terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Em Paris, no final de sessenta

Em fins de 1968, conheci o Doutor Mário Lajes em Paris, onde era um dos bolseiros residentes na "Casa de Portugal" da Cidade Universitária, tal como eu própria. É sobre esse tempo que escreverei breves linhas, apenas notas soltas, circunstanciais, recolhidas de entre as memórias (boas memórias!) que de então ficaram.
Primeira impressão, certeza depois: ali estava o mais erudito de todos nós, embora fosse tão natural e despretensioso, o mais comunicativo, ainda que tão discreto. (E saliento estes seus traços, em particular, porque foram, a meu ver, relevantes no papel central assumido no círculo de amigos que rapidamente iria ganhar contornos naquele lugar, recriando uma espécie de fronteira intangível do país de origem, presente connosco, expatriados por período determinado, com objectivo muito concreto de completar estudos, estágios ou teses).
Sabemos, todos, o trabalho que, nas décadas seguintes, preencheu a sua vida, como sacerdote, professor, investigador, cidadão empenhado nas questões sociais, no mundo da cultura, capaz de conjugar uma multiplicidade de dons e qualidades em acções notáveis e em missões sempre desenvolvidas com grande generosidade.
Esse futuro já então, de algum modo, se podia predizer… O Padre Mário (como sempre, até hoje, lhe chamei) foi, de facto, aí, onde era fácil e fraterna a aproximação entre “emigrados”, o suporte da pequena “comunidade” (mais uma, no infinito rol das comunidades portuguesas espalhadas, transitória ou duradouramente, pelo globo…) nascida de forma espontânea, sem precedência de qualquer manifesto propósito de agir no campo político ou social – em boa verdade, sem outra intenção inicial que não fosse a de uma pura e simples convivência e entreajuda.
O mais antigo "retrato de grupo" foi tirado (quem diria?) à volta de um jocoso boneco de neve, no Parque Montsouris - do outro lado do Boulevard Jourdan, que é uma das fronteiras da "Cité". Irresistível, pelo visto, assinalar assim a alegria de "gente do sul" perante aquela alvíssima beleza do primeiro dos nevões do inverno "nórdico". E lá está, entre muitos rostos sorridentes, o do Padre Mário, que, se bem me lembro, foi dos que mais bolas de neve jogaram para os restantes retratados… A data: Novembro de 68. Éramos ainda - ao contrário de Mário Lages - maioritariamente recém-chegados, mas o “colectivo” já estava formado, com os mesmos componentes que o haviam de constituir, sem cisões nem conflitos sérios, ao longo de dois anos académicos. O que, sem sombra de dúvida, atribuo a uma amável liderança não imposta, não declarada e nem sequer assumida, mas nem por isso menos influente, do núcleo central, onde se distinguia (não querendo distinguir-se!) o Padre Mário. Simpatia, disponibilidade, bom conselho - dado por igual a quem precisasse – contribuíram para o transformar em elo de ligação de um "todo" heterogéneo de especialistas com diferente formação académica e interesses em diversificados domínios das ciências, letras e artes. Em comum, antes do mais, boa atitude, boa disposição e sentido de humor, que abundavam… começando pelo próprio Padre Mário. Na conversa que fluía, nas divagações de natureza intelectual, nas inquietações de ordem social ou moral, ele era o mais cativante dos interlocutores. Mas os seus contributos pessoais - há que acrescentar... - não se confinavam à elevada esfera do saber teórico, estendiam-se, também, a matérias de ordem prática, como a indicação de livrarias onde os estudantes, estrangeiros ou não, tinham descontos, as últimas novidades bibliográficas, os livros a ler - devo-lhe a introdução ao que viria a ser um dos meus autores favoritos, P.G. Wodehouse - os filmes a ver, os mais agradáveis (e económicos) restaurantes do "Quartier" … Nos fim-de-semana, por vezes, organizava passeios de "turismo cultural" - visitávamos catedrais, igrejas, museus. Os arredores de Paris foram-se tornando mais acessíveis à medida que uns iam comprando carros e davam "boleia" aos outros.
O Padre Mário escolheu um ágil "Austin mini". Ninguém antevira a sua transformação ao volante… Do ponderado e sereno doutorando não se esperava que fosse, mas era, um dos mais velozes, ousados e hábeis – felizmente! – condutores, daqueles que, vertiginosamente, serpenteavam por entre as medonhos filas do trânsito parisiense. Em diversas ocasiões, deixou à distância, quando não perdeu em definitivo, até ao destino final, quem o tentava acompanhar, em caravana, conforme plano bem delineado (et pour cause..) para o passeio dominical.
A rodagem do automóvel, principiava, quase sempre, numa breve viagem à Holanda, geograficamente à distância ideal, por estrada boa e plana. O Padre Mário não fugiu à regra e rumou, para o efeito, a Amesterdão. À entrada, deparou com um local muito pitoresco, uma ponte graciosa sobre um estreito braço de água. Achando que não teria dificuldade em o situar, estacionou a viatura e saiu, apressado, para percorrer as ruas com os seus companheiros de jornada. É certo que iam atravessando mais e mais lugares pitorescos, muito semelhantes ao primeiro, mas não se preocupou com o facto. Depois, na hora de voltar, é que surgiu o problema: em qual dos infindáveis canais daquela outra Veneza, aparentemente idênticos, estaria o "Mini"? Foram horas de busca! Esta sua faceta de "sábio distraído" foi uma das que depressa aprendemos a reconhecer. Não era propriamente defeito que se lhe apontasse, mas podia ter inconvenientes, sempre, porém, resolvidos com optimismo…
Outro improvável domínio em que foi, para muitos de nós, um autêntico mestre: a fotografia, incluindo a revelação das películas, em "laboratório". A "Cité" dispunha, embora isso não fosse do conhecimento geral, de instalações e estúdios modestos, mas funcionais, que, graças a ele, utilizamos livremente. Tão bem com ele aprendemos o ofício, que as provas, aí reveladas, por nossas mãos de aprendizes, ainda hoje conservam a nitidez original. E até Nadir Afonso beneficiou do talento de “Mário Lages – fotógrafo de arte”, pois ficou a dever-lhe o registo iconográfico de um seu magnífico livro de pinturas, então editado.
Havia ainda "Mário Lages - o desportista". O final das manhãs de domingo, depois da missa na vizinha Igreja de Gentilly, quando a meteorologia e o ânimo o permitiam, era passado colectivamente (um colectivo reduzido, claro...) no campo de jogos, convenientemente localizado em frente à portaria da Casa de Portugal. Saíamos, dávamos dois passos e estávamos no estádio, que convidava a saudáveis corridas. O Padre Mário era dos mais rápidos, evidentemente. Provou-o no 14 de Julho de 1969, que se tornou o dia mais aventuroso da minha vida em Paris: estávamos, muitos, em paz e sossego, como era nosso timbre, tomando um cafezinho, ao ar livre, numa rua secundária do “Quartier Latin”, povoada de franceses e estrangeiros, sem ver nem ouvir nada que levantasse suspeição, quando a polícia irrompeu lá do alto, "varrendo" à bastonada as esplanadas. Cresceu, num instante, a multidão em fuga, em que nos vimos envolvidos, correndo - não por mero desporto, dessa vez, e não sem que alguns fossem vítimas da kafkiana violência, de vitupérios racistas e da desordem, promovida, unilateralmente, pelas forças da ordem. Uma espécie de Maio 68, com os actores trocando de papel! Por sorte, os mais desafortunados sofreram só ligeiros hematomas. Era Paris-69, qual eco tardio de uma “revolução” sem retorno… Na rua, a polícia de choque procurava uma dissuasora visibilidade, mas as escaramuças eram coisa pouca e, normalmente, denunciadas com a devida antecedência…
Na Cidade Universitária, ao invés, a paz foi, no pós Maio 68, raramente perturbada, e nunca por perto de nós. Era a nossa “cidade dentro da cidade”, onde a mera convivialidade diária dera vez a uma amizade intemporal. Muito por causa do Padre Mário e de outros sacerdotes, que, residindo ou não na “Cité”, connosco reuniam, nos tempos livres, vimo-nos rotulados como “grupo de católicos progressistas”… Na realidade, alguns eram, e outros não, católicos praticantes, e a maioria não tinha, na altura, qualquer forma de envolvimento político. Acho que nos unia, sim, a crença em princípios e valores morais, uma forma de estar na vida e de querer partilhar o presente de uma geração nova, expectante, desejosa de mudanças.
Recordo, com nostalgia, os infindos debates e conversas nas salas da Casa de Portugal, enquanto íamos tomando o "café arménio" do Padre Mário, feito a preceito, de acordo com receita tradicional, em utensílio "étnico", (oferta dos seus colegas de Estudos Arménios) - uma cafeteira de sólido metal, sem tampa, com uma base alargada, para, após a fervura, permitir que se depositasse o pó, que um ligeiro agitar deixava em suspenso, no líquido saborosamente mais espesso...
O regresso a Portugal significou a inevitável dispersão deste grupo tão unido. Em mais de quatro décadas, houve poucas oportunidades de reencontro, à volta de uma chávena de requintado café arménio...
E, por isso, este é o momento de eu dizer ao Padre Mário que o primeiro ensinamento que me ficou dessa época de bolseira em Paris foi o seu modelo de relacionamento com os outros, connosco. Inspirador, convocando-nos a agir, na longa caminhada, pela vida fora, com espírito de tolerância, com sensibilidade para os problemas de cada sociedade e de cada pessoa, em cada dia novo.
Obrigada, Padre Mário, por ser como é.

Maria Manuela Aguiar

Janeiro 2011

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