domingo, 10 de maio de 2015

Sobre o CCP - um texto de 2009...


1 - O CCP é um órgão consultivo do Governo, em matéria de emigração - e, mais do que isso, é também um órgão representativo dos portugueses do estrangeiro. Este carácter de representação - que , numa fase inicial, se centrava no movimento associativo e agora tem cariz mais amplo, embora porventura mais difuso... - valoriza substancialmente o significado da própria audição. Instituído pelo Decreto-lei nº 373/80 de 12 de Setembro em 1980, com início de actividade efectiva em Abril de 1981, é o segundo mais antigo da Europa, depois do francês, o "Conséil Supérieur des Français de l' Étranger", que surgiu após a segunda Grande Guerra, e tinha a particularidade de escolher os representantes da emigração ao Senado , ou seja, os "Senadores da Diáspora.".
Embora não vá tão longe nenhum dos organismos que, a partir da década de 80, em vários países da Europa, nele encontraram uma fonte de inspiração, a todos me parece que subjaz o a finalidade de os transformar em sucedâneos de Câmaras ou Assembleias de Emigrantes. Em França, uma o antigo "Conséil" é agora designado "Assemblée".
Em Portugal, a ideia de integrar o CCP numa segunda Câmara, se ela vier a existir, ou, pelo menos, de o "constitucionalizar", isto é, de lhe dar expressa consagração no texto da Constituição (colocando a sua existência acima do livre arbítrio ou da boa vontade de Governos e de governantes...), é defendida por muitos Conselheiros, e chegou a ser objecto de dois colóquios parlamentares, promovidos pela Subcomissão das Comunidades Portuguesas, à qual presidi, nos anos 2003 e 2004, (o último dos quais com a participação dos eminentes juristas e constitucionalistas Barbosa de Melo, Adriano Moreira e Bacelar de Gouveia).
O CCP tem um historial interessante, sobretudo no período em que vamos considerá-lo: o momento do seu nascimento, visto não como o mera expressão de um legislador omnipotente, mas como acto de criação colectiva de uma instituição nova e original, num diálogo entre parceiros, o Governo e os porta-vozes do movimento associativo.
Não quer isto dizer que tenha tido vida fácil e um percurso sempre ascensional, porque não teve - bem pelo contrário. Resistiu a inúmeros bloqueios e longos hiatos de funcionamento efectivo, afrontamentos com o Governo , ou entre os seus próprios membros, processos e recursos judiciais, anulação de actos eleitorais para os órgãos de cúpula... Em boa verdade, talvez não devamos, sequer, falar de um único "Conselho", mas de vários, ou , melhor, de várias "vidas" de uma mesma instituição. Ao longo de quase três décadas, só o nome não sofreu alteração…
Entre 1981 e 1987, inclusive, o 1º CCP "fez-se, "e fez-se com as pessoas, ganhou, com elas, um lugar central no debate das políticas para as migrações, manteve um funcionamento activo e regular, salvo a não convocatória da sua reunião ordinária (mundial), em 1982, por um novo Secretário de Estado, que deixou o cargo pouco depois.
Todavia, a partir de 1988 e até 1995, durante dois governos maioritários, o CCP entra no seu mais prolongado "eclipse" - uma "não existência". Desactivado, de facto, desde 88, é descaracterizado,"de jure", no início da década de 90, por uma lei aprovada na Assembleia da República, cuja complexidade e dificuldade de implementação - intencional ou não... - o deixa completamente paralisado.
O CCP ressurgiu, na sua terceira vida em 1996, através de uma proposta de lei do Governo, que a Assembleia da República – coisa rara… - recebeu e tratou, de forma exemplarmente expedita. Primeiro, em três ou quatro dias de intenso labor, num pequeno "grupo de trabalho", formado pelos deputados da emigração e outros deputados da Comissão de Negócios Estrangeiros, conhecedores da realidade das migrações portuguesas, e da importância de renascimento do conselho, prioridade à qual alguns sacrificaram discordâncias de monta sobre o normativo. Seguiu-se um imediato agendamento do debate e votação em plenário, e , em 1997, as eleições e a reunião mundial - 10 anos depois da que encerrou a primeira fase deste mecanismo de representação específica de emigrantes...
Uma das mutações qualitativas do novo sistema é a eleição dos conselheiros por sufrágio directo e universal de todos os cidadãos inscritos nos consulados. O Conselho emerge de uma nova fonte de legitimidade, aparentemente mais “democrática”, mas rompe com a sua matriz associativa, a força e autonomia que daí lhe advinha e passa a excluir os líderes associativo que já não tenham nacionalidade portuguesa, os "luso-descendentes". A tal óbice souberam responder os italianos com um sistema misto, como eu própria, ao tempo, propus - numa fórmula diversa, prevendo dois colégios eleitorais, o de sufrágio universal, a par de outro, de cariz interassociativo .

·2 -Após traçar, desta forma abreviadíssima, a linha de evolução do Conselho até à actualidade, retorno à sua génese, à fase primordial - a mais esquecida, mas, sem dúvida, a mais exuberantemente criativa.
O “Conselho” começou por ser uma promessa eleitoral, um parágrafo inscrito no programa da AD (Aliança Democrática), coligação, que se apresentou a sufrágio em 1979, venceu e formou governo. Havia que dar cumprimento à promessa. Secretária de Estado do pelouro, coube-me a tarefa de promover a sua execução. Nunca soube quem a tinha formulado, e ainda hoje nem sequer sei a qual dos partidos se deve... . Sendo de autor desconhecido, não estávamos limitados pelo seu subjectivo propósito, nem por quaisquer directrizes. Não havia sequer figurino estrangeiro à nossa medida - apenas o francês, que correspondia a um contexto migratório e a uma inserção no sistema político-constitucional muito diversa. Era, numa democracia ainda tão recente, mas já rica de experiências de intervenção política e social, a primeira tentativa de avançar para formas de participação democrática extensivas à emigração portuguesa: um "forum" de audição, uma instância de co-participação dos Portugueses do estrangeiro nas políticas que lhes eram dirigidas. Com a liberdade de procurar e experimentar o” modus faciendi” de um projecto nacional de reencontro das comunidades entre si e com o país.
O CCP foi, desde o seu início, visto como um verdadeiro "laboratório", onde, em conjunto, se procuravam as melhores fórmulas para enquadrar situações ou atingir metas, e, em simultâneo, para dar corpo e alma, a um molde organizacional de suporte. Não havia ideias feitas, mas a fazer, não havia uma tradição a seguir, mas a criar, não havia uma lei acabada, mas um texto provisório, a repensar...
Falo do decreto-lei aprovado, a 1 de Abril de 1980, em Conselho de Ministros. Fora preterida a via parlamentar, por ser, previsivelmente, muito mais morosa. Erro de cálculo - o Presidente da República reteve o diploma durante cerca de 5 longos meses, com um dos chamados "vetos de bolso" .
De qualquer modo, mais do que discutir um perfil de “Conselho” com os representantes da “Nação” - quase sempre tão alheados das questões da emigração nacional – o que se pretendia era mesmo “consultar” os próprios emigrantes. .
Assim, de entre as secções organizadas para a condução dos trabalhos na primeira reunião mundial, uma destina-se, expressamente, à revisão do referido decreto-lei, e não por sugestão dos conselheiros, mas por iniciativa do Governo.
Secção para os assuntos jurídicos, que perdurou como a favorita dos conselheiros mais intervenientes, sendo, naturalmente , como era de esperar no Portugal de então (com as ideologias e as divergências partidárias muito “à flor da pele”), a mais polémica. Mas, apesar disso, chegou, muitas vezes a convergências substanciais , por exemplo, sobre:
a sua orgânica - com a proposta de uma comissão permanente, prontamente implementada, como instância de coordenação e gestão;
- a implementação das recomendações dirigidas aos vários departamentos da administração pública, pela via de uma “comissão interministerial”. A "Comissão" veio a ser constituída em 1987, e tinha, como "recomendado", entre outros deveres e competências, o encargo de preparar as respostas ao CCP, sector por sector, reunindo, obrigatoriamente, para esse fim, antes da reunião mundial deste Órgão.
-a reformulação pontual da lei do CCP para permitir, com base legal, a sua “regionalização” com a convocatória periódica de reuniões restritas dos representantes de cada uma das grandes regiões do mundo - Europa, África e Oceânia, América do Norte, América do Sul. Era o patamar que entendiam faltar, entre o conselho mundial e os "conselhos de país” - cuja composição, repartição geográfica, regulamento e planos de acção e actividades as estruturas locais decidiam com perfeita autonomia.
-a elaboração de um ambicioso anteprojecto de reformulação global do CCP, que o Governo, adoptou, como seu, apresentando-o, como Proposta de Lei, à Assembleia da República, em 1986.
Aí se previa já a eleição por sufrágio universal, a par da eleição por um colégio interassociativo semelhante ao existente, que não foi posto em causa.

E porquê este ênfase no associativismo?
A meu ver, porque se reconhecia, o seu papel absolutamente fundamental na organização e desenvolvimento das comunidades, na sua capacidade de preservar a língua, a cultura, os modos de estar e tradições nacionais, aliás, sem prejuízo de promover, como na nossa emigração é bem claro, a integração dos seus membros na sociedade de acolhimento.
E, no caso português, organizações que, efectivamente, ao longo de séculos, se substituíram ao papel e aos deveres de Governos sem políticas culturais ou sociais de apoio aos cidadãos e às suas comunidades. Organizações que hoje se mostram aliados capazes de potenciar e completar a acção de qualquer governo, nestes domínios - coisa ainda rigorosamente imprescindível...
A propensão associativa dos portugueses no estrangeiro é enorme e a dimensão da sua obra extraordinária. Tudo erguido e preservado sem contributo do Estado. As comunidades, neste sentido orgânico, sociológico, em que falamos, são 100% sociedade civil - razão de sobra para que o Governo, numa relação de parceria, se guarde de qualquer tentação de interferência, respeitando, sempre, os projectos próprios dessas entidades, e das comunidades como um todo.
Foi esta a filosofia que presidiu ao diálogo e cooperação, "entre iguais", encetados no CCP.

O associativismo português no mundo, quando comparado com o de outros povos migrantes da Europa - italianos, polacos, franceses, alemães, suíços, belgas... - só fica a perder num aspecto: a capacidade de se unificar em federações internacionais. É esplêndido, mas não ultrapassa as fronteiras de cada país. Fenómeno para o qual não encontro explicação.
Historicamente, a única tentativa de agregar numa "União" representantes da Diáspora de todos os continentes aconteceu nos anos 60 e foi uma iniciativa inteligente e brilhantemente desenvolvida a partir de Lisboa, pela Sociedade de Geografia, presidida pelo Prof. Adriano Moreira.
O legislador do CCP deixava claro, logo no preâmbulo do Decreto-Lei nº 373/80, que não pretendendo impor orientações ao movimento associativo, lhe oferecia este organismo como "plataforma de encontro" de conhecimento mútuo, de trabalho - aos seus líderes, a nível mundial. Objectivo conseguido, em dúvida, enquanto o Conselho teve natureza associativa.
O mesmo se não pode dizer de outra das tónicas do legislação de 1980, que visava acentuar a vertente cultural, a preservação dos laços com comunidades antigas . A dinâmica do CCP foi no outro sentido, inclinando-o sempre mais para a problemática da emigração recente. E foi feita a sua vontade…
Aceites foram, também, muitas das recomendações substantivas deste órgão consultivo (e amplamente consultado…), nomeadamente em matéria de ensino, medidas de protecção social, reestruturação de serviço no estrangeiro, apoio ao regresso e reinserção ou intercâmbio de jovens, como mostra uma publicação dos serviços da emigração sobre o estado das recomendações do CCP entre 1981 e 1985.
Os primeiros Encontros Mundiais de Jornalistas (1981) e de "Mulheres Migrantes no Associativismo e no Jornalismo" ficam a dever-se, inteiramente, a recomendações do CCP.
Outra prática precursora, então encetada: a apresentação, para conhecimento e debate, do orçamento da Secretaria de Estado destinada a acções junto das comunidades, e as modalidades de colaboração oferecidas no "Programa Cultural", que era decalcado nas recorrentes solicitações do mundo associativo.
Não vou comparar, aqui e agora, os dois Conselhos, o de novecentos e o do século XXI, mas esse é um exercício que vivamente recomendo.
Do primeiro direi, a finalizar, que foi, simplesmente o que quis ser, a aventura de "inventar" e sedimentar uma instituição bem portuguesa e original, na qual os membros eleitos imprimiram as marcas do seu pensamento e das suas próprias aspirações.
RESUMO
O Conselho das Comunidades Portuguesas de 1980 foi, historicamente, a primeira experiência de audição e diálogo institucional, entre o governo português, a sua emigração e a sua diáspora.
Era um órgão consultivo do governo, constituído por representantes eleitos no mundo associativo, apelando à força e ao papel central que as associações têm na construção e preservação das comunidades de emigrantes.
Sendo uma experiência inteiramente nova, teve de fazer o seu próprio caminho, conhecendo rupturas, hiatos de funcionamento e mudanças radicais de feição e natureza, nas décadas seguintes.

Maria Manuela Aguiar

Jurista

Ex-Secretária de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas 

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