As Academias de Bacalhau estão hoje espalhadas no mundo, como verdadeiros padrões
de presença portuguesa, cumprindo uma vocação matricial de convivialidade, que vem
marcando o seu trajecto devárias décadas, sempre a irradiar alegria, a expandir a nossa
cultura e os nossos costumes, a oferecer solidariedade a quem precisa.
A ideia que lhes deu origem é, em si mesma, uma ideia felicíssima e singular: partir de uma
simples tertúlia de amigos, reunidos num almoço habitual, e juntar-lhe - numa fórmula que
faz toda a diferença - as componentes essenciais da cultura e da beneficência.
Mas por muito interessante que fosse este "achado", ao colocar uma forma de
associativismo lúdico ao serviço dos mais nobres objectivos da sociedade, os seus
autores não terão, com certeza, imaginado a assombrosa aventura humana em que haveria
de se traduzir!
O mundo da Diáspora portuguesa era formado por um sem número de comunidades
engendradas pela mesma vontade de preservar a identidade nacional e de conservar os
laços afectivos de ligação à Pátria, mas que, não obstante o que as unia, permaneciam
distantes e incomunicáveis entre si.
Era preciso dar um passo em frente para formas mais englobantes de cooperação entre
instituições congéneres, entre Portugueses dispersos no espaço geográfico dos cinco
continentes. Uma meta que, face à experiência do passado, parecia inatingível. Seriam os
portugueses, ao invés de tantos outros povos europeus da emigração, definitivamente,
avessos ao envolvimento num amplo movimento de convergência? As Academias do
Bacalhau vieram provar que não. Ao longo de mais de quatro décadas, mostraram tanto
uma enorme capacidade plástica de se moldarem à situação e características das
sociedades em que se inseriam, como uma surpreendente facilidade de vencer as
distâncias geográficas, estabelecendo a ligação permanente entre todas, pontuada por
congressos mundiais, que juntam centenas e centenas de "compadres", em sessões de
trabalho e em convívio fraterno.
Do acolhimento se encarrega, com invariável eficiência, a Academia anfitriã.
Este movimento converteu-se, assim, em paradigma de diálogo e articulação de
projectos a nível intercontinental, e é também o único actuante, em simultâneo, com o
mesmo espírito e as mesmas regras, na Diáspora e em Portugal.
E pensar que tudo começou, em Março de 1968, num restaurante de Joanesburgo, durante
um almoço oferecido por quatro amigos a Manuel Dias, o mítico jornalista portuense!
Aí surgiu a ideia, segundo nos conta o fundador e presidente honorário das Academias,
Dr. Durval Marques. Depois, os quatro (Dr. Durval Marques, Eng.º José Ataíde, Ivo Cordeiro
e Rui Pericão) suscitaram adesões e trabalharam em conjunto para dar configuração ao
projecto, definindo os princípios informadores, as particularidades e formato original da
futura agremiação. A Academia do Bacalhau de Joanesburgo seria lançada logo a 10 de
Junho desse ano, durante a primeira grande comemoração do Dia Nacional na capital do
Gauteng. Estava bem gizada e pronta a dinamizar acções mobilizadoras em seu redor, com
o seu exemplo, promovendo, a disseminação das Academias em outras cidades.
A designação "Academia" não tem conotações elitistas - as regras de tratamento no seu
interior excluem, aliás, o uso de quaisquer títulos universitários ou profissionais - antes apela
à camaradagem, à união, sem excluir a dose certa de irreverência, que quadra na perfeição
com as praxes e rituais adoptados, a fazerem lembrar os das nossas organizações
académicas, sobretudo as do Porto, do Orfeão Universitário, de onde vem o "gavião de
penacho", que se canta em coro, em momentos altos.
A "Academia-tertúlia" não tem sede, o seu património são as pessoas, que podem reunir
em qualquer lugar, à volta de uma mesa de restaurante, em frente a um prato de bacalhau,
"o fiel amigo". A focagem na amizade revela-se, igualmente, na denominação de cada um
dos seus membros: " compadre", sinónimo de "melhor amigo", aquele que se convida para
padrinho dos filhos. Ali não há "doutores" todos se tratam, familiarmente, por "compadres".
As suas mulheres, as chamadas "comadres", desde sempre, estiveram presentes nas
festas especiais, como convidadas, não inicialmente como sócias.
Este é um aspecto que não gostaria de omitir, e que, do meu ponto de vista, deve ser
situado no seu contexto histórico. A génese da tertúlia de Joanesburgo explica "de per si"
o "porquê" da estrutura ser, na origem, exclusivamente masculina, e afasta a hipótese de
qualquer intenção deliberadamente discriminatória: eram os homens que conviviam, entre si,
na pausa de trabalho, ao almoço. As mulheres, simplesmente, não estavam lá, não
partilhavam o mesmo círculo de actividades ou de camaradagem profissional. Por isso,
quando essa factualidade se alterou, com as mulheres a surgirem, lado a lado, com os
homens no campo profissional ou associativo, foram sendo admitidas, em muitas das
Academias, como filiadas de pleno direito, e logo as vimos em lugares de direcção ou
mesmo na presidência, por exemplo, em Toronto, na Nova Inglaterra, em Brasília. O que
não tem paralelo em outros ramos do nosso associativismo mais antigo e tradicionalista.
Refiro-me ao acesso em massa das mulheres, que aconteceu, primeiramente, em países,
onde a igualdade de género era mais conseguida. Mas, de facto, a título excepcional,
algumas senhoras haviam sido, muito antes, admitidas, como membros da Academia Mãe
de Joanesburgo, mulheres de Artes, de Letras, como Amália Rodrigues (a primeira de
todas), Vera Lagoa, Graça Sousa Guedes, ou oriundas da política, como eu mesma. Aceitei
, com entusiasmo, esse estatuto por um lado, porque estava ciente da importância de abrir
precedentes e confiava na capacidade de ajustamento daquele modelo organizacional a
uma realidade em evolução, (não só, mas também, no que respeita à colaboração igualitária
de mulheres e homens) e, por outro lado, porque admirava as Academias e acreditava nas
suas virtualidades de fazerem coisas cada vez mais extraordinárias.
O lugar ímpar e cimeiro a que as Academias ascenderam no universo da emigração,
ficou, evidentemente, a dever-se à qualidade dos seus dirigentes. Tanto os pioneiros,
como os que lhes sucederam eram (são!) líderes de larga visão, conhecedores da
importância de conjugar esforços para consolidar e engrandecer verdadeiras comunidades
em terra estrangeira. Sabiam bem que estas podem datar o seu nascimento e formação do
início do associativismo. Podem mesmo, a meu ver, sintetizar a sua história numa frase
lapidar: "Associo-me, logo existo".
Este poder criador e estruturante de comunidades, em sentido orgânico, está, de há
muito, estudado e definido e é corrente distinguir, de acordo com as finalidades principais,
as instituições de assistência e solidariedade, as agremiações de fins culturais, os
clubes e centros e recreativos. Todavia, as Academias do Bacalhau escapam a essa
divisão clássica, devido ao ecletismo e pluralidade dos seus fins e à singularidade dos
meios utilizados para lhes dar cumprimento. Conseguem ser, do lado da Diáspora, um elo
de ligação à Pátria, e, também, a partir das Academias existentes no nosso país, um meio
de compreensão e de convivência ecuménica com a Diáspora.
Há, entre os seus membros muitos emigrantes ou ex-emigrantes, considerados justamente
“gente de sucesso”. É excelente lembrar o percurso individual de cada um, mas sem
esquecer o que tende a ser mais subestimado: as suas realizações colectivas..
Um longo relacionamento com as comunidades, leva-me a acreditar no papel insubstituível
do associativismo, em que vejo," um ímpeto de Portugal", de que falava Pessoa - o ímpeto
que despertou para a acção concreta os fundadores das Academias,no sul da África, e,
depois, um pouco por todo o lado, em instituições que avançaram e cresceram à medida
dos desafios com que foram deparando.
Julgo que o processo de descolonização de Moçambique e Angola, e, com ele, a
necessidade de valer a dezenas de milhares de refugiados, foi um dos factores decisivos
de uma rápida evolução para patamares de actuação cada vez mais elevados, com a
criação da Sociedade de Beneficência de Joanesburgo e do Lar Santa Isabel, na
segunda metade da década de 70. Um passo de gigante, que centrou a acção das
Academias definitivamente na acção humanitária.
E o regresso, em grande número, da África do Sul, anos mais tarde, terá sido determinante
na constituição de novas Academias no nosso próprio País. Os "compadres" retornados
trouxeram consigo a saudade de África e a determinação de retomar o convívio e o trabalho
beneficente, em terras portuguesas.
O Porto foi uma das primeiras cidades do país em que isso aconteceu - como não poderia
deixar de ser, já que, através de ilustres portuenses, havia estado presente em
Joanesburgo, no momento verdadeiramente genesíaco, e em todo o processo em que tão
grande aventura se veio a desenvolver. E bem pode dizer-se que a imagem de marca da
cidade - força de trabalho, poder de iniciativa, extroversão da alegria de viver - se
evidencia, hoje, na dimensão e no dinamismo da sua Academia.
A fase seguinte foi a de expansão em novos destinos da Diáspora, o que nos leva a
perguntar: e agora, que futuro para as "Academias"?
Em tempo de crise sem fim à vista, num ponto de partida de grandes vagas migratórias
- a chamada "nova emigração", fenómeno recorrente em Portugal, em ciclos que se
encadearam, inparavelmente, nos últimos cinco séculos - quantos desafios vemos pela
frente!
É o momento de pormos nas Academias do Bacalhau as maiores esperanças, apostando
na sua experiência para enfrentar conjunturas difíceis e, como é da sua natureza, fazer
história em gestos de solidariedade e simpatia.
Afirmação que avançamos, de caso pensado, com segurança, pois estamos a falar, afinal,
naquele que se transformou no mais moderno e dinâmico movimento de união dos
Portugueses do mundo inteiro.
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