quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

COM JOÃO CAUPERS NA LUTA PELA IGUALDADE MEMÓRIAS DA PROVEDORIA DE JUSTIÇA 1 - Espantada com o que se tem dito e escrito sobre o novo Presidente do Tribunal Constitucional, que, na semana passada, foi tema obrigatório de comentário das elites bem pensantes, nos mais excelentes jornais e programas televisivos, que costumo, respetivamente, ler e ver, não posso resistir à tentação de engrossar o caudal mediático, como cidadã sem pretensões à superioridade intelectual e moral, que se arrogam tantas celebridades. Pequena vantagem, a meu favor: conheço o Doutor Caupers, trabalhámos, durante anos, como assessores do Provedor de Justiça. Foi há muito tempo, tinha eu trinta e poucos anos, e ele bastante menos - sendo o mais jovem e o mais brilhante de todos nós. A Provedoria de Justiça era, também, uma instituição nova, inspirada no "Ombudsman" dos países nórdicos, criada em 1976, no quadro da democracia nascente, que precisava de refazer a sua arquitetura jurídico-constitucional e de a habitar, mudando costumes e mentalidades. Neste aspeto, nenhuma estrutura era mais desafiante do que o Serviço do Provedor de Justiça - entidade à qual os cidadãos podiam, (podem), recorrer, sem custos nem burocracias, contra erros e abusos da Administração Pública. Os portugueses sabiam bem o que era o Poder constituído - o poder de legislar, decidir, executar, julgar, punir, pela força da Lei. Era-lhes, todavia, culturalmente estranha a ideia de uma magistratura de influência, ancorada apenas na força da razão, para fazer justiça, com autoridade essencialmente moral. O Provedor recebe as queixas dos cidadãos, avalia-as face ao Direito, e se reconhecer a sua boa fundamentação, aceita-as e dirige ao governo recomendações, instando-o a cumpri-las. Se a resposta governamental for insatisfatória ou incompleta, resta-lhe dar publicidade à matéria, e, se for caso disso, pedir a inconstitucionalidade da norma ou da decisão concreta. Os "media" e a opinião pública são as melhores armas de que dispõe, numa sociedade livre, graças à credibilidade que lhe advém da independência perante o poder político, da reputação de que goza, da excelência dos seus juízos. O primeiro Provedor de Justiça, em 1976, foi um militar de Abril, o Tenente-coronel Costa Braz. O segundo, o Dr José Magalhães Godinho, advogado de renome, corajoso democrata, que afrontou o antigo regime, e um verdadeiro humanista.Tal como João Caupers, tive o privilégio de trabalhar com ambos e de apreciar a forma como souberam dar corpo à instituição. A política afastou-me da Provedoria, em definitivo, no início da década de 80, e não mais pude seguir, de perto, a sua trajetória, mas ficou-me a impressão de um certo e progressivo apagamento, apesar das figuras ilustres que ali se sucederam, até que, finalmente, o cargo foi entregue a uma mulher, a Profª Maria Lúcia Amaral. Com ela, retomou o antigo fulgor! A sua mais recente tomada de posição aponta à inconstitucionalidade das alterações à legislação eleitoral autárquica, engendradas pelo bloco central parlamentar, em 2020. 2 - Comecei a minha vida profissional como assistente de um centro de estudos juslaborais (em alguns períodos acumulado com o ensino universitário) e, depois, como assessora do Provedor de Justiça. Lugares de gabinete, onde, não havendo promoções, competição, rivalidade, éramos todos amigos e solidários. Não sei se em funções dessa natureza, isso acontece como regra. Comigo aconteceu. Na verdade, não só os colegas, mas também os "chefes" foram excecionais, a ponto de não recordar o mínimo incidente desagradável, em cerca de doze anos de trabalho. Não posso, obviamente, dizer o mesmo do que se seguiu, em outras funções, nos cinco Governos a que pertenci e no Parlamento, onde, como se sabe, é praticamente impossível o mesmo grau de harmonia, consenso e boa vontade geral. Na minha primeira experiência governativa - com o Prof. Mota Pinto num governo de nomeação presidencial, para o qual fui chamada precisamente por não ter filiação partidária - levei comigo, como Chefe de Gabinete, o colega da Provedoria Manuel Marcelino, uma sumidade em Direito Administrativo e uma simpatia. E quando, em março de 1979, descobri, esquecido numa gaveta, um anteprojeto de lei sobre a igualdade, logo decidi constituir uma equipa para lhe dar rápida sequência, e de novo me socorri da qualificada assessoria jurídica do meu serviço de origem. Eu era partidariamente independente, mas com fortes convicções políticas e estava no governo para as pôr em prática. Social-democrata à sueca, naturalmente feminista e defensora do sistema de quotas para a paridade, (que havia de chegar a Portugal só no século XXI, com uma quase geral oposição dos conservadores de direita e até de alguma esquerda, muito conservadora neste campo...), não podia perder aquela oportunidade de agir. Para o que precisava, na condução do processo, de alguém com excecional competência jurídica, dinamismo e sensibilidade para as questões de discriminação de sexo. Mulher ou homem? Um homem, concluí, porque era tempo de mostrar a luta pela igualdade de género como causa comum de "feministas/humanistas", mulheres e homens, ou seja, como matéria que não respeitava apenas ao "gueto" feminino, sendo, de facto, condição de progresso da sociedade inteira. De todos os colegas, o que, a meu ver, melhor se ajustava ao exigente perfil predefinido, era o João Caupers. Admirava a sua rapidez de raciocínio, de decisão e de argumentação, combinados com uma postura frontal e um sentido de humor, que, em Portugal, é coisa rara, (e nem sempre bem compreendida). Ideologicamente, considerava-o tudo menos conservador - se o fosse, em 1979, nem entenderia o alcance da legislação que queríamos ultimar. Ele aceitou, sem hesitar, o desafio, no curtíssimo prazo previsto para concluir a missão. E, como era de prever, cumpriu-a de modo exemplar. 3 - O anteprojeto em referência, da autoria da Comissão da Condição Feminina, foi, como disse, achado, no meu gabinete, onde estava há vários governos, de curta duração e azafamados com outras urgências. Tinha por objetivo principal compilar legislação dispersa sobre a matéria, e serviria, também, para pôr na agenda política a Igualdade de Direitos e oportunidades. Uma ótima iniciativa, sem dúvida, mas eu queria ir mais longe, tendo como paradigma o Ombudsman (ou Provedor) para a Igualdade da Suécia, cuja prioridade é garantir o equilíbrio de género no mercado de trabalho, dando, em condições de igualdade, preferência ao sexo subrepresentado na profissão. Do Secretário de Estado do Emprego, João Padrão, meu colega de curso, obtive pronta e completa concordância. Por despacho conjunto, constituímos o grupo de trabalho, que integrava representantes da Comissão da Condição Feminina, sob a presidência de João Caupers. O prazo foi cumprido - ouvidos sindicatos e entidades patronais - e o texto final, veio a converter-se em lei, colocando Portugal na vanguarda da Europa e merecendo os maiores encómios de organizações internacionais, Digo-o com à vontade, porque as fórmulas originais que foram encontradas, com o meu incondicional apoio, não são minhas, têm a inconfundível marca do jurista presidente do grupo de trabalho...Um texto inovador, que não se limitou à codificação de normas, antes criou uma instância de fiscalização e controlo, a "Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego" (CITE), de natureza tripartida (com representantes do Governo, dos Sindicatos e das Associações Patronais) - um original "Ombusman" à portuguesa, a funcionar com o suporte da Inspeção do Trabalho. O acento tónico é colocado na luta contra as desigualdades salariais, em função do sexo, contra uma conceção do trabalho feminino como "inferior", "barato", "de recurso". Para desocultar as discriminações, estabelece-se a comparação entre o tratamento aplicável à mulher (ou mulheres) e a um homem, na mesma profissão e categoria profissional, prestando serviço, nas mesmas condições, à mesma entidade patronal - o que na economia do diploma de 1979, se considera o "homem comparável". Detetada a diferença, fica a empresa com o ónus de provar que tal resulta de outro factor, que não o sexo. E a lei vai a ponto de impor a nulidade das normas que estabeleçam categorias profissionais exclusivamente femininas, com remunerações inferiores às atribuidas a tarefas equivalentes de trabalhadores masculinos, passando estas últimas, a aplicar-se, do mesmo modo, automaticamente, "ope lege", às mulheres. A solução sueca não era de fácil adoção entre nós (quatro décadas depois, ainda não é), mas por outras vias, assim se delineou um normativo de combate à discriminações, enquadrado na mesma linha de pensamento, e que permitiria a à CITE ir aperfeiçoando os conceitos de "trabalho igual" e de "valor igual". 4 - Nestes últimos 40 anos, só reencontrei João Caupers, uma vez, já Juiz do Tribunal Constitucional, durante uma sessão de homenagem a um amigo comum dessa bela década de setenta na Provedoria. Pareceu-me "muito igual a si próprio"! Os seus pares do TC, que o elevaram à presidência - a "primus inter pares" - têm, claramente, por ele, a mesma admiração que aqui lhe manifesto. A polémica a que se assiste é absurda. Nos seus escritos, ele rejeitou inequivocamente todas as formas de discriminação ou de tratamento menos digno, em função das escolhas sexuais de qualquer minoria. Comentários sobre "lobbies", de um ou outro grupo, escola de pensamento ou movimento, situam-se no puro domínio de liberdade de expressão, como bem escreveu Miguel Sousa Tavares no Expresso, (uma das poucas vozes lúcidas, que ouvi no meio de tanto barulho). Razão tinha Ana Gomes, quando lembrava que, às vezes, por cá, há tiques de Orbán em bocas de esquerda.

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