terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

MEMÓRIAS DE SÁ CARNEIRO IN DEFESA DE ESPINHO dez 2020

1 - Há precisamente 30 anos que não escrevo uma linha sobre Sá Carneiro, apesar de o ter bem presente na minha memória, o que é igual a dizer, na minha vida. Não me revejo em quase nada do que se escreve sobre ele e não tenho influência bastante para os induzir a ir além dos "lugares comuns " em forma de adjetivos ("frontal, corajoso, determinado", quando não "teimoso" ou "irascível...), ou contrariar a incorreta caraterização ideológica, e as invocações partidárias de uma grande ignorância ou hipocrisia (nesta categoria incluo todas as que definem o PSD como um "partido de direita", aceitam como natural a sua integração no PPE, para onde Marcelo Rebelo de Sousa o levou no início deste século, ou admitem coligações com políticos assumidamente racistas e xenófobos). Nos anos 80 e 90, participei em muitas sessões e colóquios sobre o pensamento e a ação de Sá Carneiro, mas nunca fiz menção à experiência de trato com este Homem singular - que foi. aliás, breve e ocorrida em circunstâncias incomuns, na qualidade de Secretária de Estado (pela sua mão, a primeira mulher do PSD num governo da República). Hoje, abro aqui uma exceção para contar como o vi, muito subjetivamente, ao longo desse ano de 1980. No dia 3 de janeiro, estava eu no Serviço de Provedor de Justiça, quando a telefonista me passou uma chamada, anunciando: "É o Primeiro Ministro"...e logo, do outro lado, a voz que conhecia dos "media", rápida e apressada, me cumprimentou e me pediu que fosse ao seu gabinete, de tarde, às 5.00. Fiquei um pouco enervada e apreensiva, antes de mais, porque ele me pareceu preciso, seco e distante. Como sua incondicional admiradora desde os dias da "ala liberal" e dos "Vistos" do Expresso, receava não gostar do meu herói mítico, enquanto homem real.... Poderia a velha devoção resistir a uma novíssima antipatia pessoal?.. 2 - Fiz questão de chegar às cinco em ponto, embora estivesse convencida de que teria de esperar largos minutos. Não... mal cheguei, conduziram-me ao gabinete e à porta, com um imenso sorriso, que começava nos luminosos olhos azuis, estava o Dr Sá Carneiro. Cumprimentei-o, cerimoniosamente, com o protocolar "Senhor Primeiro Ministro" e a primeira coisa que me disse, enquanto nos sentávamos, foi: "Por favor, não me chame Primeiro Ministro". Resposta minha, incontida: "Senhor Primeiro Ministro, desculpe-me, mas eu esperei tempo demais para o poder chamar assim e, agora, esta forma de tratamento dá-me imenso gozo!". Ele continuava sorridente, dando a impressão de estar bem informado sobre o meu pouco secreto e entusiástico "Sá Carneirismo" Com tudo isto, ficou criado um clima de boa disposição e inesperada proximidade. Sendo uma figura carismática, não deixava ninguém indiferente - ou inibia ou desinibia o interlocutor e eu via-me nesta segunda alternativa. Recordo todos os detalhes da conversa, que aqui tenho necessariamente de sumariar. Antes do mais, perguntou-me, pragmaticamente, se falava francês e inglês , e depois, foi direto ao assunto: " O que pensa de ser Secretária de Estado da Emigração?".Reagi, alarmada:"Nem pensar! Não posso ir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, ando sempre mal vestida e mal penteada. E é um cargo difícil demais para mim".O Dr. Sá Carneiro contra argumentava: "Como pode dizer isso, se já foi Secretária de Estado do Trabalho?". A presença de uma mulher naquela pasta, no ano anterior, em tempo de agitação e greves tinha causado um certo espanto e igual efeito provocou a minha afirmação seguinte: "Não, Senhor Primeiro Ministro, isso foi fácil". E expliquei, detalhadamente porquê - a tecnicidade das matérias num setor que me era familiar, diálogos e decisões tomados em comités e gabinetes.... A certa altura, disse-me que ia chamar o MNE Freitas do Amaral para participar na conversa. E ele veio, e não sei o que terá pensado do heterodoxo perfil da jovem que lhe era proposta para a Emigração, mas entrou naquele alegre andamento do diálogo, com o seu contributo de bom-humor. Ambos insistiram numa resposta positiva e urgente (tive 24 horas para decidir...), Despedi-me a exclamar: "Senhor Primeiro Ministro, eu, por si, faço tudo- vou de escadote colar o seu retrato nas paredes, vou, de balde e pá, pintar AD nas ruas... tudo, menos ser Secretária de Estado da Emigração!". Contudo, acabei por dar o meu "sim" dentro do prazo, não sem reafirmar que, a meu ver, me ia sair mal da ordália, levando o Dr Sá Carneiro a assegurar, no tom jocoso a que já estava habituada: "Não se preocupe, eu assumo total responsabilidade pela escolha". Certo é que intuiu que eu não estava apenas a fazer graça quando sublinhava a falta de engodo pelos palcos da política, a timidez e relutância em discursar para multidões e em aparecer na TV... E, por isso, durante o período de "tirocínio", tive o privilégio de ser apoiada e incentivada por frequentes telefonemas seus...Usava sempre uma linha direta, mas, às vezes, trocava o número e ligava às minhas secretárias, facto nunca antes visto, pois as personalidade muito importantes não prescindem da mediação do secretariado, a fim de assegurar a presença do interlocutor, à espera, do lado de lá da linha... Na primeira chamada, quis prevenir-me de que os emigrantes recrutados para a Suíça, através da Secretaria de Estado e das entidades patronais daquele país, não eram previamente informados sobre o conteúdo dos contratos, o local e a empresa de destino. Tinha sabido isso por uma antiga empregada, que acabava de partir, mas não me indicou o seu nome - não estava preocupado com ela (uma mulher desembaraçada...), mas sim com todos os portugueses, achando que um tal tratamento atingia a sua dignidade. Agradeci a inesperada notícia, garantindo que ia atuar, de imediato. Meu dito, meu feito, pois, por acaso, tinha à minha frente, a despacho corrente, o Diretor-Geral da Emigração. Pelo teor das minhas respostas, conseguira aperceber-se da questão suscitada e, mal desliguei, indagou, solícito: "Como se chama a empregada do Senhor Primeiro-Ministro?". "Não faço ideia! - disse... "o Primeiro Ministro está preocupado com o tratamento dado a todos os portugueses, não especialmente com a empregada". Interpelado sobre os procedimentos em vigor, justificou-os com uma prática de muitos anos: "É assim que querem os suíços!". Ao que eu respondi, terminantemente: "Mas não é assim que quer o Governo português!. A partir de hoje, daqui as pessoas só emigram com o contrato de trabalho na mão!". Espantado, o alto funcionário foi dali negociar com os suíços, e, curiosamente, obteve pronta concordância para a mudança... Afinal, nem era complicado - só exigia a consciência do problema e firmeza para o resolver. Ao fim de algumas semanas, à medida que eu ia mostrando segurança no exercício concreto das novas funções, os telefonemas da rua Gomes Teixeira, foram, naturalmente, rareando.... 3 - O perfil do cargo levava-me a constantes viagens ao estrangeiro e o convívio pessoal com o Dr. Sá Carneiro foi, por isso, bem mais limitado do que o de outros membros do Executivo, mas a sintonia com ele e, também, com o Doutor Freitas do Amaral era perfeita. Em todos os encontros havidos, só me lembro de ver um Sá Carneiro fulgurante, com o seu olhar magnético e sorridente. A última vez foi a 2 de dezembro num salão de hotel, com centenas de participantes da campanha de Soares Carneiro. O avião que trazia dos Açores os outros oradores, o General e o Doutor Mota Pinto (seu mandatário), chegou com bastante atraso e o Dr Sá Carneiro preencheu mais de uma hora de espera, contando episódios insólitos e divertidos do seu quotidiano, em tempo de luta e afrontamentos. Finda a sessão, todos o queriam cumprimentar. Eu estava de pé, encostada a uma parede, à conversa com José Gama, deputado do CDS, e propus-lhe: "Vamos poupar o Dr Sá Carneiro a mais cumprimentos - deve estar cansadíssimo!". Mas, no meio de tanta gente, não sei como, viu-nos e abriu caminho, em linha reta, para vir, ele, cumprimentar-nos! Essa imagem ficaria, indelével, na memória, a última tão forte como a primeira... 1980 fora, até ao dia 4 de dezembro, o ano mais feliz da minha vida, num governo, como não existiu outro em Portugal, porque tudo era claro, tudo fazia sentido - fins, meios e prioridades. Nunca tive de perguntar o que devia fazer, ou como... Havia muita pressa e muito rigor, Eu conhecia bem o Político, porque acompanhara o seu percurso, desde que o momento em que surgiu na vida pública. Nesses onze meses vertiginosos, foi grato reconhecer que o Homem era igual - igual nas duas vestes!. A mais esquerdista das minhas secretárias, (da área da UEDS), logo depois das eleições de outubro, confidenciou-me que tinha votado AD, impressionada com a simplicidade e simpatia de Sá Carneiro e com o estonteante ritmo de trabalho do seu governo. Em poucas palavras, uma bela síntese desse projeto/aventura política em que seguíamos um Líder e um Amigo

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