quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Brasil/Portugal A QUESTÃO DA RECPROCIDADE

A comunidade luso-brasileira é uma realidade humana, histórica, sociológica,
linguística, cultural, afetiva, que antecede em séculos a sua consagração na
esfera do Direito interno e internacional. Mais do que a história desta
comunidade, é a da sua supra estrutura jurídica, e dos processos de formação
da vontade política que lhe deu a sua arquitetura atual, num e noutro país, que
vamos, de uma forma necessariamente sumária, trazer hoje a debate.
A nível bilateral, as primeiras negociações tiveram lugar nas décadas 50 e 70
do século passado. A elas se seguiu, em 1988, uma iniciativa unilateral
brasileira, que, em sede constitucional, consagrou a plena equiparação dos
portugueses a nacionais, sob condição de reciprocidade para os brasileiros.
Não se tratou de consagrar a dupla cidadania, mas de lhes conceder os direitos
da nacionalidade brasileira, na qualidade de imigrantes portugueses. Um inciso
à medida das aspirações de uma grande comunidade, a nossa, que nunca se
considerou estrangeira no "país irmão". O poderoso movimento associativo,
que é seu porta-voz, e muitas personalidades influentes na sociedade e na vida
política do país, uniram-se para levar o estatuto de igualdade à sua última
fronteira. Da pura utopia se passou a uma absoluta singularidade em matéria
de Direito comparado. Em  Brasília, fora complexo o processo de feitura da
Constituição, em especial no capítulo da nacionalidade - com uma única
ressalva: a atribuição dos direitos de cidadania aos portugueses, votada sem
discussão e por unanimidade! Esperava-se outro tanto da Assembleia da
República em Lisboa. Contra as expetativas, a sua resposta não foi nem rápida
nem fácil, num ambiente partidário de incompreensão e de desconfiança, de
polémica e dissenso, que se arrastou por 13 longos anos e três processos
revisionais, comprometendo gravemente a tradicional cordialidade nas relações
entre os dois países. 
Começaremos por uma breve referência aos processos de negociação a nível
governamental, para abordar, depois, mais detalhadamente, a chamada
"questão da reciprocidade", que se suscitou com a transposição do processo
legislativo para o âmbito dos parlamentos.

I-1-O TRATADO DE AMIZADE E CONSULTA
O estatuto de cidadania luso-brasileira foi formalmente consagrado no "Tratado
de Amizade e Consulta", em 1953 e abrangia o direito de livre circulação, de

residência e de estabelecimento dos nacionais de um país no outro e a
concessão dos direitos da nacionalidade, que não fossem incompatíveis com
as respetivas Constituições. Não exigia a prévia residência no território,
podendo ser invocado tanto durante uma estadia transitória (art. 4), como para
o livre estabelecimento de domicílio no país (art. 5).
Um acordo bilateral pioneiro, em termos de Direito internacional, fundamentado
na realidade de uma comunidade preexistente, que a Lei se limitava a subsumir
e reconhecer na sua letra. Comunidade nascida do incessante movimento
migratório, de que se fez a história partilhada, antes e depois da independência
do Reino Unido. Ao longo dos séculos, e, sobretudo, a partir de oitocentos,
emigrar era, praticamente, sinónimo de emigrar para a imensa colónia sul-
americana. Desde as Ordenações Filipinas a legislação portuguesa tentou,
com medidas proibitivas ou restritivas, em vão, travar as correntes migratórias
consideradas excessivas. Desse "excesso" se fez  percurso e convívio de
gente comum, mais igualitário e fraterno do que o que é regra estabelecer entre
a administração colonial e o povo. Assim o proclama, afinal, o Tratado, ao falar
de "afinidades espirituais, morais, éticas e linguísticas", de que resulta "uma
situação especialíssima para os interesses recíprocos dos dois povos".
Este documento matricial foi assinado no Rio de Janeiro, a 16 de novembro de
1953, pelo Embaixador António de Faria, por Portugal, e pelo Ministro das
Relações Exteriores Vicente Reo, pelo Brasil.

I - 2 - CONVENÇÃO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES ENTRE
PORTUGUESES E BRASILEIROS (1971)

Em 1969, a emenda  nº 1 à Constituição brasileira veio explicitar os direitos
civis e políticos dos portugueses a nível local, estadual e federal, incluindo o
sufrágio nas eleições legislativas. Portugal deu idêntico tratamento
aos brasileiros ao assinar a "Convenção de Igualdade de Direitos e Deveres
entre Portugueses e Brasileiros", em 1971, que, no art.1 estipula "Os
Portugueses no Brasil e os Brasileiros em Portugal gozarão de igualdade de
direitos e deveres com os respetivos nacionais", distinguindo dois estatutos -
o "Estatuto geral de igualdade",  que tem de ser requerido à entidade
competente e pressupõe apenas a capacidade civil e a residência permanente

no território e o "Estatuto especial de igualdade de direitos políticos",  que exige
a residência principal e permanente há mais de cinco anos e a prova de que o
cidadão não se encontra privado de direitos políticos no país de origem.
Em relação ao Tratado de 1953, registam-se  progressos no campo da
intervenção política, designadamente, com a previsão dos direitos de voto
inclusive, a nível federal, assim como do acesso à magistratura judicial.
Todavia, a Convenção dirige-se, em primeira linha aos imigrantes, deixa de se
aplicar à generalidade dos naturais dos dois países e não prevê a liberdade de
circulação.
É de salientar que, nesta data, cessara já a emigração em massa de
portugueses para o Brasil, e era praticamente inexistente a de brasileiros em
Portugal, pelo que a Convenção beneficiava, sobretudo, as nossas
comunidades radicadas no país, satisfazendo, fundamentalmente, as suas
reivindicações. Não lhes faltava prestígio e capacidade de se fazer ouvir - as
razões determinantes de ter sido sempre o Brasil o principal obreiro dos
processos negociais, a que Portugal quase se limitou a corresponder
(paradoxalmente, melhor, então, durante a Ditadura do que, depois, em
Democracia...)..
Numa primeira comparação entre o conteúdo da cidadania luso- brasileira,
resultante da Convenção de 1971, e o da "cidadania europeia": constatamos
que, embora aquela não abranja o direito de livre circulação (aliás, concedido
com fortes limitações dentro da EU…),  vai muito mais longe no campo dos
direitos civis e políticos. Na verdade, não se vê como e quando a UE
conseguirá ultrapassar o tabú em que está convertida a ideia da partilha de
soberania, pela abertura à participação dos cidadãos europeus, não nacionais,
na escolha democrática dos seus órgãos de soberania. Coisa encarada como
tão natural no
vasto espaço da lusofonia (de notar que, antes da independência das colónias
portuguesas, os acordos celebrados neste domínio, englobavam, efetivamente,
todo esse universo, só depois se limitando ao luso-brasileiro).
 ...
  II -A QUESTÃO DA RECIPROCIDADE
 II -1  A iniciativa dos Constituintes Brasileiros

 A Assembleia Constituinte da República Federal do Brasil, em 1988, tendo
com Relator o Constituinte Bernardo Cabral, tomou a iniciativa de ampliar o
estatuto de direitos dos portugueses, equiparando-o ao dos brasileiros por
naturalização
Nos termos do parágrafo 1º, do art.12: “Aos Portugueses com residência
permanente no País, se houver reciprocidade em favor dos Brasileiros, serão
atribuídos os direitos inerentes aos brasileiros natos, salvo os casos previstos
nesta Constituição”
O parágrafo 3º enumera os cargos políticos exclusivos dos brasileiros natos -  o
de Presidente da República, os que estão na sua linha de sucessão, a carreira
diplomática e o posto de oficial das Forças Armadas.
Aos portugueses são, assim, reconhecidos os direitos de voto em todas as
eleições locais, estaduais e federais, a possibilidade de serem deputados,
membros do governo, ou juízes dos tribunais superiores.
No Brasil dessa época eram já muito significativos os exemplos de vivência
concreta do estatuto de igualdade, caso de Ruth Escobar, hoje aqui
homenageada, que, tendo tido sempre exclusivamente a nacionalidade de
origem foi a primeira mulher eleita deputada à Assembleia do Estado de São
Paulo e a primeira representante do Brasil nas Nações Unidas, para o
acompanhamento da Convenção contra todas as formas de discriminação
feminina.
Entre nós, tantos anos após a entrada em vigor do mesmo Estatuto, ainda não
conhecemos Brasileiros em cargos políticos de idêntico relevo, numa
comunidade que vem crescendo desde a década de 90…

II - 2 -  As Revisões Constitucionais de 1989 e de 1997
Ao tempo em que foi conhecido o texto da Constituição brasileira, preparava-se
em Lisboa a segunda revisão da Constituição de 1976. Todavia, nenhum dos
projetos subscritos pelos partidos cuidava de introduzir no art.15 as alterações
exigíveis para a entrada em vigor do novo Estatuto de Igualdade de Direitos
políticos. Era o primeiro indício de incompreensão partidária da importância de
aprofundar a cidadania luso-brasileira. Insensibilidade dos partidos, não dos
deputados. Sintonizada com o sentir das comunidades portuguesas do Brasil,
através de contactos frequentes ao longo de quase 20 anos, alertei para a

situação a Comissão de Negócios Estrangeiros, onde, de imediato, por
unanimidade se votou a seguinte recomendação de nova redação do nº 3 do
art.15, dirigida à Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
(CERC): “Aos cidadãos dos países de língua portuguesa podem ser atribuídos,
mediante convenção internacional e sob condição de reciprocidade, direitos
não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso à presidência de órgãos de
soberania, e das Regiões Autónomas, as funções de Ministro de  Estado, o
serviço das Forças Armadas e a carreira diplomática”.
Na Comissão de Negócios Estrangeiros constatamos a espontânea reação de
cada um dos deputados, em favor da reciprocidade. Pelo contrário, na CERC
prevaleceram as posições de cada um dos partidos, cujos representantes
ignoraram aquela recomendação. Quando os projetos de revisão subiram a
plenário, foi pela mão de 57 deputados de todos os partidos, a título individual,
que a emenda ao art.15 foi subscrita. Entre eles estavam os nomes de Adriano
Moreira, Pedro Roseta, Natália Correia, Manuel Alegre, Jaime Gama, Luísa
Amorim e até do líder parlamentar do PS (António Guterres) e de um
Vice.presidente da bancada do PSD (Pacheco Pereira). A proposta não obteve
a necessária maioria de 2/3, devido à abstenção ou ao voto contra de PSD, PS
e PCP. A favor, o CDS, o PRD, independentes, como Corregedor da Fonseca e
Helena Roseta, e os deputados, que tiveram a coragem de divergir das suas
bancadas parlamentares.
O eco mediático desta falta de reciprocidade portuguesa teve  naturalmente,
forte impacto negativo do outro lado do Atlântico.
A revisão constitucional de 1996/97 foi antecedida por um acordo extra-
parlamentar dos dois maiores partidos, em que nada se dizia sobre a dação de
reciprocidade no art. 15. Sabia-se que todos os partidos parlamentares eram já
favoráveis à reciprocidade salvo o PS, por inultrapassável oposição do influente
Presidente da Assembleia  da República Almeida Santos, advogado de
profissão, que rejeitava tanto o acesso à magistratura judicial (já aberto na
Convenção de 1971) como a intervenção política prevista na Constituição de
1988.
Apresentamos, novamente, uma proposta de reformulação do art.15, assinada
por cerca de 50 deputados de todas as bancadas, incluindo alguns notáveis
socialistas. O PS inviabilizou a sua aprovação.

A argumentação aduzida, durante os anos de denegação da reciprocidade,
quase se limitava a agitar o medo de "invasão" de um pequeno território
habitado por 10 milhões, por quase 200 milhões de brasileiros e a mais alguns
milhões de africanos e timorenses,(que involuntariamente entravam na crónica
do desentendimento luso-brasileiro, só porque todas as propostas sufragadas
sobre o art.15 os abrangiam, também, "sob condição de reciprocidade", que,
aliás, nenhum deles, até hoje, se mostrou minimamente interessado em
conceder). Todavia, o que estave em causa não era a possibilidade de livre
circulação, mas apenas o alargamento do estatuto de direitos políticos, só ao
alcance de imigrantes legais com mais de cinco anos de residência!...
E assim se criou e se manteve um clima de tensão no relacionamento luso-
brasileiro, que foi particularmente visível durante a visita de estado do
Presidente Jorge Sampaio ao Brasil, nesse ano de 1997 – não obstante ele ter
manifestado o maior apoio à causa da cidadania luso.brasileira.
Na sequência das declarações do Presidente, o PSD, através de três dos seus
deputados, tentou ainda promover a revisão extraordinária da Constituição,
viável por maioria de 4/5, não tendo podido reunir o indispensável consenso.
Nem mesmo no ano 2000, por ocasião das comemorações dos 500 anos do
descobrimento do Brasil, tal desiderato foi alcançado. Os governos não
foramalém da assinatura de uma mera compilação dos tratados bilaterais em
vigor, com uma melhoria de reduzido significado no estatuto de direitos
políticos -  o encurtamento do prazo para o requerer de cinco para três anos

II-3 - A Revisão Constitucional de 2001
Em 2001, a fim de permitir a adesão  Portugal ao Tribunal Penal Internacional,
foi convocada, de urgência, uma revisão extraordinária da Constituição, À
partida, para decidir apenas esse ponto, mas tendo alguns partidos aproveitado
para acrescentar mais um ou outro, a título excecional,, também eu no grupo
parlamentar do PSD coloquei como inadiável a alteração do art.15. Nem todos
pareciam muito recetivos, até que Durão Barroso, o presidente do partido,
surgiu em seu favor. Pela primeira vez, a respetiva proposta seria feita por um
partido politico, não por um grupo de parlamentares, a título pessoal, Pela
primeira vez, também, a CERC ouviu, em audiência pública, entre outras
personalidades. um incondicional defensor da imediata dação de reciprocidade:

o Dr Mário Soares. A intervenção clara, concisa e veemente do fundador do PS
conseguiu em poucos minutos o que tardara em anos de combate: levar o
representante da bancada socialista a dar ali, sem mais hesitações, um "sim"
definitivo. Quando a proposta foi debatida e votada no hemiciclo, já o consenso
de todas as bancadas, e de todos os deputados, era um dado adquirido.
Houve, é certo, ainda ocasião para uma última e pontual divergência, mas de
natureza puramente simbólica: a inclusão ou não de uma expressa referência
ao Brasil  no corpo do artigo, atendendo a que a Constituição brasileira também
menciona Portugal e os portugueses. Mas a tarefa fundamental estava
concluída, nessa tarde de 4 de outubro, em ambiente de concórdia e de festa,
à volta destes dizeres do nº 3 do art 15:
" Aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa, com residência permanente
em Portugal, são reconhecidos, nos termos da lei e em condições de
reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso aos
cargos de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República,
Primeiro ministro, Presidentes dos tribunais supremos e ao serviço das Forças
Armadas e no serviço militar."-
Na verdade, o grande debate ocorrera, como vimos, meses antes, em julho de
2001, fora do hemiciclo, E as palavras que mais merecem ser lembradas são
as de um tribuno, que ao tempo, já não era parlamentar: Mário Soares, que
disse, cito:
"Este é um ato político de grande visão em relação ao futuro, que devem
considerar como um passo mais naquilo que é o nosso universalismo, que é o
reforço de Portugal no mundo, quer em relação aos brasileiros, quer em
relação aos africanos, quer em relação, futuramente, aos timorenses"

Sem comentários:

Enviar um comentário