domingo, 20 de dezembro de 2009

Coimbra, há tanto tempo!...

Meio século.
Foi há meio século que atravessei, pela primeira vez, a Porta Férrea. Já como estudante da Faculdade de Direito. Ou melhor, futura estudante porque estava dispensada do exame de aptidão à faculdade e fui acompanhar uma amiga que se apresentava a essas provas - a Maria Emília.
Estava ela apaixonada por um amigo, que ali andava, pelo mesmo motivo. Apresentou-mo.
Foi, por isso, o primeiro colega que conheci em Coimbra. Cinco anos depois, acabei por ser eu, não ela, a casar com ele. Preferia que as coisas tivessem corrido bem entre eles, mas assim não aconteceu.
Estudávamos os três juntos, íamos para todo o lado juntos.
Mas logo ele começou a fazer-lhe confidências - gostava de mim...
Confidências que ela me "inconfidênciava", cada vez mais, pragmaticamente, curada da antiga paixoneta. A solidariedade feminina funcionava, pelo que só ele não sabia que eu sabia.
Um dia, a meio do ano, terminei com aquele "jogo de enganos", pondo tudo a claro. Ele não imaginava que eu estava a par dos seus benditos sentimentos por mim e, muito menos, dos da Mª Emília por ele.
Havia subentendidos das nossas conversas que lhe escapavam, pequenos remoques emilianos ou manuelinos... Ou não lhe escapavam inteiramente, deixando-o um pouco desconfortável (era um rapaz esperto e intuitivo...).
Tempos muito divertidos. Há meio século!...
Por essa altura, ainda eu escrevia um "diário" - não diariamente, diga-se. É dele que vou falar.
O Diário de Anne Frank impressionava, enormemente, as jovens da minha geração. Não tínhamos uma réstea de talento, mas achávamos que devíamos deixar ao futuro as impressões e os sonhos dessa nossa idade, igual à dela, que, por desgraça, nunca teve outra...
Eu, sim. Envelheci. E não olho, hoje, com excessiva benevolência essa tentativa falhada de transmitir, de uma forma literária, os meus estados de alma.
Melhor teria sido, à maneira do Blogue Círculo Aguiar, ater-me a factos do quotidiano, a comentários curtos sobre pessoas e acontecimentos.
Os meus diários intermitentes, muito mal escritos ao correr da pena, só ganham algum interesse quando lembram episódios que jaziam no esquecimento.
Esta semana trouxe comigo de Lisboa o diário que vai de Maio 1962 a Janeiro de 1963.
Li-o de ponta a ponta e a única expressão que sublinhei respeita à guerra colonial, que então ensombrava a nossa natural alegria de viver - aos rapazes, porque tinham na linha do horizonte o dantesco espectáculo de uma guerra muito real, agendado para o "dia seguinte". Às raparigas, porque estavam preparadas para os acompanhar, de longe ou de perto, e partilhavar a sua sorte, sentimental e afectivamente.
Era o meu caso...
Escrevi, pois, a 21 de Janeiro de 63, uma 2ª feira:
"Bafiento e miserável país este! Não só porque é pobre, mesquinho de mentalidade, como tem um governo de megalómanos com a obsessão das caravelas a navegar dentro das cabeças".
Gosto da idéia das obsessivas "caravelas a navegar dentro das cabeças" do governo de então!
Porém, como se vê, muito deficientemente enroupada, nas palavras, na própria construção da frase...
É ela escrita no contexto de um episódio completamente esquecido. Figura central: Álvaro, colega goês.
Transcrevo:

"... Estudei umas 2.30 horas de tarde e às 5.30h fui ao cinema ver mais um filme do ciclo (Umberto D), por sinal, muito bom, mas também muito triste. Em seguida, estive à conversa com o Álvaro, que embora tenha passado o verão em Coimbra, tem a época de Janeiro (para exames) por ser goês."
Segue-se a frase já citada...

"...O Álvaro bem quer ir para a França ou a Inglaterra, mas não lhe dão passaporte, porque os goeses querem continuar portugueses até ao fim dos séculos, e estes que estão cá dentro são reclames vivos, slogans dessa idéia.
Mandam-no escrever para o Governador de Goa (em Lisboa), com um ar muito sério, como crianças ou doidos num manicómio..."

6 comentários:

  1. AS ficções do "Estado Novo"!
    O governador de Goa em Lisboa, como se estivesse em Goa.
    Os goeses em Coimbra, mas como se pudessem ir e voltar à terra, com direito a de exames de Janeiro, mas sem acesso a passaporte para deixar o rectângulo - não fossem sair de vez.
    Patético!
    Hoje é depressivo pensar o que foi esse regime. Ao tempo era sobretudo revoltante.

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  2. Os ciclos de cinema. O cineclube. O Manel era dirigente e, a meu ver, gastava mais tempo na organização do que no estudo.
    Eu era apenas uma frequentadora constante.
    O cinema ocupou, desde sempre, desde a infância, um lugar de 1º plano na minha vida lúdica...
    O Padrinho (Avô Manuel) foi quem me ensinou o caminho das salas de espectáculo.
    É curiosa a referência, ainda nestes anos de Coimbra, a idas regulares ao cinema com este Avô - no Porto, naturalmente.
    Não pensei que tivessem continuado nos tempos em que já namorava. Arranjava maneira de compatibilizar programas. Mas, pelo menos uma vez, queixo-me do filme que fui ver com ele. Um "Western", bem inferior aos da sua época de ouro.

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  3. Parece que estou a ver o Manel Queiroz, como o vi pela 1ª vez, quando a Mª Emília correu a cumprimentá-lo e o apresentou: em frente à sala de aulas onde decorreria o exame, encostado a uma coluna do claustro. Muito moreno do sol apanhado a velejar no verão (como membro do "Clube de Vela Atlântico"), com blusão de couro preto, calças pretas de fazenda, sapatos desportivos e uma bela gravata de seda, dissonante do conjunto descrito. Soube mais tarde que era do Pai, surripiada para a cerimónia.
    As dissonâncias faziam parte integrante do "charme" do Manel...
    Para mim, em especial, o mais impressionante no seu curriculum era a qualidade de velejador.

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  4. A Mº Emília.
    Conheci-a em Avintes, em casa da prima Mª Angélica, pouco antes do seu casamento com o Corinto Marques, também primo - mais afastado, embora.
    Ela conhecia o Manel da Foz - da praia.
    Assim estava em marcha a triangulação, que tantas horas de boa disposição nos daria em Coimbra.
    A Mª Emília e eu partilhamos no 1º ano, o quarto no lar das dominicanas, em frente às escadas monumentais. Nesse tempo era assim - suponho que nem havia quartos individuais. Ao lado, com uma porta de comunicação, ficavam duas micaelenses, De princípio, ouvia os sons, mas não entendia os dizeres. O "U" à francesa causava-me perplexidade. Depois habituei-me.
    Nunca me ri tanto, em toda a vida. A Mª Emília era alegre, com um espantoso sentido de humor. Ria da própria desgraça - se fosse caso disso, e, às vezes, era.
    Vocação para o Direito não tinha - os exames não foram um grande sucesso. Desistiu no 2º ano, infelizmente.
    Com os constantes entendimentos e desentendimentos com o Manel, quando ela regressou ao Porto, eu perdi o ponto de equilíbrio ou de relativização das coisas, que ela tão sabiamente sabia estabelecer.
    O diário dá conta disso mesmo. Disputas chatas, repetitivas. Medos e temores de exames, dos meus e, sobretudo, dos do rapaz - um cabulão nato... -de guerras coloniais - também sobretudo por causa dele. E do Mário, e de amigos de infância, como o Manel Alberto.
    Podia ter sido tudo mais descontraído, permitindo gozar, em pleno, os nossos 20 anos.
    Mas nem tudo foi tão lúgubre como o diário faz crer. Muito à portuguesa, acho que só pegava na pena para me queixar, marginalizando os bons momentos, quando muito referidos com um simples "as coisas andam a correr melhor".

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  5. Às vezes, o Manel tinha licença para manusear o diário e até para desenhar em algumas das suas páginas.
    Tinha mais talento para as artes do que para o Direito - ou assim eu achava, nessa altura,
    Estava longe de imaginar que se tornaria, na meia idade, um alto especialista de Direito Cooperativo e outros Direitos!

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  6. O melhor desses cadernos são mesmo os desenhos do Manel- em que quase sempre aparece uma jovem de longos cabelos lisos. Eu, evidentemente.

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