sexta-feira, 1 de março de 2013

MULHERES EM MOVIMENTOI Porto 2013

Feminism is the radical notion that women are people

1 - UMA FAMÍLIA ESTIMULANTE

Sou feminista desde que me lembro de ter opiniões sobre o assunto...
Comecei cedo, com 5 ou 6 anos, e para isso muito contribuiram as Avós, especialmente a Avó materna Maria (Aguiar), uma verdadeira matriarca, que ficou viúva, com 7 filhos, aos 36 anos e se tornou líder não só na sua casa, como na sua terra. Pertencia à Obra das Mães, às organizações da paróquia, às associações culturais. Era uma senhora muito bonita, muito inteligente e muito conservadora. Em nome das boas maneiras e do recato feminino, que tanto prezava, apesar da sua respeitável proeminência, dizia-me, vezes sem conta, "as meninas não fazem isso" - "isso" sendo por exemplo, subir às árvores, saltar dos eléctricos em andamento ou jogar futebol com os primos... Eu sabia que gozava do estatuto de neta favorita e gostava imenso da Avó, mas não seguia esses seus conselhos.
O plural: "as meninas", levava-me a reagir. Achava que devia mostrar que as "meninas" eram tão capazes como os rapazes de "fazer isso" e partia para o demonstrar no dia a dia. Era, pois, uma feminista praticante, com uma emergente consciência da existência das questões de género ...
Curiosamente, os homens, Pai e Avó Manuel, eram fãs das minhas proezas desportivas, tanto como das escolares. Sempre me incentivaram a estudar e preparar o futuro profissional. Nunca o
paradigma da "dona de casa" esteve nos meus horizontes, ou nos seus. Pelo contrário: punham em mim, a meu ver, excessivas expectativas.... E assim, graças a eles,o  meu feminismo esteve "ab initio" na linha de pensamento de uma Ana de Castro Osório, mesmo que, nesse tempo, não conhecesse sequer o seu nome (como aquele personagem que fazia prosa sem saber...). Os homens foram, de facto, aliados  - muitos, incluindo numerosos tios e primos, e, mais tarde, os meus professores da
Faculdade de Direito de Coimbra.
Tive uma infância divertida e feliz, numa família unida e convivial, apesar de politicamente dividida. Uma tradição que vinha de trás - houve, sucessivamente, regeneradores e progressistas, monárquicos e republicanos, salazaristas e democratas, germanófilos e anglófilos (como eram os meus Pais). A política estava bem  presente, em acesas discussões sem fim, mas nunca ninguém se zangava. Consideravam os outros "gente de bem", por mais extremadas que fossem as suas opiniões. Tendo a atribuir mais a essa experiência vivida do que à idiossincrasia a ausência de preconceitos partidários em relação a quem não pensa.como eu. E, possivelmente, também o gosto pela argumentação, pela entusiástica defesa de pontos de vista, uma sensibilidade a formas de injustiça como as assimetrias regionais, o despertar para um saudável regionalismo nortenho, a par da paixão pelo Porto (e pelo FCP)...
Outra forum de "convívio e debate" determinante foi a escola - dois anos na pública, sete anos de Colégio do Sardão (um internato de religiosas Doroteias), dois anos de Liceu. Costumo comparar o colégio a um quartel elegante, onde prestei uma espécie de "serviço militar obrigatório". Não foi, de facto, uma opção voluntária, mas, com a excelência do ensino e, sobretudo, das estruturas desportivas,  ginásio, campos de jogos, parques e largos espaços de recreio, posso dizer que lá  passei muitos bons momentos. Organizava competições desportivas (incluindo futebol clandestino), dirigia peças de teatro, escrevia crónicas e romances que partilhava com as colegas, dava largas à imaginação e à energia. Uma dessas crónicas, que pretendia fazer humor à custa da instituição, suas regra e poderes constituidos foi apreendida, e quase provocou uma expulsão mesmo nas vésperas do exame do antigo 5º ano. Não seria a primeira da família a passar por isso, mas escapei, suponho que com a interferência do capelão e de algumas das Madres, que me compreendiam e me achavam graça... Mas eu quis mudar para o Liceu Rainha Santa Isabel, no Porto, contra a vontade do Pai, que me vaticinava toda a espécie de retrocessos escolares, que tinham desabado sobre ele, quando depois de 10 anos de Colégio dos Carvalhos se viu "à solta" no Liceu Rodrigues de Freitas. A história não se repetiu, pelo contrário. Bati todos os recordes pessoais no exame de 7º ano e ganhei, pelo bem-amado  Liceu, o prémio nacional.
De qualquer modo, foi no Sardão que vivi a minha primeira batalha política - ou político-sindical. E um "enclausuramento" que me fazia  apreciar mais os fins de semana e as férias de verão em Espinho, como  espaço e tempo de liberdade...
 Frequentava com o Pai o estádio das Antas,  com os Pais e o Avô os cinemas e teatros e, também,  os cafés do Porto, coisa invulgar na época para o sexo feminino, de qualquer idade...

COIMBRA ANOS 60

Em Coimbra, era também à mesa dos café que estudava, que convivia e bradava contra as discriminações em que continuava fértil a sociedade portuguesa de 60. ..
No Tropical, no Mandarim, no bar da Faculdade de Letras ou de Farmácia encontrava-me com colegas, com assistentes, pouco mais velhos do que eu, embora bastante mais sábios, como era o caso do Doutor Mota Pinto, que viria a ser o responsável pelo meu tirocínio na política.
Eu falava abertamente, contestava leis e costumes. A leitura do Código de Seabra era um pesadelo - a "capitis diminutio" da mulher casada, que era a expressão latina para a escravidão feminina subsistente 2.000 anos depois, só podia alimentar sentimentos de revolta, a revigorar um feminismo que, por oposição à situação portuguesa, ia ganhando base doutrinal na social-democracia sueca.
O tema da igualdade de sexos não estava na agenda política de 60 - e ainda hoje não está suficientemente...
 Em todo o caso, na altura soava mais a radicalismo e excentricidade. Esperava tudo menos que, anos e anos mais tarde, essa faceta pudesse pesar, como creio que pesou, numa mudança de rumo, que pôs fim a escolhas profissionais assentes  (assistente de um Centro de Estudos Sociais, assessora do Provedor de Justiça).
Sempre sonhei com uma carreira jurídica. A magistratura estava-me vedada por ser mulher  Queria ser advogada, uma espécie de Perry Mason portuguesa. Era no terreno jurídico que queria competir, não no da política. Direito era, então, um curso de perfil masculino, com um corpo docente sem uma única mulher e com mais de 80% de alunos homens. No meu livro de curso, conto 63 homens e 12 mulheres. Entre elas há excelentes advogadas e juristas, mas, das 12, na política só eu, e acidentalmente... Dos 63, foram muitos os que, no pós 25 de Abril, se distinguiram em Governos da República - Daniel Proença de Carvalho, Laborinho Lúcio, António Campos, Luís Fontoura, João Padrão... Ou que são vozes autorizadas no domínio em que se cruza o Direito com a Política, como Gomes Canotilho ou Manuel Porto, ou com as Letras, como Mário Claudio ou José Carlos Vasconcelos...
Ao fim de 5 anos felizes, eu trazia de Coimbra apenas um pequeno trauma: na única eleição a que concorri, pelo Conselho de Repúblicas, para uma qualquer comissão, cujo nome nem recordo - só sei que dava acesso à direcção da Associação Académica -  perdi num colégio eleitoral que era 100% feminino. Coisa natural, porque a maioria das meninas era conservadora, mas eu assumi pessoalmente a derrota e covenci-me de que não estava mesmo nada vocacionada para tais andanças...

3 - A FORÇA DO IMPREVISTO

Na história dos antecedentes da minha relutante ocupação de cargos políticos, estava já a força do imprevisto: primeiro uma proposta para assistente de sociologia na Universidade Católica que veio da parte de um professor que não conhecia, o Doutor Àlvaro Melo e Sousa ( um amigo comum indicou-lhe o meu nome, na altura em que acabava de regressar de Pari, com uns certificados na matéria). Foi preciso ele insistir, mas acabei por dizer o sim - e não me arrependi. Esse facto tornou mais fácil aceitar um segundo desafio lançado pelo Professor Eduardo Correia, para a recém.criada Faculdade de Economia em Coimbra da qual ele era o director. Confesso que nem sabia da abertura efectiva dessa Faculdade... Foi um encontro acidental, num colóquio. Quando me viu achou boa ideia associar-me ao empreendimento. Não houve hesitação da minha parte. Que bom voltar a Coimbra! Tomei posse na véspera do 25 de Abril de 1974. Na semana seguinte, Eduardo Correia era Ministro da Educação do 1ª Governo Provisório e, pouco depois, um novo encontro  com outro dos grandes juristas do nosso século XX, o Professor, Ferrar Correia, em pleno pátio da universidade, à sombra da torre, levou-me para a minha própria Faculdade. Ao saber que estava ali ao lado, na Economia, convidou-me, de imediato, a transitar para Direito e eu aceitei tão depressa, que ele até  julgou que eu julgava que ele estava a brincar. Não era o caso, era mesmo questão de feitio. Decido assim muitas vezes no que exclusivamente me respeita. E ali e então não havia que pensar duas vezes!...
Guardo boas memórias de todas as passagens pelas funções docentes, mas aquela tinha um significado muito especial - o convite chegava com atraso, mas chegava... Quando acabei o curso, em 1965, as mulheres estavam barradas do ofício - tinha havido uma, não existia impedimento legal, mas a prática era essa. Entretanto mudara, mas  não me lembro de nenhuma colega - só homens e, quase todos, óptimos colegas, como o Fernado Nogueira ou o Cordeiro Tavares. Dez anos mais novos do que eu, o que me ajudou a rejuvenescer.   Fui assistente de  dois grandes juristas, o Doutor Rui Alarcão e o Doutor Mota Pinto.
 Os tempos agitados são-me geralmente favoráveis - como estudante dei-me bem em Paris, no pós Maio de 68, e o mesmo posso dizer de Coimbra, no pós 25 de Abril.  Há coisas que seriam impensáveis fora de períodos revolucionários, e que fiz, sem oposição de ninguém, como dar aulas "extra muros", aos voluntários do Porto ou aulas práticas, a turmas naturalmente pequenas, no bar de Farmácia, ao ar livre, em dias de sol. Saíamos, em cortejo, dos "Gerais", já a falar das matérias, como os peripatéticos. Esclarecia dúvidas, exactamente como se estivessemos numa daquelas escuras e frias salas de aulas. E, depois, analisávamos o PREC. Os rapazes (ainda em maioria) eram quase todos de outros quadrantes ideológicos, mas isso não obstava ao ambiente de tertúlia. Em 1975/76 dei aulas teóricas de Introdução ao Estudo de Direito a salas cheias de "caloiros" simpáticos.  Um dever e um prazer.
E refiro tudo isto, porque julgo que foi esta segunda estada em Coimbra que me abriu as portas da política. Antes de mais, porque reatei, naquele preciso momento da nossa História, o relacionamento próximo com amigos que estavam no centro da fundação de partidos (em particular do PPD)  e da criação de um regime democrático, E, por outro lado, porque descobri que era capaz de comunicar em público - eu, que me considerava fadada apenas para trabalho de gabinete.
Anos mais tarde, ao fazer um levantamento do perfil profissional das mulheres mais activas do PSD, descobri que, sobretudo a nível local, havia um grande número de professoras. A meu ver, não era coincidência, mas a consequência de uma maior auto-confiança do que a que se consegue em outras funções... No meu caso, não tenho dúvida de que me transformou o suficiente  para admitir a hipótese de enveredar pela exposição nos palcos da política. Que não para a planear...  Na verdade, o convite que o Primeiro Ministro Mota Pinto me dirigiu  para a Secretaria de Estado do Trabalho, uma daquelas que eram vistas como coutada masculina, foi um absoluto imprevisto.  E o Doutor Mota Pinto usou o argumento decisivo: "se recusar, não haverá mulheres no meu Governo". Depois da mera combatividade verbal, era a hora de agir....
Estávamos em fins de 1978. A ousadia da minha designação valeu ao Professor Mota Pinto um rasgado elogio de Marcelo Rebelo de Sousa num editorial do Expresso, que ainda guardo na pasta de recortes e na memória.
Sendo defensora do sistema de quotas, assumi-me como a "quota mínima" daquele Executivo, que veio a integrar outra Secretária de Estado na área mais tradicionalmente feminina da Educação...
Sabíamos que a missão era de curto prazo - um governo de independentes de nomeação presidencial, que não cedia nem a pressões de rua nem a influência de máquinas partidárias, algumas já então poderosas. Na minha opinião, foi um governo que se impôs, ganhou credibilidade e, por isso, durou ainda menos do que o esperado... Os partidos trataram de se entender para o derrubar. Foram 9 meses intensos e formidáveis, findos os quais voltei para a Provedoria de Justiça, que, com o Dr José Magalhães Godinho como Provedor, era o melhor lugar de trabalho à face da terral. Para mim, o Dr Godinho representava um conjunto de legendários tios republicanos, com quem nunca tive as conversas que pude ter com ele. Era família - não aquela em que se nasce, mas a que se faz tão raras vezes na vida.
Até que novo imprevisto sobreveio: em janeiro de 1980, logo depois da posse do VI Governo Constitucional, um telefone do Primeiro Ministro Sá Carneiro, que não conhecia pessoalmente, mas com quem me identificada, porque, como afirmou  numa entrevista a Jaime Gama, e era "social-democrata à sueca".( É por isso que, sem ter filiação partidária antes de 80, me considerava PPD "avant la lettre", ou seja,  Sácarneirista desde 1969).
Pelo telefone, Sá Carneiro, foi sintético e breve a marcar um encontro para as 5.00 horas da tarde - audiência para o qual eu parti inquieta,  mal penteada e mal vestida, como andava normalmente. E se ele fosse pessoa distante e pouco simpática? Se com isso arrefecesse a minha "condição de incondicional" de tudo o que dizia e fazia? Grande preocupação... Quanto ao que me esperava, isso já não era assim tão misterioso, porque os jornais falavam do meu nome para várias pastas. Sá Carneiro recebeu-me à hora exacta - não cheguei a sentar-me na sala de espera. Com um sorriso luminoso, que começava no seu olhar claro! Assim sempre o recordo, em todos os encontros que se seguiram. Quando a ele me dirigi pelo seu título de chefe do Governo, atalhou: "Não me chame Primeiro Ministro". Ao que eu respondi: "Desculpe, mas é como o vou chamar, porque me dá imensa satisfação que seja Primeiro- Ministro,e esperei anos para o poder tratar assim".
 Mas, tratamento cerimonioso àparte, a conversa tomou o rumo de uma alegre informalidade.
Dei respostas um pouco insólitas, no tom que tantas vezes usei com outros políticos de quem era amiga de longa data. Sá Carneiro fez-me sempre sentir absolutamente à vontade. Parece que havia quem ficasse inibido na sua presença. Eu, pelo visto, ficava eufórica.
O Doutor Sá Carneiro, ele próprio, era, assim, uma esplêndida surpresa.  A outra surpresa veio do pelouro que me propôs:  a emigração, num Ministério onde nunca tinha entrado, o de Negócios Estrangeiros.
No governo da AD, em 1980, havia apenas três Secretárias de Estado, uma de cada um dos partidos, a Margarida Borges de Carvalho pelo PPM, a Teresa Costa Macedo pelo CDS e eu pelo PSD (num impulso, filiei-me nessa altura). Ainda a "quota mínima",  tripartida...
A emigração, ou melhor dizendo, a Diáspora Portuguesa,( porque falo da que tem uma estrutura orgânica, uma vida própria, colectiva, imersa na nossa cultura e um futuro que talha com a preservação da herança cultural) foi uma esplêndida descoberta - andava de comunidade distante em comunidade distante, sempre e reencontrar-me em Portugal - um fenómeno por mim insuspeitado de extra-territorialidade da nação. Um mundo associativo espantoso, embora um mundo de homens. Eu era a primeira mulher que junto deles aparecia, como face do governo da Pátria.Se tinha dúvida quanto à reacção que provocaria, logo os receios se desvaneceram  - receberam-me sempre com alegria, com simpatia. Não fiz unanimidade, é claro, mas os afrontamentos que houve foram sempre devidos a questões políticas, não a questões de género. Trataram-me tão bem, que me deram o que mais me faltava: um superávide de confiança. Mesmo nas hostes ideologicamente adversárias encontrei quase sempre boa vontade para trabalho conjunto, até no, por vezes, agitado Conselho das Comunidades, que me coube organizar e presidir, desde1981 (era então um forum associativo, de perfil masculino, politicamente dividido entre uma Europa mais contestatária e uma Diáspora transoceânica mais próxima das posições do governo´).
Na verdade, acredito que ser mulher tornou bem mais fácil a minha missão. Logo em 82, quem me fez ver isso, de uma forma bem divertida, foi um jornalista de S Diego, o  Paulo Goulart. No fim de uma entrevista, ao almoço, disse-me: "Sabe, aqui só há dois políticos de quem gostámos: é de si e do João Lima". ( João Lima, antigo Secretário de Estado da Emigração era, então, deputado pelo PS). Fez uma pausa, como quem avalia e compara os seus dois eleitos e acrescentou: "Pensando bem, o João Lima até tem mais valor, porque é homem e socialista".
Achei muita graça à sua franqueza. Na América ser socialista, de facto, assusta e  não dá votos... E também é verdade que, em certas situações, mesmo na vida política ,mesmo em ambientes dominados pelo poder masculino, é uma vantagem ser Mulher... Porque é a "exótica" excepção? Porque há no fundo, um reconhecimento de que as mulheres fazem falta? Muitas hipóteses, para uma só certeza: no meu caso, senti simpatia, adesão e apoio desde o 1º momento, de um sem número de homens influentes e de algumas raras mulheres, que já se faziam ouvir.
Quando deixei o governo, depois de cinco sucessivas experiências - sendo a última aquela em que os Secretrários de Estado passaram a ser considerdos "adjuntos de ministro"... -  o imprevisto estava, de novo, à minha espera na AR, onde tinha o meu lugar pelo círculo do Porto.  Um convite para ser candidata à 1ª Vice-Presidência da Assembleia. Aceitei, como aconteceu anteriormente,  não muito segura de me  sair bem na responsabilidade da representação feminina... Fui, assim, a 1ª Mulher a presidir às sessões plenárias do parlamento, à Conferência de líderes, a Delegações parlamentares - ao Japão, para começar...
Após 4 anos nesse cargo que, enquanto não assumido por uma mulher, tinha sido sempre mais discreto, apesar da sua importância protocolar (2ª figura na linha da sucessão do Presidente da República, "en cas de malheur"...) sucedeu-me Leonor Beleza. Mas o País teria ainda de esperar um quarto de século por uma Presidente da AR, escolhida pelo mesmo partido, que é contra as quotas  mas aposta  na alternativa do pioneirismo na abertura de oportunidades ao que eu chamo "mulheres de excepçã"o...
 Só em 1991, me propus, eu própria,  como voluntária, para um lugar que verdadeiramente queria: representante da AR na APCE (Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa). Aí, me mantive até abandonar o Parlamento nacional em 2005. Fui bem mais feliz e bem sucedida fora do que dentro de fronteiras (tanto na emigração como nas organizações internacionais,  a APCE. e a AUEO...). Aí havia menos jogos políticos de bastidores, não se sabia o que era disciplina partidária, era larga a margem de iniciativa pessoal, para intervir, para propor recomendações... Presidi à Comissão das Migrações à Subcomissão da Igualdade e a outras, fui relatora em inúmeras propostas.  Defendi a dupla nacinalidade, o estatuto dos expatriados, a não expulsão de imigrantes, o reagrupamento familiar, insurgi-me contra a guerra do Iraque, denunciei a discriminação de género  no desporto... Acabei a presidir, entre 2002 e 2005,  à própria delegação Portuguesa à APCE e á Assembleia da UEO.
Um outro inesperado e insistente convite me levou, depois, à vereação da Câmara da cidade onde vivo, Espinho... Fui vereadora da Cultura no ano do centenário da República e isso permitiu fazer coisas diferentes e por o enfoque no movimento feminista e republicano. Não que eu seja republicana hoje, mas tenho a ecrteza que o teria sido em 1910, na companhia da Carolina Beatriz Àngelo, Ana de Castro Osório ou Adelaide Cabete. E feminista sou-o no sentido preciso que lhe davam as nossas sufragistas.
Também nunca tive complexos de inferioridade por prenche, eventualmente,r um espaço aberto pela "quota" , mais ou menos larvada. No meu caso, nunca explicita, nem mesmo no cargo de VP da AR e sempre rejeitada como tal pelos opositores das quotas do meu partido.  Quando eu dizia: "escolheram-me para  Vice-Presidente da AR, porque queriam uma Mulher" (o que para mim era evidente, estava certo e só pecava por ser decisão tardia), respondiam-me:
"Manuela, não diga isso! Está nas funções pelo seu mérito"
O meu mérito não era coisa que eu fosse discutir!... Discutia, sim, o mérito do sistema de quotas, que em nada contende com o valor ou capacidade pessoal, antes pelo contrário o pressupõe, mesmo quando, porventura, errando. Mas erros de "casting" não faltam também, e são muito mais comuns, no caso de políticos promovidos pelas máquinas partidárias, à maneira tradicional.

PELA PARIDADE, PELAS QUOTAS

Com este tema recorrente, vou terminar a minha intervenção longa....
Quando há avaliações objectivas dos candidatos, o sistema de quotas é gritantemente inaceitável! No acesso às universidades, por exemplo, são escolhidos os melhores alunos, os que têm melhores notas. Por sinal, são mulheres, mas aí, se não fossem, não seria justo nem legítimo intervir .
A falta de educação, de formação seria, de resto, o único fundamento de uma desigual participação feminina na vida pública. Onde a situação é de igualdade ou supremacia, a ausência das mulheres num domínio como o da intervenção cívica, da política, impõe uma  presunção de discriminação. A  Lei da Paridade torna essa presunção inilidível  e, a meu ver, é com base nela que determina uma quota mínima em função do género.
A igualdade de mérito presume-se e a realidade tem vindo a comprovar a presunção onde quer que o sistema seja praticado de boa fé e com honestidade: no norte da Europa, onde o sistema nasceu, ou no sul, onde chegou com atraso. E Portugal não é excepção. As quotas vieram garantir novos patamares de equilíbrio de género, com aparente valorização do todo!
Mas é da maior importância que a aplicação da Lei da Paridade seja objecto de avaliação, como a própria Lei impõe, ao fim de cinco anos (artº 8º)
. Estranho que 7 anos depois da entrada em vigor da lei, a obrigação de cumprir o preceituado no artº 8º ande esquecida. Onde estão os estudos sobre a progressão das mulheres, a nível do parlamento e das autarquias locais?   Sobre a sua actuação concreta?
Estranho, ou talvez não... porque as questões de género continuam descentradas da agenda política em Portugal.
Aqui fica uma chamada de atenção ao Governo (à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, que terá condições ideais para o levar a cabo um estudo conclusivo) e ao Parlamento, seja para eventualmente poder o legislador pensar alterações à lei nº 3/2006, com vista a "mais paridade", ou a dar mais visibilidade ao percurso que as mulheres vêm fazendo no caminho aberto pela Lei, contra regras não escritas e práticas discriminatórias vigentes nos aparelhos partidários.

E quanto à frase com que comecei para me definir como feminista, devo dizer que não a li num livro, nem a ouvi num congresso - vi-a, há muitos anos, inscrita numa placa de um automóvel que atravessava o centro de Boston, num dia de sol:

FEMINISM IS THE RADICAL NOTION THAT WOMEN ARE PEOPLE


Maria Manuela Aguiar




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