quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

EM PARIS - OUTUBRO 68



As minhas tentativas de escrever um diário nunca foram além de uma semana - são diários, sim, mas de poucos dias.
Ir para Paris, com uma bolsa da Gulbenkian, estudar soci0ologia, no pós Maio de 68, parecia uma experiência de vida merecedora do esforço, do pequeno esforço, de um registo continuado. Começou ... mas durou pouco e não foi mais retomado. Uma pena! Não porque tenha ponta de interesse do ponto de vista político, ou literário, mas porque me fez relembrar episódios completamente desaparecidos da memória. E, por isso, estes poucos dias estão cheios de recordações que em quase todos os outros se perderam, sem remédio. São dias "sobreviventes"...



PORTO - Outubro 1968
Sábado, 26
À tarde, iniciei a minha ronda de despedidas, em Gondomar: à Avó Maria, Tia Lina e Tio Serafim, Xaninha, Meira, meninos (muitos meninos!)... À noite, continuei no Porto: Tia Clarinha, Margarida - uma última vista de olhos à pequena afilhada Madalena.

Domingo, 27
De manhã foi a vez da Tia Lena e Tio David (e lá encontrei o Tio Manuel, que, na véspera, não estava em casa na hora da visita); almoço em Espinho, os Avós, os gatinhos, apareceram a Tia Lena e o Tio David - estava uma bela tarde na esplanada. (O Manel ficou, como sempre, a dormir a sesta no entretanto). Regressamos ao Porto em caravana, vimos um pouco de hipismo - México 68 na televisão, com um intervalo para levar o Manel a casa, depois à estação (uma breve despedida do marido, pois estava na hora do comboio).
A tosse não me deixou dormir normalmente.

Segunda-feira, 28
De manhã, mais despedidas pelo telefone - Ferreira Marques, Padre Leão, Rosinha Saraiva, Dona Arlette, Rosinha e Inês. Últimas provas de roupas na Maria do Carmo. Almoçamos cedo. Sob chuva ininterrupta viemos, sem pressas, até à Pampilhosa, com uma paragem em Águeda para um café.
Chegados à Pampilhosa, pôs-se-nos o poblema de como passar o tempo. Se a estação não oferece atractivos, menos ainda oferece a terra. Meia dúzia de lojas, se tanto, ao longo duma curta rua, mais ou menos encerradas durante a tarde, talvez por falta de clientela.
Amedrontados com o aspecto do único café à vista, refugiamo-nos na estação durante umas horas. Vimos e revimos fotografias, conversámos, comemos o que havia no bar, a Mãe repetiu as suas recomendações ...
Enfim, chegou o comboio!
O Pai entrou com as malas, a Mãe também, mesmo sem pretexto, pois queria ver como eu ia instalada. Com grandes acenos de mão acompanhamos todos , eles e eu, a saída do comboio. Apreciei a paisagem e investiguei o meu compartimento-cama, onde seguia sozinha. Depois de algum tempo, surgiu um simpático empregado espanhol, que tratou de fazer a cama - pouco passava das 7 horas. A partir de então - durante perto de 14 horas - deitei-me e deitada fiquei. Não há melhor processo de viajar!
Até à fronteira espanhola, receando ter de abrir a porta e as malas aos carabineiros, mantive-me completamente vestida para o caso de ter de me levantar e receber a visita algandegária- limitei-me a estender com um cobertor sobre as pernas. Um pouco desiludida por não ter sido incomodada, depois de tal sacrifício, passei então, de pijama, ao interior dos lençóis e teria dormido às mil maravilhas se me tenho lembrado de pedir ao espanhol que me acordasse na manhã seguinte. Assim, com a preocupação de acordar cedo, para não perder a ligação francesa, fui despertando, periodicamente, ao longo da noite. De qualquer modo uma noite agradável e confortável! Em Hendaye, e ainda para satisfazer uma recomendação da minha Mãe, entabulei conversa com uma menina portuguesa de quem ela tinha gostado, durante a espera na Pampilhosa. A consequência foi a menina "cravar-me" o dinheiro do transporte da mala dela, pois não tinha francos... Isto depois de uma conversa desinteressante e insípida - como a própria menina - até Paris, só interrompida na hora e meia que passei fazendo as honras a um almoço pelo qual paguei 32 francos e comi uns 8 a 10 na melhor das hipóteses... Em Austerlitz depois do emprétimo à portuguesa - que logo se sumiu com uma amiga francesa - apanhei um táxi para a Cidade Universitária . Foram 12,50 francos, mas cheguei rapidamente ao meu destino. Um edifício com bom aspecto, moderno, branco,sóbrio, um funcionário da Secretaria extremamente amável na recepção. Fui logo apresentada ao Director da Casa de Portugal, que me surpreendeu pelo seu aspecto simples e pela objectividade e serenidade com que fez decorrer aquela primeira entrevista. Contente, fui acompanhada até ao meu quarto - no último andar, como não podia deixar de ser, tentativa do destino para me curar da fobia das alturas , mas aqui, ao contrário de Genebra, de uma maneira penosa, pois não há elevador... Acompanhada por
um dos porteiros, por sinal, um francês com aspecto muito suíço.
A minha primeira preocupação foi desfazer as malas e seguir para o correio. Tinha-me comprometido a telefonar à mamã. Segui vagamente as instruções confusas que o porteiro me dera para lá chegar, e efectivamente cheguei. Após um compasso de espera, um empregado de aspecto cilíndrico informou-me ser impossível chamar Portugal antes da hora de fechar o correio - faltavam duas horas. Mandei um telegrama, regressei à residência, comi umas bolachas e deitei-me cedíssimo.
Na quarta-feira de manhã, após uma conversa com a Secretária da Casa, iniciei a longa "batalha da burocracia" em Paris. Assinei compromissos, tirei fotocópias de documentos, escrevi cartas ao patrão da Cité, mandei para Coimbra (Prof. Pereira Coelho) um pedido de referências sobre as minhas qualidades intelectuais e morais (estas sublinhadas) - tudo para conseguir a "carte de résidence", coisa que estava ainda dependente de um certificado médico de boa-saúde e da inscrição numa faculdade ou instituto.
Tendo-me sido dito que o exame médico seria uma formalidade, dirigi-me, imediatamente, ao hospital desta zona. Mandaram-me voltar à tarde, pelo que, munida duma "carte provisoire de résidence" fui ao restaurante da Maison International - um edifício imponente, de telhados pretos.
Passei o meu tabuleiro ao longo das mesas, àquela hora ainda quase desertas, e engoli tudo o que me apresentaram - muito, em quantidade - sentindo-me uma reclusa de penitenciária a comer o bife numa travessa de alumínio e a partir a fruta com a faca única que me foi dada. Apenas uma faca e um garfo para o prato do dia, numerosos acompanhamentos, vegetais e a fruta. Espantou-me só que não me obrigassem também a beber a água pela tigela da sopa! Ai, que saudades da cantina de Coimba!... ( talheres à farta!).
Voltei a subir o Boulevard Jourdan até ao Hospital. Rodeada de adolescentes, esperei longos minutos pela abertura das portas. Por fim, entramos. Fichas amarelas para os veteranos e cor-de-rosa para a primeira visita - o meu caso. Fui chamada, preenchi uns papéis. A partir de então, senti-me a escorregar, sem "way out" pelas retortas dum processo de produção fabril, altamente mecanizado. Habituada àqueles saudosos exames médicos artesanais de "chez moi", comecei por me despir da cinta para cima, meter a roupa num saco de lona, vestir uma túnica azul, entregar o saco de lona e receber uma ficha em troca, enfiando um elástico no pulso. Depois, para deslizar sem problemas ao longo daquela "maquinaria" implacável, bastava seguir a indicação das setas nas paredes.
Radiografia. Dois ou três corredores depois, tirar os sapatos, pesar-me e medir-me. Mais uns metros, aguardar em fila até que um quadro luminoso me indicasse o número do gabinete do médico que iria proceder a um exame médico pessoal. Calhou-me uma mulher - auscultou-me, viu-me a tensão, organizou um dossier - um pouco desconsolada com a parca história das minhas doenças passadas. O pior estava para vir! Após mais umas voltas ao labirinto, caí numa "chaise longue" com um tubo de vidro e um papel na mão, que passei a uma risonha cara asiática do outro lado de uma divisória de vidro. O meu braço já não passou para o lado de cá, sem que me enfiassem uma agulha nas veias e me tirassem uma boa quantidade de sangue. Horrível! Mais uns passos, e novo recanto com "chaises longues". Sentei-me e deixei-me ficar à espera de nova tortura. Uma velha acercou-se e perguntou-me "sente-se mal? Respondi negativamente e levantei-me logo. Aquilo era mesmo apenas um recanto onde só os fracos recobram forças! Desemboquei noutro pátio cheio de cabines - troquei de novo uma ficha pelo saco de campanha onde estava a parte de cima da minha indumentária. Vesti-me, sai pelo outro lado da cabine para outra sala, onde devolvi o saco e a bata azul e com um outro papel que ainda segurava na mão, achei-me num gabinete com uma francesa desagradável. Quando lhe disse que estava no ensino superior, pregou-me o maior dos sustos, ao dizer: " Não era a este hospital que devia vir!" Respondi-lhe que me tinha feito o que me recomendaram. Ela perguntou quem. Eu disse quem e esclareci que queria um certificado médico para permanecer na Cité. Ela declarou, então: Ah, bom, nesse caso é aqui.
Uf! Por um momento pensei que todo aquele calvário fora inútil!
Outra funcionária perguntou-me, logo depois, se já fizera o B.C.G. e quando respondi afirmativamente -especificando o ano (1965). Recebi um papel cor-de-rosa e subi ao primeiro andar. Lembrava-me de uma pavorosa inoculação de um líquido branco, que me causara calafrios em Coimbra. Mas o papel cor-de-rosa salvou-me dessa provação. Fiz apenas a prova "tuberculinica" - uma raspagem no braço, seguida de uma pincelada indolor. Deram-me, então, outro cartão para voltar no sábado, a mostrar o braço, e pude, finalmente, procurar o caminho da porta de saída!
Segui para o metro, com destino à Escola Prática de Altos Estudos. Chegada à estação, porém, sem qualquer mapa na mão, não sabia o que fazer. Recorri a uma loira jovem, que se revelou inglesa logo que abriu a boca e que foi extremamente gentil. Puxou de um guia e, com toda a paciência, localizou o meu percurso, com três correspondências de metropolitano. Seguimos juntas até à mudança de Montparnasse, maldizendo os quilómetros subterrâneos que se percorrem no metro de Paris. A inglesa, que anda no Conservatório e carrega habitualmente um violoncelo é ainda mais sensível a este facto.
Nos Altos Estudos, no alto de uma escada, depois de ter saído de um elevador pré-histórico (onde só cabe uma pessoa magra e onde, à saída, uma minúscula porta "à bar do Texas" ensarilha as pessoas), esperei largo tempo até ser recebida por um rapazinho de ar indolente que se limitou a dar-me uns impressos para preencher. Chegada ao lar, tive a ideia de perguntar pela Eduarda Cruzeiro, de quem a Lurdes me tinha falado no Ministério. Causou-me uma excelente primeira impressão - uma rapariga despretenciosa, natural, comunicativa. Combinamos ir juntas, no dia seguinte, à "École Pratique". Cumprimos o combinado e, na quinta-feira de manhã, depositamos as nossas inscrições - eu no seminário do G. Friedman (com receio da erudição de Touraine), ela no do Bourdieu. Seguimos para o "Bon Marché", onde experimentamos "collants" para ginástica. Separamo-nos à saída. Vim almoçar a casa e, receando desperdiçar uma bela tarde de sol, que poderia não se repetir durante muito tempo, senti-me na obrigação de ir visitar a Torre Eifel. Já a conhecia, de baixo para cima, mas ainda não subira. Desta vez, aliás, não fui além do 1º andar. Uma vista já muito interessante. Bons ângulos para fotografias turísticas. Tomei um café no bar da torre, olhando o Sena, e depois desci a pé umas infindáveis escadinhas. Fui fazer olhar os "bateaux-mouche", depois tomei a direcção do metro, dando no caminho uma vista de olhos a um centro comercial.

Novembro - Sexta-feira, 1
Mudou o tempo. Almocei, como de costume, na Cité e depois fui até "Notre-Dame", Saint-Germain, etc. Turismo, à espera de que me dessem condições para trabalhar...
Vim cedo para casa e passei a tarde a ler um Ellery Queen muito chato (à falta de melhor!).

Sábado, 2
Estive à conversa no quarto da Eduarda. Depois, ela decidiu fazer uma sesta antecipada e eu fui mostrar ao hospital o resultado da minha prova "tuberculinica" - última étape daquela inesquecível jornada de quinta-feira!
Quando ia a sair do restaurante a Eduarda, atrasada, chegava. Retrocedi com ela e passamos a tarde juntas. Acompanhei-a ao cabeleireiro, fizemos compras alimentares (leite e café em pó, biscoitos, etc.). Depois do jantar na cantina, fomos ao bar do Brasil, onde o ambiente é alegre, descontraído. Não há mais nada do género nesta cidade-dormitório. E acresce ainda que lá o café é mesmo bom! Estivemos à conversa com dois compatriotas. Entre outras coisas, fui forçada a sair em combate "feminista".
Um elemento altamento positivo resultou daquele encontro: soube que a maneira eficaz de conseguir uma carta "copar" (= refeições a 1/2 do preço) era matricular-me na École Pratique - secção das religiões, escolhendo uma religião supostamente de pouco interesse, para não porem dificuldade à inscrição. Optei, por jogar pelo seguro, pela religão que o rapaz indicara: "estudo comparado das religiões da Índia e do Tibet".
Estivemos depois, até tarde, no quarto da Eduarda (ela, a Zé e eu), discutindo religião, política, literatura, etc.

Domingo, 3
Dia sem história. Levantei-me tarde, saí só para almoçar e jantar dentro da Cité. Escrevi cartas.

Segunda-feira, 4
De manhã, fui à Sorbonne tratar da preciosa "carte copar" pela via religiosa. Estudei cuidadosamente o programa dos cursos , para jogar pelo seguro escolhi mesmo as do Tibete e da China, com Mr. Stein como director de estudos, e avancei timidamente até um pequeno cubículo improvisado que uma tabuleta designava por "secretaria". Sentia-me tão comprometida como se na minha cara se dislumbrasse, a olho nú, o total desinteresse pelas religiões orientais. Para disfarçar escolhi ainda mais um seminário adequado ao do Mr. Stein (China, salvo erro) e tudo decorreu muito bem. Deram-me logo o impresso "copar". Voltei à tarde com o impresso preenchido e expliquei às senhoras o exotismo do sistema de nomes português - dois nomes de família, um da mãe e um do pai, nenhum do marido. Isso não conseguiu impedir a falsidade com que a carta copar me designa M.me "De Queiroz", née "Aguiar Moreira". Não joga certo com mais nada, mas as senhoras tranquilizaram-me a esse respeito, pois o cartão destina-se unicamente a franquear a porta dos restaurantes para universitários e o contínuo nem para o nome olha. De Queiroz ou não, passei a alimentar-me por 1,60 francos, na segunda-feira seguinte. Se atendermos às delongas que ainda pendem sobre as minhas inscrições em sociologia, concluo que o Mr. Stein me poupou uma pequena fortuna!
Nesse dia, haviamos almoçado a Eduarda, a Zé e eu com um amigo delas, assistente na Faculdade de Economia de Paris, o Alfredo de Sousa, que nos levou, de carro, até perto de St. Michel. Aí separei-me da restante comitiva, mas reencontramo-nos no Centro Albert Chatelet. Comunicaram-me secamente, na Sorbonne, que as inscrições estavam encerradas e por isso resolvi desistir - não vi alternativa.
A Eduarda , já que ali estávamos, achámos por bem aproveita e assistir a um "meeting", numa sala escura e fria: meia dúzia de rapazinhos acalorados em discussão com um representante da classe docente - o Mr. Lapassade.
Jantamos tarde, em grupo alargado, e finalizamos o dia com um cafézinho na Casa do Brasil.


1 comentário:

  1. Maria Manuela Aguiar disse:
    E mais não há!
    A Eduarda seria a minha melhor amiga, desses tempos de Paris.
    Não há ainda referência e tantos outros amigos, que fui fazendo.
    O Alfredo, que já era uma sumidade, e se doutorou com 20 valores (nunca tal se vira na Sorbonne - nunca um estrangeiro conseguira um tal feito, com uma tese em Economia!)não vivia na "Cité", mas visitava-nos muitas vezes.
    Mal eu sabia que ele viria a ser um dos fundadores do PPD!
    Em Lisboa praticamente não voltei a encontrá-lo, porque, então, não fazia vida partidária, como ele.
    E até com a Eduarda, e com os melhores amigos desse tempo, fui perdendo contacto.
    Lisboa é uma cidade que, dispersa, desanimae desagrega.
    Mas a amizade perdura.

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