quinta-feira, 11 de novembro de 2010

ENTREVISTA da CLAUDIA BRANDÃO

Todos a vemos como uma mulher da política, mas essa seria a última coisa pela qual
Manuela Aguiar gostaria de ser conhecida. “Muito irrequieta” desde criança, Manuela admite que “sempre tive um feitio de sindicalista” e ultrapassar limites impostos por uma educação conservadora junto das avós tornou-se brincadeira. “Sempre que me diziam que uma menina não faz isto ou aquilo porque era coisa para rapazes, eu perguntava ‘mas porquê? Eu sou capaz’”.

Combativa e competitiva, a Manuela Aguiar criança foi sempre boa aluna. “Queria ser semprea melhor, queria tirar as melhores notas. Nunca foi preciso ninguém mandar-me estudar, eu fazia-o por gosto”.

Passou a maior parte da vida escolar num colégio de Doroteias. Além de um “ensino excelente”, o que povoa as recordações de Manuela são os campeonatos clandestinos de futebol que ela própria organizava. Foi descoberta, mas as freiras permitiram que jogasse futebol…mas sozinha. Os castigos tinham o pior dos efeitos. “Sou daquelas pessoas que nunca vai levada por mal”.

A falta de medalhas de bom comportamento era colmatada pelas de boas notas. “Ainda as
tenho religiosamente guardadas. Mas uma vez pendurei-as na gola da camisola, outra vez nas mangas. Claro que elas me foram apreendidas nessas semanas”.

Enquanto ali esteve, o desporto foi uma prática constante. “O ensino devia ter um equilíbrio entre a parte intelectual e a parte física. O desporto não deve ser só para os talentosos, deve ser para toda a gente”, acredita aquela para quem “ter lugar nas equipas oficiais do Colégio do Sardão não era uma coisa por aí além”. Só no ping-pong deixava a desejar.

Além do desporto, a falta de liberdade num colégio interno era esquecida nos meses de Verão, passados com os pais na praia, em Espinho. “Não é a minha terra, mas é como se fosse. O meu tempo de liberdade era Espinho. Gostava muito de andar, circulava infindavelmente pelas ruas. Alguns dos primeiros passos que dei foram nas areias da Praia Azul”.

Deixar o colégio do Sardão e ir para o liceu Rainha Santa Isabel, no Porto, diz Manuela, foi “a primeira grande decisão de risco da minha vida e a minha primeira vitória porque o meu pai achava que eu me ia perder nos estudos e aconteceu o contrário”. A verdade é que nunca teve tão boas notas, sendo mesmo distinguida a nível nacional.

Ter uma irmã mais bonita ensinou Manuela, desde cedo, a “compatibilizar os mundos e a
achar que cada pessoa é como é”. Com pessoas da família dos vários quadrantes políticos, reunidas em animados debates de ideias, aprendeu, “e talvez isso também seja uma boa lição de vida, que há pessoas excelentes que podem ser revolucionárias, ou reformistas, ou conservadoras. A ideologia das pessoas não tem nada a ver com o seu carácter”.

E com cada um aprendeu coisas diferentes. “O meu avô abriu-me as portas do cinema e do teatro. Lembro-me perfeitamente de ir com ele ao Batalha, ao Trindade, ao Rivoli, ao São João. E em Espinho nem se fala! Eu via mais de 30 filmes por mês. Ainda hoje recordo a felicidade que sentia quando as luzes se apagavam e a grande cortina recolhia, devagar”.

Não é exagero dizer que o culpado por Manuela ter escolhido estudar Direito foi a personagem criada por Erle Stanley Gardner, Perry Mason. “Ele influenciou-me fortemente. Queria ser advogada de crime como o Perry Mason”.
Não foi opção única. Também pus a hipótese do curso História – “mas não gosto de alfabetos diferentes do nosso, decidi não ir porque tinha que aprender grego e também não gostava de línguas mortas” – ou de Germânicas, porque gosto de línguas vivas – “na secretaria do liceu já toda a gente me conhecia: era a menina que sempre que lá ia era para mudar de curso”.

Chegada a Coimbra, “a primeira pessoa que encontrei foi um “caloiro” com quem depois acabei por me casar, apresentado por uma colega que estava apaixonada por ele. Começou por ser um triângulo amoroso, um período divertidíssimo. Por fim, ela desistiu dele e ele não desistiu de mim e continuamos todos amigos”.
Terminado o curso, e com a morte da irmã, a competitividade deixou de fazer sentido na vida de Manuela. “Passei a relativizar a importância das coisas, do sucesso, queria uma dessas carreiras não particularmente competitivas”.

“Na vida, a minha finalidade nunca foi apenas casar e ter filhos, à maneira tradicional. Desde que me conheço, o mais importante era ter uma profissão. E tanto o pai como o avô, as figuras masculinas, portanto, me apoiavam muito neste propósito e eram exigentes, tinham expectativas altas sobre o meu futuro”.
O primeiro emprego foi o de investigadora num centro de estudos do Ministério das Corporações e Segurança Social, no domínio do Direito do Trabalho, o último, a partir de 1976, o de assessora do Provedor de Justiça.

A 24 de Abril de 1974, toma posse como docente na Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, “a convite do professor Eduardo Correia que, oito dias depois, era Ministro da Educação”. Transita, logo depois, para a Faculdade de Direito, como assistente do Prof. Rui Alarcão. A frustração de não ter sido, no final do curso, convidada para assistente nessa Faculdade, como os seus colegas homens (justamente porque era mulher…), foi assim colmatada. “Estive lá dois anos – um tempo felicíssimo”.
Diz, orgulhosa: “nunca gostei de quem não gostasse de mim, não tive amores não
correspondidos”. Um dos maiores: os seus alunos. “Faz muito bem conviver com jovens. Com eles descobri os Moody Blues, os Fairport Convention, Simon & Garfunkel…Rejuvenesci imenso”.
Manuela leccionou, ainda, na Universidade Aberta e na Católica de Lisboa . Anos onde “acho que tudo me correu bem e perdi o medo de falar em público, antes era imensamente complexada”.

A entrada na política foi quase forçada: “Aconteceu no governo do Prof. Mota Pinto: ou eu aceitava ou não havia mulheres no governo - e houve apenas duas. Fui Secretária de Estado do Trabalho”. Estávamos em fins de78. Em 1980 fui chamada ao gabinete de Francisco Sá Carneiro para uma audiência. Convidou-me para Secretária de Estado da Emigração do seu governo”.
“Eu tinha uma fascinação pelo dr. Sá Carneiro. Foi a primeira pessoa em Portugal em cujo pensamento político me reconheci inteiramente. Era o único homem que estava disposta a seguir de uma forma incondicional. Achava que ele estava sempre certo. Nunca tive esta reacção com mais ninguém - com os outros, discuto sempre tudo. Nessa altura, disse-lhe que não queria ir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros :"nem pensar, porque ando sempre mal penteada e mal vestida’. Isso não o preocupava. Pragmático, só quis certificar-se de que sabia falar inglês e francês”.

Não associar Manuela Aguiar à emigração é, hoje, quase impossível, “uma ligação para o resto da vida”. “Tenho muito mais amigos lá fora do que dentro do país”, garante. E é de lá de fora que trouxe condecorações várias.
Mas a política não foi, para Manuela, “actividade particularmente apelativa. E foi-o cada vez menos”. “A política, hoje, é muito marcada pelo carreirismo. A ideia de serviço foi arredada”.

Com todas as letras, Manuela diz : “não me entusiasmou nada ser vice-presidente da Assembleia da República. Às vezes, até nos currículos me esqueço de o mencionar ”. Só o título de primeira mulher no cargo lhe dá alguma satisfação.
“O que gostei verdadeiramente de fazer, e nisso manifestei interesse, foi representar Portugal na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. É um parlamento onde um deputado ainda pode pensar e agir por si, sem interferência partidária”.

O cargo de vereadora da Cultura na Câmara Municipal de Espinho, mais do que política, é “um voluntariado, um serviço cívico. Acho que sempre estive na política com esse espírito. Nunca quis chegar a lado nenhum. Nunca planeei nada pessoalmente, em termos de carreira”.

Muitas das coisas que gostava de fazer mais nova fazem ainda parte da vida de Manuela: o gosto pela natureza, pelo ar livre e pelo mar. Os longos passeios. O amor aos animais e ao seu Futebol Clube do Porto. “Ainda hoje reconheço que alguns dos melhores momentos da minha vida têm sido passados nos estádios de futebol”, onde começou a ir com o pai.

Frustrações, talvez, sobretudo, a de nunca ter tido boa voz, ao contrário de quase toda a família. Até o hino nacional canta baixinho, para não desafinar o coro.
Lamenta, também, ter optado por Paris em vez dos Estados Unidos para fazer o pós graduação em sociologia, em fins de 1968. “Foi uma confusão, não se falava noutra coisa, além do Maio de 68. Era monocórdico. Teria aproveitado muito mais nos Estados Unidos”. Ficaram os amigos que, ainda hoje, “são uma segunda família”. “Na profissão e na política é muito difícil cimentar amizades desinteressadas e profundamente fraternais, como as que consegui em França”.

Daqui para a frente, com a certeza de que “não chego aos cem anos porque a política desgasta demasiado”, Manuela, “queria, sobretudo, ter tempo. Há tantos filmes que eu não vi, tantos livros que não li, tantas terras que quero conhecer.
Força não lhe falta. “Mas já estou muito selectiva, acho que já só posso ler livros bons, bons autores, bons filmes, bons programas de televisão. Não tenho tempo para ver o que não é excelente. O grande drama das pessoas mais velhas é terem um horizonte muito curto e ainda tantos projectos pela frente. Mesmo que durasse até aos cem anos, não me chegavam os dias para fazer as coisas que quero levar a cabo. Sou muito impaciente. Quando quero fazer uma coisa, quero fazê-la logo”.

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