domingo, 10 de maio de 2015

 EMIGRAÇÃO PORTUGUESA OLHARES SOBRE A AUSÊNCIA: UMA PERSPECTIVA DIACRÓNICA
MARIA MANUELA AGUIAR
RESUMO
A ausência significava, no paradigma “territorialista”tradicional, a ruptura com a sociedade do país e a perda de direitos de cidadania, direitos políticos, sociais e culturais. Os ausentes eram despojados da própria nacionalidade, se adquirissem uma outra. Porém, o carácter automático da recuperação da nacionalidade, em caso de retorno definitivo, indicava que o legislador oitocentista se dava conta da subsistência dos laços de ligação à pátria durante o período de ausência.
Para a progressiva tomada de consciência das formas de vencer o distanciamento físico pela presença dos emigrantes na vida da sociedade portuguesa contribuíram, antes de mais, as remessas, os investimentos, as dádivas para a melhoria das suas terras. Mais tardio foi o reconhecimento de uma outra forma de presença, através da criação, no exterior, de espaços de língua e cultura portuguesa.
A democratização do país, em 1974, veio permitir a transição progressiva para o paradigma "personalista", em que os expatriados gozam de um novo estatuto de direitos, tendencialmente igual aos dos residentes, e as comunidades do estrangeiro são vistas como parte integrante do património cultural da Nação.
INTRODUÇÃO
Abordo neste trabalho a forma como as migrações portuguesa foram vistas, no país - pelo legislador, em primeira linha, mas também por políticos, estudiosos, opinião pública - ao longo do largo período, que cabe no conceito de emigração, em sentido estrito, excluindo o tempo da Expansão, e da colonização, designadamente da colonização do Brasil, muito embora se deva reconhecer a importância do passado distante, de onde vem a tradição de partir para longe, como meio ideal de resolver problemas de sobrevivência, de emprego, de ascensão social, de enriquecimento supostamente fácil... Houve, de facto, uma linha de continuidade nessa tradição multissecular, e na forma como os expatriados se envolveram na vida das sociedades de destino, (parecendo sempre mais ousados e mais solidários, quando fora do um pequeno território, de horizontes limitados...), assim como no modo de se relacionarem com a terra de origem, para ela enviando uma infinidade de pequenas economias, e, mais raramente, mas com formidável impacte, grandes fortunas, com elas ajudando as famílias, o desenvolvimento das comunidades locais e o equilíbrio das finanças públicas.
Assim se compreende que, após a independência do Brasil, os fluxos migratórios espontâneos não tenham sofrido nem desvio nem diminuição, bem pelo contrário. Assim se explica, igualmente, o favorecimento do destino brasileiro, território estrangeiro, em detrimento das colónias de África, por uma corrente da "inteligentzia" portuguesa conhecedora desta harmónica transição do papel de colonizador para o de emigrante.
Ao delimitar aquele período temporal, não deixo de lhe atribuir carácter, até certo ponto, artificial, tanto mais quanto a posição do legislador sobre o excesso dos fluxos de saída se mantém praticamente inalterada. De facto, desde as Ordenações Filipinas até meados do século XX, as manifestações de actividade legislativa, ou o que poderemos chamar políticas de emigração, foram pouco mais do que medidas proibitivas ou limitativas de um movimento, que assumia a feição de um êxodo desmesurado.
Políticas de verdadeira protecção e de reconhecimento dos direitos de cidadania dos expatriados não houve, embora tenha havido preocupação, e, em abundância, estudos, debates, polémicas, chamadas de atenção - inclusivamente no próprio parlamento, com a constituição de duas comissões parlamentares de inquérito no século XIX. As conclusões e os remédios propostos, nomeadamente pela comissão parlamentar em 1872, não foram, porém, levados a cabo... O mesmo se diga de muitas outras propostas, algumas de investigadores ou especialistas neste domínio, que foram também políticos, como Oliveira Martins e Afonso Costa. Muitas das observações e dos projectos, que não conseguiram executar, mantiveram actualidade ou vieram, embora muito tardiamente, na actualidade, a ser contempladas na Lei. Mas em outros aspectos, como será sublinhado, foram "homens do seu tempo" e não conseguiram dar a uma realidade migratória, a formas de “ausência”não fundamentalmente diferentes das que ainda agora conhecemos, o tratamento de que somos capazes na actualidade, no campo do Direito.
Neste trabalho percorreremos vários ciclos da vida da emigração, que mais do que seria expectável, se encadeiam e se aproximam na psicologia das gentes, no seu comportamento face ao país, na organização social do espaço que habitam no estrangeiro, criando o seu próprio "mundo português", dentro de outros mundos em que interagem e se integram, as mais das vezes, bem.
As "situações de facto" em que as múltiplas formas de”presença dos ausentes” se afirmam, multi-secularmente, dentro e fora do país, só se convertem em "situações jurídicas" no nosso tempo - no sentido de gerarem direitos individuais e um novo relacionamento entre Estado e os cidadãos, entre o Estado e as instituições da “sociedade civil”: escassas décadas de rápida transformação das ideias e das leis, que rompem com séculos de denegação jurídica e de descaso político! Um "encontro dos cidadãos com a lei", poderíamos dizer, parafraseando Jean Carbonnier.
O novo "direito dos expatriados", irradia no cerne de uma concepção "personalista", por oposição ao tradicional paradigma "territorialista"e é produto da nossa época - tendo ganho progressivamente terreno no panorama europeu, como se constata na perspectiva de direito comparado, muito embora seja, ainda, sede de particularismos nacionais. O caso português é, com alguns dos seus arcaísmos, combinados com laivos de pioneirismo, certamente merecedor de registo, e oferece aos interessados um campo de observação alargado a séculos de intenso movimento, de mutações, mas também de surpreendentes constantes na vida e na acção dos indivíduos.
Neste ramo emergente do Direito, em via de sólido enraizamento, confrontam-se, ainda, diferentes olhares, visões plurais, no plano nacional e internacional. Tenho a minha - como jurista e como participante, ao longo de um quarto de século, em muitos dos colectivos por onde passou o processo legislativo em Portugal e até, também, a nível europeu, no Conselho da Europa -e com ela escrevo as linhas que se seguem.
I - A EMIGRAÇÃO COMO AUSÊNCIA
«Não nos admiremos. Eram as ideias do tempo.» Affonso Costa
1 - A Ausência, na Sociedade e no Direito
O fenómeno das migrações, sempre multifacetado, envolve componentes muito diversas, em que as formas de ausência e de presença (presença física, mas não só, também afectiva, sentimental, económica, cultural...) se sobrepõem ou se interligam, no plano individual como colectivo, e vão sendo percebidas, ao longo de épocas ou de ciclos, muito diferentemente.
Numa abordagem tradicional, a ausência implica fatalmente uma ruptura, conotada com o abandono ou a desistência de fazer vida e carreira na própria terra. Olhada a emigração por parte de quem fica, assim foi, e em certa medida ainda é, na opinião pública, no juízo do povo e dos vizinhos, assim como em correntes doutrinais mais resistentes a uma nova visão das coisas.
Completamente oposta foi, através dos tempos, a perspectiva, o sentir comum dos próprios emigrantes – aliás, abundantemente expresso em gestos de solidariedade e em directos contributos para o bem-estar das famílias e das comunidades locais, em comportamentos reveladores da ligação à terra de origem, que são uma constante na história da emigração portuguesa dos últimos dois séculos e, a meu ver, até também nos períodos antecedentes. De facto, o móbil de procurar, lá fora, progresso e fortuna e de a repartir com os seus, é compatível com qualquer dos enquadramentos do movimento de expatriação, que conhecemos historicamente - o esforço de colonização empreendido ou incentivado pelo Estado, ou a demanda individual, espontânea, de trabalho no estrangeiro. Autores de diferentes épocas, dão-se conta desta realidade, desde Oliveira Martins, ou Afonso Costa (Costa, 1911:243), até aos nossos contemporâneos Miriam Halpern Pereira ou Joel Serrão (Serrão, 1974: 110).
Mas nem os governantes do Reino, nem, posteriormente os da República e do “Estado Novo”, nem sequer os doutrinadores, em cada um desses períodos, fizeram questão de aventar ou conceder contrapartidas ao contributo dos expatriados, pelo menos no domínio do exercício da cidadania.
O universo jurídico é um mundo formal, aparentemente fechado sobre si próprio, com vocação original para a estabilidade, mas capaz de evolução, nos diversos ramos do Direito, nomeadamente no que respeita às migrações. Constata-se, porém que, entre nós, mudou pouco ao longo de séculos, porque o legislador se limitou a seguir conceitos e preconceitos firmados e não procurou fazer pedagogia ou induzir transformações (objectivo ao seu alcance, mas mais fácil em períodos de mudança radical de regime político e constitucional, como foi o posterior à revolução de 1974, em Portugal - o primeiro, aliás, a tornar-se portador de inovação significativa nas políticas de emigração, ao contrário do que acontecera na transição da Monarquia para a República, e da República para a ditadura).
O peso que os emigrantes iam ganhando na economia do País foi amplamente reconhecido, mas não do ponto de vista jurídico. O nosso ordenamento ignorou, pura e simplesmente, a prevalência dos laços de ligação à terra sobre a força de dissolução atribuída ao afastamento. A saída para o estrangeiro continuou a ser, obstinadamente, vista como um corte com a comunidade nacional, se não mesmo como uma deserção. Por isso, a ausência, ainda que temporária, tinha repercussão imediata na esfera do Direito: total suspensão do exercício de direitos políticos, principal atributo da cidadania e cessação de quaisquer prestações e apoios do Estado, no campo social e cultural- restando uma incipiente protecção consular (cuja insuficiência foi, vezes sem conta, denunciada pelos próprios diplomatas, em ofícios, que podem ser consultados nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros).
O Estado começou por cuidar, fundamentalmente, desde o início da Expansão, de diminuir o caudal imparável dos fluxos migratórios, com medidas proibitivas os restritivas (Serrão, 1974:106). Só mais tarde, já em pleno século XX, sobretudo na segunda metade, se nota a preocupação de, a par do controlo dos movimentos migratórios, assegurar aos emigrantes um apoio centrado no acompanhamento e fiscalização das condições de transporte marítimo - como é sabido, causa de muitas queixas, sofrimentos e fatalidades, que faziam notícia frequente na imprensa. Maria Beatriz Rocha Trindade denomina-as, expressivamente, "políticas de trajecto de ida". De facto, a protecção cessava no fim da viagem transoceânica, ficando os homens, a partir daí, entregues a si próprios, face às dificuldades que quase sempre os esperavam.
Neste contexto sociopolítico, não surpreenderá que, apesar da influência que a emigração teve, e tem, na sociedade portuguesa - com cerca de um terço da população a viver fora do País, desde o século XVI - não haja sido dado tratamento autónomo e sistematizado aos efeitos da ausência dos cidadãos no exterior, onde, em regra, permaneciam com morada conhecida, em contacto com familiares e amigos.
A temática da ausência, de que se ocupava, demoradamente, o Código Civil de 1867, era apenas a que configurava o desaparecimento “em parte incerta” (artigos 55º a 96º do Código Civil). A "ausência", nesse sentido, tanto podia verificar-se no contexto da emigração como não, pois, como é óbvio, o facto de uma eventual "evasão" para "parte incerta" no estrangeiro não precludia a aplicação da lei geral...
Mudámos, entrementes, o Código Civil, em consecutivas reformas, de maior ou menor monta, mas ainda hoje não é, em primeira linha, nesse Código, mas na Constituição e em outras leis, como as eleitorais, ou como as que regem o regime de segurança social, de fiscalidade, de serviço militar ou de ensino, que terá de procurar-se a regulamentação dispersa de um "estatuto dos ausentes", composto pelos seus direitos e deveres - que o mesmo é dizer as formas de valoração jurídica da ausência ("hoc sensu"). Acrescente-se também o direito penal, já que a emigração clandestina foi criminalmente sancionada quase até ao termo do chamado “Estado Novo” - questão não despicienda, pois se estima em cerca de um terço do total, através dos vários ciclos migratórios, os que afrontavam as normas proibitivas da saída…
A liberdade de circulação, aclamada ao nível dos princípios, desde o advento da Monarquia Constitucional, era, contudo, de facto, obstaculizada por múltiplos expedientes burocráticos, por regulamentação prevendo taxas e alcavalas, pelo custo desmesurado de passaportes (Costa, 1911:166). E, como já acentuei, só se alcança em Portugal, plenamente, com a Constituição de 1976.
O estatuto dos ausentes era, pois, repito, de sinal negativo, consistindo no esvaziamento de direitos políticos e, em regra, de direitos às prestações do Estado nacional, em todos os sectores, do social ao cultural. A ida para o estrangeiro significava uma verdadeira "capitis diminutio" - o interesse dos indivíduos, mormente o seu direito de emigrar, era subordinado ao interesse público, tal como foi, em concreto, entendido, sem grande contestação, até 1974.
O Direito, na sua marcha para plasmar novas realidades (ou, eventualmente, novas avocações da realidade…) pode ser uma resultante tanto de avanços científicos e doutrinais como de projectos ou propósitos políticos, porventura incutidos pelos media, por grupos, sindicatos, movimentos de cidadãos, correntes de opinião, que se constituem em fonte de inspiração, de influência e poder... No domínio da emigração, foi assim sendo imposta, em cada momento histórico, uma leitura da realidade não necessariamente coincidente com a verdade, tal como viam os seus protagonistas. A distância interposta entre os emigrantes e os centros de decisão política (e legislativa) era a distância geográfica, mas não só: era, também, uma marginalização de ordem social e política, que só foi - ou vai sendo... - superada pela sua capacidade de se fazer ouvir e compreender, levando à progressiva tomada de consciência geral das suas situações e dos problemas...
Políticas de sistemática protecção social e de apoio cultural aos emigrantes, em Portugal como em termos de Direito comparado, são relativamente recentes – coincidindo o seu início, em vários casos, com o termo de trágicos conflitos e provações colectivas - a última grande guerra mundial, a descolonização (em Portugal, tardia mas não menos determinante de uma maior solidariedade social, que directamente beneficiou os expatriados). Uma reviravolta que, no caso português, tivera a sua”pré-história” nas primeiras tímidas medidas de protecção social suscitadas pelo dramatismo de que se revestiu a chamada “emigração a salto” para a França e outros países vizinhos, a partir da década de 60.
2- Do Paradigma“Territorialista" ao "Personalista"
Voltemos ao Código Civil de 1867 para analisar as motivações do multissecular descaso dos poderes públicos pela sorte aos emigrantes.
Não haverá disposições mais reveladoras do modo de ver tradicionalmente o emigrante do que as que regem, uma vez perdida, durante o tempo de estada no estrangeiro, a nacionalidade portuguesa, a sua reaquisição, na hipótese de regresso. A perda automática era determinada pela atribuição de nacionalidade estrangeira - uma cominação que constituía, então, a regra, com uma argumentação que ainda hoje sustenta, em muitos países, a mesma solução: antes de mais, o dever de lealdade ao Estado, visto como "exclusivo" e "individual". Uma partilha de sentimentos e afectos em relação a dois países, ironizam alguns autores, assumia um carácter semelhante à do crime de bigamia: "In this concept, dual nationality is viewed as analogous to bigamy, amounting to a kind of cheeting in both polities" (Aleinikoff e Klusmeyer, 2002:29).
Hoje, a tese contrária pretende basear-se na melhor compreensão da natureza humana, dos fenómenos de integração em sociedades abertas ao interculturalismo (por oposição àquelas que pretendem forçar, directa ou indirectamente, a “assimilação” dos estrangeiros), num quadro global de diluição de conflitos bélicos entre nações dadoras e receptoras de migrantes. Privilegia-se a vontade de dupla pertença, da dupla cidadania, como a mais próxima do ser e querer das pessoas.
Portugal só viria a abolir o princípio da unicidade de nacionalidade em 1981 – não sem controvérsia, dentro e fora do parlamento. Em oitocentos, o Código de Seabra aderia à tese da unicidade – e nada de extraordinário se poderá apontar a tal opção… Extraordinário é, sim, o disposto no seu articulado, no respeitante à reaquisição da nacionalidade: após estipular que "perde a qualidade de cidadão português o que se naturalizar em país estrangeiro" dizia o art.º 22º que "pode, porém, recuperar essa qualidade, regressando ao reino com ânimo de domiciliar-se nele, e declarando-o assim perante a municipalidade do lugar, que elegeu para domicílio". O artigo seguinte, sobre os efeitos da recuperação da nacionalidade, não dá a esta reaquisição, eficácia retroactiva: "[...] as pessoas só podem aproveitar desse direito desde o dia da sua reabilitação".
A denegação da retroactividade sublinha, de algum modo, o carácter de ruptura irreparável da ausência, pelo tempo em que perdura. Mas o legislador mostra perfilhar a concepção dos especialistas na matéria que só viam vantagem numa emigração se ida e volta, com a reinserção dos homens (ainda que num prazo dilatado pela necessidade de atingirem os seus objectivos económicos). Por isso, os emigrantes não se "desnacionalizam", em definitivo, e em caso de retorno uma simples manifestação da vontade os reinvestia no pleno exercício dos seus direitos de nacionais, sem o que o Estado tivesse meios de se lhes opor!
Note-se que, então, mais combatida ainda do que a emigração desmesurada, era a que se destinasse, com toda a probabilidade, a integração definitiva no estrangeiro. Boa emigração, útil para os protagonistas e para o Estado só a temporária... - temporária, ainda que de muito longa duração, num entendimento diverso do que hoje damos ao conceito.
Aqui residia, a meu ver, a verdadeira “ratio” da norma que facultava a reaquisição da nacionalidade por livre decisão individual. Estranhável é que se tenha perdido tão pertinente visão global do ciclo migratório, e, com ela, o intuito de facilitar a reintegração na comunidade de origem, ao adoptar, em posteriores leis da nacionalidade, solução menos "acolhedora", menos liberal, menos eficaz. Na verdade, todas as leis seguintes vieram impor, para além de uma complexa e quase sempre morosa tramitação burocrática, o "direito de oposição" do Estado à recuperação da nacionalidade. Poder discricionário que foi mantido na chamada "lei da dupla cidadania", embora não no texto da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro, que previa a reaquisição por “mera declaração do interessado", sem mais exigências, mas pela via regulamentar, que operou uma interpretação restritiva da norma, mantida por mais de duas décadas.
A admissão incondicional do pedido de recuperação da nacionalidade só veio a ser imposta (ou reposta, para os que defendem que a Lei de 81 foi descaracterizada em sede de regulamentação...) pela Lei Orgânica nº 1/2004 de 15 de Janeiro.
É de referir que houve, anteriormente, uma tentativa infrutífera de repristinar, parcialmente, a regra de recuperação automática da nacionalidade sancionada no Código Civil de 1867 –alargando-a às situações de permanência no estrangeiro, para tal dando à mera inscrição consular o mesmo efeito da declaração produzida, em caso de regresso, pelo emigrante oitocentista, perante as autoridades locais. (Aguiar, 1999: 156). Refiro-me ao Projecto de Lei nº 140/VIII que, apesar de não ter alcançado vencimento, constituiu um exemplo incomum de procura de uma solução para o futuro claramente inspirada na originalidade de velhos preceitos jurídicos.
Em 2004, encerra-se o último capítulo deste processo, que aglutinou não só políticos, mas “activistas” do que veio a considerar-se uma causa maior nas comunidades portuguesas de todo o mundo: não só é derrogado o“direito de oposição” estatal, como é garantida a retroacção dos efeitos da livre reaquisição da nacionalidade, por mera declaração de vontade. O cidadão é, doravante, o decisor único da sua pertença nacional, independentemente do lugar ou país de residência.
Um parêntesis, para olhar o que acontece na Europa, onde, neste campo, subsiste a divisão, no plano doutrinal e nos ordenamentos jurídicos internos – decorrente de experiências migratórias, antigas ou recentes, muito diversas – ou da sua falta. Uns são, ou foram, grandes países de origem de correntes migratórias. Outros são, essencialmente, destino desses movimentos… A nível do Conselho da Europa, a polémica prolongou-se por décadas, devido à inflexibilidade de blocos antagónicos, formados pelos Estados membros, que se afrontavam, mostrando pouco disponibilidade para negociar concessões… A Convenção de 5 de Maio de 1963 sobre a Redução dos Casos de Nacionalidade Múltipla, só veio a ser revogada, em 1997, pela Convenção Europeia sobre a Nacionalidade. Todavia, perante a irredutibilidade de alguns desses membros – nomeadamente a Alemanha, a generalidade dos países nórdicos, e não só… - o Conselho da Europa não foi além de uma posição de neutralidade na matéria.
Também não há consenso europeu na defesa do reconhecimento de um estatuto de direitos dos emigrantes, como mencionaremos adiante. No caso português, esse reconhecimento tem suporte constitucional, não só no que respeita à liberdade de circulação (art.º 44º), como em relação a novos direitos, que se englobam no "Direito dos Expatriados", uma construção jurídica em marcha, integrando "normas constitucionais, legais e regulamentares de direito interno e regras de direito internacional, tratados, convenções e princípios gerais de direito", como Barbosa de Melo teorizou no colóquio da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (APCE) sobre "Os laços entre os europeus residentes no estrangeiro com os seus países de origem", realizado em 1997. No relatório da APCE baseado sobre os estudos preliminares, os debates e conclusões do colóquio, este Direito emergente foi considerado a resultante de um processo evolutivo centrado no cidadão e na possibilidade do seu relacionamento com o Estado em novos moldes: " the emerging law of expatriates has citizens interests at heart and not directly the interests of states" (Aguiar and Guirado, 1999).
Os cidadãos vêem reconhecidos os direitos inerentes à qualidade de nacionais, independentemente da sua residência no estrangeiro – e, através deles, se impõe ao Estado a reestruturação das suas instituições e das suas leis, para que correspondam à dimensão humana do Nação e não apenas a uma organização de base territorial.
Segundo Bacelar de Gouveia, a nossa Constituição ensaia, desde 1976, gradualmente, a transição do paradigma "territorialista" para um paradigma "personalista” ou “nacionalista”. Caminhamos, assim, nem sempre em linha recta, para a "desterritorialização" dos direitos dos emigrantes (um neologismo muito utilizado, em qualquer da línguas oficiais, nas actas do colóquio e do relatório da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, acima referidos).
A Lei Fundamental portuguesa denuncia pulsões contraditórias entre a vontade de aumentar os direitos de participação de todos os cidadãos, e a de "dar menos direitos a quem está fora do território, porque não contribui para os impostos..." , como reconheceu o constitucionalista na audição parlamentar organizado pela Subcomissão das Comunidades Portuguesas, para examinar e reequacionar os chamados "Mecanismos Específicos de Representação de Emigrantes", (Gouveia, 2004:61).
Hoje, já não se discute a possibilidade teórica do exercício de direitos políticos a partir do estrangeiro, mas a sua denegação ou consagração, mais ou menos alargada traduz-se, “de jure constituto”, em variadas formas de concretização. Entre elas se conta a adopção de meios específicos de representação de migrantes.
Um dos precursores do estabelecimento de tais meios, Emygdio da Silva, que chegou a propô-los, no começo do século XX, como sucedâneo para outras modalidades, então utópicas, de participação eleitoral de emigrantes, não precisaria de repetir agora o seu cauteloso comentário sobre a ousada proposta de um autor italiano, seu contemporâneo: "[…]sem pretendermos erigir em sistema as fantasias de um deputado italiano que, na Revista Económica Internacional aventava a ideia de que ao parlamento do seu país viessem representantes das colónias italianas em países estrangeiros [...]" (Silva, 1917: 211).
Na verdade, as "fantasias" há muito se erigiram em sistema, no Direito em vigor em muitos Estados – incluindo em Portugal e Espanha, ainda que, em outros países, nomeadamente do norte da Europa, se mantenha o apego ao dogma da "territorialidade" -tal como no século XIX o teorizava Locke. Podemos, pois, também nesta questão, nesta "vexata questio", constatar a existência de uma Europa plural, dividida em muitas e diferentes sensibilidades no terreno das políticas migratórias...
II - EMIGRAÇÃO -FORMAS MÚLTPLAS DE PRESENÇA
"[...] Que ideia nos fazemos nós de Portugal: Somos o povo sediado no chão europeu, demarcado pelos nossos maiores, ou o povo que deve ser tomado e considerado independentemente do território que ocupa em cada tempo?”
António Barbosa de Melo
1 - No Interior do País
A constatação das manifestações de presença, ou de pertença, dos expatriados foi irrompendo, cedo, despertada pelos "influxos financeiros" provocados pelos "fluxos migratórios" para o estrangeiro, relação de causa e efeito, crescentemente valorizada, nos meios políticos ou académicos, como na sociedade em geral - para o que contribuíam, sobremaneira, as características do nosso “emigrante tipo”, o seu modo de se integrar num outro país, sem perda de ligação ao seu. Porquê? Antes de mais, porque a emigração portuguesa envolvia, numa primeira fase, quase exclusivamente homens, que partiam sós, mas com o objectivo de executar um plano familiar de melhoria de vida. A primeira modalidade de cumprimento desse projecto era o envio maciço de remessas: para as famílias a garantia de escapar à faixa larga de miséria ou de pobreza, para o Estado uma inesgotável fonte de divisas, indispensável ao equilíbrio das contas externas.
No primeiro quartel do século XX, Fernando Emygdio da Silva escrevia: "... É da emigração de miséria que a Pátria tira, depois, o ouro com que salda a conta da sua desorientação económica e dos desperdícios financeiros. É da miséria que vem a nossa maior riqueza: do pária nostálgico e atavicamente aventureiro... é que vem o ouro [...] não se esquecem de nos enriquecer com as remessas, que ainda ali não representam um excesso, mas, a maior parte das vezes, a privação, ao menos nos primeiros anos." (Silva, 1917:107).
Oliveira Martins, Afonso Costa, Anselmo de Andrade, Artur Bello, Vieira da Rocha, Egmydio da Silva são alguns dos autores que, nas suas estimativas, nos traçam os gráficos da enorme dependência nacional face ao prodigioso volume de remessas da emigração (Silva, 1917: 105).
Estas prestações, tábua de salvação da economia portuguesa, configuram, assim, o modo mais antigo e mais reverenciado de os emigrantes aqui estarem presentes, não estando... E vão condicionar as políticas de emigração familiar, impondo fortes restrições à saída de mulheres e de menores, combatida em toda a medida do possível. O legislador tem em insignes juristas incondicional suporte. Afonso Costa qualifica o êxodo de mulheres como "[…] uma depreciação do fenómeno migratório […]", porque: "[…] é quando a família do emigrante fica na Pátria, que ele envia mais regularmente as suas economias" (Costa, 1913: 182). Na mesma linha de pensamento, Emygdío da Silva, para quem o crescente número de mulheres expatriadas, que, se verifica entre 1906 e 1913 (127% de aumento) "é uma constatação tremenda". Com idêntica justificação:"[…]perigo de desnacionalização e cessação de remessas[…]” (Silva, 1917: 132).
Vão os Homens, chegam as divisas, com as quais, de muito longe, imprimem marcas no território, influenciam a modernização de costumes, o consumo, o comércio, os transportes... Constroem ou reconstroem as casas, que, pelo seu porte, pelo gosto arquitectónico, inspirado em modelos estrangeiros se distinguem na paisagem rural ou na malha urbana, dando origem a críticas ambíguas ou díspares, a reacções de admiração, de mimetismo, de emulação, de inveja... Em qualquer caso, com elas conseguem testemunhar a "libertação" da pobreza antiga e escrever na pedra das moradias (no cimento, no azulejo, no ferro...) uma história de sucesso individual, que, em si, é, porventura, a manifestação de presença subjectivamente mais desejada. "Pour ces immigrés de première génération, il importe, surtout de rester portugais en France, mais encore plus de réussir le projet d’émigration qui leur permette de s’affirmer au Portugal comme ayant eu une réussite exemplaire […]". " La réussite du projet n'est envisagée et n'a de sens que si elle est reconnue et donc traduite en réalisation - le plus souvent la construction d’une maison dans la communauté villageoise d'origine. […]" (Cunha, 1988:61).
As migrações podem mudar de rumo, de continente, de estatuto económico, que nem por isso há descontinuidade na predominância deste investimento em casas, quintas, terras que têm valor, quase sempre, sentimental, afectivo, para além do valor de mercado...
Dos palácios, palacetes, casarões de”brasileiros" do século XIX e inícios de novecentos (Rocha Trindade, 2008: 143), passamos às vivendas modernas de "franceses", "venezuelanos" e outros, de diversas proveniências geográficas, que, desde 60 e 70, proliferam em todas as regiões de forte emigração - edificações de raiz ou modificação de fachadas e arranjos estruturais ou de pormenor, com benfeitorias e traços ostensivamente "estrangeirados" . Como que a dizer que a aventura pelo mundo fora valeu a pena. Nada de muito diverso do que ocorre, por exemplo, em Cabo Verde ou na vizinha Galiza (Mora: 2oo8:284).
Outra forma de sublinhar o sucesso da aventura migratória e de o partilhar, quaisquer que sejam as motivações subjacentes - da legítima vontade de afirmação à solidariedade mais desinteressada e genuína - é a construção de obras de beneficência, a contribuição para instituições locais, o impulso dado ao melhoramento das condições de vida nas suas terras. Há uma tradição de generosidade, que teve um ponto alto, com as grandes fortunas do Brasil, e que se continua, à medida das posses de cada um, em cada novo ciclo migratório.
2 – Nas Comunidades do Exterior
Se a presença dos emigrados através do bem-fazer nas terras de origem era bem conhecida dos conterrâneos, já não o era a vivência na sociedade de destino. A sua "descoberta" foi publicitada pelos primeiros estudiosos, que tiveram o privilégio de visitar as instituições fundadas pelos portugueses na “Diáspora”. Afinal, proclamavam eles, os emigrantes levavam consigo Portugal- não o deixavam, simplesmente, para trás...
Mas não foram muitos – e não terão chegado a fazer escola…- os especialistas da emigração que, no princípio do século passado, reconheceram a existência dessa rede de organizações e deram testemunho do seu significado: Afonso Costa, Emygdio Silva são algumas das excepções à regra.
Afonso Costa iescrevia: "... além disso, formaram-se colónias portuguesas em São Francisco, Oackland, em New Bedford e Providence, Boston e Brooklin, tendo com principal fonte da emigração os Açores". E caracterizava a sua agregação nestes termos: "As colónias portuguesas resistem, têm individualidade, mantêm o nome, a língua, os usos portugueses", acrescentando que a formação das "colónias": "[...] torna a emigração útil para a Pátria, perdendo o carácter de abandono da Pátria".
É uma verdade, que intuiu antes de muitos na sua época: o "abandono da terra" cessa pela integração numa a "colónia" ou "comunidade" de vivência portuguesa.
Por seu lado, Emygdio da Silva salientava "o sentimento associativo geral" entre os colonos portugueses do Brasil e chegava a uma conclusão, que pode, certamente, ser subscrita hoje em dia: "[…] a generosidade é a mais alta tradição da colónia portuguesa". (Silva, 1917: 278). Deixou-nos, também, uma relação circunstanciada das associações mais importantes, algumas das quais permanecem com esse estatuto: a Caixa de Socorros Mútuos Dom Pedro V, o Gabinete de Leitura, o Clube Ginástico Português, no Rio de Janeiro, a Sociedade Portuguesa de Beneficência e o Centro Português em Santos, os Gabinetes de Leitura de Salvador e de Recife e outras notáveis instituições de Belém, Belo Horizonte, Manaus, São Luís de Maranhão, Curitiba…
Todavia, não creio que ambos estes grandes conhecedores das comunidades oriundas da emigração, na sua época - e muito menos quaisquer outros... - tenham tido plena consciência de que estavam perante formações capazes de sobrevivência para além do fim dos tempos da emigração (isto é, da primeira geração de emigrantes). E, ainda por cima, alicerçadas na emigração familiar que queriam evitar a todo o custo: a que não tinha regresso, e, por isso, se considerava votada à fatal "desnacionalização".
Estavam, evidentemente, certos quanto ao decréscimo de retornos no quadro da emigração familiar, mas não, como agora sabemos, no que respeita à capacidade de resistência à "dissolução cultural" das comunidades formadas por terceiras e quartas gerações de portugueses, que, por exemplo, na Califórnia - um destino de não regresso, por excelência - continuam a falar a língua e a manter vivos costumes e rituais religiosos trazidos por antepassados. Esta outra insuspeitada forma de presença - a das comunidades organizadas, a que as mulheres e os jovens deram densidade e futuro - só veio a ser plenamente reconhecida e a influenciar as políticas de emigração, nos anos seguintes ao 25 de Abril de 1974. Sobretudo a partir da criação, em 1980, do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), um órgão representativo das organizações dos portugueses do estrangeiro, destinado a ser o interlocutor privilegiado do governo na definição e execução das políticas culturais e sociais, uma "[…] instituição medianeira entre a sociedade civil e o Estado" (Aguiar, 1986:83).
III - POLÍTICAS DE REENCONTRO
«Portugal é mais uma cultura do que uma organização rígida».Francisco Sá Carneiro
1 - A Representação das Comunidades da Diáspora
O reconhecimento da pertença dos emigrantes a uma Nação populacional ou "Nação de Comunidades", é coisa recente. Julgo que poderemos situar o ponto de viragem, nesta visão abrangente de nós mesmos, no I Congresso das Comunidades Portuguesas, realizado pela Sociedade de Geografia, em Setembro de 1964, a que se seguiu, dois anos depois, um segundo Congresso. Em muitas das intervenções aí registadas fica bem patente, o reconhecimento da inclusão dos expatriados no todo nacional. Numa frase lapidar, Gonçalves Cerejeira proclamava essa nova vontade de abrangência: “Onde está um português, aí está Portugal! “. Adriano Moreira, por seu lado, esclarecia que “a emigração não significa, de algum modo, o repúdio da condição originária de português. O portuguesismo é o património comum dos portugueses das sete partidas do mundo” (Moreira, 1981:345).
As comunicações encontram-se publicadas na revista da Academia Internacional da Língua Portuguesa, incluindo aquela em que Adriano Moreira fala de Portugal, "Nação peregrina" (Moreira, 1973: 57). Uma expressão muito glosada e que viria a inspirar novas designações parra a mesma ideia da diáspora portuguesa – tais como o "Portugal maior" de Vitorino Magalhães Godinho ou a "nação de comunidades" de Francisco Sá Carneiro - um novo "olhar", uma nova concepção de nós .
Na audição parlamentar de 2004 sobre a temática da representação dos "ausentes", a que aludimos, Adriano Moreira (o principal impulsionador destes Congressos, na qualidade de presidente da Sociedade de Geografia) foi convidado a traçar o quadro de preparação dessas iniciativas e seus objectivos. Segundo ele: "A ideia traduziu-se numa espécie de sistematização do que era a presença de Portugal no mundo, do ponto de vista das comunidades. Utilizamos uns conceitos operacionais que as arrumavam em três espécies". A primeira era composta pelos emigrantes de 1ª geração, a segunda pelos seus descendentes, que mantinham ligação às raízes, a terceira pelas comunidades filiadas na cultura portuguesa - obra também dos emigrantes, que "[…] aculturavam os povos por onde passavam". (Audição 2004:100).
Pelo empreendimento, inédito em Portugal, pela consciência da existência de um património histórico, que havia que preservar e potenciar, pela estratégia de criação de uma base institucional, para prosseguir esse projecto (com a criação da União das Comunidades - que teve efémera duração - e da Academia Internacional da Cultura Portuguesa), os dois Congressos da Sociedade de Geografia são precursores das políticas ditas "de reencontro", empreendidas a partir do final da década seguinte.
O primeiro "Congresso Mundial das Comunidades Portuguesas", depois de 1974, foi, como historiou o deputado Carlos Luiz, organizado, a partir de 1979, por uma Comissão que integrava elementos do Conselho da Revolução, sob a presidência de Vitor Alves, com o apoio do Presidente Ramalho Eanes (Audição 2004:36), mas viria a ser adiado para Junho de 1981 e levado a cabo por uma segunda comissão organizadora, presidida por Rosado Fernandes, um nome indicado pelo Governo. Se não foi efectivamente pioneiro, foi, de qualquer modo, o primeiro realizado sob a égide do Estado, com a presença de portugueses dos cinco continentes mundo, dirigentes das instituições em que se estrutura o espaço universal da cultura portuguesa, alguns dos quais haviam já respondido à chamada da Sociedade de Geografia, na década de 60 e integravam o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), cuja reunião fundadora se havia realizado dois meses antes, em Abril.
Criado em 1980, como dissemos, este órgão consultivo de representação das comunidades, era eleito no interior do movimento associativo, cuja capacidade de agregação e autenticidade se pretendia potenciar. Na óptica governamental, "[…] para garantia dessa autenticidade se baseou o processo de eleição dos representantes nas associações, que são a estrutura organizacional e os centros de vida das comunidades portuguesas do estrangeiro" (Aguiar, 1986:84). Do preâmbulo da Lei nº 373/80, resulta claramente a intenção de aproveitar a capacidade, o empenho, a autoridade moral de quem tem obra feita, respeitando a independência das instituições perante o Estado e face ao próprio "CCP", enquanto instituição pública: "O Conselho " […] de modo algum pretende substituir-se aos movimentos preexistentes, pois se pressupõe ser condição de êxito deste projecto a vitalidade e capacidade de afirmação das próprias associações."
É na real autonomia da "sociedade civil" face ao Estado, trazendo ao "forum" de debate os seus próprios projectos, assim como no enfoque dado à força organizacional das comunidades, que este Conselho - ao contrário dos que mais tarde o haviam de continuar, em moldes distintos, à margem do centro de gravitação associativa - estava próximo do escopo e das preocupações metodológicas do movimento precursor de sessenta, como se evidencia nas palavras de Adriano Moreira, referindo-se aos congressos que dinamizou: "Qual foi o método que utilizamos? Foi partir em primeiro lugar da capacidade dessas associações e, por isso, o nosso ponto de referência foram as associações, sobretudo do Brasil, que era sempre o maior campo de observação" (Audição: 2004:63).
A "União" projectada na década de 60, poderia, creio, ter dotado o movimento associativo das comunidades do estrangeiro de uma estrutura federativa, semelhante á que, de há muito, existe na maioria dos países europeus de emigração. Mas, como vimos, foi uma experiência logo interrompida. O CCP da década de 80 visava colmatar essa lacuna, e, do mesmo passo, dar início a um novo ciclo nas políticas para as comunidades portuguesas, como ressaltava do discurso oficial (Aguiar, 2009:259). Mas também não atingiria esse objectivo primordial. O órgão consultivo foi perdendo a sua centralidade e capacidade de interlocução, por falta de consulta e audição governamental e acabaria substituído por um novo "Conselho", que integrava um complexo conjunto de colégios eleitorais e que nunca funcionou plenamente.
Em 1996, o CCP foi reactivado, numa terceira configuração, passando a ser eleito por sufrágio directo e universal. O distanciamento do mundo associativo, acrescido da ambiguidade da sua própria natureza dual (órgão representativo, eleito directamente pelos emigrantes, órgão consultivo do governo...) não tem facilitado a interacção com o governo, a administração pública e os media nacionais, que o “Conselho” só conseguiu na sua primeira fase (Aguiar, 2009:260).
É, em qualquer caso, o órgão de manifestação da "presença" dos expatriados, por excelência. Poderá, dar-lhes, a meu ver, com mais meios e mais audição, como reclamam os Conselheiros, a voz e visibilidade que os emigrantes ambicionam ter no país (e não têm tido).
Assim o julgou, também, a Subcomissão das Comunidades Portuguesas, que, por decisão unânime dos seus membros, promoveu duas sucessivas audições para reflexão sobre os modelos que melhor serviriam o futuro da instituição: o primeiro, em 2003, orientado para a procura de inspiração em soluções de direito comparado e na experiência de vida de órgãos semelhantes existentes na Suíça, em França, Itália, Espanha e Grécia; o segundo, a que fizemos várias menções, em 2004, para a avaliar a eventual "constitucionalização" do órgão, conferindo-lhe um carácter quase senatorial.
Constitucionalistas como Barbosa de Melo e Bacelar de Gouveia, assim como Adriano Moreira, intervieram no debate. Para Barbosa de Melo, a consagração da existência e das competências do CCP no texto da Constituição Portuguesa pode ser uma vantagem: Constitucionalizar, sim, “mas constitucionalizar como órgão do Estado português e não como órgão de Governo ou como órgão da Assembleia da República. Do que se trata aqui é de um instrumento para o exercício dos direitos fundamentais e constitucionais dos nossos compatriotas emigrados perante o Estado no seu conjunto". (Audição 2004:33).
Aberto à aceitação de uma emenda constitucional, mas recomendando prudência, Bacelar de Gouveia, acompanha essa posição: "É preciso não nos entusiasmarmos em demasia com a ideia da constitucionalização. Há muitas constitucionalizações e não só uma [...]" (Audição, 2004: 63).
Outro tanto se poderia dizer do CCP, independentemente da sua entrada no "santuário" que a Lei fundamental configuraria, colocando-o fora do alcance do poder discricionário dos governos.
2 - Novos Direitos dos Expatriados
A igualdade de direitos dos expatriados face aos residentes é hoje um reivindicação generalizada, ao menos nos países de "diáspora" - uma reivindicação para a qual o CCP foi, aliás, um instrumento de primeiro plano.
Na sua plenitude, a igualdade está longe de ser alcançada em Portugal. Faz parte do ideário de alguns partidos políticos, mas não, nos mesmos termos, nas de outros. Por isso, desde 1974, se tem caminhado, a par e passo, numa incessante busca de equilíbrios e de consensos, na Constituição e nas leis, para a afirmação gradual, progressiva de um estatuto de novos direitos culturais, sociais e políticos. O "estatuto dos expatriados".
Direitos Culturais
O Estado, assume, no Capítulo III, art.º 74 da Constituição, a incumbência de " assegurar aos filhos dos emigrantes o ensino da língua portuguesa e o acesso à cultura portuguesa", mas incumpre largamente esse dever - e mais em determinados quadrantes geográficos do que noutros... Mais nas comunidades transoceânicas do que na Europa, a levantar a suspeita de que se vem privilegiando a emigração temporária, ou de retorno, como é (ou se pensava que fosse...) a do nosso continente. Por outras palavras: a língua é ensinada, sobretudo, na perspectiva do apoio à reinserção dos jovens de 2ªgeração e negligenciada como instrumento de preservação das comunidades de cultura portuguesa no mundo, nos destinos transoceânicos, da América do Norte à Oceânia, com algumas excepções (como Macau, Maputo e, em certa medida, a República da África do Sul).
Se a nível dos cidadãos não há igualdade de tratamento, nesta área estratégica, o mesmo acontece no plano institucional. O mundo associativo ao qual fizemos referências, tendo embora finalidades semelhantes ao que lhe serve de modelo em Portugal, deve-se inteiramente à iniciativa privada, apesar de prosseguir, em simultâneo, o escopo adicional de alargar o espaço da presença portuguesa, universalmente. Dentro de fronteiras poucas ONG's atingiriam os seus objectivos sem a robusta componente do apoio estatal, a ponto de se falar a seu respeito, frequentemente, de "subsídio -dependência". Fora do País, pelo contrário, a verdade é que nenhum centro social e cultural, grande ou pequeno, nenhum clube ou sociedade beneficente existiriam, se tivessem esperado por verbas do erário público para se constituir... Mesmo quando algum apoio acabaram por receber, no conjunto, ele foi, e é, diminuto.
Direitos sociais
Ao contrário do que acontece no domínio cultural, a Constituição não faz, no capítulo II, dedicado aos "Direitos e Deveres Sociais", qualquer expressa referência aos emigrantes.
É certo que o art.º 63, no seu nº 1º, determina: "Todos têm direito à segurança social", tal como o art.º 74, no seu nº 1º,assegura: "Todos têm direito à educação e cultura". Todavia, neste outro capítulo, "todos" já são apenas todos os que residem no território... Uma das várias contradições flagrantes da nossa Lei Fundamental, no que às consequências da ausência do território respeita.
Tradicionalmente, como é sabido, o Estado quase se limitava a apoiar o repatriamento dos seus nacionais, em situações de extrema miséria. Um gesto de solidariedade que não configurava um direito, e ainda hoje se não encontra regulamentado como tal, apesar de ter sido, aprovado, na generalidade, um diploma que não chegou a ser apreciado na especialidade, nem objecto de votação final global. (Aguiar, 2006:68).
Em anos recentes, pelo menos desde a década de 80, a Secretaria de Estado da Emigração concedia apoios pontuais em outras situações de necessidade, através dos seus serviços no estrangeiro, mas só em 1999 o Governo instituiu o Apoio Social a Idosos Carenciados (ASIC). Uma prestação de montante variável, de país para país, atribuída, com restrições, e longe de ser o equivalente de pensões não contributivas ou de mínimos de rendimento, tal como são garantidos dentro de fronteiras...
Em Direito comparado, há, actualmente, exemplos de sistemas de assistência na doença e na velhice, nomeadamente em países de emigração semelhante à nossa, como a Espanha ou a Itália - o que aumenta o sentimento de abandono de que os portugueses mais pobres se queixam, sobretudo em sociedades onde coexistem com emigrantes europeus melhor protegidos pelos Estados nacionais (caso do Brasil e da América de língua espanhola).
Direitos Políticos
O restabelecimento da democracia em 1974, veio dar aos emigrantes, pela primeira vez, direitos de participação na vida pública: inicialmente, apenas o de elegerem quatro deputados, em dois círculos eleitorais próprios - uma excepção ao princípio constitucional da proporcionalidade, pelo método de Hondt .
Com a adesão à CEE, na qualidade de cidadãos europeus, ganharam o direito de voto nas eleições para o Parlamento Europeu, embora só desde 2004 esse direito tenha sido alargado aos que vivem fora do espaço da União Europeia (Aguiar, 2006:85).
Foi preciso esperar pela revisão constitucional de 1997 para conseguirem o direito de voto na eleição do Presidente da República, após décadas de luta, que o CCP encabeçou. O sufrágio foi-lhes, porém, concedido com restrições. Têm capacidade eleitoral passiva apenas aqueles que comprovem, nos termos do nº 2º do art.º 121, "laços de ligação efectiva à comunidade nacional".
Limitações cerceiam, igualmente, a participação dos emigrantes em "referenda" nacionais, admitida apenas quando "recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito". O entendimento sobre a qualificação da matéria que especificamente "também" lhes respeita nunca foi pacífica – mostra a lição da experiência ser questão em que os partidos, a começar pelos dois maiores, costumam divergir, obstaculizando a participação.
Para além da diversidade de universos eleitorais - para legislativas, para os "referenda" e para as presidenciais - há ainda a dualidade de modos de votação, visto que nas legislativas os emigrantes votam por correspondência, nas presidenciais e europeias, por sufrágio presencial. (Machado, 2009:41). Da participação nas eleições locais e autonómicas - que é facultada nos países europeus, dos quais nos sentimos próximos pela geografia e pela história das migrações – estão ainda excluídos, por força do texto constitucional.
Ao contrário do que acontece com as prestações sociais e com a extensão da rede de ensino, que acarretam custos substanciais, a concessão do voto não, pelo que as restrições estabelecidas resultam, obviamente, de falta de vontade ou consenso política, consequência de uma visão estreita da "comunidade política nacional" . Tem sido quase sempre difícil o consenso nesta matéria entre os dois partidos do "chamado "bloco central", PS e PSD, que, por si só, perfazem a maioria qualificada de dois terços, exigida para qualquer alteração constitucional ou para a aprovação de leis orgânicas, como são as eleitorais.
A divisão e o dissenso estendem-se, aliás, ao interior dos partidos. No que respeita ao alargamento do sufrágio, é o caso do PS. No PSD, aparentemente mais unido na reivindicação de igualdade de direitos políticos para todos os portugueses, podem apontar-se, por exemplo, mudanças radicais na forma de conceber a representação dos emigrantes no Conselho das Comunidades.
Os expatriados têm fundadas razões de queixa de um sistema que prima pela falta de unidade e coerência e não lhes assegura o pleno exercício dos direitos de cidadania.
CONCLUSÃO
"Le Portugal est maintenant un petit pays de 90.000 kilométres carré, plus les iles atlantiques. Cependent, il est beaucoup plus que cela et il essaye de s’organiser comme nation en un petit territoire mais avec un peuple immense, dispersé sur tous les continents [...]"
Francisco de Sá Carneiro, Primeiro- Ministro, discursando perante a APCE em 21 de Abril de 1980
A emigração portuguesa mudou desde os seus primórdios, mudou, mesmo que consideremos, apenas, a que aconteceu, em vários ciclos, no século passado, mas mudou certamente menos do que as leis, o discurso político ou a opinião pública sobre a sua natureza e sobre os efeitos jurídicos que esta deve determinar.
Olhares, discursos (no plural...) distintos sobre uma realidade migratória, que mantém muitos traços comuns: a realidade da saída de homens e mulheres - estas hoje, cada vez mais, em pé de igualdade - que abandonam o território por razões económicas e em massa (contra todas as expectativas geradas no período que se seguiu ao ingresso de Portugal na CEE); a existência de uma vasta rede de organizações de solidariedade e de fins culturais que decorrem da vivência colectiva no estrangeiro, em "comunidades"; a manutenção de relações de toda a ordem como país de origem, incluindo o envio de poupanças ainda vultosas.
No entanto, essas remessas, completamente ofuscadas pelos "fundos comunitários" deixaram de estar no centro das atenções, de ter o mesmo peso sociológico. Outros aspectos da emigração passaram, e não só por isso, a ser mais valorizados - caso da dimensão humana da"diáspora" e do reconhecimento património cultural, construído e preservado em muitos países do mundo, nas comunidades oriundas da emigração.
Em termos de estatuto jurídico, os emigrantes viram, desde 1974, respeitado e, desde 1976, consagrado constitucionalmente, o direito de livre circulação, e passaram a beneficiar de políticas de protecção extensivas a todo o ciclo migratório, da partida à estada no estrangeiro e ao regresso (ainda que não necessariamente executadas em termos ideais, e com os meios suficientes…). O princípio da igualdade entre todos os cidadãos, independentemente da residência é hoje aceite, embora dele se não tirem todas as possíveis consequências.
Está, assim, consumada a adesão ao "paradigma personalista" - na tipologia de Bacelar de Gouveia . Nele cabem tanto políticas mais orientadas para a visão atomística do cidadão, com o seu estatuto de direitos face ao Estado, como as que privilegiam, também, a cooperação e a parceria institucional com as comunidades organizadas, dotadas de identidade e de coesão, criadoras de património cultural e formadas por um movimento associativo, capaz de reivindicação e de afirmação de formas próprias de presença portuguesa no mundo.
Fevereiro, 2010
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LEMBRANDO O DOUTOR SARDOEIRA PINTO


PREFÁCIO

O Dr. Fernando Sardoeira Pinto pertence a uma estirpe rara de homens do desporto que são também, homens de cultura e homens de carácter. E é, para além disso, um nortenho e portuense, dos que citam Sofia de Mello Breyner para evocar a "pátria dentro da pátria", um "dragão de causas", símbolo do espírito inquebrantável do FC Porto, voz dos seus adeptos, que se sentem, como me sinto, esplendidamente representados por ele.

Presidente da Assembleia Geral do FC do Porto a partir de 1982, desde o primeiro mandato de Jorge Nuno Pinto da Costa, é, com o amigo e aliado de sempre, artífice da aventura que levou à transformação de um clube regional, ou de " província", como era depreciativamente chamado, para o clube de renome universal, que deu ao País títulos europeus e mundiais de futebol, jamais alcançados pela própria selecção nacional.

Aventura colectiva que começou por aproveitar os ventos de mudança do Portugal democrático para repor a verdade das capacidades e dos talentos de quem era secundarizado pela força de um centralismo implacável, imposto pelo regime, que da política extravasava para todos os domínios, como era o caso particular do futebol.

A ascensão do FC Porto deve-se, antes de mais, a estes dirigentes que trouxeram a democracia e a igualdade de oportunidades para o terreno de jogo, permitindo, num segundo momento, aos próprios atletas e às equipas técnicas colherem a glória e os louros da uma superioridade real.

Os “senhores” do velho sistema renderam-se a um fenómeno, que julgavam transitório, vendo azuis e brancos somarem, ano após ano, troféus a nível nacional e internacional. Todavia, quando a excelência portista principiou a dar mostras de se ter convertido em organização sólida e realidade perene, perdida a esperança de vencer, em campo, com armas iguais, eis que começam a desenhar estratégias que passam por outros campos e outras armas!

Este livro faz, em português de mestre, em palavras que fluem com a simplicidade, a precisão, a vivacidade, características de grandes jornalistas, a crónica de um tempo do futebol profissional português, o início do século XXI, marcado e manchado pelas tentativas de abater o gigante em que convertera, fulgurantemente, o FCPorto, decapitando-o da liderança do Presidente Pinto da Costa - à falta de meios legítimos para atingir o mesmo escopo...

A relação minuciosa dos factos e a clara explanação das razões subjacentes, constituem, assim, um contributo mais do Dr. Sardoeira Pinto para a causa da justiça, e um subsídio precioso para a reconstituição de um período deplorável da justiça - ou injustiça - portuguesa, dos processos que dão título à publicação.

 Acções e recursos que se arrastaram pelos tribunais de várias instâncias, incluindo as desportivas, no país e na Europa, e cujo eco ultrapassou fronteiras, com foros de escândalo, deliberadamente provocado ou instigado para a pura e simples destruição desportiva e moral de um competidor, de outra forma invencível.

Os processos dos "apitos", e, bem assim, outros episódios e casos de época, que ajudam à sua descodificação e plena compreensão, são aqui escalpelizados e sistematizados, com nomes, datas e lugares, tomadas de posição e decisões, actos, omissões, contradições, intrigas, mentiras – tudo descrito ao pormenor, num precioso e abrangente registo, que faltava, para memória futura.

Mas, para além da cronologia dos factos, da elucidação dos argumentos, de natureza eminentemente jurídica, do manancial de informação de toda a ordem, de sapientes comentários e reflexões, a narração ganha densidade humana e societal ao retratar, num impressionante fresco, figuras e figurantes, com as suas interacções e comportamentos insólitos, geradores de um clima de irresponsabilidade e insânia, em que vimos decair instituições do mundo do desporto e do próprio “Estado de Direito”. Na expressão do Autor, foi a “caixa de Pandora” que se abriu… Consequência dessa ânsia incontida de retornar ao passado, de interferir, deslocando o centro de excelência do futebol português do seu ponto norte para a antiga “sede geográfica do poder”, artificialmente criada ou, mais exactamente, recriada.

Temos vindo a considerar as questões de fundo, que, assim ordenadas e explanadas, são uma mais-valia extraordinária, para que os vindouros não esqueçam nem tolerem a recorrência da viciação do “fair-play”. Mas não podemos deixar sem uma referência a originalidade da forma e da metodologia, que igualmente recomendam a leitura desta obra.

A singularidade do fio condutor da narrativa é a procura de resposta à indagação de um jornalista sobre qual fora o melhor momento da vida do Autor. Fiel a si próprio, quer dar uma resposta verdadeira, pensada, definitiva. E, logo nas primeiras páginas, parte em demanda da memória de acontecimentos felizes, numa fascinante "viagem interior", conduzida pelo olhar sobre um mundo de emoções e de vivências, que quer partilhar connosco, e em que revela muito de si, dos seus valores éticos, dos seus afectos e paixões, entre elas, a "pátria dentro da pátria" e o clube do coração.

Será que vai surpreender os leitores ao incluir no número extremamente selectivo dos melhores momentos da sua vida o epílogo dos processos dos "apitos finais, dourados... e outros mais"?

Sem antecipar o desfecho final, direi que acompanho, com imensa alegria, o Dr. Sardoeira Pinto, na rememoração dos momentos em que se fez justiça a um grande clube e a um grande homem, garantindo o lugar do campeão nacional na “Champions League” e recolocando o Presidente Pinto da Costa na rota do futuro do FC Porto.

Este é, tenho a certeza, o livro que todos os adeptos portistas queriam ver escrito e que todos os autênticos desportistas vão gostar de ler.

 
Maria Manuela Aguiar

31.03-2010

Sobre o CCP - um texto de 2009...


1 - O CCP é um órgão consultivo do Governo, em matéria de emigração - e, mais do que isso, é também um órgão representativo dos portugueses do estrangeiro. Este carácter de representação - que , numa fase inicial, se centrava no movimento associativo e agora tem cariz mais amplo, embora porventura mais difuso... - valoriza substancialmente o significado da própria audição. Instituído pelo Decreto-lei nº 373/80 de 12 de Setembro em 1980, com início de actividade efectiva em Abril de 1981, é o segundo mais antigo da Europa, depois do francês, o "Conséil Supérieur des Français de l' Étranger", que surgiu após a segunda Grande Guerra, e tinha a particularidade de escolher os representantes da emigração ao Senado , ou seja, os "Senadores da Diáspora.".
Embora não vá tão longe nenhum dos organismos que, a partir da década de 80, em vários países da Europa, nele encontraram uma fonte de inspiração, a todos me parece que subjaz o a finalidade de os transformar em sucedâneos de Câmaras ou Assembleias de Emigrantes. Em França, uma o antigo "Conséil" é agora designado "Assemblée".
Em Portugal, a ideia de integrar o CCP numa segunda Câmara, se ela vier a existir, ou, pelo menos, de o "constitucionalizar", isto é, de lhe dar expressa consagração no texto da Constituição (colocando a sua existência acima do livre arbítrio ou da boa vontade de Governos e de governantes...), é defendida por muitos Conselheiros, e chegou a ser objecto de dois colóquios parlamentares, promovidos pela Subcomissão das Comunidades Portuguesas, à qual presidi, nos anos 2003 e 2004, (o último dos quais com a participação dos eminentes juristas e constitucionalistas Barbosa de Melo, Adriano Moreira e Bacelar de Gouveia).
O CCP tem um historial interessante, sobretudo no período em que vamos considerá-lo: o momento do seu nascimento, visto não como o mera expressão de um legislador omnipotente, mas como acto de criação colectiva de uma instituição nova e original, num diálogo entre parceiros, o Governo e os porta-vozes do movimento associativo.
Não quer isto dizer que tenha tido vida fácil e um percurso sempre ascensional, porque não teve - bem pelo contrário. Resistiu a inúmeros bloqueios e longos hiatos de funcionamento efectivo, afrontamentos com o Governo , ou entre os seus próprios membros, processos e recursos judiciais, anulação de actos eleitorais para os órgãos de cúpula... Em boa verdade, talvez não devamos, sequer, falar de um único "Conselho", mas de vários, ou , melhor, de várias "vidas" de uma mesma instituição. Ao longo de quase três décadas, só o nome não sofreu alteração…
Entre 1981 e 1987, inclusive, o 1º CCP "fez-se, "e fez-se com as pessoas, ganhou, com elas, um lugar central no debate das políticas para as migrações, manteve um funcionamento activo e regular, salvo a não convocatória da sua reunião ordinária (mundial), em 1982, por um novo Secretário de Estado, que deixou o cargo pouco depois.
Todavia, a partir de 1988 e até 1995, durante dois governos maioritários, o CCP entra no seu mais prolongado "eclipse" - uma "não existência". Desactivado, de facto, desde 88, é descaracterizado,"de jure", no início da década de 90, por uma lei aprovada na Assembleia da República, cuja complexidade e dificuldade de implementação - intencional ou não... - o deixa completamente paralisado.
O CCP ressurgiu, na sua terceira vida em 1996, através de uma proposta de lei do Governo, que a Assembleia da República – coisa rara… - recebeu e tratou, de forma exemplarmente expedita. Primeiro, em três ou quatro dias de intenso labor, num pequeno "grupo de trabalho", formado pelos deputados da emigração e outros deputados da Comissão de Negócios Estrangeiros, conhecedores da realidade das migrações portuguesas, e da importância de renascimento do conselho, prioridade à qual alguns sacrificaram discordâncias de monta sobre o normativo. Seguiu-se um imediato agendamento do debate e votação em plenário, e , em 1997, as eleições e a reunião mundial - 10 anos depois da que encerrou a primeira fase deste mecanismo de representação específica de emigrantes...
Uma das mutações qualitativas do novo sistema é a eleição dos conselheiros por sufrágio directo e universal de todos os cidadãos inscritos nos consulados. O Conselho emerge de uma nova fonte de legitimidade, aparentemente mais “democrática”, mas rompe com a sua matriz associativa, a força e autonomia que daí lhe advinha e passa a excluir os líderes associativo que já não tenham nacionalidade portuguesa, os "luso-descendentes". A tal óbice souberam responder os italianos com um sistema misto, como eu própria, ao tempo, propus - numa fórmula diversa, prevendo dois colégios eleitorais, o de sufrágio universal, a par de outro, de cariz interassociativo .

·2 -Após traçar, desta forma abreviadíssima, a linha de evolução do Conselho até à actualidade, retorno à sua génese, à fase primordial - a mais esquecida, mas, sem dúvida, a mais exuberantemente criativa.
O “Conselho” começou por ser uma promessa eleitoral, um parágrafo inscrito no programa da AD (Aliança Democrática), coligação, que se apresentou a sufrágio em 1979, venceu e formou governo. Havia que dar cumprimento à promessa. Secretária de Estado do pelouro, coube-me a tarefa de promover a sua execução. Nunca soube quem a tinha formulado, e ainda hoje nem sequer sei a qual dos partidos se deve... . Sendo de autor desconhecido, não estávamos limitados pelo seu subjectivo propósito, nem por quaisquer directrizes. Não havia sequer figurino estrangeiro à nossa medida - apenas o francês, que correspondia a um contexto migratório e a uma inserção no sistema político-constitucional muito diversa. Era, numa democracia ainda tão recente, mas já rica de experiências de intervenção política e social, a primeira tentativa de avançar para formas de participação democrática extensivas à emigração portuguesa: um "forum" de audição, uma instância de co-participação dos Portugueses do estrangeiro nas políticas que lhes eram dirigidas. Com a liberdade de procurar e experimentar o” modus faciendi” de um projecto nacional de reencontro das comunidades entre si e com o país.
O CCP foi, desde o seu início, visto como um verdadeiro "laboratório", onde, em conjunto, se procuravam as melhores fórmulas para enquadrar situações ou atingir metas, e, em simultâneo, para dar corpo e alma, a um molde organizacional de suporte. Não havia ideias feitas, mas a fazer, não havia uma tradição a seguir, mas a criar, não havia uma lei acabada, mas um texto provisório, a repensar...
Falo do decreto-lei aprovado, a 1 de Abril de 1980, em Conselho de Ministros. Fora preterida a via parlamentar, por ser, previsivelmente, muito mais morosa. Erro de cálculo - o Presidente da República reteve o diploma durante cerca de 5 longos meses, com um dos chamados "vetos de bolso" .
De qualquer modo, mais do que discutir um perfil de “Conselho” com os representantes da “Nação” - quase sempre tão alheados das questões da emigração nacional – o que se pretendia era mesmo “consultar” os próprios emigrantes. .
Assim, de entre as secções organizadas para a condução dos trabalhos na primeira reunião mundial, uma destina-se, expressamente, à revisão do referido decreto-lei, e não por sugestão dos conselheiros, mas por iniciativa do Governo.
Secção para os assuntos jurídicos, que perdurou como a favorita dos conselheiros mais intervenientes, sendo, naturalmente , como era de esperar no Portugal de então (com as ideologias e as divergências partidárias muito “à flor da pele”), a mais polémica. Mas, apesar disso, chegou, muitas vezes a convergências substanciais , por exemplo, sobre:
a sua orgânica - com a proposta de uma comissão permanente, prontamente implementada, como instância de coordenação e gestão;
- a implementação das recomendações dirigidas aos vários departamentos da administração pública, pela via de uma “comissão interministerial”. A "Comissão" veio a ser constituída em 1987, e tinha, como "recomendado", entre outros deveres e competências, o encargo de preparar as respostas ao CCP, sector por sector, reunindo, obrigatoriamente, para esse fim, antes da reunião mundial deste Órgão.
-a reformulação pontual da lei do CCP para permitir, com base legal, a sua “regionalização” com a convocatória periódica de reuniões restritas dos representantes de cada uma das grandes regiões do mundo - Europa, África e Oceânia, América do Norte, América do Sul. Era o patamar que entendiam faltar, entre o conselho mundial e os "conselhos de país” - cuja composição, repartição geográfica, regulamento e planos de acção e actividades as estruturas locais decidiam com perfeita autonomia.
-a elaboração de um ambicioso anteprojecto de reformulação global do CCP, que o Governo, adoptou, como seu, apresentando-o, como Proposta de Lei, à Assembleia da República, em 1986.
Aí se previa já a eleição por sufrágio universal, a par da eleição por um colégio interassociativo semelhante ao existente, que não foi posto em causa.

E porquê este ênfase no associativismo?
A meu ver, porque se reconhecia, o seu papel absolutamente fundamental na organização e desenvolvimento das comunidades, na sua capacidade de preservar a língua, a cultura, os modos de estar e tradições nacionais, aliás, sem prejuízo de promover, como na nossa emigração é bem claro, a integração dos seus membros na sociedade de acolhimento.
E, no caso português, organizações que, efectivamente, ao longo de séculos, se substituíram ao papel e aos deveres de Governos sem políticas culturais ou sociais de apoio aos cidadãos e às suas comunidades. Organizações que hoje se mostram aliados capazes de potenciar e completar a acção de qualquer governo, nestes domínios - coisa ainda rigorosamente imprescindível...
A propensão associativa dos portugueses no estrangeiro é enorme e a dimensão da sua obra extraordinária. Tudo erguido e preservado sem contributo do Estado. As comunidades, neste sentido orgânico, sociológico, em que falamos, são 100% sociedade civil - razão de sobra para que o Governo, numa relação de parceria, se guarde de qualquer tentação de interferência, respeitando, sempre, os projectos próprios dessas entidades, e das comunidades como um todo.
Foi esta a filosofia que presidiu ao diálogo e cooperação, "entre iguais", encetados no CCP.

O associativismo português no mundo, quando comparado com o de outros povos migrantes da Europa - italianos, polacos, franceses, alemães, suíços, belgas... - só fica a perder num aspecto: a capacidade de se unificar em federações internacionais. É esplêndido, mas não ultrapassa as fronteiras de cada país. Fenómeno para o qual não encontro explicação.
Historicamente, a única tentativa de agregar numa "União" representantes da Diáspora de todos os continentes aconteceu nos anos 60 e foi uma iniciativa inteligente e brilhantemente desenvolvida a partir de Lisboa, pela Sociedade de Geografia, presidida pelo Prof. Adriano Moreira.
O legislador do CCP deixava claro, logo no preâmbulo do Decreto-Lei nº 373/80, que não pretendendo impor orientações ao movimento associativo, lhe oferecia este organismo como "plataforma de encontro" de conhecimento mútuo, de trabalho - aos seus líderes, a nível mundial. Objectivo conseguido, em dúvida, enquanto o Conselho teve natureza associativa.
O mesmo se não pode dizer de outra das tónicas do legislação de 1980, que visava acentuar a vertente cultural, a preservação dos laços com comunidades antigas . A dinâmica do CCP foi no outro sentido, inclinando-o sempre mais para a problemática da emigração recente. E foi feita a sua vontade…
Aceites foram, também, muitas das recomendações substantivas deste órgão consultivo (e amplamente consultado…), nomeadamente em matéria de ensino, medidas de protecção social, reestruturação de serviço no estrangeiro, apoio ao regresso e reinserção ou intercâmbio de jovens, como mostra uma publicação dos serviços da emigração sobre o estado das recomendações do CCP entre 1981 e 1985.
Os primeiros Encontros Mundiais de Jornalistas (1981) e de "Mulheres Migrantes no Associativismo e no Jornalismo" ficam a dever-se, inteiramente, a recomendações do CCP.
Outra prática precursora, então encetada: a apresentação, para conhecimento e debate, do orçamento da Secretaria de Estado destinada a acções junto das comunidades, e as modalidades de colaboração oferecidas no "Programa Cultural", que era decalcado nas recorrentes solicitações do mundo associativo.
Não vou comparar, aqui e agora, os dois Conselhos, o de novecentos e o do século XXI, mas esse é um exercício que vivamente recomendo.
Do primeiro direi, a finalizar, que foi, simplesmente o que quis ser, a aventura de "inventar" e sedimentar uma instituição bem portuguesa e original, na qual os membros eleitos imprimiram as marcas do seu pensamento e das suas próprias aspirações.
RESUMO
O Conselho das Comunidades Portuguesas de 1980 foi, historicamente, a primeira experiência de audição e diálogo institucional, entre o governo português, a sua emigração e a sua diáspora.
Era um órgão consultivo do governo, constituído por representantes eleitos no mundo associativo, apelando à força e ao papel central que as associações têm na construção e preservação das comunidades de emigrantes.
Sendo uma experiência inteiramente nova, teve de fazer o seu próprio caminho, conhecendo rupturas, hiatos de funcionamento e mudanças radicais de feição e natureza, nas décadas seguintes.

Maria Manuela Aguiar

Jurista

Ex-Secretária de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas 

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Caras Amigas

É com muito entusiasmo que aqui, em Portugal, acompanhamos os
trabalhos de preparação do próximo Congresso da Mulher Migrante na
Venezuela e que tomamos conhecimento do merecido  apoio que recebem
dos nossos Diplomatas, das Autoridades portuguesas na Venezuela
Digo "entusiasmo" e poderei acrescentar "admiração e orgulho" pelo
percurso até agora realizado e que o III Congresso projectará para o
futuro. É uma prova do que as Mulheres, quando se lançam numa grande
aventura de solidariedade e progresso são capazes de fazer pelas suas
comunidades.
 Numa fase em que as dificuldades são maiores, maior é a importância
do associativismo e do voluntariado feminino, pelo que contribui para
a expansão do mundo da lusofonia, e  para encontrar resposta a tantos
problemas concretos. As Portuguesas da Venezuela tornaram-se, no
século XXI, um paradigma de intervenção cívica, que as coloca na
vanguarda do vasto espaço da nossa Diáspora.
Cheia de natural expectativa e esperança, envio  votos de uma profícua
reunião no Consulado de Portugal em Caracas.
Para todas, o meu abraço

Maria Manuela Aguiar
1 -ACONTECEU NA PRAÇA DE LONDRES
A Praça de Londres é a minha Lisboa favorita desde que, em janeiro de 1967 tive de deixar o Porto e de ir trabalhar para a capital (que era, ainda a capital do império, embora de um império a caminho do fim).
Não posso dizer que a Praça mudou a minha vida, mas sim que a minha vida mudou nessa Praça - e por mais de uma vez. Foi o cenário, onde me aconteceram coisas surpreendentes e determinantes de um futuro não planeado, antes aceite, pela incapacidade de dizer não ou pela curiosidade de dizer sim ao que se me ia oferecendo em cada novo dia. Mudança, movimento...
A Praça foi, o cenário do meu primeiro emprego num Centro de Estudos (do Ministério das Corporações e Previdência Social, designado por Centro de Estudos Sociais e Corporativos), e, uma década depois, de uma acidental entrada num governo da República. Governo atípico, de independentes, de iniciativa do Presidente Ramalho Eanes (o IV Governo Constitucional). Ou seja, do meu tirocínio na política, como Secretária de Estado do Trabalho do Executivo de Mota Pinto - que era a última coisa que podia antever. Mas o Prof Mota Pinto era alguém com quem valia a pena trabalhar.Homem inteligentíssimo, um professor de Coimbra, que todos os alunos admiravam como jurista e como pessoa. Mais inteligente, mais sério e mais generoso, não é possível ser. E quem assim pensa de um Primeiro Ministro, num tempo tão conturbado como aquele, sendo chamada, por mais estranhável que seja a chamada, não vai recusar.
Gostei de ambas as experiências - da profissional, que durou 7 anos felizes (muito corporativos, no sentido de uma grande paz e cooperação entre diretor e dirigidos, não tanto no sentido político, pos se havia ali "corporativistas", para além do Diretor, eram uma silenciosa minoria..), e da política, nos seus efémeros e intensos 9 meses!.
Gostava do início do dia, antegozando as conversas om os colegas, porque os pareceres, esses trabalhava-os sempre em casa, com a concentração devida) e gostava do fim da jornada, de sair para a Praça, atravessar a Avenida de Roma e ir tomar um café ao Londres, ou, mais adiante, à Mexicana (tudo nomes cosmopolitas...). Como era simpático o pequeno parque, a vista das largas vidraças dos meus gabinetes (o de assistente do Centro no 1º andar, o de governante no 16º) e a assimetria das ruas, que aí acabam ou começam - nenhuma delas particularmente fadada pela originalidade ou monumentalidade arquitetónica, mas tranquilas e discretas, como a média burguesia que as habitava. Tinham sido as "avenidas novas", nma época, politicamente infausta, bem mas mais convivial nas relações de vizinhança. De espectacular, nessa Praça, apenas o prédio sede das minhas funções, o "arranha - céus" do Ministério das Corporações (no ancien régime) ou Ministério do Trabalho (em democracia).. Obra do Arquiteto Sérgio Botelho Andrade Gomes, que vim a conhecer muitos anos depois. Um artista e um encanto, como pessoa! O edifício, sóbrio e elegante, por algum tempo o mais alto de Lisboa, concebido de raíz para hotel de luxo, e reconvertido para serviço da República, Funcionários e não turistas estavam destinados a usufruir. dos seus grandes e luminosos espaços. Era ladeado, por cafés, lojas, que subiam de nível e de preço na Avenida Guerra Junqueiro e, da outra banda do parque,à distância, pela igreja branca. Havia, também cinemas na proximidade, o tradicional Roma, e outros que foram surgindo e prosperando, com audiências fieis, que eu sempre contribui para aumentar, nas sessões das 18.00.
Ali, naquele "arranha.céus" recordo uma infinidadde de dias e acontecimentos agradáveis dos meus anos de assistente, mas, não sei porquê, do dia inicial recordo apenas a simpatia do Diretor do Centro de Estudos, o Dr Cortez Pinto, o seu gabinete enorme e uma visita guiada á Biblioteca, pela responsável máxima, muito bem vestida de roxo (que, como pude constatar usava todos os dias da sua vida, embora. às vezes, em imaginativas combinações com outras cores fortes e contrastantes). Deve ter corrido tudo, como dizem os brasileiros "bem demais", com os gestos e palavras certos e, por isso, sem história...O contrário posso dizer do me primeiro dia de governo... Fui para a Praça de londres, logo depois da tomada de posse, de boleia no carro dos meus amigos do SPJ, onde era, então, assessora do Provedor...O que me ficou gravado, indelevelmente, na memória não foi todavia a primeira reunião de trabalho, foi a saída, não da reunião, mas da porta de entrada do edifício. Ali mesmo, à vista do café Londres, me esperava o carro, o inevitável carro oficial. Confesso que também não faço ideia da marca do carro, nem do modelo, nem da cor...Só me lembro mesmo do motorista, pequeno de estatura, cara redonda e muito corada, o mais cerimonioso que imaginar se possa. Mantinha aberta a porta traseira e mal entrei, sentou-se ao volante e preguntou-me"Como é que Vossa Excelência deseja ser chamada: Senhor Secretário de Estado ou Senhora Doutora?.
Abismada, respondi, sem hesitação: "Senhora Doutora, se faz favor!"
A nossa memória é assim, seletiva, com critérios que não são os nossos... o imprevisto de uma pergunta deixou marca mais funda do que todas as questões tão relevantes que preencheram a tarde

2- OS PORQUÊS DE UM CONVITE PARA O GOVERNO
De uns, sei. De outros não, avento suposições, ou nem isso...
Quando me perguntam porque me envolvi na política - uma daquelas perguntas tão previsíveis e sem graça, que continuam a fazer-me, intermitentemente - tenho dado a mesma resposta, ao longo de algumas décadas. Não resisto a repetir-me. Cito-me textualmente: "Pela razão errada, porque não tinha filiação partidária, não queria fazer política e apenas aceitava participar num governo de independentes do qual, a curto prazo, esperava voltar para a minha vida profissional".
Não tinha vocação, não tinha jeito, não sentia atração. Não queria comandar hostes, nunca tinha chefiados nada nem ninguém, ao menos desde os tempos de criança ou de estudante do liceu, em que me fartei de mandar em gente da mesma idade e nem sempre do mesmo sexo - em atividades lúdicas, quase sempre à volta de uma bola de futebol. Todavia, gostava de discutir política - vinha de uma família onde isso fazia parte do convívio e onde as fações eram várias, embora mais para a direita do que para a esquerda ( o que na relatividade destas coisas, me fazia esquerdista, ou (essa maravilhosamesmo muito esquerdista). Era feminista, regionalista, portista... democrata, europeista, social democrata à sueca... Tinha opiniões, quadrante partidário, paixões políticas (quase comparáveis às paixões desportivas, a primeira das quais foi por Yustrich, Monteiro da Costa, Jaburú e outros seus contemporaneos ). Também tinha - factor decisivo - amigos na política do pós 25 de abril, de ideologias várias, incluindo a minha.
Por coincidência, precisamente quando velho regime caia, acabava eu de tomar posse como assistente da Faculdade de Economia de Coimbra (por precisamente quero dizer umas horas antes), Enquanto Salgueiro Maia preparava a saída de Santarém para Lisboa, voltava eu a Coimbra, depois de quase uma década de ausência, e assinava o auto de posse... (Lá fiquei por poucos meses depois, transferia-me para a minha Faculdade de Direito). Os convites para uma e outra Faculdade foram verdadeiros paradigmas do imprevisto nos desvios da minha tarjetória de vida. O primeiro resultoou de uma conferência sobre questões de emprego e foi-me dirigido pelo meu antigo professoe e insígne criminalisra Doutor Eduardo Correia. A sua presença despertou a minha curiosidade. O que estaria a fazer ali um catedrático de Direito Crimunal? Não ousei indagar, mas logo fiquei a saber no diálogo que se seguiu a efusivos cumprimentos.
- A Manuela quer vir dar aulas para a Faculdade de Economia de Coimbra?
(uma oferta de emprego! Mas porque estaria o Doutor Eduardo a recrutar assistentes?) Comeci por manifestar genuína surpresa:
- Já Há uma Faculdade de Economia em Coimbra?
Resposta:
- Há! Eu sou o Director.
Que gaffe, eu não saber... Procurei atenuar com uma pronta aceitação:
- Claro que sim, Senhor Doutor! Com todo o entusiasmo!
Logo no dia seguinte, começámos a tratar de uma complexa burocracia, porque em Lisboa eu não era funcionária pública (era uma contratada "a recibos verdes", die-se-ia agora, embora na altura os recibos fossem brancos). O meu Dirteor de então em Lisboa
Coimbra foi, pois, o ponto de reencontro com antigos, professores, antigos amigos, que estavam convertidos em novos e influentes protagonistas no processo de democratização "em curso".
Em 1978 já eu estava de volta a Lisboa, a tempo inteiro, mas mantinha os contactos com eles. Ora, nesse ano, um governo de independentes, precisava obviamente de independentes,- mas não de quaisquer uns - de preferência individualidades unidas por sintonia ideológica com o chefe do governo. Foi isso que Mota Pinto conseguiu - tornando mais coesa e dinâmica a sua equipa do que o que se vira antes. Quase todos eram de uma área social democrata, com um ou outro mais à direita ou mais à esquerda, sem destoar demais. Muitos vinham de meios académicos. Houve até um jornalista, já não me lembro qual, que achava que o Governo Mota Pinto mais parecia um Senado universitário. Um bocadinho exagerado, mas il y avait du vrai... (a mim, por exceção, calhou-me em sorte um ministro que vinha direto do Conselho da Administração das cervejas).
Suponho que o Professor se lembrou do meu nome para aquele pelouro, porque era oriunda do ministério, trabalhava há anos naquelas matérias, não tinha filiação partidária, mas tinha posicionamento político e reclamava, ferverosamente, mais participação de mulheres na res publica. Fui, pois, sem dúvida, vítima dessa reivindicação, geral e abstrata, na qual eu pessoalmente não entrava, como voluntária.
Vi-me confrontada concretamente com a necessidade de preencher a vaga que reclamava para o
género feminino, E dei o passo em frente.

3 AS SENHORAS MINISTROS.
Questão de género e questão da gramática.

Foi no gabinete do Dr Cortez Pinto que muito ativamente me envolvi numa primeira polémica sobre os nomes de cargos desde sempre masculinos, quando finalmente se quebrava o monopólio desse sexo no seu exercício.
Teresa Lobo acabava de tomar posse de uma Subseretaria de Estado, precisamente naquele Ministério. Mais um símbolo da primavera marcelista.
Só a vi de longe, em raras ocasiões, atravessando o átrio do Ministério, passo rápido, elegante, fato de bom corte, impecável penteado alto e arredondado, como o que que a Drª Manuela Eanes voltou a põr em moda, depois da revolução. Precedida por contínuos que, diligentemente, chamavam o elevador, seguida por outros servidores públicos que lhe levavam a pasta, os dossiers. A sua passagem provocava sempre interesse e comoção...
Para mim, era um mais um capítulo da história viva do feminismo português, muito embora, suponho, não s Mulher que fazia história não fosse feminista, nem mesmo à maneira da Pintasilgo, então Procuradora (seria "Procurador", para os meus colegas?) à Câmara Corporativa.
Quanto a Teresa Lobo, as nossas opiniões dividiam-se - para o Diretor, para a larga maioria dos assistentes, era a Senhora "Subsecretário de Estado", para mim, não. Impunha-se adequar o título ao sexo feminino. Em vão, argumentava com o exemplo daqueles cargos, onde as mulheres ja eram muitas - notárias, conservadoras dos registos, advogadas... Não convenci ninguém.
Vendo bem as coisas, o meu motorista, no ano de 78, estava, afinal, completamente sintonizado com aqueles ilustres juristas - e, mais e melhor do que eles resolvia, pelo menos, o problema da consonância gramatical (já que o de género, para todos eles, nem se punha...).
A revolução democrática mudara muita coisa, mas ainda não o sexismo das denominações ministeriais. Pintasilgo foi, na terminologia oficial, "Ministro dos Assuntos Sociais" e "Primeiro Ministro", sem levantar objeção.
No 8 de março de 2015, numa breve entrevista à televisão, Leonor Beleza contava que tinha sido a primeira mulher a integrar como "Secretária de Estado" (da Segurança Social?) o organigrama de um governo constitucional. Deve ter tido a influêmcia necessária para operar essa pequena grande revolução terminológica.
Se foi em 1983, disso beneficiei diretamente, como Secretária de Estado da Emigração. Mas confesso que não dei pela mudança. À revelia das qualificações oficiais sempre me auto intitulei no feminino, respeitando a gramática da língua portuguesa.
Dilma, que tinha o poder de se fazer chamar como entendesse, escolheu ser a Presidenta da República Federativa do Brasil. Soa mal, mas está politicamente correta e gramaticalmentetem tem apoiantes. Fui verificar no dicionário da Texto Editora de 1999, e lá está: presidenta, feminino de presidente, mulher que preside...
Aqui no país, nem a Leonor, nem eu nos intitulámos "vice presidentas da AR", cargo que ocupamos sucessivamente, ainda no século passado... E nem a atual presidente da AR reclama uma tal feminização da terminologia...
4 -EU E A MINHA NOVA CIRCUNSTÂNCIA
A minha vida foi feita de imprevistos. Mudaram as circunstâncias. E eu? Será as circunstâncias me mudaram?...
Deixo a pergunta sem resposta - é a coisa mais fácil. Na verdade, não sei a resposta. No que me respeitava, não, evidentemente, no que concernia a história da minha vida. porque essa foi mais construída pelas circunstâncias do que por mim. Ou não? É só duvidas...
Houve surpresas. Para mim. Para os outros, não é evidente.
Como dizia Idi Amim Dadá aos seus ministros, num filme.documentário inesquecível, que passou no verão quente de 75, (o único em que me ri mais do que nos melhores "Woody Allen"): "um ministro tem de decidir". Um Secretário de Estado, também, no domínio das delegações de competências ministeriais que nele recaem...
A maior surpresa foi a de verificar que não tinha a mais pequena dificuldade em decidir! Vista a situação à distância de 30 anos, acho que isso me tornava rpotencialmente muito mais perigosa. E se nem sempre o potencial de risco se concretizou, deveu-se a boa sorte, com certeza, e a uma extremamente cauta atitude quanto à escolha de colaboradores próximos. O meu "inner circle" era uma muralha de aço, para usar linguagem de época. Ou melhor, em tom menos bélico, um grupo de sábios, que tinha a dobrar toda a sageza e experiência que me faltavam... Aqui fica a receita, para quem quer que se veja em tais trabalhos-
Um velho plítico, que eu consiero o expoente da sua geração - a anterior à minha - ensinou-me, um dia um ditado que tem uma perfeita adequação às realidades a que se reportava (os políticos que, desde há já alguns governos, temos pela frente): DESCONFIAI DE PAREDES VELHAS E AUTORIDADES NOVAS - CAEM-NOS SEMPRE EM CIMA ....
CONTRA mim, tinha, então, o facto de ser a quinta essência da "autoridade nova" - em idade e em experiência, agravadas pelo temperamento (faceta de que ainda não falei, mas que, desde já, afirmo, que não ajudava nada) e pela singularidade, partilhada por muitos membros da equipa de Mota Pinto, de não recear as consequências de decisões polémicas numa carreira política futura, porque não via o meu futuro em semelhante carreira.
A FAVOR, jogaram vários dados, alguns dos quais talvez tenham motivado tão insólito convite, mas outros não, apenas acresceram, afortunadamente: estava no "meu" ministério, no meu domínio preferido do Direito, conhecia pessoas, serviços, mecanismos. Tinha um elevado conceito da sua qualidade, mesmo nos tempos do velho regime. Acreditava que os funcionários públicos eram tão bons ou melhores do que os talentos do setor privado... Tinha trabalhado ao lado de grandes juristas, grandes peritos, em comparação com os quais eu era uma modesta aprendiz.O ambiente de cooperação e convívio era tão bom que, em mais de 7 anos, não recordo o mais pequeno incidente ou disputa (a não competitividade por lugares ou promoções traz ao de cima o melhor da natureza humana? Não sei, mas será esta uma das explicações para os paraísos laborais que foram o Centro de Estudos de 67 a 74 e a Provedoria de Justiça de 76 a 80. - com os mais simpáticos colegas e os mais amáveis chefes que que alguém poderia desejar).
Ou seja, tudo me tinha preparado para acreditar firmemente que o ideal era encontrar conselheiros que soubessem do ofício mais do que eu! Como me dei bem com essa estartégia, desde 78, nos meus cinco gabinetes, nunca houve nem "boys" nem "girls", provenientes ds escolas de juventude dos partidos. Sempre preferi gente que fazia o favor de colaborar com o governo, do que rapaziada que estivesse ali por favor partidário,
Além de muito boa, a minha equipa era quase 100% função pública, pequena e coesa.
Comecei pelo Chefe de Gabinete - para uma mulher Secretária de Estado, a regra da paridade aconselhva um homem para nº2., De preferência, um especialista de direito administrativo. Havia um excelente na Provedoria de Justiça, De Coimbra, antigo aluno de Mota Pinto, meu colega e amigo, não conseguiu dizer que não. Foi a minha salvação . papel que ele lesse e aprovasse , era papel que eu podia assinar com segurança...
Dois adjuntos: uma jurista e um jurista, ambos dos quadros do Ministério, com larga experiência.Paridade perfeita...
Duas secretárias, competentíssimas, vindas de anteriores gabinetes, formadas pelo ISLA, colegas de curso (pura e feliz coincidência, como veremos...),
E os motoristas, funcionários do Ministério, naturalmente.
Duas categorias, que desafiaram o objetivo do equilíbrio de género, que eu perseguia dentro do horizonte do possível. Mulheres motoristas, não havia, de todo. E secretários com aquele nível de eficiência também não eram do conhecimento de ninguém.
Problemas internos, só houve mesmo com os motoristas. O primeiro resistiu pouco tempo, depois, um segundo também. Já não me lembro de episódios concretos, mas sei que existiram.... Até que conseguimos aliciar o motorista da Secretaria-Geral. Uma grande transferência! Chamava-se Caravana. Eu gostava imenso do Senhor Caravana - era pontualíssimo, nunca falhava, sempre alegre, a contar histórias engraçadíssimas dos tempos da revolução, no Alentejo da reforma agrária. Guiava muito bem, muito rápido. À vezes, passava um pequeno sinal vermelho - o que os franceses chamam "bruler les rouges". Para os parisienses, nos anos 60, era prática corrente pela noite fora, mas, quando executada habilmente, a qualquer hora do dia, é coisa menor (exatamente o meu ponto de vista). Guardava uma arma de fogo debaixo do assento (eu sou alérgica a pistolas, salvo no grande écran dos "westerns", mas condescendi, com aquela otimista certeza de que ele não ia precisar nunca de fazer de Lucky Luke, para me defender de um assalto, por absoluta falta de assaltantes para o anónimo alvo, que eu era)..
Depois que o Senhor Caravana completou o meu elenco, ele foi absolutamente perfeito. Todas as guerras e imbróglios vieram de fora e foram combatidas com espírito mosqueteiro "um por todos e todos por um um".
5 - ELA FICA!
Por pouco, a história esteve para ser outra. Ao fim de alguns dias remansosos, foi-me pedida a cabeça de uma das secretárias - a Ana. Não precisamente à maneira bíblica. Ela tinha vindo da Presidência do Conselho de Ministros, a cujos quadros pertencia, e para lá queriam que eu a reenviasse, com um despacho de demissão. Devolvida à procedência, que, felizmente, não era a rua...Mas com uma substancial diminuição na folha de vencimento.
Quando digo "queriam", refiro-me ao Ministro do Trabalho e a sua "entourage"
. No nosso sistema, aos Ministros pertencem todas as competências do ministério, que delegam, quando e conforme entendem, nos seus Secretários de Estado (nessa altura, estes ainda não eram considerados meros "ajudantes de ministro", figura que só iria impor-se a partir dos governos de Cavaco Silva - e como eu pertenci ao primeiro breve e minoritário executivo do Prof Cavaco, tenho de admitir que, por alguns meses, baixei a esse estatuto, mas isso foi sete anos e três executivos mais tarde...) .
Diferente e àparte (mesmo para os "ajudantes de ministro") é o caso da constituição dos gabinetes que é, naturalmente, da inteira responsabilidade de cada um dos membros do Governo, não havendo por isso, relações de hierarquia entre o pessoal dos Ministros e o dos Secretários de Estado. Apesar de isto ser evidente, a maioria dos conflitos que foram surgindo - em número inesperado, do primeiro ao último dia - deveu-se ao facto do Chefe de Gabinete do Ministro viver na ilusão de que era o chefe do meu Chefe de Gabinete... Uma grande confusão de chefes... Ora no meu ninguém mandava, nem eu, porque não era preciso - ele sabia muito bem o que havia a fazer - e muito menos um intruso, como era, neste círculo, o Chefe de Gabinete ministerial. Sucediam-se as tempestades, que, depois, repercutiam no meu ralacionamento pessoal com o chefe daquele chefe (que por isso não foi uma espécie de relação de "Deus com os anjos", embora tenha melhorado na recta final e se tenha tornado cordialíssimo no futuro, quando o belicoso personagem desapareceu, para todo o sempre, da minha vista).
Antes de voltar ao caso da Ana, convirá lembrar, uma das singularidades daqueles tempos - que não aparece nos organogramas dos gabinetes nem nas regras escritas. Havia uma primordial desconfiança dos novo poder no velho funcionalismo, quase sempre visto como o "anti poder". Nem os saneamentos das antigas chefias, que varreram os ministérios (os diretores gerais vitalícios e os demais na hierarquia descendente) aplacaram a desconfiança geral... Os novos políticos traziam gente da sua escolha, dos partidos, e decidiam tudo o que era importante nesse circuito fechado hermeticamente. Tremendo é que 40 anos depois, nas decisões mais importantes, isso continue na mesma, quando não muito pior, embora, com outro refinamento, outra sofisticação - e outra dimensão. Diz-se em inglês sintético: "outsourcing"...
Naquele ano de 1978, no 4º ano de uma ainda tão recente revolução, não era isso o que se passava no Ministério do Trabalho, e nas duas Secretarias de Estado (Emprego e Trabalho). Pelo contrário, os canais com os serviços foram restabelecidos, os altos funcionários que o Conselho da Revolução mandara reintegrar, foram reintegrados em boa paz... Toda a desconfiança se concentrou no pequeno núcleo de colaboradores diretos dos gabinetes do governo antecedente. Porquê? Porque esse Governo - o de Nobre da Costa, personalidade, se bem me lembro, muito bem aceite - caira na Assembleia da República por causa dos titulares do Ministério do Trabalho, considerados demasiadamente próximos do PC. Talvez não só por isso, mas em primeira linha, por isso.
E, assim sendo, o novo Ministro, absolutamente insuspeito de simpatias por tal quadrante, deixou bem claro que todos deveríamos afastar do "inner circle" todo e qualquer colaborador dos anteriores governantes da Praça de Londres.
Eu não tinha o menor propósito de desobedecer ao razoável ditâme! De todo... O gabinete estava praticamente constituído, com gente tão apartidária como eu. Só me faltava mesmo preencher um lugar de secretária. Já lá ía uma semana, as coisas corriam bem, não havia pressa. E, numa manhã, eis que recebo um telefonema do meu antigo professor e bom amigo, dr Xavier de Basto, o Secretário de Estado da Presidência, a perguntar se ainda tinha uma vaga no gabinete. Como tinha, ele aconselhou-me a Ana, que lhe dera um apoio fantástico, enquanto esperava a chegado dos vários convidados para os lugares de que dispunha (naquele tempo de austeridade real, não se contratavam amigos, às dezenas, fora dos quadros....). Segundo ele, a Ana, para além da grande competência, apresentava uma outra ´preciosa vantagem: conhecia a "casa" porque tinha sido secretária do meu direto antecessor! "Não!",´- respondi eu. Isso era péssimo, era um um impedimento absoluto para o meu Ministro! Mas o Dr Xavier de Basto não pensava assim. A Ana era completamente independente, e, por acaso, nem sequer se interessava muito por questões políticas. Continuou a recomenda-la vivamente! Como é evidente, eu segui o conselho de um amigo, um homem muito inteligente, perspicaz, o nº 1 dos Secretários de Estado, íntimo e fidelíssimo a Mota Pinto. Os preconceitos do meu ministro só valiam para desconhecidos. Venha a Ana, de imediato - foi a decisão.
Ainda correu algum tempo, quase um mês, suponho, até que alguém do círculo do Ministro, a quem a Ana deu uma resposta torta - possivelmente o chefe de gabinete - descobriu o curriculum dela, na Praça de Londres. Fui chamada pelo Ministro e intimada a despedi-la. A recomendação de Xavier de Basto não contava nada para Marques de Carvalho .
Contra a Ana só militava a resposta torta... Disse ao Ministro que ía pensar... O facto de eu ter exitado revela bem a verdura dos meus anos, então.
Nem cheguei a consultar o Dr Xavier de Basto...bastou-me consultar o meu "staff". Eram todos em favor da colega. E a mais veemente era a outra secretária, a Milú, que a conhecia dos bancos do ISLA , (não podes fazer isso! É uma questão de consciência! Para ela, o prejuízo é enorme). dei-lhe razão.
Fui falar com o Dr MC e comuniquei-lhe: "Já pensei, já decidi. Ela fica!".
irritadíssimo, retorquiu-me:
"Os meus colaboradores e os do Secretário de Estado do Emprego são todos de inteira confinaça. Se houver fugas de informação a resposabilidade é do seu gabinete.
Ao que eu respondi:
Com certeza! Se houver fugas , eu assumo a responsabilidade!
E lá voltei a dar a boa nova à minha gente. E o sigilo nunca foi quebrado - e se fosse, não era a partir do meu gabinete...
5 - UMA QUESTÃO PARTICULARMENTE SIGILOSA...

domingo, 3 de agosto de 2014

CCP 1981-1987

1981 - 1ª Reunião mundial -   LX Palácio Foz

1982 -  Reunião não convocada, pelo SECP José Vitorino. Protesto unânime da Comissão dos Neg Estrangeiros

1983  - 2ª Reunião Mundial, Porto -  Palácio da Bolsa - Santa Maria da Feira - Aveiro

1984  -3ª Reunião Mundial e 1ª  por Regiões -  Encontros Regionais  -  Danbury (América do Norte) / Fortaleza (América do Sul e África)

1985 4ª Reunião Mundial -   Porto Santo- Funchal

1996 - 5ª Reunião Mundial e 2ª por Regiões -  Maringá, Brasil (América do Sul) Toronto (América do Norte) Capetown (África) Alemanha ( Europa)

1987 -6ª Reunião Mundial -  Albufeira -  Algarve