenda ou discordância…
Porém, como opositora, num frente a frente, siderava qualquer um, sem exceção, com secos e contundentes argumentos ou com tiradas ribombantes, não menos contundentes - ordália a que os amigos não tinham de se submeter…
A sua tirada mais mediática foi a que incendiou o debate sobre o aborto - a resposta, em verso, a um deputado do CDS, de apelido Morgado, que se atrevera a legitimar o sexo exclusivamente para a reprodução da espécie. A diatribe poética ficou conhecida como o "truca-truca do Morgado”, pacato homem casado e procriador de uma prole de apenas dois descendentes. Tive a sorte de assistir à cena muito perto da Oradora...
Depois de fazer parte de dois governos sucessivos, regressei, em 1987, ao Palácio de São Bento e às conversas com Natália, então já no PRD. Nada que nos afastasse - afinal, partilhava o seu gosto pelo distanciamento dos aparelhos partidários e até a sua admiração pelo General Ramalho Eanes.
Em agosto de 1987, eu acabava de me tornar a primeira mulher eleita vice-presidente da Assembleia. Ao fim de poucos dias, aconteceu a inevitabilidade de ser chamada a dirigir a sessão – por acaso, sem pompa nem anúncio, a meio de um discurso de Basílio Horta, apenas para o Presidente Crespo fumar um cigarro nos bastidores. Tanto melhor para mim, que queria passar despercebida... Mas eis que Natália se levanta em aplausos, logo seguida por Helena Roseta e pelos demais deputados e, finalmente, por Basílio, que continuara a intervenção, muito perplexo, sem saber por que motivo a Câmara inteira aplaudia de pé. Foi uma estreia, a abertura de um precedente, um minuto feminista para a história parlamentar!
Não menos feminista foi outro momento, que, igualmente, se lhe ficou a dever: a original ideia de homenagear as pioneiras do movimento sufragista português, no "Dia Internacional da Mulher", a 8 de março de 1988. E, assim, oitenta anos depois da criação da Liga da Mulheres Republicanas, elas gozaram, enfim, do direito de serem ouvidas, ali, na casa da democracia, em longas citações dos seus discursos, através da voz de deputadas da geração das suas netas.
Em 1991, o Partido Renovador perdeu representação parlamentar e, com isso, a Assembleia da República perdeu Natália, a Mulher que acordava a Câmara da hibernação na mediocridade em que estava caída. A Mulher capaz de transformar, por exemplo, um simples jantar de portistas em S. Bento em tertúlia erudita, discorrendo brilhantemente sobre desporto, deuses e mitos, para concluir que a serpente símbolo da antiga Lusitânia e os dragões da "cidade invicta" pertenciam a uma mesma matriz.
Nesses tempos, quantas vezes, da terceira fila do hemiciclo, onde habitualmente me sentava, e Natália também, olhei em redor, pensando: "Daqui a cem anos estamos todos mortos - todos, menos a Natália".
Lembro-me de lho ter dito uma vez, perante o seu silêncio complacente e o esboço de um sorriso.
A profeta de futuros longínquos era ela, eu apenas ousava uma incursão em terreno proibido ao comum dos mortais. "Begginer's luck", sorte de principiante: a minha profecia vai a caminho de se cumprir!
quinta-feira, 5 de outubro de 2023
A BIENAL DE ARTES DE ESPINHO: LUGAR AOS JOVENS
1 - A Bienal de Artes de Espinho nasceu, em 2011, sob o signo da singularidade: uma Bienal de Mulheres de Artes, coisa inédita, e, enquanto durou, ao longo de três sucessivas realizações, única no Pais, e, tanto quanto se sabe, na Europa. Mais um título de pioneirismo e modernidade para Espinho, caraterísticas que moldaram a sua vocação inicial e, pela vivência, a sua identidade. A terra e o mar viram-se, em harmonia, repartidas pela comunidade piscatória, cultora da arte xávega, pela indústria conserveira, líder de mercado, e pelo turismo, corporizado na grande migração estival, que animava a estância balnear cosmopolita, uma costa verde a rivalizar com a “Côte d’ Azur”… O comboio estava no centro do vaivém de gente, que vinha do interior do país e das Espanhas, que enchia cafés, casinos, teatros, cinemas, esplanadas, avenidas… Uma intensa vida social e cultural, pontuada por nomes ilustres, que tanto como os incansáveis trabalhadores e as vagas de anónimos veraneantes faziam a história de um lugar, que todos sentiam seu!
Por altura da 1ª Bienal, o Fórum de Arte e Cultura, que conhecemos pela sigla (FACE), com o seu Museu e as suas belas Galerias geminadas, ainda não tinha completado o segundo ano de vida, e já era, a par do Centro Multimeios, da Biblioteca José Marmelo Silva, ou do Auditório de Música, um símbolo da modernidade no século XXI. Importante património material que, porém, não cumpre a sua função só por existir, mas por se converter, de facto, em espaço de dinamização cultural e convivialidade.
A ideia de transformar uma interessante, mas efémera exposição de mulheres pintoras em originalíssima Bienal, foi, note-se, de um homem, o Dr. Armando Bouçon, Diretor do Museu. Para avaliar o caráter inovador de uma tal iniciativa, em termos nacionais, basta dizer que só muitos anos depois, se veio a realizar, em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, uma grandiosa exposição de Arte no feminino que teve enorme impacto mediático.
Antes disso, em 2017, já o Executivo Municipal resolvera pôr fim à Bienal reservada a Mulheres de Artes e adotar, na 4ª Bienal, o modelo que a tornou igual a todas as outras. Ainda por cima, por acaso (e porque neste país não há sistema de coordenação de eventos e esforços, nem sequer dentro da mesma área metropolitana…), Gaia decidiu realizar a sua Bienal exatamente no ano em que decorria, e decorre, a nossa, a poucos quilómetros de distância, em quase simultaneidade… Um orçamento não sei quantas vezes superior, permite-lhes criar polos em cidades próximas e distantes e levar a cabo um chamativo programa de eventos culturais, ao longo de todo o período de abertura ao público das exposições.
2 - Aparentemente, a Bienal de Espinho perdia no confronto. Mas eis que a evolução, nas fórmulas adotadas, foi, não de imediato, antes de uma forma gradual (e não sei se voluntária ou involuntária), criando um modelo de competição e de afirmação de um outro nicho de participação, que tem o potencial de distinguir, de novo, a Bienal de Espinho pela sua singularidade. Deixou de ser, pelos regulamentos, um espaço do feminino, e está, ainda que não formalmente, (isto é, embora regras escritas não o imponham), transformada num espaço de afirmação da juventude. A maioria dos candidatos selecionados pelo júri de concurso, assim como dos vencedores de prémios, são mulheres e homens em início de carreira, ou até mesmo ainda estudantes das Escolas de Belas Artes.
Talvez a explicação para o fenómeno, que nos limitamos a constatar, resida na composição do júri, formado, em larga medida, por professores daquelas Escolas.
“Tout est bien qui finit bien”! A Bienal reconverteu-se por dentro, fez caminho próprio, apostando na juventude.
Porque não, então, consagrar esta realidade, formaliza-la nas regras de jogo e na denominação?
Gaia chamou à sua Bienal, uma “Bienal de causas”. E muito bem. É a sua originalidade…
No nosso caso, porque não assumir, orgulhosamente, a nova especificidade, que se foi sedimentado na prática, (determinada, talvez, numa intencionalidade, mas não num estatuto declarado: ser uma Bienal de Jovens Artistas.
Imponha-se, pois, limite de idade, ou a condição de estudante de cursos de formação.
Essa escolha transparente, oficial, a meu ver, só trará vantagens, uma das quais a de evitar que nomes consagrados vejam, com compreensível desagrado, as suas candidaturas rejeitadas. Embora essa categoria de artistas plásticos se tenha, progressivamente, autoexcluindo da Bienal de Espinho, o tornar a situação clara não a desprestigirá, bem pelo contrário, antes de mais por lhe reconhecer uma identidade que a diferencia das outras…
3 – Dito isto, devo acrescentar que tenho acompanhado, sempre com contentamento, ou na feliz expressão brasileira “pensamento positivo”, o percurso da Bienal, porque tem sabido cruzar a sua própria tradição, sem se deixar acantonar por ela, com uma vontade de mudança. E, como sabemos, “todo o mundo é feito de mudança” …
Foi excelente a ideia de combinar o núcleo central de candidatos selecionados, em competição pelos prémios, com as exposições de artistas convidadas (os), uma das quais tem sido sempre reservada a “Mulheres de Artes”. Significativa homenagem ao pioneirismo das primeiras três Bienais. Não sei, de fonte segura quem a pensou, mas tudo me parece apontar para o Diretor do Museu, tão construtivamente presente na organização das (já) sete ininterruptas realizações….
E há ainda um outro registo, que julgo importante salientar, uma esplêndida constatação, devida, em exclusivo, ao mérito artístico das e dos concorrentes: a paridade entre géneros tem sido sempre, naturalmente, assegurada, quer no respeitante a presenças, quer no respeitante a prémios. Entre os jovens em auspicioso princípio de trajetória, a igualdade surge como um dado adquirido… Mas será que tem hipóteses de se confirmar, através de todas as fases? Ou, pelo contrário, haverá, depois, mais obstáculos para o sexo, em regra, ainda sub-representado neste e em outros setores, ao mais alto nível?
Este ano, essa interrogação foi levantada por uma coletividade que fixou, recentemente, a sua sede no FACE, a Associação “Mulher Migrante”. A AMM e o “Círculo Maria Archer” (que não é menos espinhense), propuseram à Câmara Municipal e à Junta de Freguesia de Espinho a realização de um ciclo de debates, no quadro da Bienal e das comemorações do cinquentenário da cidade - um ciclo inteiramente focado nas particularidades da situação das mulheres portuguesas em diversas áreas, começando pelas Artes, passando pelo espaço da emigração e da construção das Diásporas, e pela Política, e terminando na história e na vida de Espinho, com uma sessão dedicada à Mulher Vareira. A programação contou com especialistas em cada um destes campos, que dialogaram com todos os intervenientes, informalmente, em modo de tertúlia, seguindo as melhores tradições de convivialidade desta nossa terra: artistas participantes na Bienal, entre elas a Comissária da exposição feminina (em 2023, centrada na maternidade, fonte eventual de graves discriminações ao longo da carreira), algumas das maiores especialistas, académicas e investigadoras na área das migrações femininas, dirigentes associativas, vindas de comunidades próximas ou longínquas, (como as de Caracas e de Buenos Aires), jornalistas (uma das quais comissariou a 1ª Bienal), mulheres políticas, com experiência de Governos e de Assembleias, a nível nacional e local (incluindo a nossa anfitriã, Presidente de um Executivo camarário de maioria feminina, que, se for único no país, é, com certeza, caso raríssimo). E, no dia de encerramento ao público das exibições, sábado passado, foi conferencista o Dr. Bouçon, numa temática em que é mestre, a das mulheres vareiras, desde os primórdios da comunidade piscatória espinhense. A seu lado, um verdadeiro símbolo vivo dessas pioneiras, a popular e encantadora Carlota, narrava episódios de uma história de vida muito rica e fechava a última destas tertúlias com um pregão cantado em voz jovem, potente e melodiosa. Um daqueles “pregões matinais” que já não se ouvem no pitoresco quotidiano das nossas ruas com número e sem nome…
No começo de cada debate, não num lutuoso minuto de silêncio, mas em alguns minutos de palavras sentidas, lembramos a Maria José Silva, antiga funcionária municipal e Vereadora da Cultura, uma das companheiras de sempre na Associação Mulher Migrante, que nos deixou há pouco tempo, mas continuará presente na memória, como admirável exemplo de militância pelas causas que nos movem. Uma grande Senhora, na sua invariável generosidade, na espontânea simpatia do seu sorriso
quinta-feira, 28 de setembro de 2023
Comunicação - Congresso "A vez e a voz da Mulher" (Toronto 2023)
AS POLÍTICAS PARA A IGUALDADE
Nas políticas públicas para as migrações femininas distinguiremos três períodos, com base nos seus princípios norteadores, na sua trave mestra: - as políticas de proibição, no tempo longo que se inicia com a Expansão e vai até à Revolução de 1974. - as políticas de indiferença, a partir da proclamação na Constituição de 1976 da plena liberdade de emigrar e dos direitos de cidadania aos emigrantes, sem que o Estado promovesse ativamente a igualdade de sexos. - as políticas para a igualdade –desde o início do século XXI, dando cumprimento à tarefa fundamental do Estado de promover a participação cívica e política da mulher no espaço das comunidades do estrangeiro.
I - AS POLÍTICAS PROIBITIVAS OU LIMITATIVAS DA EMIGRAÇÃO DE MULHERES.As políticas proibitivas ou limitativas da emigração de mulheres
Sobre estas direi apenas umas breves palavras, abarcando séculos de discriminação. Charles Boxer, um dos académicos que mais e melhor analisou o período histórico da colonização dos dois Estados peninsulares e um dos poucos que, no contexto global, se debruçou sobre a presença feminina na Expansão ibérica, considera as práticas de interdição da saída das mulheres portuguesas como o mais acabado exemplo de misoginia, comparando-as, negativamente, com as leis e os usos castelhanos.
A colonização promovida pela Coroa portuguesa foi, desde o começo, concebida como aventura exclusivamente para homens, com a contrapartida da tolerância, ou mesmo do incentivo, à miscigenação, ao contrário da política castelhana, que sempre privilegiou a emigração familiar, obrigando os homens a levarem consigo as esposas, ou a regressarem a casa, para cumprirem os deveres conjugais.
No nosso caso, entre as exceções conhecidas à posição dominante conta-se a que terá envolvido o maior número de mulheres viajantes para Oriente, as chamadas “órfãs d’el Rei”, jovens dadas em casamento a soldados e outros colonizadores, com um dote por recompensa. Foram tentativas mais ou menos irregulares e limitadas de reforçar, nas colónias, a cultura do reino.
As restrições impostas às portuguesas na Carreira da India tinham uma eficácia praticamente total, devido aos elevadíssimos custos e riscos de uma demorada viagem de muitos meses. Não assim nos trajetos para Ocidente, para o Brasil, onde a componente feminina foi sempre mais significativa, quer fosse autorizada, ou não, e cresceu, enormemente, com a navegação a vapor, o substancial embaratecimento do transporte transoceânico. Sobre a saída em massa de mulheres, o Prof. Emygdio da Silva falava de “tremenda constatação” e o Prof. Afonso Costa de “depreciação do fenómeno migratório”. Constatamos, assim, que não só os decisores da “res publica”, fossem eles monárquicos ou republicanos, como a “intelligentzia” nacional perfilhavam a mesma conceção sobre o conceito de “boa emigração”: aquela que era posta ao serviço dos interesses do Estado, com total prevalência sobre interesses e os projetos individuais. Expatriação útil e conveniente para o equilíbrio das contas externas e para o combate à miséria do mundo rural , era a de homens sozinhos, que, nessas condições, trabalhavam duramente e enviavam vultosas remessas para sustentos das famílias e, por fim, porventura velhos e cansados, regressavam à terra.
A argumentação evidencia o reconhecimento da influência da presença da mulher no curso do projeto migratório e no seu destino final, com maior probabilidade de uma bem-sucedida integração e de não retorno - tendências que se viriam a confirmar. Não adivinharam, porém, outro tipo de ganho, maior e o mais duradouro: em vez da temida “desnacionalização” o surgimento de comunidades, portuguesas de língua, cultura e afeto, que são indissociáveis de uma forte componente feminina.
Ao longo do século XX, as portuguesas continuaram a emigrar, e, quando as fronteiras se fecharam aos trabalhadores ativos, na década de setenta, ultrapassaram-nos em número, porque eram admitidas a título de reunificação familiar. Estatisticamente, são atualmente cerca de metade das nossas comunidades na Europa e no mundo.
2 – As Políticas de Indiferença
Uma fase inteiramente nova se abre com a Revolução do 25 de Abril e a inteira liberdade de emigrar. A revolução de 1974 é a única a romper com a tradição de controlo estatal dos fluxos migratórios, que atravessara todos os regimes, da monarquia absolutistas ou constitucional, à República e à Ditadura. A Constituição de 1976 veio reconhecer aos expatriados os seus direitos de cidadania e proclamar a plena igualdade entre mulheres e homens. Porém, como a história das sufragistas nos ensina, o abater das barreiras jurídicas que, na conceção patriarcalista, excluíam as mulheres da vida pública, foi apenas o primeiro passo numa caminhada onde barreiras de outra natureza lhes opõem não menor resistência.
E, por isso, o próprio legislador constitucional não se limitara a consagrar o princípio e impusera ao Estado, no art.º 9º,(reforçado, na revisão de 1989 pelo normativo do art.º 109º) a tarefa fundamental de promover a igualdade entre homens e mulheres no que respeita à participação cívica e política. Nada na letra ou no espírito da lei permite a interpretação restritiva de limitar essa incumbência ao território nacional. Contudo seria essencialmente no território que os Governos centraram o olhar, através da criação da Comissão para a Igualdade (com esse ou outro título). As mulheres migrantes foram esquecidas nos programas e na ação dos governos durante três décadas. À Comissão para a Igualdade não foi dado mandato para intervenção nas comunidades portuguesas, e a Secretaria de Estado da Emigração não criou uma instância própria para o mesmo fim. Na relação com as comunidades migrantes a inércia dos governos, porventura a coberto da sobrevalorização do plano jurídico formal, foi permitindo a diluição das caraterísticas e da realidade do feminino no todo da emigração, sempre padronizada no masculino. Os problemas, os contributos, o papel das mulheres em cada comunidade, permaneciam na sombra. Até em períodos de acentuada feminização do fenómeno migratório se manteve essa atitude de descaso, não obstante serem consideradas mais vulneráveis, e, quando acediam ao mercado de trabalho, duplamente discriminadas, como mulheres e como estrangeiras. Preconceitos que vieram a ser infirmados pela investigação académica pioneira de Engrácia Leandro sobre as famílias da região de Paris, na década de noventa. A emigração constituiu para as famílias, desde logo graças ao duplo salário, um forte impulso ao bem-estar económico e para as portuguesas da geração do “salto”, oriundas da ruralidade e da pobreza, quase sempre, uma via de emancipação, pela autonomia do trabalho remunerado, e por uma vivência mais igualitária dentro da família e em sociedades onde se integraram, quase sempre, mais rapidamente e melhor do que os homens.
Porém, dentro das comunidades portuguesas, o seu papel regredia em obrigatória conformidade de estereótipos ancestrais. Nas associações, nos centros de convívio, na “casa portuguesa coletiva” a divisão de trabalho reproduz os papeis masculinos e femininos tradicionais na casa tradicional. Os clubes são repúblicas masculinas, onde as mulheres não têm voz nem voto, estão na cozinha, ou nos bastidores da festa. A sua influência pode ser significativa, mas não é para ser vista.
3 AS POLÍTICAS PARA A IGUALDADE
Neste contexto, o meio associativo não podia deixar de ser considerado o principal campo de combate às discriminações de género. Em 1980, o Governo, reconhecendo, globalmente, a importância do fenómeno associativo na autoconstrução e desenvolvimento das comunidades portuguesas, quis estabelecer com as suas organizações uma parceria para diálogo e a coparticipação nas políticas públicas, onde as questões de género não seriam marginalizadas. Para tal foi criado, pelo DL nº 372/80 de 12 de setembro, o Conselho das Comunidades Portuguesas, como fórum representativo dos portugueses do estrangeiro e órgão de consulta governamental. O espírito da revolução de 1974 chegava à Emigração, com seis anos de atraso, rompendo com o paternalismo do “ancien regime”, aceitando o diálogo para uma atuação concertada. Todavia, no tocante à problemática da participação feminina, o 1º Conselho (1981/1990) começou por frustrar expetativas. Em 1981, os eleitos eram todos homens! O grau zero de representação feminina no CCP, nas duas áreas que o formavam, o associativismo e jornalismo, levantava um problema de democraticidade, mas espelhava, afinal, fielmente, a realidade das lideranças associativas. O que fazer, num tempo português em que era impensável a imposição do sistema de quotas, em que a proporção de mulheres na AR era diminuta, nas autarquias insignificante e nos Governos, a nível ministerial, inexistente, com a exceção de Maria de Lurdes Pintasilgo?
No segundo ato eleitoral, em 1983, as duas primeiras Conselheiras do CCP ganharam o seu lugar no setor do jornalismo. E foi uma delas, Maria Alice Ribeiro, representante de Toronto, a autora da recomendação para a convocatória de um encontro mundial de mulheres da Diáspora. O Governo deu a maior prioridade à organização desse congresso, e, assim, o mais improvável dos países, pelo registo misógino de políticas multiseculares, e o CCP, uma instituição de rosto masculino, fizeram história, em termos europeus e mundiais, com a primeira iniciativa para o empoderamento de mulheres emigrantes, antecipando em dez anos as decisões da Conferência de Pequim, como afirma Maria do Céu Cunha Rego.
O Encontro Mundial de Viana foi uma espécie do Conselho das Comunidades no feminino, em que, pelo nível das intervenções e pelo aprofundamento das questões da emigração feminina e, globalmente, das migrações, as mulheres demonstraram quanto a sua ausência pesava negativamente no CCP.
Entre as principais conclusões das participantes do Encontro de Viana estava o projeto de criação de uma associação mundial de mulheres da Diáspora, que não chegaria a concretizar-se. Por seu lado, a SEE, face à continuada sub-representação feminina no CCP, instituiu, em 1987, uma “Conferência para a Promoção e Participação de Mulheres Portuguesas do Estrangeiro", a funcionar, anualmente, na órbita do Conselho.
A queda do X Governo e a tomada de posse do novo Executivo levou ao abandono das políticas para a Igualdade, de imediato, e á extinção do próprio Conselho associativo, em 1990.
Seguiu-se um impasse de duas décadas. Só em 2005, por proposta dirigida ao SECP António Braga pela “Mulher Migrante, Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade”, que se considerava, enquanto fórum internacional, herdeira dos projetos sufragados no Encontro de Viana, são assumidos, de forma sistemática e consistente, os deveres constitucionais do Estado neste campo, através da organização dos “Encontros para a Cidadania – a igualdade entre homens e mulheres, realizados nos quatro cantos do mundo ao longo do mandato do XVII Governo Constitucional, entre 2005 e 2009, sob a presidência inspiradora de Maria Barroso. No 1º Encontro, o da América do Sul, em Buenos Aires, com a coorganização da AMM da Argentina, oSECP António Braga falou do “desígnio de retomar da questão de género, que tem andado esquecida ao longo dos anos”, admitindo que "Portugal não tem tratado do papel da mulher nas comunidades de acolhimento à luz dos seus direitos de participação cívica, cultural e política".
Os Encontros Regionais seguintes foram realizados em Estocolmo (2006), em colaboração com o PIKO (Federação de Mulheres Lusófonas), em Toronto (2007), organização conjunta da Cônsul-Geral Maria Amélia Paiva e de várias ONG’s locais, em Joanesburgo (2008), em parceria com a Liga da Mulher, e em Berkeley (2008), com a participação do Departamento de Estudos Europeus da U Berkeley.
No Encontro da América do Norte, em Toronto, o SE da Presidência, Jorge Lacão, reconheceu explicitamente que " para a promoção da igualdade se não podem limitar à ação junto das portuguesas e dos portugueses residentes no território, citando o Programa do XVII Governo Constitucional e salientando a importância das políticas da igualdade não só para as próprias mulheres, mas para as comunidades e para o aprofundamento da estratégia de aproximação entre estas e o país". As mulheres, disse, “encontram-se sub-representadas nas instâncias de decisão dos movimentos associativos, pelo que os seus pontos de vista e necessidade se arriscam a não ser tidos em conta".
O ciclo do “Congressismo (2011/2015)
A via de conferências e debates, que fora privilegiada pelo XVII Governo, liderado pelo PS, veio em ser prosseguida num crescendo de iniciativas, pelo Governo PSD/CDS, com o Secretário de Estado José Cesário, numa linha de continuidade, que é, infelizmente rara na nossa vida política. A AMM foi, de novo, solicitada a uma colaboração de primeiro plano, e propôs ao Secretário de Estado um plano de alternância entre Congressos Mundiais, a realizar no país, e os Encontros Regionais nos moldes anteriores. Este quadriénio foi, no quadro das políticas para a igualdade, o período áureo do “congressismo”, com dois Encontros Mundiais, no Fórum da Maia, em 2011, e em Lisboa, no Palácio das Necessidade, em 2013 e quase uma trintena de conferências, colóquios e debates, em diversos países e regiões, sempre com parcerias locais, de associações, de universidade e centros de investigação, juntando a vertente académica à da militância ativa. Para José Cesário “o papel da Mulher é absolutamente decisivo para essa mudança” em comunidades com “grande défice de participação política!
O Diálogo para a Igualdade e o papel do CCP (2015-2019)
As legislativas de 2015 levam a nova alternância no poder, do PSD para o PS, com José Luís Carneiro a assumir a pasta da emigração e a manter a problemática da Igualdade nas suas preocupações. Procurou novas formas de cooperação com a Secretaria de Estado da Igualdade, com ONG’s das comunidades e, em particular, com a AMM. Só condicionantes de ordem financeira e burocrática, decorrentes de novo modo de funcionamento da DGACCP, inviabilizaram a realização de um novo Encontro Mundial. A via alternativa foi apostar no Conselho das Comunidades. Pela primeira vez, na Reunião Mundial do CCP, órgão onde as mulheres se mantinham (e se mantêm…) sub-representadas, houve um longo debate sobre estas questões, para o qual me convidou, enquanto sua antecessora e dirigente da AMM, juntamente com a Secretária de Estado da Igualdade.
Poderão futuros Executivos da República cumprir os seus deveres neste domínio, através de uma parceria com o CCP, na estratégia de Governos da década de oitenta, retomada por José Luís Carneiro?
É a interrogação que aqui deixo. As próximas eleições para o CCP, o mais tardar em 2024 poderão dar indícios seguros. Será este Órgão representativo capaz de acompanhar a evolução das próprias comunidades, onde é, hoje, muito maior, embora longe da paridade, a presença das mulheres no dirigismo associativo, refletindo esse visível progresso na sua composição e funcionamento mais igualitário? Ou será mais fácil às mulheres terem oportunidades iguais na vida das comunidades do estrangeiro do que no próprio CCP?
Nunca saberemos, ao certo, quanto as políticas públicas no seu esforço conjunto com organizações feministas, contribuiu para chegar ao ponto em que estamos, mas sem menosprezar a parte do Estado, sabemos que a resposta, hoje, mais do que ontem, está nas mãos das mulheres. O que, nas vésperas de eleições para o CCP não iliba o governo da sua tarefa de mobilização de todos, e, em particular da minoria que as mulheres têm sido. Palavra de ordem: Participem!
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