quarta-feira, 9 de novembro de 2022

ISABEL II, "SELF-MADE QUEEN" 1 - A morte de uma grande Rainha é apenas o início de uma outra forma de vida imortal, que foi esplendidamente anunciada durante os dez dias de rituais e homenagens fúnebres a que incontáveis milhões de telespectadores, assistiram no pequeno ecrã (estima-se que o número andou perto de mil milhões) e em que centenas de milhares de pessoas participaram, presencialmente, com a convicção marcada no rosto de participarem em atos nos quais a História acontecia. O passamento de Isabel II deixou muito poucos indiferentes, a nível planetário. A cobertura mediática exaustiva e intensiva mais não foi, certamente, do que o reflexo de interesse e reconhecimento global. Sentimos essa perda como se fosse nossa... do nosso país, comunidade, família, e, por isso, a tristeza e a comoção foram partilhadas sem fronteiras. Na hora da morte, esperada e inesperada, do ícone em que, há muito, se convertera, o mundo parou para lembrar Isabel II na sua estatura de estadista, num coro de elogios que englobou, entre líderes de Estados de todas as geografias, Zelensky e Putin, Biden e Obama, Trump e Bolsonaro. Em Westminster Hall, a fila de quilómetros, que se formou, dia e noite, sem parar, nos últimos cinco dias, numa longa e lenta caminhada de 12 a 14 horas, foi, autenticamente, o que um jornal londrino chamou "uma peregrinação", que bem podemos adjetivar como reverencial e afetiva. O funeral de Estado, a 19 de setembro, reuniu um número jamais visto de representantes ao mais alto nível de Casas Reais e de Repúblicas (no nosso tempo, só comparável ao funeral de Nelson Mandela que, todavia, contou com bastante menos de metade da vasta panóplia de dignitários, que se viu em Westminster Abbey). Uma cerimónia religiosa precedida por todos aqueles dias vertiginosamente preenchidos por rituais e eventos, que as cameras de televisão transmitiram em direto e em que harmonicamente se conjugaram os tributos à monarca falecida, aos quais nunca faltaram multidões, e a agenda do novo Rei, sua investidura e contactos com os Parlamentos e os Povos da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda, com os líderes da "Commonwealth" e um sem número de personalidades estrangeiras. Foi, sem dúvida, uma fascinante aula prática de como funciona a transição monárquica no mais antigo dos regimes parlamentares - conjugação singular de modernidade democrática, e da "traditio", que se vai moldando a toda a espécie de transformações sociais, nomeadamente, no domínio das desigualdades de género - um aspeto que no debate sobre a alternativa Monarquia/República poucas vezes é destacada. As monarquias constitucionais têm dado à Europa mais chefes de Estado do que as Repúblicas... E se somarmos os anos de mandato, a diferença é ainda maior. Hoje, nas principais Casas Reais europeias, a igualdade dos sexos na linha de sucessão está constitucionalmente garantida, depois das mais conservadoras como a britânica, e, sobretudo, a espanhola terem seguido o paradigma nórdico. Um dos exemplos concreto de reivindicação da igualdade foi dado na chamada "vigília dos Príncipes", primeiro em Edimburgo e, depois, em Londres, pela Princesa Ana, que, em uniforme cerimonial, de medalhas ao peito, desfilou, a par dos irmãos, atrás do féretro real, tornando-se a primeira Mulher a fazê-lo. Um lugar que fora sempre reservado ao sexo masculino. Abriu, assim, o precedente! A corajosa opção da Princesa Real produziu resultados imediatos: na inovadora vigília dos netos da Rainha Isabel II, que terá inaugurado uma nova tradição a cumprir em futuras exéquias reais, (desde que haja essa geração), as quatro netas da Rainha estiveram presentes, em posição idêntica à de irmãos ou primos. Foi como que uma "experiência laboratorial" bem sucedida, que logo prosseguiu, quando os bisnetos de Isabel II foram, ao que parece por decisão de última hora, integrados no cortejo do funeral de Estado: não só Jorge, (o futuro Jorge VII), de nove anos, mas igualmente Carlota, com apenas sete anos. A princesa mais nova não foi deixada em casa. Um significativo pequeno sinal dos tempos. 2 - Com um olhar sempre atento aos desiquilíbrios de sexo na ocupação do espaço público, anotei a enorme predominância masculina nas impressionantes exéquias, particularmente visível na componente militar (fantástico espetáculo de coreografia, em que os britânicos são inexcedíveis). Apenas um pouco superior era a percentagem de mulheres entre os membros do clero, (na Igreja anglicana, há mulheres Bispos e, ao menos uma estava na Abadia). A tendência para o equilíbrio desenhava-se nas instituições políticas e, na outra componente maior das celebrações - a popular - talvez tenha havido predominância feminina, ainda que não muito acentuada. De qualquer modo, era à volta de uma mulher que tudo girava: a mulher mais famosa do nosso tempo, que do outro lado do planeta, (em Pequim), admiradores apelidaram de "Rainha do mundo" , tal como o fazia, na CNN, um dos maiores nomes do jornalismo internacional, Christiane Amanpour, (embora lhe colocasse um ponto de interrogação). O que, inquestionavelmente, poderemos afirmar, é que Isabel II, no fim do reinado, era muito maior do que a Grã-Bretanha, ou os 16 Reinos sob a sua coroa, ou a Commonwealth de 56 Estados, na maioria Repúblicas, com uma população que perfaz um terço da humanidade. E, também, muito maior do que era no momento em foi chamada a ocupar o trono, com apenas 25 anos, por morte prematura do pai. Quem ousaria, então, prever o destino que foi traçando, a pulso, com uma aprendizagem feita no dia a dia de tantos dias, de tantos anos, de sete décadas... Começou por convencer às suas (insuspeitadas) qualidades um cético Winston Churchill, que não via nela mais do que a sua aparência de jovem inexperiente e tímida. E acabou por convencer líderes e povos à escala universal. Não de imediato, nem de forma fácil. Bem pelo contrário, teve de afrontar, em conjunturas adversas, uma infinidade de obstáculos, muitos dos quais colocados no seu caminho pelo simples facto de ser mulher, de ter de vencer preconceitos e conjugar os papeis de família e de Estado, reinventando o cargo ao seu exercício no feminino. Tudo isso, num tempo muito concreto - tão diverso da era Vitoriana como da realidade do pós guerra no século XX. Não tinha um modelo a seguir, mas a criar... Na maioria das análises e comentários em que a recordam esta singularidade tende a ser menorizada. Camila, a Rainha Consorte, foi uma exceção ao valorizar a assertividade e intrepedez de Isabel II ao entrar num "mundo de homens" (que ainda hoje é, mas não tanto...), obrigada a fazer um percurso solitário, único e irrepetível, de início, não espetacular ou fulgurante, porém sempre consistentemente ascensional. Nos primeiros anos terá prevalecido a imagem que eu própria tinha dela - a de uma monarca distante, conservadora, refém de rígidos protocolos e remetida a um papel meramente simbólico. Muito diferente das Rainhas reinantes nas nações nórdicas, as minhas preferidas... Tal como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, vi Isabel II, pela primeira vez, em 1957, de relance, alinhada numa rua cheia de gente. No meu caso, não em Lisboa, mas na Avenida, em Gaia, que o carro oficial desceu lentamente, em direção à ponte sobre o Douro. Estava com muitas dezenas de colegas do Colégio do Sardão, envergando uniforme de festa. Formávamos uma longa mancha azul marinho na primeira fila do passeio. Ensaiadas pela nossa professora Madre Mary King, entoávamos, alto e bom som, o “God save the Queen”. Ouvindo o hino, a Rainha terá mandado o carro parar, por uns segundos, à nossa frente, enquanto o casal sorria e nos acenava. Ele mais próximo. Tínhamos feito, habilmente, a escolha pelo lado da Avenida onde melhor poderíamos ver Filipe, o formidável Duque de Edimburgo. Estávamos bastante mais interessadas nele do que nela... Quase três décadas depois, a Rainha voltou ao nosso País, em visita oficial. Dessa vez, eu era Secretária de Estado da Emigração, e tive diversas ocasiões de cumprimentar Sua Majestade, numa delas em vestido de gala, cruzado pela faixa larga de uma condecoração britânica, que acabara de receber. Foram breves e formais saudações, de que não guardo recordação emotiva… Quem mais me impressionou, foi, de novo, o Príncipe Filipe, numa inesperada e divertida conversa a dois (suscitada pela minha OBE...). 3 – Sem mais contactos pessoais, fiz a “estrada de Damasco”, em relação à Isabel II nas últimas duas décadas, à medida que me fui apercebendo, não só da sua surpreendente capacidade para compreender o espírito do tempo, (parecendo, paradoxalmente, mais jovem de mentalidade na velhice), como, sobretudo, a importância da sua figura enquanto “Mulher de Estado”. Ou seja, enquanto "mais valia" no infindo combate contra os preconceitos e as discriminações de género. E redescobri Isabel II como autêntico trunfo para causas que há muito coloquei no topo das prioridades: a erradicação de discriminações, que asfixiam as nossas sociedades, de forma clara ou larvada, como o idadismo e o sexismo. No caso da Raínha, a idade tornou-a mais sábia, respeitada e consensual. Foi, pois, com cabelos brancos e rugas naturais que o mundo a aceitou como a mais convincente imagem de empoderamento feminino. Com um poder situado acima do plano partidário e das querelas do quotidiano - um poder que não se exprime de forma direta, em números e slogans políticos, e não é quantificável, nem tangível, por um lado, nem meramente simbólico, por outro. A informação confere poder e ela dispôs de sete décdas de acesso a todos os dossiers secretos, leu-os, atentamente, e tudo conservou na sua espantosa bagagem de conhecimento. Saber usá-lo, com sageza e sem alarde público, só podia contribuir para solidificar a sua autoridade, prestígio e influência. As opiniões da Rainha eram desconhecidas na arena política, mas não dos seus Primeiros Ministros que, como é do domínio público, preparavam cuidadosamente as frequentes reuniões com ela. Sabe-se, também, que era menos atraída pelas vicissitudes da política interna do que por matérias estratégicas no campo da Defesa e das Relações Internacionais. O mais provável é que tenha apoiado continuadamente o esforço que permitiu à Grã-Bretanha continuar a ser a primeira potência militar da Europa, deixando à distância a segunda, a França. E mais inequívoco ainda foi o seu papel absolutamente crucial e preponderante na transição do Império para a Commonwealth (o que chamamos "descolonização", no nosso caso, tardia e dramática...). Olhando retrospetivamente seu desempenho, na vida pública, em conjugação com a privada, não podemos deixar de o ver como uma extraordinária demonstração da capacidade feminina para responder aos maiores desafios e para exercer as mais exigentes funções. Um legado precioso, porque nos confere a certeza, ou, pelo menos, o pertinente questionamento sobre o que todos os Estados e sociedades ganhariam se permitissem às mulheres, que se nos afiguram pessoas comuns, o que lhes têm negado: uma oportunidade de mostrar o que valem! O exemplo de Elizabeth Alexandra Mary Windsor é particularmente sugestivo, porque, ao contrário do seu marido, não tinha uma formação académica, brilhantemente concluída, nem alardeava invulgar inteligência, ambição ou arrojo. Viu-se, involuntariamente, catapultada para um cargo que não queria, teve uma oportunidade indesejada... E não foi menos impressionante a sua gestão da vida privada, antes de mais, ao fazer um casamento de amor, coisa, então, rara, em famílias reinantes. Um primeiro sinal da sua fortíssima personalidade. Contra a vontade dos pais e da Corte, casou com Filipe, príncipe da Grécia e da Dinamarca, primo afastado - como ela trineto da rainha Vitória - órfão solitário, sem fortuna, estrangeiro, demasiado atraente (diziam os detratores...), um mero, embora distinto oficial da"Royal Navy" - por tudo isso, longe do perfil de consorte traçado pela Corte. Contrariando presságios e vaticínios, o casamento duraria uma vida inteira de cumplicidade, apesar de ser um exemplo da inversão da tradicional divisão de trabalho: ela foi a Chefe de Estado, e reinou sozinha, com um poder indivisível: ele ocupou-se, em primeira linha, da família. Por Isabel abdicou dos seus próprios título reais e sacrificou uma promissora carreira militar, que adorava, e ficou “desempregado”. Viu-se compelido a reinventar ocupações e fê-lo, inteligentemente, em projetos e tarefas de enorme importância, mas, as mais das vezes, discretas, quase invisíveis, sempre preocupado em deixar o palco à Rainha. O seu contributo para a afirmação de Isabel II, terá tido uma importância que a História possivelmente vai omitir. Contributo, que ela, em anos recentes, com a autoconfiança que a idade acrescenta, haveria de reconhecer publicamente, mas que permaneceram largamente mantidos na sombra (e não é essaa sorte normal das consortes dos grandes vultos que marcam cada época, em qualquer domínio?). 4 - Uma história assim, teria fatalmente de chamar a minha atenção, enquanto defensora da igualdade e da partilha de funções entre homens e mulheres, no círculo familiar e no espaço público. Este caso concreto de inversão dos papéis de género, permite-me demonstrar como a minha simpatia vai, sempre, espontaneamente, para o parceiro injustamente menos valorizado, seja qual for. É, quase sempre, a mulher, mas, se, excecionalmente, for o homem, sinto-me, do mesmo modo, motivada a fazer-lhe justiça. Qual foi a parte de Filipe na vida de uma Rainha, que, ao contrário da sua antepassada Victoria, nunca sobrepôs as razões do coração aos seus deveres de Estado e nem sequer lhe deu o estatuto de "principe consorte"? Filipe terá sido o seu principal conselheiro, e não por complacência ou favor, mas por confiança na sua mundivisão e audácia, que temperava com o filtro da sensatez e da prudência, que a caraterizavam. Sabia ouvir, julgar e decidir. Hoje, é do conhecimento geral, embora continue a merecer insuficiente destaque, que o Príncipe Filipe foi “ghost writer” de discursos reais, que se lhe deve, por exemplo, a abertura a um novo relacionamento com os “media”, a começar pela transmissão em direto da cerimónia da coroação (vencendo um braço de ferro com Churchill, que era absolutamente contra). E, sobretudo, a reconfiguração da “Commonwealth”, voltada para as prioridades que eram as suas - a defesa da Natureza, do ambiente, do progresso tecnológico, da cultura e do desporto, a aposta na convivialidade e na juventude. Não foram coisa de somenos, se pensarmos na projeção mediática que transformou Isabel II em Rainha global (é evidente muito por mérito próprio, pelo seu talento de grande diplomata) e agregou a "Commonwealth", que se expandiu sob a sua égide, como a nova "joia da Coroa". Isabel II foi Chefe de Estado pelo acaso do nascimento, mas Chefe da Commonwealth de 56 Nações iguais em estatuto, por livre eleição dos seus pares, na sua maioria Presidentes de Repúblicas. Ao cumprir exemplarmente a sua missão, do primeiro ao último dia, (70 anos depois...) tornou-se um paradigma do exercício do poder no feminino, na "terceira idade" e num regime monárquico e mostrou as virtualidade das mulheres, dos idosos e das monarquias para darem futuro a um mundo melhor. Não admira que tantos lhe quisessem dizer adeus com um simples: "thank you!".

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