Tem a palavra a família Aguiar e os seus amigos. Vamos abrir o "Círculo", com duas alternativas, que proponho: Este "Aguiaríssimo" ou o "blogguiar.blogspot.com"
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
AVÓS, RAÍZES E NÓS (2020) - A AVÓ MARIA
A AVÓ MARIA In "AVÓS, RAÍZES E NÓS"
. A Avó Maria Aguiar era figura pública proeminente em Gondomar, vila antiga, na fronteira sudeste do Porto. Os seus sete filhos, incluindo minha mãe, e todos os netos eram referidos, falados e considerados em função dela, para sempre umbilicalmente ligados à aura e ao nome da matriarca, quase sem luz própria, por mais brilhantes que fossem.
Nasci na sua casa, cercada de jardins murados, com um mirante florido na frente de rua e pomares e vinhedos a perder de vista, por detrás da mansão grande de "brasileiro", de cor rosada e venezianas verde-escuro. A Vila Maria. Aí, com ela e meus Pais, fui tão feliz quanto se pode desejar, nos primeiros anos de vida. Com ela, aprendi a gostar de histórias, (e mais de narrativas engraçadas sobre si e a família do que de contos infantis), a declamar poemas de Guerra Junqueiro, exercitando a memória em alguns dos que parecem intermináveis ("O melro, eu conheci-o, era preto, brilhante e luzidio... ), a bordar pequenos quadrados de linho a ponto de cruz, com o mínimo possível de habilidade inata. E a comportar-me surpreendentemente bem, tanto em procissões e novenas de Igreja, como nos lanches das confeitarias portuenses, a Villares ou a Ateneia, onde lhe fazia boa companhia. Criança rebelde, com reputação de indomável, várias vezes, emboscada atrás de um móvel, ou de uma porta, ouvi a Avó levantar a voz para me defender, dizendo: "Ninguém compreende esta menina! É preciso explicar-lhe a razão das coisas. Se ela perceber, aceita tudo muito bem". Na verdade, eu gostava de satisfazer expetativas, era sempre muito capaz de corresponder, na ação imediata, ao pior ou melhor que esperavam de mim...
A esta persuasiva pedagoga e querida Avó devo algumas das mais extraordinárias alegrias da infância, entre as quais se contam: a compra de uma carteirinha de verniz vermelho, usada a tiracolo, (a contragosto dos pais, naturalmente...), a oferta de um grande boneco pretinho, por muito tempo mirado e namorado na montra do bazar de Sá da Bandeira, e o traje de anjo amarelo, de grandes asas brancas, com que desfilei pelas ruas de São Cosme, em procissão, depois de vencida, uma vez mais, pela avó a relutância de mãe e pai em satisfazer tão ardente e desvalorizada ambição infantil.
Todavia, à Avó devo, igualmente, a remota origem do meu feminismo - o que não era, de todo, resultado que ela desejasse. De uma família de mulheres fortes, as mais heterodoxas das quais pareciam saídas de romances de Agustina, herdeira da sua fibra, era, porém, ela própria, um assumido expoente de conservadorismo e da prática das virtudes consideradas femininas, primeiro durante um casamento de dezasseis felizes anos, e, depois, ao longo de uma sofrida viuvez de mais de meio século. A sua influência na "res publica", crescera circunscrita ao pequeno círculo bem frequentado e bem visto das obras paroquiais, onde debutou, e extravasou, numa dinâmica natural, para o da comunidade, como um todo, do campo da assistência e do atendimento de casos sociais, ao da cultura, organizando peregrinações, a par de récitas e concertos beneficentes, cujos ensaios, muitas vezes, decorriam na sua sala do piano (piano que era emprestado para os espetáculos, fazendo, entre a Vila Maria e o Cine Teatro Nun' Álvares, uma curta e improvável viagem em carros de bois, necessariamente seguida de intervenção de um afinador). Outras vezes, as arcadas e a espaçosa adega do piso térreo transformavam-se em estaleiros de produção de carros alegóricos, enfeitados de flores de papel, confecionadas, aos milhares, por ruidosos bandos de meninas, a que as netas tinham licença de se juntar.
Para tudo havia regras, naquele mundo que se movia, sob o impulso de Maria Aguiar, a intransigente defensora do recato e das "boas maneiras" feminis, ao serviço das quais, tantas vezes, brandamente, me repreendia: "as meninas não fazem isso!".
Isso sendo o que era permitido aos primos da minha idade, como subir às árvores do jardim, ou até aos telhados, saltar de carros eléctricos em andamento, jogar à bola com os garotos da rua... Enfeitar altares ou colar florzinhas de papel colorido em painéis, ao som de canções populares, sim, eram tarefas de meninas... O plural "as meninas" intrigava-me... A argumentação da Avó, neste capítulo, não me soava convincentemente, não respondia aos meus "porquês"... Achei por bem provar, a mim mesma e aos outros, pela "praxis", que "as meninas" podiam tornar-se, com o continuado exercitar, tão aptas como os rapazes a cumprir objetivos nos muitos domínios interditos. E assim me converti, a partir dos seis ou sete anos, ainda que sem consciência clara da existência das questões de género, em feminista praticante... Por sinal, os homens da família, o pai e o avô paterno, o inesquecível Avô Manuel, cedo me iniciaram na paixão pelo cinema, pelo teatro e pelo futebol, não mostrando partilhar as preocupações da avós, ambas a Avó Maria e a Avó Olívia, em completa sintonia nas suas teses sobre a construção cultural do feminino... .
Numa altura em que tanto já ressentia, em causa própria, as discriminações de sexo, não me ocorreu, nunca, indagar o porquê da posição singular que a Avó Maria ocupava na sociedade local, a tal ponto a via como decorrente de uma autoridade natural, de um estatuto seu, inquestionável. Só muito mais tarde me apercebi de que o ganhara num trabalho incansável, e interminável, que, mais do que vocação, fora destino, fatalidade de se ver mulher só, ter de encontrar os modos de se realizar numa outra vida. Ela e a “sua circunstância”…
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Maria da Conceição Barboza Ramos era a mais nova de oito filhos de Carolina Ferreira Ramos, (de uma família enraizada, há séculos, em Gondomar) e de Joaquim Mendes Barboza, o tabelião, que viera do norte (Bitarães, Paredes), para nunca mais deixar a terra de adoção. Em tudo fora menina do seu tempo e condição social. Depois da escola primária, recebeu, em casa, os ensinamentos dos pais e professores, à espera de encontrar noivo. Das três raparigas, só uma, Glória, se formou na Escola do Magistério, no Porto, e nunca exerceu. A tuberculose levou-as aos 21 anos. O curso, pela raridade, bastou para que fosse uma das poucas mulheres biografadas na monografia “O Concelho de Gondomar”, ao lado do pai, irmãos e vários parentes masculinos, com largo “curriculum” de intervenção cívica e política.
A Maria, jovem inteligente, prendada, e lindíssima, não faltaram pretendentes. A sua escolha recaiu num conterrâneo emigrado no Brasil. António Carlos Pereira de Aguiar, nas suas próprias palavras, pessoa “muito ilustrada”, homem bonito, com enormes e expressivos olhos verdes, como nunca vira outros. O Avô António partira para o Rio de Janeiro em 1996, com 16 anos, levado por um dos seus quinze irmãos, João, bastante mais velho, quase com idade para ser seu pai, e, por essa altura, já um próspero joalheiro. O jovem António Carlos, revelando-se exemplar discípulo do melhor mestre, numa época áurea de desenvolvimento do país, como foi, para o Brasil, o início de novecentos, fez fortuna rápida e honesta, e era, então, o dono de uma joalharia da moda, na rua do Ouvidor. Sendo a Avó Maria uma incondicional entusiasta de viagens e excursões, de muita movimentação e convívio social, até aos seus últimos dias dos seus mais de noventa anos, é possível que a perspetiva de viver, por uns anos, no mundo novo brasileiro, com frequentes visitas à sua terra, a bordo de esplêndidos paquetes, tenha sido fator de peso na aceitação daquele pedido de namoro, logo depois convertido em pedido de casamento. Da parte do Avô Aguiar, fora o "coup de foudre", "amor à primeira vista" e até que a morte os separou... No mais clássico modelo de papéis conjugais, com rígida divisão de tarefas, uma união perfeita! Dos oito filhos, só três nasceram no Rio. Maria preferia ter os meninos em São Cosme, no conforto da casa materna... Vinha o marido, de bom grado, trazê-la e buscá-la e, durante o tempo de separação, escrevia-lhe extensas cartas de amor, em tudo idênticas às dos tempos idos de noivado...O noivado durou dois anos e está documentado por uma preciosa sucessão de postais ilustrados, com breves mensagens, que diríamos uma espécie de “tweets” do início do século passado, que serviam para troca de saudações amorosas e anúncio do próximo envio de longas cartas, infelizmente, quase todas desaparecidas.
A Gondomar regressaram em 1920, e viveram, por breves anos, na terra e na casa dos seus sonhos. A morte súbita do Avô António, aos 46 anos, deixou a viúva num estado de depressão profunda, que ameaçava eternizar-se. A senhora elegante e mundana das salas de festas transformou-se em vulto negro e austero (não menos elegante) dos salões paroquiais... Os retratos contam, sem necessidade de palavras, a tragédia da sua vida, pela forma e colorido dos chapéus, das abas imensas das capelines floridas da senhora casada aos pequenos chapéus de viúva, rentes à testa, enfeitados por uma simples "aigrette" (a que chamávamos, na sua ausência, "os quicos da Avó"). O momento da grande mutação foi o da perda do papel de esposa perfeita, em que teve de se assumir como mãe e o pai de sete crianças (difíceis e desafiantes...), com idades entre os dois meses e os catorze anos. Do torpor de muitos, muitos meses saiu, buscando orientação na fé, nas crenças e práticas religiosas, fonte inesgotável de novas energias, e razão de viver, intensamente, para a família e para os outros.
Fora a mulher do empresário António Aguiar, que o seu caráter extrovertido e generoso, tornara tão estimado e popular no Rio de Janeiro, como em Gondomar. Enquanto a sua memória permanecia entre os daquela geração, foi a sua respeitabilissima viúva. E, por fim, ela própria, Maria Aguiar, líder no feminino, universalmente querida e admirada. Protetora dos pobres, confidente e conselheira nas horas difíceis. Do seu apostolado de leiga, da organização de peditórios, peregrinações, festividades religiosas, passara aos domínios adjacentes da cultura, organização de concertos beneficentes, deixando, vir, de novo, à superfície o seu gosto pela música, poesia e teatro, num mesmo quadro de voluntariado socialmente aprovado para as senhoras. Latente, sempre, o culto do marido, simbolizado na sobriedade dos trajes escuros (em que se permitia o roxo e o cinza), ou no cuidado com que podava, por suas mãos, as rosas, com as quais ele se apresentava em exposições, (nunca filhos e netos, nem os criados (alguns ex- reclusos, pequenos ladrões mais ou menos regenerados) lhes puderam tocar). E no uso do seu apelido Aguiar… O nome que, hoje, descendentes de quarta e quinta geração continuam a usar, preterindo outros, do ramo materno e paterno, apenas por ser o dela. E não só por ter sido essa notável cidadã. Mais ainda, por ter sido a nossa Avó, a prodigiosa contadora de histórias, a grande matriarca, a força que reunia à volta da mesa na casa, que, sendo dela, era de todos, a família inteira, na intimidade das ceias de Natal ou nas festivas visitas do compasso pascal, em casamento e batizados e em todas as festas que se inventavam para estarmos juntos. Na mais completa fragmentação familiar, que se seguiu ao seu tempo, é ainda, afinal, a memória da Avó Maria Aguiar, que nos reúne, à volta do seu nome, numa árvore genealógica de afetos.
OS CAMINHOS DA POESIA - PREFÁCIO (2020)
exta-feira, 7 de agosto de 2020
CAMINHOS DA POESIA prefácio e meus versos
OS CAMINHOS da POESIA
O Prefácio
e os meus versos
Prefaciar a nova coletânea galaico portuguesa de poemas e de lendas, narradas numa toada poética, foi convite inesperado, que recebi como uma honra, e aceitei como meio de me associar, em simples prosa, a um projeto tão conseguido nos seus vários propósitos, confluindo harmonicamente na finalidade maior de fazer futuro de duas comunidades geradas numa mesma língua antiga. Gente há quase um milénio separada pelos acasos da História, e por uma mera fronteira política, sem que se haja desfeito a magma de uma unidade antecedente... Aqui, em cada folha, vem impressa a voz livre e impetuosa dos Poetas, assumindo o papel de atores sociais de uma reaproximação pela amizade, renascida e reforçada, de encontro em encontro, pelos Caminhos da Poesia, assentes no mais recôndito, amplo e consensual denominador comum, que é sempre a Cultura!
Mulheres e homens, portugueses e galegos, qualquer que seja lugar onde nasceram ou habitam, as suas ocupações ou títulos académicos, estão juntos na consciência de pertença a um mesmo universo cultural em expansão. Cada um se apresenta de uma forma livre, alguns preferindo falar quase só pelos versos, outros dando-nos a síntese de "curricula" profissionais, breves traços biográficos ou uma simples saudação de irmãos.Partilham, essencialmente, a vontade de intervenção num mesmo movimento de fraternidade, institucionalizado, ou não, numa significativa pluralidade de grupos e tertúlias - movimento que das Letras, numa amável luta, parte para os afetos, e neles redimensiona, afinal, a própria identidade. Como diz a Poeta:"Veño dunha estirpe/guerreira, como a gran Boudice/levo no sangue a loita/as minhas armas são pluma e tinta"
No "país lendário, que começou a norte e se estendeu a sul", o caminho do meu próprio sentimento de identidade galaico-portuguesa, fez-se em dois andamentos, primeiro nas visitas à Galiza, onde tudo me parecia familiar, veredas de aldeias, casas de pedra, a hospitalidade, a confraternização nas esplanadas e nas ruas da cidade, os rostos das pessoas e até a forma de falar, que entendia, espontaneamente . Mais tarde, rumando a sul, ao Algarve. encontrei, (Infinita surpresa...), pinceladas de exotismo na cor ocre das falésias, nas casas brancas de barras azuis ou amarelas, nos pátios mouriscos, nos modos de estar... E, assim, ainda menina, num simples olhar em volta, me apercebi de que Portugal, tal como a Espanha, (e não ao invés, como pretende uma certa corrente), é uma sociedade multicultural, de tradições, de reminiscências muito diversas (admirável diversidade!), que se constitui numa outra unidade, singular e indestrutível, no seu território e na sua Diáspora.Todavia, mil anos de fronteiras, em que a Nação Portuguesa se forjou em Estado, não lograram esbater as eternas afinidades naturais do norte com a Galiza, ou do Algarve com a Andaluzia...Sintonias que se somam, sem antagonismos... E é (e, nesta ordem de das coisas, porque não haveria de ser?) um poeta andaluz, Manuel Machado, que vem proclamar a Galiza "Espanha madre de la Espanha entera"... E nós acrescentamos: da Espanha, sim, e, ainda mais, de Portugal. Avançamos, tendo "por lema a poesia dunha mátria sen fronteiras"... Ou, como diz outro Poeta: "que Galícia sexa luz en Lisboa"/Luz que ven dos fillos das terras nosas"
Um dos aspetos mais salientes e inovadoras desta terceira coletânea é a incursão nos domínios do nosso riquíssimo património lendário e mitológico, via privilegiada de uma demanda identitária, que anima o projeto poético coletivo. Aos Autores foi proposto que recriassem as nossas lendas, em versão de autor e linguagem de uma beleza e melopeia poética, e não admira que a ideia fosse tão apelativa e alcançasse tão abundante e excelente materialização! E, com ela, o trajeto se inicia mais atrás, mais perto das origens, em diálogo com a ancestralidade profunda da cultura popular, suas crenças, memórias, valores, enigmaticamente envoltos na penumbra do fantástico e do mistério pressentidos e anunciados. Foram, agora, convocados os Poetas na veste de mediadores da intelecção de uma vida primordial, que nos oferece o seu imemorial cortejo de deusas, espíritos, sereias, mouras encantadas, mágicas metamorfoses de homens e animais, trocando de pele ou de condição, o sobrenatural enlace dos vivos e dos mortos... Vestígios de histórias intangíveis que, sob a aparência do irracional e do absurdo, guardam a Verdade de outras idades. Há Poetas que, nesse relance retrospetivo, se interrogam: "Como teria sido essa outra vida/ vida que foi a nossa em outro tempo?"... E há os nos dotam de certezas: "Somos o Povo que fomos em tempos ancestrais"... Filhos da Suévia e do Miño co mar por padrinho”.E, antes de suevos, nos redescobrimos celtas, lusitanos, "querreiras e guerreiros, filhos da Deusa de que emana a vida", no imaginário, entrevendo as "Xacias" que: "Lapexan na Auga/no Miño e nos regueiros/bañandose nas pozas frías/enxugandose ao vento". Como Navia, a Deusa lusitana, e astur- galega, que se acolhe nas pontes, nas lagoas e rios... Presentes se fazem, vindos da Natureza, os espíritos: "materializados em chovia arribam nos vales /multitudes de espíritos a conviver aos mortais". E os mortos, fugazmente, reunidos aos seus, na súbita diafania das dimensões ocultas e espectrais: "abrense as portas entre o Alén e este mundo/e veñen as ánimas dos devanceiros/ camiñar entre os vivos… E, tão temidas e malignas, a norte e a sul do Minho, eis as bruxas, com seus "talismáns diabólicos": "Chegarón as bruxas vellas/ nas suas vassoiras rápidas como lóstregos/os gatos negros, as curuxas, os sapos". Quando não o diabo em pessoa, o "picaro diaño", um dia aparecido nas terras de Becerreá...
Nas ingénuas estórias do ilógico e do impossível pode assomar o lobo bom que fala à menina assustada, a jovem transmutada numa "serva branca", que só na morte recuperará a forma humana, a moura capaz de comer, todos os dias, um boi inteiro, e a outra que, com o filho ao colo, transporta a pedra colossal, a "pedra má"…Ou a xacía, que "ergue castelos na area/entre colo de lúar", e uma outra "loira e fermosa, que vive nas augas do Miño"...
Muitos dos nossos “Poetas-contadores-de-lendas” buscaram inspiração no legado mitológico das suas terras:Teixido, de onde trarás, com o amuleto, a "maxia por sempre contigo", Béade e a sua moura Mariña, que ali toma marido, a Feira, e o castelo da Princesa Lia, enamorada de um gentil mouro, Serradelo e o seu São Caetano, pronto a castigar os ímpios com a fúria dos temporais, Tabuado, onde se lembra como San Cristovo perdeu a capela votiva, Silvalde e a Bicha das sete cabeças, pelo povo cortadas, uma a uma, ou ali perto, em Esmojães, o vilão Catafula, herói improvável, morrendo em glória, na resistência ao invasor gaulês. Do mesmo modo, mais remotamente, o domínio romano em terras galaico- portuguesas permanece viveiro de Imortais, os bravos de Castro de Medeiros, o insubmisso Viriato. a merecer alturas de epopeia, a ardilosa donzela de Monsanto sitiado, qual outra Deu-la-Deu, a derrubar a força pela astúcia. Na luta hábil contra um Poder maior e prepotente, o mesmo alcançam as duas padeirinhas, no fogo do seu "forno sagrado" sacrificando o vil alcaide... No sulco histórico de uma religiosidade bárbara se insere a Lenda do Ferro em brasa, e, também, numa trama de contornos pitorescos, a do Galo de Barcelos, em ambas as ordálias, a justiça divina sobrevindo pelo milagre. Mais milagres revisitamos numa variante da saga arturiana da procura do Santo Graal, acontecida na capela de Cebreiro, onde se guarda "o cáliz e o relicário/dentro de duas ampolas/ feitas de vidro e de prata". E o suave "milagre das rosas" da Rainha Santa, que por ele, é mais venerada do que por feitos muito concretos, justificativos da mesma consagração de uma grande mulher política e paladina de uma Igreja dos pobres,segundo a doutrina joaquimita.
Do repositório lendário desta coletânea, referência ainda à singeliza da narração da vida e morte da "Vella Maruxa" , no andar dos seus últimos passos: “Marucha silente no seu camiñar/passiño a passiño achega-se al mar"...
Tantas são mulheres viventes neste outro universo!...Bem se podem dizer que, no feminino, sobejam em crónicas mitificadas, e, mais latamente, no imaginário poético, as figuras e os feitos extrordinários, que faltam nos anais da História, de onde andam desaparecidas.
Em tão original antologia, onde a Verdade, mitos, anseios e medos se abraçam em versos, que percorrem séculos ou milénios, num virar de páginas, a actualidade sofrida no planeta inteiro, neste ano fatídico de 2020, é assinalada com a curiosa introdução da palavra COVID, no léxico poético. A peste do século, que leva os homens como “bolboretas” deixadas no "almacén dos mortos"! Um apocalipse: "feche-se a gente e todos os eventos serão cancelados"... Um pesadelo: "Vinte dias do ano vinte vinte/Vinte dias sem abraços, sem beijos...".quedando-se "os amantes em quarentena"... Contudo, os Poetas da distopia dividem-se entre sentimentos de finitude ("Suspende-se a vida. Vive-se a morte"), e a sua denegação:("Confinado fisicamente/ mas livre como uma ave")...
De semelhantes contrastes se vai compondo o roteiro desta longa e variada viagem, entre paisagens do mundo exterior ou interior, paisagens de alma... Há os que conseguem "atravessar o mundo inteiro/nesta, mais uma, página do diário da vida" e os não encontram o seu rumo: "Perdi-me num ir e vir de sentimentos, vividos, sufridos". E aqueles que vão além dos limites da perda, porque lhes deixa "tão pouco que torna o nada enorme"...Os que à noite pedem: "abreme a friesta/que quero ver as estrela", Os que nela se quedam: solitários "O silêncio tomou conta da noite/Já entrouhá tanto tempo na nossa casa"... E os que tomam conta do quietude: "Não quero ruído que destrua a voz deste meu silêncio"
Falam a muitas vozes os poetas...ouçamo-los!.
Os Poetas do Mar...
Mar, fonte inesgotável de inspiração no "mundo de marinheiros", que é o nosso... "E o mar! Miña querida/ Noiva de sal e espuma (...) Cántate cual sereia/en rocha firme retida". Assim começa o dolente poema dedicado aos que no mar ficaram... Em mar se volver é utopia de grandeza, que em verso se permite: “Eu nacín sendo regato/Soñando com ser u mar/Dormir contando as estrelas/ E vendo a lúa brillar” (...) Ninguém podera parar/os soños e a fantasia/ e ainda muito menos/se istos son poesia". Mais triste é o mar sem horizontes, no claro-escuro de areia e bruma: "macera este mar...a areia e a bruma que encerra noites longas". Tantas são as formas de o cantar, "mar de letras, sonho de ideias"...
Os Poetas da Terra...
Os Poetas da Terra, de Natureza fecunda e graciosa, estão, hoje, mais a norte do que a sul do Minho - labregos, filhos de labregos (no sentido nobre da palavra, que se desvirtuou num Portugal a abandonar, na miragem da cidade ou na dura saga da emigração, os seus campos e aldeias). Na Galiza muito do que viram os olhos da Poeta, que é a maior de todos, ainda nós o poderemos ver e sentir :: "Cheira a ti, Rosalia/Cheira a tua presença/ á tua vida, ao teu leito/ É tudo teu, é tudo nosso!". São "aldeiñas de choros e risas", aldeias ainda vividas, não apenas sobreviventes na memória : “terra, terra/eco da vida que nos guarda a auga/que âncora as nosas árbores/e que espera a fin dos nossos corpos/ terra amada/lugar/orige/pátria/terra/terra/terra”. Campos onde a vista se espraia em contemplação: “baixo un arbore cansado/de corroída corteza/sintome enamorado/de toda a Natureza”. Numa Galiza, para sempre "chea de sacras ribeiras regadas pela auga dos deuses/ a reverter de arte, de música e de grandes festas". Desta vida não se apartam: "non me leves/ ao teu mundo/ que nel/ non quero ficar". À mulher se pede: "nunca marches da terra/porque tu eres a terra/ da nossa amada terra Galega". Mulher, Mãe:: "Serás madre, emerxente de súa raiz/encherás os espaços ocos, os movementos /de sempre, as formas, o recanto no fogar .
À cidade. chegou o outono: "Só este sentir Portuense/do Outono que chega e te leva/ só este lamento... O Porto, de onde sempre se espera novas da Galiza, porque "é de lá que sopram/os ventos da esperança"
Os Poetas do Amor
O amor em que se gerou a lírica galaico-portuguesa: "Non me pídas a lúa a que non chego/ Pídeme amor, amor sinxelo". Amor que se quer reviver: "Tenho saudade do amor que era/ Mas quem sabe possa ainda ser" ..Ou de que se morre: "cando vexo que se morre/ por a pessoa querida/xa sei que é poesia".Amor sem limites:."Amar, só amar-te a construir/amor e mais amor no amor já feito". Amor universal: "querer amar os outros, com o amor que nos temos".Amor de uma galega por Portugal: "Deixei lá um bocadinhos de alma"...
Os Poetas do Caminho
"Posso mostrar-te o instante para além do instante?" No tempo e no espaço, a caminhada não terá fim.. “A ponte que me leva/ é infinita/ando correndo nela/mais non chego”: A ideia do longe, que não se alcança, pode bem ser a força que nos leva em frente: “vagabundo de sonhos/quanto mais os estreito/mais deles me aparto"..É preciso, apenas, dar ao caminho o sentido das nossas causas: "O Poeta olha-se ao espelho e vê o mundo/Veste-o com os sonhos replicados dos seus". Causas e crença: : "creo firmemente que a poesia transforma o mundo e faino muito mellor"... "Em cada poema que deixámos voar"!
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Citações colhidas um pouco ao acaso, que mais não pretendem do que salientar a pluralidade de leituras a que a coletânea nos chama - não apenas a puramente literária, que não esteve no centro destas breves considerações, mas, também a etnográfica, política, (na sua sede eminentemente cultural), a feminista (tantas são as mulheres, nas suas faces humanas ou divinas... ), histórica - num duplo olhar retrospetivo e prospetivo, Acompanhando os que pensam que a história que mais importa é a do futuro, sublinharemos o papel que vem assumindo, a publicação anual das coletâneas, lançadas em magnas assembleia de Poetas, alternadamente, na Galiza e em Portugal.
Por elas, pela Poesia se faz a prova da existência desta comunidade de iguais, cheia de afetos e de sonhos, que habita em todo o espaço das línguas nascidas do mesmo tronco, movida pela força matriz da Galiza e, (como diria Pessoa), por um Ímpeto de Portugal.
NOS CAMINHOS DA POESIA (2020)
Chamo-me Maria Manuela e sou de Gondomar, uma terra antiga com nome de rei godo - como outra, que, na Galiza, talvez partilhe conosco esse remoto fundador. Nasci, em junho de 1942, em casa da Avó materna, uma das chamadas "casas de "brasileiros" do norte de Portugal, e desde pequena, ouvi declamar poemas, ao som de música brasileira, e contar histórias felizes de emigração. Era uma família em que todos discutiam política, fraternalmente divididos, e em que quase todos versejavam, embora só tenham vindo a público os de um tio, autor da letra do hino de Gondomar, os de outro tio que glorificou as belezas da terra na lírica de um musical de teatro, e uma coletânea de sonetos de meu Pai, editada postumamente. Mãe e tias maternas eram, todas, discípulas de Florbela e uma Bisavó paterna tornou-se, para mim, figura mítica como poeta repentista, cantando ao desafio em romarias populares, para além de ser admirável contadora de lendas e tradições. Logo que comecei a dominar a escrita, tentei, com menos talento, mas igual propensão, seguir esses exemplos e guardo, no fundo das gavetas, muitos cadernos manuscritos em que posso seguir a evolução da minha caligrafia dos 9 aos 16 anos, período em que estudei num internato de Doroteias, o Colégio do Sardão. A partir do momento em que me libertei da clausura, logo me voltei, não sei porquê, para prosa... No meu último ano do curso de Direito, (em Coimbra), alguns colegas do Porto, à frente dos quais Mário Cláudio, editámos uma revista (A Tábua), na qual o meu contributo foi um poema feminista, assinado com pseudónimo. Depois, a vida levou-me, inesperadamente, para os terrenos da política, e para uma convivência de décadas com a emigração e a Diáspora portuguesas (como Secretária de Estado e deputada). Os vários livros ("Portugal, país das migrações sem fim" e outros)), os muitos artigos para revistas científicas ou jornais, que publiquei, são sobre Migrações, Direitos Humanos, Feminismo... e Desporto (futebol)..
O desafio que a Amiga Ester Sousa e Sá me lançou de participar nesta coletânea, (uma honra imerecida!), levou-me a mergulhar no passado, numa torrente de versos inéditos, de cantigas de escárnio e maldizer (ah, como o Colégio era inspirador!), às tão portuenses "quadras de São João", passando por sonetos ... Não resisti à tentação de reescrever alguns desses versinhos, e de incluir, igualmente, aqui e ali, modificado, dando-lhe, enfim, o meu nome, o "poema de intervenção", aparecido in "A Tábua", há 55 anos...
Maria Manuela Aguiar Dias Moreira
MULHER DO ROSTO DE VENTO
Vai
Pela Terra-Mãe adormecida
que em ti hiberna,
as mãos vazias
das rendas de outrora,
Vai dar sentido ao Dia!
Vai
Para que a Terra-Mãe
Seja em ti,
Ao chegar o momento...
Vai
Rosto de vento
Em busca de Alma!
Vai da noite moribunda
Do ter ser negado
Vai
Que agonizas
No corpo atormentado
Os sonhos a viver
Num amanhã
2 - VIVER...
Queria ser guerreira e vencedora,
Queria andar perdida a vaguear,
Queria ser o tudo e ser o nada
Dos opostos fazer meu caminhar
Queria ser a nuvem que se esvai,
Como a ilusão de amor de uma donzela,
Queria ser o pássaro que voa
No rasto de uma antiga Caravela,
Seguir o sonho e logo o desfazer
Para sonhar mais alto, e mais cair,
Entre estrelas, que morrem sem se ver,
No sono, devagar, adormecer
Deixando, sem saudade, no adeus.
A breve eternidade de viver.
3 - QUADRAS DE SÃO JOÃO DO PORTO
Balão que sobe nos céus
Como miragem de vida
Leva com ele o devir
De uma promessa esquecida...
Deste-me um beijo de noite
Perfumado de alecrim
E a fogueira que saltámos
passou pr'a dentro de mim
Os balões e as cantigas
Unem-se à luz do luar
Que em noites de São João
O amor fala a cantar!
Quando saltares a fogueira,
Cuidado! Vê lá se cais...
Ao coração que se queima
O amor não volta mais!
Na manhã de vinte e quatro.
Olhando a cinza eu fiquei
Que, ao ver a cinza, lembrava
O amor que ontem te dei...
Meninas, vamos gozar
A noite de São João
Ponham sorrisos no rosto,
Fogueiras no coração.
À suave luz da fogueira
Teu coração desenhei
A imagem em contraluz
Sobre o meu a acharei
Quando à noite, no escuro,
Uma fogueira acendeste
Teus olhos disseram tudo
O que tu me não disseste...
Zangado estavas comigo
São João nos vai casar!
Que o amor e os santinhos
Sabem sempre perdoar...
Uma mensagem seixei
Na luz áurea de um balão,
Promessa de amor sincero
Em noite de São João
Meu Porto, que sais à rua
Nas festas de São João,
Não há no mundo cidade
Mais fraterna - não há, não!
Meu Porto sem São João
Por causa da pandemia,
Sem manjerico, alho porro,
Festa, balões, alegria...
RUTH ESCOBAR - PARA QUANDO UM LUGAR MERECIDO NA TOPONÍMIA DO PORTO?
À Comissão de Toponímia da Câmara Municipal do Porto
Tenho a honra de apresentar a V. Excelências uma proposta de homenagem a Ruth Escobar, pela inclusão do seu nome na toponímia da cidade onde nasceu e onde viveu os primeiros 16 anos, até dia em que emigrou para São Paulo.
Aí a encontrei, muitas vezes, quando era Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas e Deputada pela Emigração, nas décadas de oitenta e noventa.
Ruth Escobar era já, nesse tempo, a portuguesa da sua geração mais conhecida e reconhecida no Brasil, como atriz, produtora teatral, mulher de Cultura, ativista dos Direitos Humanos, política carismática, voz poderosa na defesa de causas. Uma imigrante singular, que o Brasil admirava pela inteligência, pela audácia e pelo modernismo. Aos compatriotas, como eu, impressionava também o orgulho com que se afirmava portuguesa do Porto..
Não é por acaso que a sua autobiografia, publicada em 1987, começa com esta frase: "Lembro-me do trajeto invariável de todos os dias: da Rua do Bonjardim subo a João das Regras, atravesso a Praça da República, desço a Rua dos Mártires da Liberdade, e entro na Praça Coronel Pacheco - onde ficava o Liceu Carolina Michaelis".
O Liceu onde descobriu a vocação teatral, representando, um a um, todos os Diabos, dos Autos de Gil Vicente..
Esse primeiro capítulo do livro "Maria Ruth" é, todo ele, dedicado à cidade do Porto, aos passeios ao Palácio de Cristal, ou à Foz, às sessões de cinema no Rivoli, às festas de São João. As boas recordações da adolescência são, sobretudo, dos ambientes portuenses com que se identifica. Como diz "só consigo lembrar os barulhos de fora, da rua, da cidade, dos outros. De dentro de casa, do dia a dia, nada..."
Nas suas próprias palavras: "quando embarquei para o Brasil, no Serpa Pinto, com a minha mãe, levava também a certeza de um destino, pois soube que tudo o que sucedeu na minha vida, mesmo antes do meu nascimento, estava moldado por uma força universal, cósmica, transcendente". E, na verdade, foi cumprindo os seus sonhos de jovem imigrante a um ritmo vertiginoso. Aos 18 anos editava uma revista "Ala Arriba" e na qualidade de jornalista (amadora) corria o mundo e entrevistava uma longa lista de líderes famosos como Foster Dulles, Krushev ou Nasser. As suas reportagens eram disputadas por revistas como a "Life" e por prestigiados jornais de S, Paulo e Lisboa,
Entre os 20 e os 30 anos. impôs--se como empresária e produtora de teatro e, depois, como atriz talentosa. No Teatro a que deu o nome, (já não Maria Ruth dos Santos, mas Ruth Escobar, apelido do segundo marido, o poeta e dramaturgo Carlos Escobar), levou a cena tanto os prediletos autos Vicentinos como peças contemporâneas. Em 1963, inovou com a criação do Teatro Nacional Popular, que chegava às periferias do Estado, a muitos milhares de pessoas, com espetáculos de grande qualidade (Martins Pera, Suassuna...) em palco improvisado num velho autocarro.
O seu terceiro marido o arquiteto Wladimir Cardoso, viria a ser o cenógrafo de peças de enorme êxito artístico - como "Cemitério de automóveis" de Arrabal, com montagem do argentino Vitor Garcia, e encenação da própria Ruth: Uma dupla que, em 1969, com "O balcão" de Jean Genet, venceria todos os prémios do ano, no Brasil.
A partir de 1964, na casa dos seus 30 anos, Ruth atravessou o período conturbado da ditadura e.o seu teatro converte-se em espaço de luta pela liberdade, apesar das
ameaças, interrogatórios, prisões, ataques de comandos para-militares e violência sobre os atores e sobre ela. Nesta década trouxe a Portugal alguns dos seus maiores sucessos, "Missa leiga" e "Cemitério de automóveis" .
Em 1974, organizou o 1.º Festival Internacional de Teatro de S Paulo, levando ao Brasil as melhores companhias do mundo e contribuindo para um movimento renovador das Artes dramáticas brasileiras, que o 2.ª Festival, em 1976, veio aprofundar.
Ruth voltou a fazer história, como pioneira no domínio da política, ao tornar-se a primeira mulher eleita e reeleita deputada à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ao abrigo do Tratado de Igualdade de Direitos entre Portugueses e Brasileiros, pois teve sempre só a nacionalidade portuguesa). Foi também a primeira Presidente do "Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres" e, durante anos, a Representante do Brasil nas Nações Unidas para o acompanhamento da Convenção contra a discriminação das Mulheres Depois de quase uma década nos palcos políticos do Brasil e da ONU, regressou, nos anos noventa, aos palcos do teatro, como intérprete, e como empresária e promotora de festivais internacionais, em novos moldes, mais abrangentes de outras artes .
A sua herança teatral, enraizada no Gil Vicente da juventude, e no vanguardismo em que projetou a sua criatividade ao longo de décadas, mudou a face do moderno teatro brasileiro . A sua última grande produção seria, por sinal, uma encenação de "Os Lusíadas".
.Em vida, Ruth Escobar recebeu as maiores condecorações brasileiras, a "Legião de Honra" da França, a "Ordem do Infante D Henrique" de Portugal A sua morte, a 5 de outubro de 2017, foi sentida no Brasil e nas Nações Unidas, onde deixou uma imagem inspiradora. Em Portugal. passou por um quase total silêncio
O Município do Porto poderia, agora, destacar este raro percurso cívico, artístico e político da Cidadã Portuense Ruth Escobar, mantendo viva a sua memória na toponímia da cidade.
Desde já agradeço a atenção que a proposta venha a merecer a apresento a Vossa Excelências, com elevado apreço, os meus melhores cumprimentos
A partir de 1964, na casa dos seus 30 anos, Ruth atravessou o período conturbado da ditadura e.o seu teatro converte-se em espaço de luta pela liberdade, apesar das
ameaças, interrogatórios, prisões, ataques de comandos para-militares e violência sobre os atores e sobre ela. Nesta década trouxe a Portugal alguns dos seus maiores sucessos, "Missa leiga" e "Cemitério de automóveis" .
Em 1974, organizou o 1.º Festival Internacional de Teatro de S Paulo, levando ao Brasil as melhores companhias do mundo e contribuindo para um movimento renovador das Artes dramáticas brasileiras, que o 2.ª Festival, em 1976, veio aprofundar.
Ruth voltou a fazer história, como pioneira no domínio da política, ao tornar-se a primeira mulher eleita e reeleita deputada à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ao abrigo do Tratado de Igualdade de Direitos entre Portugueses e Brasileiros, pois teve sempre só a nacionalidade portuguesa). Foi também a primeira Presidente do "Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres" e, durante anos, a Representante do Brasil nas Nações Unidas para o acompanhamento da Convenção contra a discriminação das Mulheres Depois de quase uma década nos palcos políticos do Brasil e da ONU, regressou, nos anos noventa, aos palcos do teatro, como intérprete, e como empresária e promotora de festivais internacionais, em novos moldes, mais abrangentes de outras artes .
A sua herança teatral, enraizada no Gil Vicente da juventude, e no vanguardismo em que projetou a sua criatividade ao longo de décadas, mudou a face do moderno teatro brasileiro . A sua última grande produção seria, por sinal, uma encenação de "Os Lusíadas".
.Em vida, Ruth Escobar recebeu as maiores condecorações brasileiras, a "Legião de Honra" da França, a "Ordem do Infante D Henrique" de Portugal A sua morte, a 5 de outubro de 2017, foi sentida no Brasil e nas Nações Unidas, onde deixou uma imagem inspiradora. Em Portugal. passou por um quase total silêncio
O Município do Porto poderia, agora, destacar este raro percurso cívico, artístico e político da Cidadã Portuense Ruth Escobar, mantendo viva a sua memória na toponímia da cidade.
Desde já agradeço a atenção que a proposta venha a merecer a apresento a Vossa Excelências, com elevado apreço, os meus melhores cumprimentos
A partir de 1964, na casa dos seus 30 anos, Ruth atravessou o período conturbado da ditadura e.o seu teatro converte-se em espaço de luta pela liberdade, apesar das
ameaças, interrogatórios, prisões, ataques de comandos para-militares e violência sobre os atores e sobre ela. Nesta década trouxe a Portugal alguns dos seus maiores sucessos, "Missa leiga" e "Cemitério de automóveis" .
Em 1974, organizou o 1.º Festival Internacional de Teatro de S Paulo, levando ao Brasil as melhores companhias do mundo e contribuindo para um movimento renovador das Artes dramáticas brasileiras, que o 2.ª Festival, em 1976, veio aprofundar.
Ruth voltou a fazer história, como pioneira no domínio da política, ao tornar-se a primeira mulher eleita e reeleita deputada à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ao abrigo do Tratado de Igualdade de Direitos entre Portugueses e Brasileiros, pois teve sempre só a nacionalidade portuguesa). Foi também a primeira Presidente do "Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres" e, durante anos, a Representante do Brasil nas Nações Unidas para o acompanhamento da Convenção contra a discriminação das Mulheres Depois de quase uma década nos palcos políticos do Brasil e da ONU, regressou, nos anos noventa, aos palcos do teatro, como intérprete, e como empresária e promotora de festivais internacionais, em novos moldes, mais abrangentes de outras artes .
A sua herança teatral, enraizada no Gil Vicente da juventude, e no vanguardismo em que projetou a sua criatividade ao longo de décadas, mudou a face do moderno teatro brasileiro . A sua última grande produção seria, por sinal, uma encenação de "Os Lusíadas".
.Em vida, Ruth Escobar recebeu as maiores condecorações brasileiras, a "Legião de Honra" da França, a "Ordem do Infante D Henrique" de Portugal A sua morte, a 5 de outubro de 2017, foi sentida no Brasil e nas Nações Unidas, onde deixou uma imagem inspiradora. Em Portugal. passou por um quase total silêncio
O Município do Porto poderia, agora, destacar este raro percurso cívico, artístico e político da Cidadã Portuense Ruth Escobar, mantendo viva a sua memória na toponímia da cidade.
Desde já agradeço a atenção que a proposta venha a merecer a apresento a Vossa Excelências, com elevado apreço, os meus melhores cumprimentos
Maria Manueça Aguiar Dias Moreira
MEMÓRIAS DA PROVEDORIA DE JUSTIÇA
MEMÓRIAS DA PROVEDORIA DE JUSTIÇA
COM JOÃO CAUPERS NA LUTA PELA IGUALDADE
1 - Espantada com o que se tem dito e escrito sobre João Caupers, o novo Presidente do Tribunal Constitucional, que, na semana passada, foi tema obrigatório de comentário das nossas elites bem pensantes, nos mais excelentes jornais e programas televisivos, que costumo, respetivamente, ler e ver (em regra, com agrado, concorde ou discorde), não posso resistir à tentação de engrossar o caudal mediático, como cidadã, sem pretensões à superioridade intelectual e moral, que parecem arrogar-se todos aqueles vultos. Com uma pequena vantagem, a meu favor: ao contrário da maior parte deles, conheço João Caupers, trabalhámos, durante anos, como assessores do Provedor de Justiça. Foi há muito tempo, tinha eu trinta e poucos anos, e ele bastante menos - sendo o mais jovem e o mais brilhante de todos nós. A Provedoria de Justiça era, também, uma instituição nova, inspirada no "Ombudsman" nórdico, criada em 1976, no quadro da democracia nascente, que precisava de refazer a sua arquitetura jurídico-constitucional e de a habitar, mudando costumes e mentalidades. Neste aspeto, nenhuma estrutura era mais desafiante do que o Serviço e a figura do Provedor de Justiça - entidade à qual os cidadãos podiam, (podem), recorrer contra erros e abusos da administração pública. Os portugueses sabiam bem o que era o Poder constituído - o poder de legislar, decidir, executar, julgar e punir pela força da Lei. Era-lhes, todavia, culturalmente estranha a ideia de uma magistratura de influência, ancorada apenas na força da razão, para fazer justiça, com autoridade essencialmente moral. O Provedor recebe as queixas dos cidadãos, avalia-as face ao Direito, e se reconhecer o sua boa fundamentação, aceita-as e dirige ao governo recomendações, instando-o a cumpri-las Se a resposta for insatisfatória ou incompleta, resta-lhe dar publicidade à matéria, e, se for caso disso, pedir a inconstitucionalidade da norma ou da decisão concreta. Os "media" e a opinião pública são as melhores armas de que dispõe, numa sociedade livre, com a credibilidade que lhe vem da independência perante o poder político, da reputação de que goza, da excelência dos seus juízos de valor.
O primeiro Provedor de Justiça, em 1976, foi um "capitão de Abril", o então Tenente-coronel Costa Braz. O segundo, o Dr José Magalhães Godinho, grande advogado, corajoso democrata, durante o antigo regime, e um verdadeiro humanista.Tal como João Caupers, tive o privilégio de trabalhar com ambos e de acompanhar de perto a forma como souberam corporizar a instituição. A política afastou-me da Provedoria, em definitivo, a partir do início da década de 80, e não pude seguir, de perto, a sua trajetória mas ficou-me a impressão de um progressivo apagamento, apesar dos nomes ilustres que ali se sucederam, até que, finalmente, o cargo foi entregue a uma mulher, Maria Luísa Amaral - a mulher certa - e, com ela, retomou o antigo fulgor. A sua mais recente tomada de posição aponta à inconstitucionalidade das alterações à legislação eleitoral autárquica, engendradas pelo bloco central parlamentar...
2 - Comecei a minha vida profissional como assistente de um centro de estudos juslaborais (em alguns períodos acumulado com o ensino universitário) e, depois, como assessora do Provedor de Justiça. Lugares de gabinete, onde, não havendo promoções, competição, rivalidade, éramos todos amigos e solidários. Não sei se em funções desta natureza, isso acontece como regra. Talvez eu tenha sido um caso muito afortunado... Na verdade, não só os colegas, mas também os "chefes" foram excecionais, a ponto de não recordar o mínimo incidente desagradável numa década muito feliz. Não posso, obviamente, dizer o mesmo do que se seguiu em outras funções, (que não estavam nos meus planos), em Governos e no Parlamento, onde, como se sabe, não é praticamente impossível encontrar o mesmo grau de harmonia e boa vontade.
Na minha primeira experiência governativa - com o Prof. Mota Pinto num governo de independentes, de nomeação presidencial, para o qual fui chamada precisamente por não ter filiação partidária - levei comigo, como Chefe de Gabinete, o colega da Provedoria, Manuel Marcelino, uma sumidade em Direito Administrativo. E quando, em março de 1979, descobri, esquecido numa gaveta, um anteprojeto de lei sobre a igualdade no emprego, logo decidi constituir uma equipa para lhe dar rápida sequência, já que aquele governo tinha um limitado horizonte de vida. Para a finalizar, em tempo útil, era essencial a condução com competência jurídica, dinamismo e sensibilidade para as questões da igualdade. Eu era politicamente independente, mas com convicções políticas assentes - social-democrata à sueca, naturalmente feminista e defensora do sistema de quotas, que só havia de chegar a Portugal no século XXI, com uma quase geral oposição dos conservadores de direita (e até de alguma esquerda...).
Em 1979, não era fácil encontrar alguém com este perfil, com a consciência das discriminações de género subsistentes. Mais uma vez olhei para o meu serviço de origem, reconhecido pelo valor da sua assessoria jurídica. Mulher ou homem? Um homem, concluí, porque era tempo de mostrar a luta pela igualdade como causa comum e vital para o progresso da sociedade, não matéria que respeitava apenas ao "gueto" feminino.
De todos os meus colegas, o que, a meu ver, melhor se ajustava ao exigente perfil assim predefinido, era, sem dúvida, o jovem João Caupers. Sempre apreciei nele a rapidez de raciocínio, decisão e argumentação, combinados com uma postura frontal e um sentido de humor, que, em Portugal, é coisa rara e nem sempre bem compreendida. Ideologicamente, considerava-o tudo menos conservador - se o fosse, em 1979, nem entenderia o alcance da legislação que queríamos ultimar. João Caupers aceitou de imediato, o desafio, e o curtíssimo prazo previsto, para concluir a missão. E, como era de prever, cumpriu-o de uma forma exemplar.
3 - O anteprojeto foi, como disse, achado, no meu gabinete da Praça de Londres - onde estava há vários governos (de curta duração e com outras prioridades) e fora preparado pela Comissão da Condição Feminina. O objetivo era compilar legislação dispersa sobre a matéria, o que serviria, também, pondo o enfoque na questão da Igualdade. A minha intenção era ir mais longe, tendo como paradigma o Ombudsman (ou Provedor) para a Igualdade da Suécia, cuja prioridade é garantir o equilíbrio de género no mercado de trabalho, dando, em condições de igualdade, preferência ao sexo subrepresentado na profissão.Tive do Secretário de Estado do Emprego João Padrão, meu colega de curso, imediata e absoluta concordância. Por despacho conjunto, constituímos o grupo de trabalho, que integrava representantes da Comissão da Condição Feminina, sob a presidência de João Caupers.
O prazo foi cumprido, ouvidos sindicatos e entidades patronais, e o texto final, veio a converter-se em lei, colocando Portugal na vanguarda da Europa e merecendo os maiores encómios de organizações internacionais, Digo-o com o à vontade, porque as fórmulas originais encontradas, tiveram o meu incondicional apoio, mas não são minhas - têm a inconfundível marca de João Caupers. O texto era absolutamente inovador, não se limitava à codificação de normas, antes criava uma instância tutelar e fiscalizadora, a "Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego" (CITE), instituição de natureza tripartida (com representantes do Governo, dos Sindicatos e Associações Patronais) - um "Ombusman" à portuguesa! O acento tónico foi colocado na luta contra as assimetrias salariais, em função do sexo, contra uma conceção do trabalho feminino como inferior, mais barato. mão de obra de recurso. Para as desocultar, estabelece-se a comparação entre as condições aplicáveis a mulheres e a homens, para a mesma tarefa, como o mesmo grau de formação, anos de experiência, etc. É o que na economia do diploma se chama o confronto com o "homem comparável". A diferença de tratamento dada a uma trabalhadora em idênticas circunstâncias, obriga a empresa ao ónus de provar que o desfazamento salarial resulta de outro factor, que não o sexo. E a lei vai a ponto de impor a nulidade das normas que pretendem prever categorias profissionais exclusivamente femininas, com remunerações inferiores às aplicáveis a tarefas equivalentes de profissionais masculinos, passando a aplicar-se "ope lege" estas últimas, do mesmo modo às mulheres.
A solução sueca não era, então, fácil de aceitar entre nós (nem então nem hoje, quatro décadas depois...), mas por outras vias, afinal, se delineava um normativo de combate às discriminações, que permitia à CITE ir aperfeiçoando os conceitos de "trabalho igual" e de "valor igual".
4 - Nestes últimos 40 anos, só reencontrei João Caupers, uma vez, já Conselheiro do Tribunal Constitucional, na homenagem a um amigo da então novíssima instituição, que era a Provedoria. Pareceu-me "muito igual a si próprio". Os seus pares do TC, que o escolheram para a presidência - tornando-o "primus inter pares" - têm, claramente, por ele a mesma admiração que aqui lhe manifesto.
A polémica é absurda, tendo ele nos seus escritos rejeitado inequivocamente todas as forma de discriminação ou tratamento menos digno, em função das escolhas sexuais de qualquer minoria. Comentários sobre "lobbies", deste ou daquele grupo, situam-se no puro domínio de liberdade de expressão, como muito bem disse Miguel Sousa Tavares, (uma das poucas vozes lúcidas, que se ouviu no meio de tanto barulho). Tinha razão Ana Gomes, quando lembrava que, por vezes, há tiques de Órban em bocas de esquerda...
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021
IDALINA DE SOUSA depoimento
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quinta, 22/08, 13:49 (há 11 horas)
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um depoimento da Drª Idalina Sousa (Câmara de Espinho)
A mesa da reunião, tenha o formato que tiver, é sempre redonda.
As ideias correm soltas, ágeis, desabridas, até, mas sobretudo aladas, porque livres nos
voos precisos e solidários, sábios e clarividentes.
Nós, fascinados, sentimo-nos pequeninos e, exaustos, arriscamos:
_ Sra. Dra, dê-nos um pouco de tempo para…
_ Tempo? É por isso que este País não anda para a frente
Logo depois o olhar diz, imperioso:
_ Vá lá cresçam! Quero-vos a meu lado. Ombro a ombro.
Pára por uns segundos …sorri e conta uma das suas histórias com um sentido de
humor surpreendente, que confirma a sua inteligência superior e nos faz rir, rir…
E então à mesa, cada vez mais redonda, as ideias jorram, atropelam-se, depois
discutem-se, nascem mil projectos e multiplicam-se as demandas que não param
nunca.
A senhora, a grande senhora, como já se ouve nos corredores da cidade, calcorreou
os quatro cantos do mundo e sabe, como poucos, aceitar as diferenças e que este é
um dos mais nobre desígnios da acção cultural, um dos caminhos obrigatórios para a
verdadeira igualdade e desenvolvimento.
A senhora não pára. Não pára nunca. E como pode parar se, para tantas e tantos, o
mundo, às vezes, parece que gira ao contrário?
As ideias correm soltas, ágeis, desabridas, até, mas sobretudo aladas, porque livres nos
voos precisos e solidários, sábios e clarividentes.
Nós, fascinados, sentimo-nos pequeninos e, exaustos, arriscamos:
_ Sra. Dra, dê-nos um pouco de tempo para…
_ Tempo? É por isso que este País não anda para a frente
Logo depois o olhar diz, imperioso:
_ Vá lá cresçam! Quero-vos a meu lado. Ombro a ombro.
Pára por uns segundos …sorri e conta uma das suas histórias com um sentido de
humor surpreendente, que confirma a sua inteligência superior e nos faz rir, rir…
E então à mesa, cada vez mais redonda, as ideias jorram, atropelam-se, depois
discutem-se, nascem mil projectos e multiplicam-se as demandas que não param
nunca.
A senhora, a grande senhora, como já se ouve nos corredores da cidade, calcorreou
os quatro cantos do mundo e sabe, como poucos, aceitar as diferenças e que este é
um dos mais nobre desígnios da acção cultural, um dos caminhos obrigatórios para a
verdadeira igualdade e desenvolvimento.
A senhora não pára. Não pára nunca. E como pode parar se, para tantas e tantos, o
mundo, às vezes, parece que gira ao contrário?
(DES)GOVERNO SEM ALTERNATIVA
Maria Manuela Aguiar DE VEZ EM QUANDO
SEM ALTERNATIVA
1 – Os grandes homens e as grandes mulheres revelam-se em tempos de crise, pela capacidade em passar do remanso da normalidade à gestão inteligente e eficaz do desconhecido, de catástrofes inimagináveis. Para nossa infelicidade, a pandemia de 2020/21 veio patentear a inexistência de políticos com esse perfil entre os que nos governam – ou desgovernam. O PM e o PR, agora reeleito, não conseguiram “agir”, mas tão só “reagir” à situação, e fizeram de conta que assumiam, não assumindo, as suas responsabilidades no caos em que tentamos sobreviver. Para além deles, no parlamento e nos partidos de oposição não parece haver ninguém com peso e influência na matéria. E os poucos que levantam a voz são, de imediato, intimidados com o labéu de “traidores à pátria”.
E, assim, entramos no “inferno português” das chamadas segunda e terceira vagas, que, após breve hiato estival, sucedeu ao ambíguo “milagre português” da primeira vaga – o qual, creio eu, só foi possível graças ao atempado confinamento de março 2020, por iniciativa dos próprios cidadãos, impressionados pela imagens que chegavam de Itália, e contra a teimosa renitência governamental. Por isso, tendo o povo sido incitado a relaxar no verão, com multidões nas praias, e um público apelo à vinda dos turistas ingleses e espanhóis, (sem testes nem controlo à chegada, salvo na Madeira e nos Açores – bendita seja a Autonomia…), e tendo, depois, atravessado o outono, despreocupadamente, e passado o Natal em “shoppings” sobrelotados e festas de família, nos vemos, em janeiro de 2021, no topo da lista negra, em número de mortos pela pandemia (proporcionalmente à população) – perdido que foi, há muito e por completo, o rasto às cadeias de contágio.
De bom, avulta o esforço constante dos profissionais de saúde, em cada um dos hospitais, (que até para transferirem doentes das unidades que esgotam recursos, pedem e dão apoios num eixo bilateral). e o de todos aqueles autarcas, que têm sabido estar no terreno, junto dos munícipes. Num programa de televisão a que assisti, recentemente, os presidentes das Câmaras de Gaia (PS), Viseu (PSD) e Loures (PCP) falavam, em tal sintonia, das soluções encontradas face aos ciclópicos problemas trazidos pela Covid, que, se não soubéssemos a sua cor política, era difícil adivinhá-la.
Fui sempre regionalista e sinto-me, agora, não direi reforçada nas minhas convicções, porque já eram inabaláveis, mas com mais e melhores argumentos para as defender. Madeira, Açores e muitas autarquias são prova bastante da superior eficácia e sensibilidade destes governos de proximidade, quando comparados com o desnorteado governo da República.
2 – Cronologicamente, o último erro de monta a apontar aos nossos políticos é o da realização das eleições presidenciais, a 24 de janeiro, em plena pandemia! Na véspera, o número de mortos (272) e o de novos casos diários (mais de 15.000), constituíam novos recordes, mas nem isso moderava o entusiasmo de apelar ao voto, por parte de candidatos, governantes, CNE ou comentaristas dos “media” – todos, em uníssono, assegurando que o ato era realizado em condições de perfeita segurança. Quod erat demonstrandum… Com o meu pessimismo de hipocondríaca (caraterística, por acaso, partilhada com o Senhor Presidente da República), logo admiti como muito provável o aumento de contágios e de fatalidades, mormente nos grupos de risco – os velhinhos que a DGS quer sempre cautelosamente confinar, exceto quando está em causa o “superior interesse” de ganhar uma mão cheia de votos.
Ora a democracia não morreria, se os mais vulneráveis escolhessem, sem pressões, ficar em casa, ao abrigo da exposição ao vírus e às intempéries, até porque os políticos não trataram de lhes dar, de facto, as condições de um voto seguro e fácil – por correspondência, ou meios digitais. E nem sequer, ao contrário do que acontece em países verdadeiramente preocupados com os seus idosos, (como os EUA, ainda no mandato de Trump, e, agora, no de Biden, a Alemanha da Senhora Merkel, a maioria dos nossos parceiros europeus), os colocaram na primeira linha de vacinação anti-Covid. Só por força de uma alteração de 25.ª hora, os maiores de 80 anos, que residem “em liberdade” (isto é, os que não cumprem autênticas penas de prisão em lares de idosos), serão, ao que parece, requalificados na lista de precedência de vacinação. (De fora fica, estranhamente, a faixa etária dos 70/79 anos).
Em suma, estas eleições deveriam ter sido adiadas, em outubro ou novembro, quando as cadeias de contágio já cresciam assustadoramente, pela via de uma revisão – relâmpago de um artigo da Constituição na Assembleia da República. Em alternativa, poder-se-ia ter previsto, no texto constitucional, a faculdade do voto por correspondência, (de que já há experiência no nosso sistema eleitoral), e até do voto eletrónico, que é o futuro.
Segundo a sondagem do “Expresso”, na véspera das eleições, ainda 57% dos portugueses queria o adiamento, contra uma minoria de 37%. Um povo bem mais avisado do que os seus representantes eleitos!
Na verdade, só o adiamento do processo e (ou) a votação postal teriam garantido o voto a todos os cidadãos, nomeadamente os emigrantes e os que, por razões de saúde, ou de confinamento profilático, a partir do dia 14 de janeiro, viram, na prática, denegado esse direito. O PR soube lembrá-los como desculpa para a elevada abstenção, mas não contribuiu “ex ante”, para que fossem criadas efetivas condições de sufrágio universal.
Uma palavra de especial agradecimento é devida aos milhares de portugueses que permaneceram por mais de doze horas nas mesas de voto, arriscando voluntariamente a sua saúde, apesar de todas as precauções certamente tomadas.
3 – O desenlace eleitoral não trouxe surpresas de maior. O Porto acompanhou o resto do país, muito embora, com Ana Gomes mais destacada à frente de Ventura e o portuense Mayan Gonçalves com votação superior à da sua própria média nacional.
Ventura foi, em alguns “media” estrangeiros, chamado o “Trump português”. Talvez goste da comparação e não podem negar-se algumas similitudes de caráter, de pensamento e de estilo arruaceiro… Ambos atraem o eleitorado do “país profundo”, interior, menos letrado e menos desenvolvido, e, saliente-se, masculino – é sabido que, nos EUA, Trump ganhou na metade masculina, e Biden venceu, largamente, no país, graças às mulheres de todas as raças e idades.
Em Portugal, Marcelo estará em Belém por mais cinco anos, sem polémicas nem contestação. É de outra ordem a dúvida que ficou no ar: em que medida podem estes resultados ser extrapolados para as próximas eleições legislativas? Uma sondagem da Universidade Católica, feita à boca das urnas, veio dar-nos uma primeira ideia sobre a redistribuição dos sufrágios de Marcelo (que colheu de todas as esquerdas à direita democrática), e os reequilíbrios partidários que se adivinham: um PS (com 35%), um PSD (com 23%), ambos em perda, mas continuando a dominar o largo “centrão” do espectro político. À esquerda e à direita, porém, anuncia-se que nada permanecerá como dantes. A extrema-direita (com 9%) e o centro- direita, do Iniciativa Liberal (com 7%) relegam o CDS/PP para uns residuais 2% – o mesmo que o PAN. O BE consegue segurar 8%, o PCP, derrotado no seu antigo reduto alentejano pelo discurso incendiário de”O Chega”, mantém a posição, (recuperando alguns fiéis tresmalhados) e o “Livre” não vai além de 1%.
Que política de alianças permitiria o quadro em que esta sondagem profetiza? Uma nova “geringonça”, não menos instável? Uma (praticamente) impossível reedição do “Bloco Central” de Mário Soares e Mota Pinto? De fora, por força da estatística, e não só, deve ficar o paradigma açoriano… Brada o Ventura que o PSD não pode ser governo sem “O Chega”. Bem pelo contrário: o PSD não pode, a meu ver, nunca, ser governo com “O Chega”! Ganhará, sim, talvez, no plano interno, com ou sem CDS, um novo parceiro possível, ideologicamente distinto, mas decente e democrata – o IL – depois de, a nível internacional, ter pertencido, por largos e bons anos, à Internacional Liberal.
No horizonte próximo, este (des)governo não se verá, provavelmente, ameaçado por qualquer alternativa. Não se sabe, porém, se o Presidente andará mais desperto e pronto a “apagar fogos”…
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