terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

MEMÓRIAS DA PROVEDORIA DE JUSTIÇA

MEMÓRIAS DA PROVEDORIA DE JUSTIÇA COM JOÃO CAUPERS NA LUTA PELA IGUALDADE 1 - Espantada com o que se tem dito e escrito sobre João Caupers, o novo Presidente do Tribunal Constitucional, que, na semana passada, foi tema obrigatório de comentário das nossas elites bem pensantes, nos mais excelentes jornais e programas televisivos, que costumo, respetivamente, ler e ver (em regra, com agrado, concorde ou discorde), não posso resistir à tentação de engrossar o caudal mediático, como cidadã, sem pretensões à superioridade intelectual e moral, que parecem arrogar-se todos aqueles vultos. Com uma pequena vantagem, a meu favor: ao contrário da maior parte deles, conheço João Caupers, trabalhámos, durante anos, como assessores do Provedor de Justiça. Foi há muito tempo, tinha eu trinta e poucos anos, e ele bastante menos - sendo o mais jovem e o mais brilhante de todos nós. A Provedoria de Justiça era, também, uma instituição nova, inspirada no "Ombudsman" nórdico, criada em 1976, no quadro da democracia nascente, que precisava de refazer a sua arquitetura jurídico-constitucional e de a habitar, mudando costumes e mentalidades. Neste aspeto, nenhuma estrutura era mais desafiante do que o Serviço e a figura do Provedor de Justiça - entidade à qual os cidadãos podiam, (podem), recorrer contra erros e abusos da administração pública. Os portugueses sabiam bem o que era o Poder constituído - o poder de legislar, decidir, executar, julgar e punir pela força da Lei. Era-lhes, todavia, culturalmente estranha a ideia de uma magistratura de influência, ancorada apenas na força da razão, para fazer justiça, com autoridade essencialmente moral. O Provedor recebe as queixas dos cidadãos, avalia-as face ao Direito, e se reconhecer o sua boa fundamentação, aceita-as e dirige ao governo recomendações, instando-o a cumpri-las Se a resposta for insatisfatória ou incompleta, resta-lhe dar publicidade à matéria, e, se for caso disso, pedir a inconstitucionalidade da norma ou da decisão concreta. Os "media" e a opinião pública são as melhores armas de que dispõe, numa sociedade livre, com a credibilidade que lhe vem da independência perante o poder político, da reputação de que goza, da excelência dos seus juízos de valor. O primeiro Provedor de Justiça, em 1976, foi um "capitão de Abril", o então Tenente-coronel Costa Braz. O segundo, o Dr José Magalhães Godinho, grande advogado, corajoso democrata, durante o antigo regime, e um verdadeiro humanista.Tal como João Caupers, tive o privilégio de trabalhar com ambos e de acompanhar de perto a forma como souberam corporizar a instituição. A política afastou-me da Provedoria, em definitivo, a partir do início da década de 80, e não pude seguir, de perto, a sua trajetória mas ficou-me a impressão de um progressivo apagamento, apesar dos nomes ilustres que ali se sucederam, até que, finalmente, o cargo foi entregue a uma mulher, Maria Luísa Amaral - a mulher certa - e, com ela, retomou o antigo fulgor. A sua mais recente tomada de posição aponta à inconstitucionalidade das alterações à legislação eleitoral autárquica, engendradas pelo bloco central parlamentar... 2 - Comecei a minha vida profissional como assistente de um centro de estudos juslaborais (em alguns períodos acumulado com o ensino universitário) e, depois, como assessora do Provedor de Justiça. Lugares de gabinete, onde, não havendo promoções, competição, rivalidade, éramos todos amigos e solidários. Não sei se em funções desta natureza, isso acontece como regra. Talvez eu tenha sido um caso muito afortunado... Na verdade, não só os colegas, mas também os "chefes" foram excecionais, a ponto de não recordar o mínimo incidente desagradável numa década muito feliz. Não posso, obviamente, dizer o mesmo do que se seguiu em outras funções, (que não estavam nos meus planos), em Governos e no Parlamento, onde, como se sabe, não é praticamente impossível encontrar o mesmo grau de harmonia e boa vontade. Na minha primeira experiência governativa - com o Prof. Mota Pinto num governo de independentes, de nomeação presidencial, para o qual fui chamada precisamente por não ter filiação partidária - levei comigo, como Chefe de Gabinete, o colega da Provedoria, Manuel Marcelino, uma sumidade em Direito Administrativo. E quando, em março de 1979, descobri, esquecido numa gaveta, um anteprojeto de lei sobre a igualdade no emprego, logo decidi constituir uma equipa para lhe dar rápida sequência, já que aquele governo tinha um limitado horizonte de vida. Para a finalizar, em tempo útil, era essencial a condução com competência jurídica, dinamismo e sensibilidade para as questões da igualdade. Eu era politicamente independente, mas com convicções políticas assentes - social-democrata à sueca, naturalmente feminista e defensora do sistema de quotas, que só havia de chegar a Portugal no século XXI, com uma quase geral oposição dos conservadores de direita (e até de alguma esquerda...). Em 1979, não era fácil encontrar alguém com este perfil, com a consciência das discriminações de género subsistentes. Mais uma vez olhei para o meu serviço de origem, reconhecido pelo valor da sua assessoria jurídica. Mulher ou homem? Um homem, concluí, porque era tempo de mostrar a luta pela igualdade como causa comum e vital para o progresso da sociedade, não matéria que respeitava apenas ao "gueto" feminino. De todos os meus colegas, o que, a meu ver, melhor se ajustava ao exigente perfil assim predefinido, era, sem dúvida, o jovem João Caupers. Sempre apreciei nele a rapidez de raciocínio, decisão e argumentação, combinados com uma postura frontal e um sentido de humor, que, em Portugal, é coisa rara e nem sempre bem compreendida. Ideologicamente, considerava-o tudo menos conservador - se o fosse, em 1979, nem entenderia o alcance da legislação que queríamos ultimar. João Caupers aceitou de imediato, o desafio, e o curtíssimo prazo previsto, para concluir a missão. E, como era de prever, cumpriu-o de uma forma exemplar. 3 - O anteprojeto foi, como disse, achado, no meu gabinete da Praça de Londres - onde estava há vários governos (de curta duração e com outras prioridades) e fora preparado pela Comissão da Condição Feminina. O objetivo era compilar legislação dispersa sobre a matéria, o que serviria, também, pondo o enfoque na questão da Igualdade. A minha intenção era ir mais longe, tendo como paradigma o Ombudsman (ou Provedor) para a Igualdade da Suécia, cuja prioridade é garantir o equilíbrio de género no mercado de trabalho, dando, em condições de igualdade, preferência ao sexo subrepresentado na profissão.Tive do Secretário de Estado do Emprego João Padrão, meu colega de curso, imediata e absoluta concordância. Por despacho conjunto, constituímos o grupo de trabalho, que integrava representantes da Comissão da Condição Feminina, sob a presidência de João Caupers. O prazo foi cumprido, ouvidos sindicatos e entidades patronais, e o texto final, veio a converter-se em lei, colocando Portugal na vanguarda da Europa e merecendo os maiores encómios de organizações internacionais, Digo-o com o à vontade, porque as fórmulas originais encontradas, tiveram o meu incondicional apoio, mas não são minhas - têm a inconfundível marca de João Caupers. O texto era absolutamente inovador, não se limitava à codificação de normas, antes criava uma instância tutelar e fiscalizadora, a "Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego" (CITE), instituição de natureza tripartida (com representantes do Governo, dos Sindicatos e Associações Patronais) - um "Ombusman" à portuguesa! O acento tónico foi colocado na luta contra as assimetrias salariais, em função do sexo, contra uma conceção do trabalho feminino como inferior, mais barato. mão de obra de recurso. Para as desocultar, estabelece-se a comparação entre as condições aplicáveis a mulheres e a homens, para a mesma tarefa, como o mesmo grau de formação, anos de experiência, etc. É o que na economia do diploma se chama o confronto com o "homem comparável". A diferença de tratamento dada a uma trabalhadora em idênticas circunstâncias, obriga a empresa ao ónus de provar que o desfazamento salarial resulta de outro factor, que não o sexo. E a lei vai a ponto de impor a nulidade das normas que pretendem prever categorias profissionais exclusivamente femininas, com remunerações inferiores às aplicáveis a tarefas equivalentes de profissionais masculinos, passando a aplicar-se "ope lege" estas últimas, do mesmo modo às mulheres. A solução sueca não era, então, fácil de aceitar entre nós (nem então nem hoje, quatro décadas depois...), mas por outras vias, afinal, se delineava um normativo de combate às discriminações, que permitia à CITE ir aperfeiçoando os conceitos de "trabalho igual" e de "valor igual". 4 - Nestes últimos 40 anos, só reencontrei João Caupers, uma vez, já Conselheiro do Tribunal Constitucional, na homenagem a um amigo da então novíssima instituição, que era a Provedoria. Pareceu-me "muito igual a si próprio". Os seus pares do TC, que o escolheram para a presidência - tornando-o "primus inter pares" - têm, claramente, por ele a mesma admiração que aqui lhe manifesto. A polémica é absurda, tendo ele nos seus escritos rejeitado inequivocamente todas as forma de discriminação ou tratamento menos digno, em função das escolhas sexuais de qualquer minoria. Comentários sobre "lobbies", deste ou daquele grupo, situam-se no puro domínio de liberdade de expressão, como muito bem disse Miguel Sousa Tavares, (uma das poucas vozes lúcidas, que se ouviu no meio de tanto barulho). Tinha razão Ana Gomes, quando lembrava que, por vezes, há tiques de Órban em bocas de esquerda...

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