quinta-feira, 8 de agosto de 2024

AS MENINAS DA VILLA MARIA - Éramos felizes e não sabíamos

2023 AS MENINAS DA VILA MARIA ÉRAMOS FELIZES E NÃO SABÍAMOS 5 abril (ver ELA ERA ASSIM, revisto em nov 2023) Os últimos anos da década de 20 foram dramáticos na Vila Maria. Diz-se que, depois de uma morte, para os que ficam "a vida continua", mas a vida, depois daquele dia 26 de julho, para a não continuou igual nem ao que tinha sido para a família Aguiar.. Para Maria Aguiar foi como se o tempo tivesse parado no momento em que se abraçou ao corpo morto do marido. Na verdade, não sabia como continuar. Entre lágrimas e desmaios, caía doente na cama, o médico tornara-se uma visita frequente e não tinha remédios para a sua falta de ânimo. Dois irmãos Alexandre e Rosaura moravam muito perto e eram muito amigos. Ambos casados, sem filhos, disponíveis e dedicados, fizeram frente à situação. O bébé de 2 meses, Maria Madalena, a Leninha, ficou ao cuidado de Hermínia e Alexandre, que, alguns anos antes, tinham perdido a sua única filha. Como moravam do outro lado da rua, era fácil à Leninha transitar da casa dos tios, onde preferia de passar os dias, para a casa da mãe, onde, ao longo dos anos, até à idade adulta, praticamente apenas pernoitava. Tempo de pesadelo, que deixou marcas. O funeral fora cerimónia arrasadora, uma multidão juntou-se para dizer adeus a um amigo amável e encantador, de quem todos gostavam. No curto trajeto que liga a Vila Maria à Igreja Matriz , atravessando o Souto, organizaram-se, segundo relato dos jornais de Gondomar, oito turnos para transporte da urna, a fim de que muitos pudessem prestar-lhe essa homenagem, família chegada, as elites da vila, as direções do Clube Gondomarense, do Clube dos Caçadores, dos Bombeiros Voluntários, dos quais era associado ou benemérito. Pormenor tocante, num dos turnos, vem mencionado, no meio de doutores. empresários e grandes lavradores da terra, o nome do seu criado, João Pereira, possivelmente um dos mais diretos beneficiários da sua proverbial simpatia e generosidade. Depois, foi o silêncio, por longos meses rompido pelo pranto incontido e coletivo. O testemunho mais lancinante, mais expressivo, chegou até nós sob forma de um soneto escrito por menino de 11 anos, o filho António Maria: Meu Pai Quem te levou, meu Pai?!...Quem te levou Para esse mundo, assim tão azulado? Responde... sim. Teu filho, um desgraçado Para quem a tua ausência já chegou Para esse mundo sem fim, quem te arrastou? Partiste!... Fiquei só! Desventurado Pede a Deus, a quem por ti tenho rogado, Embora infeliz... para quem tudo se quebrou Partiste, morreu tudo neste mundo... E minha Mãe, oh Pai, sempre a chorar E eu choro, desde o dia em que, moribundo, Te segurei... morreste pai... Agora então Depois de tudo, me vês, sempre a chorar, Chorará eternamente, Senhor, meu coração! Só as mais pequenas atravessaram o verão negro como o luto, de 1926, num estado de absoluta incompreensão, e dele não guardaram memórias. Mariazinha recordava nitidamente apenas a estranheza de ver o pai a dormir numa caixa comprida e estreita, de se ter aproximado e tocado nas suas mãos, e na face, e de as sentir geladas, de ter tentado acordá-lo e de ele não lhe responder. Contava, também, mas por ouvir contar, a cena dramática da saída da urna - o irmão Manuel deitou-se sobre o caixão fechado, e quis impedir que o levassem da sala. Foi preciso retirá-lo, afastá-lo, tratar a crise de desespero em que se via, antes de seguirem com a cerimónia. Mais nada se sabe, por relatos de família, somente pelos recortes de imprensa do que por relatos. Da morte quase não se falava, e do funeral menos ainda, a mulher punha, definitivamente, o acento na sua vida extraordinária, na pessoa generosa, extrovertida e divertida que ele era, nos alegres e constantes convívios com amigos, de preferência ao ar livre, no jardim, à volta da mesa redonda, em bancos e cadeiras de ripinhas de madeira verde escuro, a mesma cor das venezianas, em contraste com o rosa forte das paredes da casa. Sobrevivem, assim, apontamentos pitorescas, de hábitos tropicais, que conservou sempre - tomar um duche frio pela manhã, seguido de um almoço só de frutas, ou nadar nas águas gélidas do tanque gigante, que ficava na zona de transição entre os jardins e a quinta agrícola, junto à chamada "casa da eira". Ou o gosto pelas caçadas e pelas partidas inofensivas, como a de oferecer aos amigos laranjas de aspeto magnífico, misturando umas muito doces, outras muito azedas (de uma laranjeira exótica, que mandara plantar só para esse efeito). E a mania de partir pratos e canecas à bengalada, nas feiras e romarias de São Cosme, extravagância muito popular entre as louceiras, que, mal o viam, o chamavam : "Sr. Aguiar, venha partir a minha louça!". Compreensível convite, porque ele pagava sempre a dobrar... É, também, pelos jornais que ficamos a saber outros peculiaridades, como a do uso uma linguagem sempre correta, mesmo em ambientes de camaradagem masculina, sem nunca soltar um palavrão. "Com os diabos!" era a exclamação mais heterodoxa que lhe arrancavam,... E, como monárquico convicto, ouviam-lhe dizer, algumas vezes: "Talassa, passa, Buíça chiça".... Mais de vinte e cinco anos de Brasil, com tanto sucesso, dezasseis de casamento, com tantas alegrias e não mais de dois anos feéricos, com toda a família na Vila Maria... E depois?...Depois, a viúva, uma jovem de trinta e seis anos bonita e chique, moderna e sociável, perfeita esposa e mãe e perfeita anfitriã de infindável sucessão de festas, tão de agrado do marido, ficou convertida num vulto negro e severo. De um longo período de depressão, saiu para a igreja, refugiou-se na fé e na religião, primeiro passivamente, para consolo da sua alma mas, à medida que recuperava forças, voltou-se, inesperadamente, para trabalho diário num campo novo, o da beneficência. Fora a mulher do prestigiado empresário António Carlos Aguiar, de seguida, enquanto dele a memória estava bem viva entre os da sua geração, a sua respeitada viúva, e, por fim, ela própria, Maria Aguiar, voz influente, personalidade forte, única líder no feminino, universalmente admirada, da sua terra. Os filhos fizeram-se, certamente, muito diferentes do que teriam sido, com o pai, e sem o futuro que ele lhes teria aberto. Com o pai, os sete teriam tido outros percursos, oportunidades, escolhas, casamentos, carreiras.... Alguns, certamente, associados aos seus empreendimentos de milhões, todos com outros horizontes, entre São Cosme e Rio, onde mesmo a viver em São Cosme, António Aguiar planeava continuar presente em negócios de banca, com o inseparável amigo Cunha, que haveria de prosseguir sozinho um roteiro ascendente. Manteve sempre o contacto com a família do velho companheiro. Era o padrinho da Lolita, e muito popular entre os meninos Aguiares. Anos depois, proporia casamento à lindíssima e virtuosa viúva, aceitando, de bom grado, a ideia de se tornar o segundo pai dos seus muitos filhos, que vira crescer. Não conseguiu da mãe um "sim", que os filhos teriam dado, com entusiasmo, em uníssono. Para serem uma família completa e no pleno gozo do estadão em que tinham vindo ao mundo. Todos tinham noção de viver num patamar de baixo, e sentiam-se vítimas de perda irreparável, como se tivessem sido, sem culpa nem motivo, biblicamente, expulsos do paraíso... Mais tarde, muitas décadas mais tarde, Mariazinha escreveu numa das folhas soltas em que guardava grande variedade de notas e reflexões: "éramos felizes e não sabíamos". O pai deixara-lhes por herança, um pequenos paraíso pensada para eles, onde sonhara vê-los crescer., a Vila Maria, uma vila dentro da vila, com espaços muito diversificados e esplêndidos, o casarão, onde tudo era grande, à dimensão de uma família extensa e em crescimento, rodeada pelo jardim, o pomar, as vinhas, a casa do forno, onde dormia o criado, a casa da eira, contígua ao maior dos tanques, o galinheiro, para as crianças, uma espécie de pequeno zoo, e, do lado oposto, quase escondidas atrás do pomar, as pocilgas, albergadas num comprido conjunto granítico, os tanques, o chalet, com entrada independente para a rua, destinado a garagem e arrumos, os mirantes, o da frente, do qual se poderia acenar, e até, verdadeiramente conversar, com apenas uma rua de permeio, para quem assomasse às janelas da residência do tio Alexandre, e um outro, semelhante nos fundos da quinta, num idílico cenário campestre, há muito desaparecido, depois da abertura, no início da década de setenta, de uma nova via, que cortou parte da propriedade. No preciso lugar onde existira, se construiu uma escola profissional, agora vizinha do auditório de Gondomar. Não é de admirar que Mariazinha, como todos os manos, ali se sentisse tão absolutamente livre, mesmo estando, como as outras meninas, proibida de passar a linha vermelha dos portões. Ela, que era a mais rebelde e desobediente, não precisava de desafiar essa ordenação materna, porque gostava mais de estar na Vila Maria do que em qualquer outro lugar. Rapariga desportiva, pequena e ágil, ávida de ar livre e exercício físico, bastante criativa nas formas, mais ou menos radicais, de o praticar, em companhia de Lolita, trepando às árvores mais altas, saltando a partir delas para telhados, o mais procurado dos quais era o da casa da eira da casa da eira. Tinha, porém, um ponto fraco – era visível das janelas da sala dos tios, e a tia Hermínia, sempre vigilante, quando as avistava, obrigava-as a descer imediatamente, com brados e gestos frenéticos. Nem por isso as denunciava à mãe, por recear a sua tendência para uma excessiva severidade, que era, talvez, a sua maneira de assumir o duplo papel de mãe e pai de crianças rebeldes. Por sorte delas, mostrava-se mais preocupada em as manter dentro dos limites protetores da quinta e muito menos em as vigiar no seu interior. Ao longo do dia, ausentava-se constantemente, envolvidíssima na prática de boas obras, com sede na paróquia. Por causa de um incansável voluntariado as deixava, assim, muito à vontade, e elas aproveitavam em pleno as virtualidade da situação. Podiam, sem oposição, convidar primos e amigas, escolhidas, é claro, dentro de um seleto círculo de convivência, sob o olhar de autoridades mais benignas do que a materna, não as criadas, pois não as havia com o perfil de uma velha governanta (raramente satisfaziam, por muitos anos seguidos o grau de exigência da empregadora), mas os queridíssimos tios, o tio Alexandre, convertido em figura tutelar masculina, em segundo pai e as tias Rosaura e Hermínia. As fotografias, depois de um longo hiato, são já todas da década de 30, quando o ambiente se torna mais distendido, Mariazinha e Lolita posam para as câmaras com a maior compostura, não deixando transparecer aquilo de que eram capazes quando não vigiadas pela objetiva, Erm todo, nota-se que a mãe toma a precaução de as separar, Uma à sua esquerda, a outra à sua direito, não fossem tecer alguma partida... E, como se vê, não abandona os fatos negros, mostra-se de semblante triste e nostálgico, embora tivesse recuperado o antigo hábito de captar em imagens momentos conviviais - nestas fotografias com o primeiro genro, a primeira nora, os primeiros netos, António José e Mário, filhos de Carolina que casara, aos 18 anos, com Serafim Caetano Pereira, um empresário de Quintã, católico de comunhão diária e solista do coro da igreja, e de Manuel Joaquim e Clara de Sousa, os pequeninos Margarida e António. Clara pertencia a uma conhecida família de São Cosme,era lindíssima e muito viva, e por ela Manuel se apaixonou, a ponto de abandonar, aluno brilhante e quase doutor, o curso de Medicina, em Coimbra. A foto em que Maria Aguiar está com as filhas Mariazinha e os netos António José e Mário é uma raridade, a única em que figuram, ao colo das crianças, três dos lendários gatinhos franceses de olhos azuis e pelo branco, a que o marido era muito afeiçoado. E, em fundo avista-se uma casa velha como uma série de janelas de guilhotina, que se tornaram o alvo da pontaria do António Maria. O mais tranquilo dos rapazes, tão bem comportado em todos os demais aspetos, era um perigo de fisga na mão. Nenhum dos numerosos quadadinhos de vidro lhe escapava. O vizinho, contudo, não protestava e era sempre compensado do incómodo, com o pagamento dos estragos a dobrar. . A Mariazinha, em retrato oficial para as fichas de inscrição escolar, parece exatamente o que não era, uma menina melancólica e tristonha. Da escola primária tem boas recordações, o que implica tê-las, também, da professora, Dona Aurora Montenegro, senhora muito distinta, pertencente ao círculo de amizades da mãe. Já velhinha do ponto de vista da criança, o que possivelmente significa que era mulher de meia idade, vivia numa mansão próxima da Vila Maria, uma pequena quinta, no caminho do Largo da Pedreira, onde moravam os tios Rosaura e Manuel. O início do ano letivo coincidia com as festividade em honra de Nossa Senhora do Rosário, que eram, e ainda são, as mais importantes no calendário anual da vila (agora cidade) de Gondomar, um composto de celebração religiosa, romaria, feira popular.. As meninas gozavam-nas, imparavelmente, Em nenhuma outra época do anos se viam tanto por fora dos muros da Vila Maria, acompanhadas, sim, mas não lhes faltando nunca voluntários para esse papel,, entre tios, outros parentes e os confiáveis pais das suas amigas. A mãe participava, de boa vontade, na sucessão de eventos, mais ligada à organização da vertente religiosa, mas olhando com a mesma simpatia as diversões, talvez por se lembrar de igual condescendência da parte dos seus pais. O Largo do Souto, a dois passos da Vila Maria, e a rua espaçosa que o liga à Igeja, transformavam-se em esplanadas cheias de gente, em constante vai vem entre tendas, onde se vendia de tudo, da doçaria tradicional a louças regionais, bordados, ou brinquedos. A banda tocava no coreto. A restauração centrava-se em dois grandes pavilhões, o da Cruz Vermelha e o da Cruz Branca, ambos com fins beneficentes.. Recordação singular dos convívio e tertúlias em que todo o Gondomar se reunião nos dois pavilhões é um simples guardanapo de papel rendilhado e florido, com uma quadra popular, que mais do que pelo valor poético, em verdade nulo, vale pela graça e por ser testemunho de outros modos de estar e de agradar ao seu público. A dizer-nos, por exemplo, que as batatas fritas já estavam na moda! Também não faltavam fotógrafos ambulantes e um deles retratou, em 1931, em grupo, as pequenas Mariazinha, Lolita e Leninha,com os primos José Joaquim e Tininha, filhos dos tios Celestina, que eram os mais próximos na idade. Todos engalanados para a festa, como mandava o protocolo. Por muitos que fossem os de fora, a festa não deixava de ser um ponto de encontro para a sociedade elegante de São Cosme, os pavilhões eram frequentados por famílias inteiras e o chá, os bolos, ou as batatas fritas, servidos por meninas voluntárias. . Maria Aguiar, na senda de seus pais e irmãos, era uma apaixonada pelo folclore, música, tanto pela chamada "clássica"como pela popular, e pelo teatro. Todas as filhas aprenderam piano, qualquer que fosse o seu grau de talento, mais elevado, por sinal, (quem diria?), na estouvada Mariazinha, ainda que só Madalena, menos fulgurante, mas mais metódica, tivesse completado o curso do Conservatório. E também lhes foi permitido pisar os palcos do Cine teatro Nun' Álvares, em récitas beneficentes, muito aplaudidas como vedetas de comédias. Mariazinha que sonhava ser atriz, aí fez a sua estreia de sucesso e aí acabou uma a brevíssima carreira... Um programa com correções feitas à mão, indicará que a colaboração da família Aguiar, não se limitava à representação, antes estaria no centro da organização Maria Laura foi a outra prima, que entrou na iconografia da Vila Maria, onde era visitante muito frequente com a mãe Maria Isabel (Mimi), prima direita e a melhor amiga de Maria Aguiar. Orfã, como elas, de um pai desaparecido na juventude. Um artista plástico, muito moreno, de quem filha herdou os traços e a tez - tão morena que, a seu lado, a Lolita parece mais branca e a Mariazinha irremediavelmente pálida.. Enfim, uma fotografia das duas, em que, de algum modo, desafiam a câmara, com mais naturalidade, como se estivessem a magicar uma próxima golpada. Estão atrás do poço, com a parede do mirante em fundo. Atá aqui ver ELA ERA ASSIM. De seguida, versão mais completa…. O COLÉGIO DA ESPERANÇA A Maria Antónia passou dois anos num internato de freiras, esperando que a irmã Lolita terminasse a instrução primária, para juntas entrarem no colégio da Esperança. Para ambas, o colégio, foi contrariando o nome, um lugar de desesperança, onde se sentiam confinadas, presas e frustradas. Sem longos carreiros e veredas para correr, sem mirantes e esconderijos, sem telhados para saltar, sem mirantes e esconderijos, nem árvores para saborear a fruta mal amadurecida, trepando aos ramos mais altos. À solta, como se estivessem num pequeno sertão... Choravam noite fora até caírem de cansaço no sono. Ficavam em camas seguidas, em sussurro planeavam fugas que nunca levaram a cabo, (talvez por saberem que seriam recambiadas de volta, depois de castigadas, sem dó nem piedade (já não tinham o pai para se comover com tormentos e lamentos, como acontecera np caso idêntico da irmã mais velha. Um dos planos consistia na escalada dos muros da quinta. outro, que evitava o risco e o prazer de tais proezas atléticas, era, escapulirem-se pela capela que dava acesso à rua e à liberdade por uma sólida porta com grades, fechada por chave de ferro… bastava roubar a chave. Uma vez, estiveram preste a executar este plano B, e foi a colega Maria Laura Horte que, avisadamente, as convenceu a desistir... Não se sabe como tencionavam chegar a Gondomar, se a pé, fazendo uns dez quilómetros por estrada, se utilizando o elétrico. Dinheiro não lhes faltava para pequenas extravagâncias e esta, pelo preço, valia a pena. Recebiam uma mesada do tio Alexandre, vinte escudos para cada uma, com os quais encomendavam a uma recoveira chocolates e toda a espécie de bolachinhas e doçarias. Um plano de deserção, mais discreto, mas sempre de curto prazo, era engendraram uma doença, uma constipação, gripe, pneumonia, se preciso fosse. Para isso, andavam de meias e soquetes molhados, mas eram demasiadamente resistentes, raramente conseguiam resultados.... Da Esperança, no centro do Porto, a poucos quilómetros de São Cosme, só iam a casa nas férias, Páscoa, verão, Natal E só recebiam vistas à quinta-feira, a mãe, o Tio Alexandre, às vezes, os irmãos. Nos últimos anos, também o namorado da Lolita, o Eduardo Fonseca, que era mais velho e parecia ainda mais velho, e se fazia passar por tio, sendo admitido na sala de vistas, nessa confiável qualidade, com natural permissão para dar um beijo na face à falsa sobrinha. Ela aparecia, muito juvenil, de lacinho vermelhos no cabelo e soquetes ou meias pelo joelho. Vermelho era a sua cor preferida, como o amarelo era a da irmã. Numa dessas quintas-feiras, a mãe não pode visitá-las, e mandou em seu lugar o irmão Manuel, com os presentinhos do costume (queijo, marmelada, compotas caseiras...). A certa altura, de repente, ele subiu a um banco, desatarraxou uma lâmpada e meteu-a no bolso, deixando as manas apavoradas. Não conseguiram recuperar a lâmpada, nem a bem nem a mal, ele era mais forte e muito teimoso. Não se sabe a razão do insólito gesto - talvez uma aposta. No novo habitat, não lhes faltavam amigas, entre colegas e professoras, a suavizar tristezas. Eram, na verdade, muito populares, as suas excentricidades davam colorido às rotinas colegiais. Serem chamadas "os galos doidos" dá uma ideia da fama que granjearam. As colegas mais próximas eram a Miriam Cavalier (uma das poucas dessa geração que, depois, faria carreira profissional, como médica) Renia Finkelstein (que veio muito pequena da Polónia, de onde trouxe muitos "pins", uma grande atração) a Zita Seabra (muito bonita, loira, de olhos azuis, mãe da Zita Seabra, antiga deputada do PCP e dos PSD), Fernanda Málen(que haveria de professar como religiosa), a Olímpia e a Julieta (com quem a Mariazinha continuaria a conviver, já depois de casada, em Espinho, onde elas também tinham casa de praia), a sensata Maria Laura, a que as dissuadiu da fuga destinada a fracasso, a Manuela Abrantes (aluna externa, que as convidava para festas, num esplêndido palacete, ali perto. ocasião para saírem da clausura por umas horas, com uma autorização da mãe, primorosamente falsificada). Coisa curiosa é alta proporção de de nomes estrangeiros, a dar o toque cosmopolita a um colégio bem-conceituado e bem situado, onde as filhas da burguesia se misturavam com meninas órfãs de qualquer classe socioeconómica. Muitas eram do litoral, havia um importante contingente de Ílhavo, outras de vários pontos do norte e nordeste, como Olímpia e Julieta, as veraneantes espinhenses. Não era desse tempo o convívio à beira-mar com as Aguiar, que arrendavam casa na Foz velha, em agosto. As melhores recordações da Mariazinha são da sala de piano, as de Lolita, certamente, da sala de visitas, onde namorava com Eduardo, o suposto tio. A Professora de piano era Margarida Portela, uma extraordinária executante e pedagoga faz, que considerava a Mariazinha uma aluna muito especial, uma pianista com futuro em perspetiva. Ofereceu-lhe as valsas de Chopin, com dedicatória. Muitas décadas depois, deu-as à única música da família da nova geração, a Sameiro (que terminou, em simultâneo, os cursos de Medicina e do Conservatório de Música), mas esqueceu-se de copiar a dedicatória, e sempre lamentava o esquecimento. Em programas de festas, as pianistas eram sempre a Maria Antónia Aguiar e a Amélia, uma colega de Avintes, com quem chegou a tocar a quatro mãos, Amélia morreu jovem (mais uma vítima da tuberculose, como a inesquecível Tia Glorinha). Nas temporadas que passava em Avintes, depois de casada, a Maria Antónia recorria a uma boa costureira da terra, muito engraçada e tagarela, que conhecia meio mundo e logo descobriu, em conversa, como descobria tudo o mais, que tendo a nova cliente andado no Esperança fora contemporânea da famosa menina Amélia, para cuja mãe continuava a fazer os arranjos da roupa e a quem prontamente transmitiu a novidade. Foi a mediadora de um primeiro convite para a Maria Antónia a visitar, que, depois, se tornou visita frequente. seguido de vários outros. Morava, por acaso, muito perto dos seus sogros. Para ela, abria o piano de Amélia, que mais ninguém tinha tocado desde a sua morte. e ficava a ouvi-la, encantada... A professora Margarida era muito bonita e tal como a boa aluna de Gondomar, muito míope. Esta, além de míope, condenada a óculos de lentes grossas, (que, por vaidade, tirava sempre que podia, sem risco de tropeçar e cair) era praticamente cega do olho esquerdo, o mais azul, contrastando o direito, o esverdeado. Uma das mais melancólicas recordações dois a do roubo de jóias de que foi vítima. Mesmo nos bons colégios há sempre uma ou outra ladra, é uma fatalidade estatística… A mamã, porém, nesse aspeto dera muito liberal, eixava-as arriscar. E assim ficou sem uns brincos lindíssimos que tinham sido da Tia Glorinha, dados pela Tia Rozaura. E até viu, a rapariga a mexer nas suas gavetas, mas hesitou - mais expedita a escalar telhados do que a denunciar colegas. A larápia não parou por aí e acabou por ser chamada a capítulo, e expulsa, sem nunca devolver a maioria dos objetos surripiados. Como no dormitório ficava ao lado da Mariazinha, foi-lhe fácil observar os seus movimentos, a vasculhar gavetas sem chave. Expulsa a delinquente, passou a ter a melhor da vizinhas, a Málen, futura freira. Décadas mais tarde, numa reunião de antigas alunas, olhou em volta e reconheceu a ladra (mau caráter e descarada!). A pedido da Miriam guardou silêncio sobre esse escândalo do passado distante... . Os dois dormitórios, o das pequenas e o das veteranas, eram vigiados por uma encarregada, de nome Beatriz, e estavam separados pela sala de piano. O das mais pequenas era aberto, sem divisórias, no outro, as adolescentes gozavam a privacidade relativa de cortinas, que podiam fechar. Na sala de piano, a Mariazinha imaginava-se num salão de concertos, sonhava alto, sem saber que os únicos palcos que a mãe lhe permitiu pisar seriam os do colégio e os do Teatro Nuno Álvares de Gondomar. Pela vida fora anos atraiu com as suas canções, as suas histórias e benignas excentricidades, apenas a família, em gerações sucessivas. Curioso é que até o seu dentista, um dia, sem saber das suas ambições secretas. lhe disse: "Devia ter sido atriz. Vê-se que tem jeito!" Até mesmo na cadeira do dentista representava bem a sua personagem. "Tem a certeza de que isso está limpo? Não usou essa agulha nos dentes do homem que saiu daqui quando eu entrei? NAS RUAS DO PORTO Para a gente de de Gondomar, o Porto era a capital do País, onde se ia, constantemente, às compras, à modista, ao cinema e ao teatro, às confeitarias e cafés, aos médicos especialistas. O elétrico de São Cosme ao Bolhão, o nº 10, com dois traços, tinha paragem em frente ao portão da Vila Maria A viagem era demorada mas muito agradável e a mãe utilisava-o, com muita frequência e, em tempo de férias, gostava da companhia das ffilhas. O Bolhão estava rodeado de lojas de toda a espécie, e de algumas das suas confeitarias preferidas, como a Villares.. O Grande Hotel do Porto, em Santa Catarina, era lugar de boas recordações, o escolhido pelo marido quando, de longe a longe, decidiam passar a noite na cidade,para um jantar especial ou um espetáculo. O colégio não contava uma parte do Porto, que ali dentro não se via nem se sentia, era uma clausura que podia estar em qualquer ponto geográfico... A cidade alegre, que adorava, só começava para além dos seus portões. Mais do que a mãe, era o tio Alexandre que as levava em excursões ao comércio portuense, às sapatarias, às lojas de roupa ou às livrarias. vestidos, de sapatos, sempre liberal, bem-disposto e complacente. A Lolita era sempre rápida e despachada nas escolhas. A Mariazinha era um caso bicudo... Não gostava de nada, punha defeitos em tudo, sobretudo no que respeita a sapatos.. Corriam a "baixa" inteira, miravam as montras, aqui e ali entravam para ela experimentar vários modelos, sem que ela se decidisse. O tio, paciente, sugeria: : "Vai olhando e quando vires uma menina com uns sapatos de que gostes, diz-me e eu pergunto à mãe onde os comprou e levo-te lá". Irremediavelmente exigente e complicativa... Não sabemos, com certeza, como a julgavam os outros, as amigas, os professores, os parentes, mas ela própria se descreveria assim, numa idade avançada:: Não sou bonita, nem feia, sou simpática, Fui sempre muito simpática (isto não é narcisismo). E fui, em tempos, há muitos anos, uma rapariga interessante, pequena, bastante pequena, mas cheia de saúde, extuante de vida, de vida e de alegria, que transbordava por todos os poros do meu corpo. Diziam, até, que tinha muita graça, aquela graça natural de uma rapariga que da vida só queria a vida e nada mais. E o fulcro da vida era o amor. De uma sensibilidade doentia, muito sincera, expansiva e nada egoísta. Na verdade, o auto-retrato, no que respeita à beleza física, pecará por excessiva modéstia. Para a tia Rozaura era a rapariga mais bonita de Gondomar, na sua geração. O tio Alexandre achava-a parecida com uma irmã do futuro cunhado António Aguiar, segundo ele, lindíssima, por quem fora apaixonado na juventude (Florinda?). João, o futuro marido, quando a conheceu, notou as suas semelhanças com a famosa atriz Paulette Goddard. Os rapazes com que namorou, às vezes, simultaneamente, também a consideravam uma beldade.... E, acima de tudo, tinha e teve até aos últimos dias, acima de tudo, carisma. GONDOMAR, MONTE CRASTO E OUTROS IDÍLICOS LUGARES Se o Porto era uma atração, nem por isso Gondomar, São Cosme, deixava de ser o centro do universo, à volta da qual tudo girava. Para a Mariazinha, até o Porto fazia parte de Gondomar, era, afinal, a sua vertente cosmopolita, era a paisagem que o Monte Crasto dominava do alto da sua alma verdejante. De todos os recantos de uma terra idílica, nenhum igualava o celebrado Monte, que, na sua própria família, era uma verdadeira Meca de passeios rituais e inspirava poetas. O tio materno, José Barbosa Ramos, era o autor da letra do hino de Gondomar, com música composta por José Moura, que fora o primeiro professor de piano das meninas Aguiares. Se o Porto era uma atração, nem por isso Gondomar, São Cosme, deixava de ser o centro do universo, à volta da qual tudo girava. Para a Mariazinha, o próprio Porto fazia parte de Gondomar, era, afinal, a sua vertente cosmopolita, era a paisagem que o Monte Crasto dominava do alto do seu verdejante esplendor. . O tio materno, José Barbosa Ramos, era o autor da letra do hino de Gondomar, com música composta por José Moura (que foi, por sinal, o primeiro professor de piano das meninas Aguiares). "Gondomar, terra bendita Rincão formoso e fecundo O nosso Crasto frondoso Não tem, não, rival no mundo. Filigranas delicadas, Verdes prados cinge a serra. Cantam fontes e avezinhas Eis os dons Da nossa terra. Gondomar é o nosso berço Beija-o a brisa fagueira Cantemos por Gondomar, É divisa da bandeira Cantar, cantar, A linda terra de Gondomar". Na geração seguinte, seu irmão Manuel glosou o tema, destinado à célebre revista que estreou em Setembro de 1933 e ficou nos anais de Gondomar, e que ele voltaria a recitar para os amigos, em pleno Monte Crasto. Um repórter registou-o nas páginas do "Correio de Gondomar" de 17-3-34, e minha mãe guardou o recorte nas suas gavetas, onde foi encontrado já depois de ter partido. "E o Castro Belo e frondoso Erguendo-se majestoso Na terra que nos foi mãe, No sino da igreja além, Trindades oiço tocar Como é linda a minha terra Como é linda a verde serra Como é lindo Gondomar!" Os poemas têm assinatura, mas retratam o estado de alma de uma família inteira, a olhar quotidianamente, com orgulho, as belezas naturais de São Cosme. O falso e malfadado “progresso do cimento e do betão” vedou aos vindouros essa comunhão com a gentileza de um meio ambiente, hoje definitivamente perdido. Nem mesmo o Monte Crasto, último bastião, que resiste, é tão frondoso quanto era nessa idade de ouro... Dissipou-se, também, na populosa "cidade-dormitório do Porto", a dimensão de uma comunidade autêntica e convivial, quando os dias corriam devagar e todos fruíam de recantos onde a vila e o campo se misturavam numa interlocução de pessoas e espaços, em todos se conheciam, nos clubes e tertúlias, na botica, na igreja e nas festas populares, partilhando hábitos e costumes, a sonoridade do sotaque, a fala com as peculiaridades, em que o "povo-povo" resistia à uniformização ditada pelas elites letradas. A pequena Maria Antónia, excelente aluna a História e a Geografia, foi sempre muito dada a recolhas de natureza cripto-etnográfica, talvez influenciada pelo exemplo da Tia Rosaura de quem também se conhecem apontamentos soltos sobre mezinhas e rezas das mulheres do antiquíssimo Gondomar, anotou os lugares, que faziam os seus encantos - o Barroco, a represa de Cascaneira, entre a Gandra e Ramalde, Bouça Cova, Azenha, Ermentão, Rio Carreiro, Fontela, Ponte Real, São Miguel, Pevidal, Santo André... - , e, também, expressões, nomes e alcunhas aldeãs, que lhe despertavam a curiosidade, como Pojeiras, Restivos, Cabaças, Jeque-Jeque, Tarré, Fome Negra, Caga Troços, Carriças, Pilha Galinhas,Patacas, Pirabeca, Arregalados, Folhetas, Estabões, Bagulho, Parraxila, Chasco, Varetas, Melros, Pisco, Choco, Pimpão, Pinguinhas,Pombalinos, Toca- certo... Menos invulgar o nome de Isidro Izidoro, que, todavia, fez sensação, quando deixou dito que, nas exéquias, queria levar um cravo vermelho na lapela. Era ela uma criança, mas conseguiu que a levassem a vê-lo, talvez uma benigna criada, lhe tenha permitido a secreta escapadela. A família materna, tal como a paterna encontravam-se praticamente livres de quaisquer dessas alcunhas, fossem elam trocistas ou amáveis, com a exceção de uma tia Aguiar, a quem, por ser baixa e gordinha, chamavam Maria Parrachila. As antepassadas da bisavó Carolina, as que pareciam algumas das formidáveis figuras femininas do universo ficcional de Agustina, e ficaram conhecidas como "as Alexandras", não entravam naquele “dicionário”. O nome popularizou-se e foi adotado, também, no masculino, ainda hoje. em sextas ou sétimas gerações dos seus descendentes, mas, curiosamente, não aparece nas pesquisas genealógicas do século XIX. Há, sim, entre tias e primas, alguns outros de ressonância greco-latina, como Lavínia, Leocádia, Violante, Blandina ou germânica, como Guiomar. No apanhado de vocábulos esquisitos, então em voga nas camadas populares, apontou, dando sempre o sinónimo, palavras ou expressões como: vasculho malandro), paspalhão (desajeitado), dar uma topada (tropeçar), encatrapiada (aleijada), pimpineira (aldrabice), pixote (pequenino). "embaçado" (envergonhado) ou ditos antigos, por exemplo: "estás a olhar para ontem, que já lá vai", ou "estás a ver navios" (distração): Deus nos dê muito e nos abone com pouco":"estreminguei um pé" (torci) "vim da outra banda" (do outro lado) "estou triste como a noite"... Tudo o que era, ou. pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe parecia dar a certeza de estar onde e com quem mais queria. Ligavam-na à longa herança de ancestrais, que certezas semelhantes tinham enraizado ali, mesmo quando, como aconteceu com seu pai, se aventuravam, por muitos anos para além das fronteiras do concelho, do país, ou do mar... Sem perder a vontade de voltar à melhor de todas as vilas e cidades erguidas no planeta - a vila de Gondomar, dos Mendes Barboza, dos Ferreira Ramos e dos Pereira de Aguiar... Tudo o que era, ou. pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe parecia dar a certeza de estar onde e com quem mais queria. .. AMIGAS Do círculo de amigas e colegas das lições de pianos d pequena Mariazinha faziam parte as "Paciências", encantadoras filhas de um dos vendedores das terras onde se implantou a Vila Maria, e as irmãs Maria Amélia e a Madalena da Estrela. Não era apelido, mas alcunha - o pai tinha construído um palacete original, em forma de... estrela.. (Antecipando o futuro em alguns anos, poderá, desde já dizer-se que há muitas fotografias do casamento de estadão da Maria Amélia, com quem, depois, perderam contacto. porque foi viver para Viana. Madalena uniu o destino a um rapaz de Avintes, contra um coro de opiniões adversas. Gostava dele, e não quis saber de mais nada. Não se conhece o desfecho, pois também lhe perderam o rasto. A Felismina viria a ser uma rapariga bonita, alta e loira e a primeira a casar, com um Ramos, a quem chamavam o "Ramitos". Contou às colegas das, pormenores pedagógicos sobre a noite de núpcias, e deixou um conselho: "Não vale a pena gastarem dinheiro na camisa de noite de núpcias. Não vale mesmo a pena...). NAMORADOS Duas gémeas na proximidade, nas confidências e nas aventuras, na audácia, mas muito diferentes no temperamento, nas escolhas sentimentais e na vida que viveriam pelos casamentos. Lolita foi a primeira a prender-se a um namorado, que seria o único. Não o único marido, mas a única paixão da juventude, pela qual desafiou a mãe, para quem ele, o Eduardo d´Ascensão Fonseca, embora de boas famílias, com quem socialmente convivia, era um perigoso ateu e boémio. Mais ou menos como dois dos seus três filhos, que, porém, não podiam, naturalmente ser enjeitados ou rejeitados como os pretendentes de teimosa adolescente de 15 anos. Eduardo não tinha pressa de acabar o curso, era também um desportista polivalente, muito voltado as modalidades náuticas nadador de poderosa braçada e velejador. No rio Douro tinha uma canoa para dois tripulantes, que fazia sucesso entre os amigos. Até que o amigo Licínio caiu ao rio e morreu afogado. No funeral, Eduardo chorava e só dizia: "Foi no meu barco!". Não quis mais ver a canoa. Vendeu-a. ( morte foi muito sentida na terra e, ainda hoje, a sua fotografia está guardada nos albúns - pela imagem parece um rapaz sereno e amável) .Mariazinha, que seria casada com João por mais de meio século, teve uma longa fila indiana de namorados (nem sempre assim tão indiana, pois alguns o foram simultaneamente. Os mais lembrados eram o Albino (não se esquece o primeiro beijo, furtivo, na varanda grande e recatada da sala de jantar), o Adriano e o João. Tal como Albino, este era de São Cosme Jacinto, ambos de São Cosme, com acesso à Villa Maria, pela camaradagem com os rapares da casa. Emboraa vizinhança desaconselhasse a simultaneidade, a Maria Antónia correu o risco. E, entretanto, surgiu um terceiro e o mais interessante de todos. Fernando Marques Ribeiro, um grande amigo de Eduardo, mas, ao que parece, menos dado a "farras" na noite portuense. Era um pouco mais velho e já um pianistanotável, a quem se adivinhava grande futuro. Compositor e maestro, haveria de ser conhecido como o "Chopin português" (o que introduz a dúvida quanto à questão de saber se a paixão da Mariazinha por Chopin, começou no génio polaco ou no brilhante português, mas qualquer que fosse a origem, não teve fim - foi a música de fundo que se ouviu, o tempo todo, discretamente, baixinho, no seu velório, em 2019, no ano em que ia completar 99 anos) Albino estava na tropa e, quando terminou o serviço militar foi festejar com Jacinto e outros camaradas e contaram um ao outro que namoravam a bonita Aguiar. Seguiu-se uma barulhenta discussão sobre "quer era quem" para ela e, sem mais argumentos, envolveram-se numa cena de pancadaria, digna de um filme do "far-west". Um dos circunstantes, Licínio, por coincidência amigo íntimo do João Moreira, que ainda não entra nesta história, e também do Marques Ribeiro, que nela já tem papel central, resolveu satisfazer a curiosidade e perguntar à jovem, que era o pomo da discórdia. Ela olhou-o. encolheu os ombros e disse-lhe. "Olhe, Licínio, eu gosto dos dois". Contudo, acabou logo com o Albino, e, umas semanas depois, com o o Jacinto. Seguiu-se o Adriano de Rio Carreira, sobre o qual não forneceu muitos detalhes. Foi relação de pouca dura. Entretanto, todos aquelas desventuras e anomalias, tinham chegado aos ouvidos de Marques Ribeiro, que numa última visita à Vila Maria, onde era sempre bem recebido pela Senhora Dona Maria Aguiar, encantada por poder ouvi-lo tocar piano, a repreendeu severamente, mostrando-lhe que era muito acriançada e que voltaria a procurar a sua companhia quando fosse mais ajuizada. Já lhe tinha dirigido um convite para atuar com ele num concerto no Porto - a que a mãe se opôs firmemente - mas pensava, com certeza noutras parcerias mais duradouras. E se tivesse casado com ele, decerto que o caminho para os palcos lhe estaria aberto. Todavia, ele, (que continuava a carreira em Lisboa), voltaria tarde demais, já ela estava há uns meses consorciada com o João, o seu poeta particular. Da música para a literatura... Pensando nesses tempos, deixaria um pequeno texto em que lembra as ilusões de então, que só verdadeiramente se perderam nos anos 60, ao fim de duas décadas de casamento: "Sonhos meus, audaciosos, inquietantes, insatisfeitos - como eu, uma insatisfeita - sonhos belos de um amor quase perfeito. Mais de uma vez desci o Crasto num voo pleno de graça e leveza. Senti mesmo os pés a levantarem-se do solo e voei acima daqueles queridos pinheirais, eucaliptos e mimosas, voava em direção a minha casa.

domingo, 4 de agosto de 2024

2024 AS CAUSAS E OS ACASOS DE UMA VIDA VAGUEANTE Infância mágica, um outro eu… Olho os meus retratos de menina e dificilmente me reconheço neles. São imensos, em papel brilhante de bordos rendilhados. As primogénitas despertam mais o impulso dos pais de fotografar, fotografar…. Minha irmã, Maria Madalena, nascida no ano seguinte, já não teve igual sorte. E era muito, muito mais bonita, com os seus enormes olhos azuis num rosto angelical. Na primeira imagem apareço em forma de embrulho branco, que um jovem casal partilha nos braços. Estão sentados num banco comprido de jardim, com uma fachada de pedra de cantaria em fundo, e um cão grande, preto e branco, a aproximar-se, cheirando o solo. É verão, a criança protegida pelo abafo talvez esteja a sofrer de calor. Certo é que vai preferir aragem fresca pelo resto dos seus dias…. A partir de tantos instantâneos de época, em cada época, torna-se difícil compor um álbum de retratos. O mesmo se diga dos “autorretratos” do meu percurso de vida, um longo percurso de imprevistos. Não no início, quando estava focada num projeto de estudo, compatibilizado com ócio e divertimento – tudo na dose certa. Fiquei sem projeto, no momento em que terminei a licenciatura (Direito, na Universidade de Coimbra). Foi a partir de então que o imprevisto passou a comandar a minha vida e eu procurei, pragmaticamente, tornar-me útil, em toda e qualquer nova situação em que me visse. Dar o meu melhor. Fazer coisas! É incrível as oportunidades que qualquer caminho ou atalho oferece, com um pouco de imaginação e muito boa vontade… Por onde começar? Não sou uma daquelas pessoas felizardas que guardam memórias do berço… Não, de todo! Para a minha pré-história, confio em crónicas alheias. A recordação mais remota é de uma espécie de fuga para a liberdade, enquanto passeava em Espinho, pela mão da mãe ou do pai, num dia de verão. No vaivém da Avenida 8, que era, então, o centro de Espinho. A “Avenida”, sem mais, e com A grande. Soltei-me da mão que me prendia, de repente, e, ainda em passo incerto, avancei sozinha, arrostando obstáculos, na forma de pernas de uma multidão de adultos, em lenta caminhada. O gozo da libertação logo cedeu ao medo dos encontrões. Na memória, persiste a imagem claustrofóbica e surrealista de uma floresta de pernas muito altas, entre as quais procurava, desesperadamente, a família perdida… A lembrança ficou presa no momento de angústia, da procura, não na felicidade do reencontro. Depois disso, nada de tão impactante aconteceu, num dia a dia de dias aprazíveis e indistintos. Sei do que mais gostava: de gatos, cães, flores, ursos de peluche, triciclos e carros de pedais, saltos e correrias. E do que detestava: os desmesurados laços de seda presos de lado no cabelo loiro, liso e curto, e os vestidinhos cor de rosa. Portista de nascença, queria o azul/FCP, reservado, para a Madalena (Lecas), cujos olhos eram precisamente dessa cor. As reminiscências são, sobretudo, de lugares, coisas e pessoas – a família mais próxima, as suas casas, em especial a “Villa Maria”, o casarão “de brasileiro” onde nasci, em Gondomar. Olhando para trás, vejo a criança que fui, turbulenta, irrequieta, (irritantemente precoce). A precocidade é a mais ambígua das virtudes, eleva expetativas gerais para, tantas vezes, como o meu exemplo comprova, degenerar em deceções futuras. Disse a primeira palavra aos sete meses. E não foi “mamã” nem “papá”, mas “Jesus” – paciente e hábil ensinamento (no desporto, “coaching” …) da avó Maria Aguiar. Dei os primeiros passos aos nove meses, ao que consta, em corrida, terminada numa queda contra a esquina de um guarda-vestidos – um susto, nada mais. Com um ano de idade, comecei a articular frases completas e não me calei mais. Metralhava perguntas, contava estórias imaginários, fantásticos, claramente “fake news”, e dava largas a inesgotável energia em constante traquinice. Quando aprendi a ler, um dos livros que a avó Maria me ofereceu foi “Os desastres de Sofia”. “Os desastres de Manuela” não perdiam por muito, no confronto. Na família Aguiar não era pioneira. Marquei a década de quarenta do século XX, acompanhada por primos como o António José (Tónio) e a Inês Maria (Inesinha), mas já antes, nos anos vinte e trinta, toda e qualquer diabrura maior, que abalasse a rotina das escolas e dos clubes de São Cosme de Gondomar, era atribuída aos Aguiares. A tradição de excentricidade vinha de trás, de jovens e de menos jovens, com esse e outros apelidos, e não excecionava mulheres, que bem poderiam ter servido de inspiração ás indomáveis heroínas de Agustina. Avós extravagantes e formidáveis, também as havia do lado paterno, a mais famosa das quais é a bisavó Quitéria Francisca Pinto, figura lendária por cantar ao desafio e jogar varapau em dias de festa popular, ser poetisa repentista e fabulosa contadora de lendas e histórias, para além de mulher de caráter, arrojo e bom senso. Na ascendência tenho gente das duas margens do Douro, na fronteira com a cidade do Porto. A norte, em Gondomar, São Cosme, a família materna. A paterna divide-se entre o sul, (os Dias Moreira, proprietários de terras ribeirinhas em Avintes, face a Gramido, que as invasões napoleónicas puseram no mapa), e o norte, os Castro Mello/Capella, da Quinta dos Órfãos, na Foz do Sousa. Sobre estes antepassados nada sei, para além da nebulosa menção a uma quinta, que parece ter sido um lugar de tradições e de grandes convívios, como a Villa Maria para o outro ramo familiar. Dos convívios (e possivelmente das tradições) se afastou, de uma vez por todas, o bisavô João Fernandes Capella, cortando laços com os pais. Porquê? Mistério! Eu vou pela explicação romântica, incertamente fundada em rumores: rompeu para casar, contra a vontade paterna. É plausível, um veto Capella à bisavó Joaquina Gonçalves da Rocha, filha de um farmacêutico de Melres, muito senhora de si. Ainda por cima, o nosso século XIX abunda em crónicas de paixões proibidas, romances que rivalizam com a ficção. Quase todos com um “happy end”, ou, pelo menos, um casamento de longa duração (é certo que o não haver divórcio legal facilitava este conseguimento. E não há menção de discórdias conjugais! No capítulo de divórcios, o primeiro foi o meu, nos anos 70 do século XX. A memória de muitas ruturas, chegou até hoje, mas a desunirem, invariavelmente, pais e filhas ou filhos rebeldes. Ou irmãos e cunhados. Também é verdade que a amostra não é muito significativa verdade, para além de três ou quatro gerações, pouco sei no que respeita a vivências e factos concretos, muito embora, a partir do século XXI, graças à internet e a vários primos, portugueses e brasileiros, que entraram em contacto comigo, aumentei bastante os meus conhecimentos sobre a nossa comum genealogia. Partilhamos longínquos avós vindos do Minho, da Galiza, de Trás-os-Montes. Esplêndida surpresa foi descobrir que o ramo Pereira de França, no qual se entrelaçou o Aguiar, oriundo de Montalegre, tem mais de quatro séculos de permanência em Gondomar, (muito bem documentada pelo primo Hernâni Maia!). E várias gerações dos Ferreira Ramos, ascendentes maternos da avó Maria, são, igualmente, desta terra. Os paternos não – eram mais nortistas –Penafiel, Paredes, Bitarães…. Seu pai, Joaquim Mendes Barboza, veio de Paredes para São Cosme, onde foi notário durante quatro ou cinco décadas. Começou por ser o noivo de um daqueles matrimónios indesejados pelos pais da noiva: a formosíssima bisavó Carolina, jovem muito determinada. Por intuição ou sorte, a sua escolha revelou-se excelente, como a família e todo o Gondomar depressa haviam de reconhecer. No sentir e dizer das filhas, ele era um verdadeiro santo. Todos estes avoengos se juntam na árvore genealógica para fazer de mim uma “mulher do Norte”. Porém, de qualquer outro ângulo de abordagem, que não o geográfico, a palavra para caraterizar o legado é: diversidade. Diversidade de origem, fortuna, mentalidade, e tendência políticas. Não sei se invejo os biografados (ou autobiografados), que se reveem num determinado meio social e escola de pensamento, definido e homogéneo, assim como os que se orgulham de trajetórias familiares ascendentes. O meu caso é o inverso. Eu própria, como disse, fui regredindo, por etapas, de criança explosiva e cheia de si a adolescente e mulher tímida e cheia de dúvidas (sobre si…). O mesmo se diga do coletivo, ao menos, no plano material. Na geração de bisavós e avós há inspiradores exemplos de empreendedorismo, de como se fazem ou aumentam honestas fortunas. Todavia. as fortunas esfumaram-se, sem ninguém as gastar, em espetaculares excessos. Os sucessores limitaram-se a não acompanhar a mudança dos tempos e das circunstâncias, a abertura de novos filões e maneiras de engendrar lucros e proveitos. Razão de sobra tinha o avô Manuel (ele próprio homem com menos queda para negócios do que seu progenitor), quando dizia ao filho e, mais tarde, a cada uma das netas: “A única fortuna que quero deixar-te é um curso universitário”. As terras e as casas herdadas, de facto, parecem servir, apenas, para me darem dores de cabeça, enquanto do curso tirei rendimento suficiente para viver, sem sobressaltos. Tirei e ainda tiro, sob forma de pensão de reforma (exceção feita ao tempo de Passos Coelho, tão ameaçador para os velhos).. Com este avô, mais dado às artes do que a rasgos empresariais, ator de teatro amador, melómano e cinéfilo, aprendi a amar o cinema, nas “matinés” do Batalha, do Rivoli e do Trindade. Com a avó Maria tomei o gosto das viagens, dos passeios, da poesia. Muito antes de ir para a escola, já cativava audiências, declamando “O melro” de Junqueiro, vate favorito da avó, que era monárquica e muito devota, mas tinha o seu fraco pelo poeta republicano e anticlerical. A avó Olívia estimulava a nossa (da Lecas e minha) inata inclinação “animalista”, partilhava paixão por cães e gatos. E dava-nos as mesadas substanciais, com frequentes reforços, em resposta aos apelos da mana Lecas, de que eu beneficiava por tabela. Uma das especiais atrações da casa de Avintes, das longas estadas com esses queridos avós, eram as intermináveis ninhadas de gatinhos de uma bela gata francesa, muito peluda, chamada “Tita” (uma abreviatura de “Petite”, aportuguesada??). Assim, pais e avós contribuíram, em partes iguais, para uma infância de boa memória – sem esquecer a parte dos tios e dos primos… Até aos oito anos, vivi, com os pais e a irmã mais nova, Madalena, a Lecas, na Villa Maria. A mãe, quando casou, não quis sair de “sua” casa, e o pai, jovem com fama de rico, mas pouco proveito, não enjeitava as vantagens de coabitar com a sogra e de conviver com os divertidos cunhados. Nós, as crianças, gozávamos as delícias de um autêntico paraíso terreal. E a avó prezava companhia num casarão, que se fora esvaziando com a partida dos outros filhos. Quase todos, por sorte ou escolha, moravam por perto e visitavam-na, com frequência, em dias e noites de ruidosos convívios, ora com muita música, à volta do velho piano, ora em autênticas tertúlias políticas, onde mulheres e homens terçavam argumentos, dissolvendo a agressividade em remoques irónicos. Ninguém se zangava, nem mudava de campo. Recriavam, em novos contextos, um jogo antigo de confronto entre conservadores e progressistas: monárquicos regeneradores versus republicanos moderados (ou revolucionários), a que se sucederam salazaristas contra democratas e, na 2ª guerra mundial, em que fomos oficialmente neutros, germanófilos e anglófilos. O conflito acabara há anos nos campos de batalha, mas prosseguia nas discussões da Villa Maria. O desporto, mais precisamente, o futebol também tinha ali o seu palco de debate, de pendor bastante mais masculino. Eram todos portistas, com a exceção do tio Manuel, que, durante os seus anos de estudo de Medicina em Coimbra, se convertera à Académica. Estava sozinho, mas fazia barulho por uma claque inteira. Nessas buliçosas discussões, fiz a minha iniciação à política e ao futebol, e aprendi a equivalência das virtudes humanas de quem pensava diversamente. Já então era bastante propensa a dar opiniões, de preferência, tal como minha mãe, contracorrente - ela numa direção e eu em outra. As questões feministas nunca foram, que me recorde, abordadas diretamente. Faltavam, ali, teóricos do sufragismo, não havia mulheres com experiência profissional, em luta por carreiras ou sufrágio. Nessa geração só uma prima se formou na Universidade de Coimbra. Minha mãe, talentosa pianista, fez o curso de Conservatório de Música e o antigo 5º ano “singulares”, mas sem pensar numa carreira… A única cidadã verdadeiramente interventiva e influente no espaço público era a mais conservadora de todas: a avó Maria, defensora “à outrance” dos estereótipos salazaristas de feminilidade, militante da “Obra das mães”, e de outras obras beneficentes, a que se dedicava desde que perdera, subitamente, o marido, sua grande paixão. À tragédia de se versem ele, sozinha, com sete filhos, entre os doze anos e os dois meses de idade, reagiu, aproximando-se da Igreja, dividindo o seu tempo entre os filhos e o voluntariado, suscitando geral admiração e respeito. Sendo a sua neta preferida, deixei-me, sem dúvida, moldar por ela em quase tudo, da fé católica ao prazer pela leitura de prosa e poesia, mas resisti, tenazmente, à conversão aos seus padrões sexistas do “feminino”. Quando a avó me admoestava (brandamente, embora): “Uma menina não faz isso!”. (não trepa às árvores, não anda aos pontapés a uma bola, não entra em briga de rapazes, etc. etc…), eu questionava, sempre: “Mas porque não”? Achava-me tão competente como os primos para a prática de todos os atos constantes da sua longa lista de tabus… Sem esclarecimento e resposta convincente à minha pergunta, o discurso catequético falhava. Involuntariamente, a avó fez de mim uma ativa feminista, aos cinco ou seis anos de idade! Quem me incentivava-me a competir, a ser a melhor, no desporto como nos estudos eram, sobretudo, os homens, pai e avô Manuel. As mulheres não desencorajavam brilharetes escolares, mas, para usar a linguagem futebolística, não punham assim tanta “pressão”. Sentia-me, assim, muito contente por ter nascido rapariga, e ser capaz de rivalizar com os rapazes. Pensando no coletivo, como boa sindicalista, arrastava a mana e as primas, para a prática de “desportos radicais”, como acrobacias por cima de telhados e das árvores da Vila Maria. O que não nos dava galões de precursoras, porque, na geração anterior, a mãe e as tias faziam o mesmo. Mais longe terei ido, talvez, ao saltar para (ou dos) estribos de elétricos em andamento, e ao jogar futebol de rua, com miúdos da minha idade. Foi difícil entrar no jogo, só consegui, apoiada pelo primo Ernesto António (Nestó), um verdadeiro “craque”. Não o deixei ficar mal, mostrava serviço, compensando a falta de técnica com imensa energia e velocidade. Varria o campo, com ou sem bola, e distribuía encontrões com fartura. No hóquei em campo, jogado com caules de couves, era ainda mais temível, normalmente, acertava na bola e nas pernas dos adversários, que protestavam imenso. Na falta de árbitro, não lhes valia de nada. O futebol era a minha paixão. Contudo, só depois da inauguração das Antas, passei a ser, ao lado do pai, uma frequentadora habitual do estádio. Posso testemunhar que meninas na bancada, nessa época, eram raridade. E eu não me importava de ser uma raridade. Mas nem só o desporto me empolgava. Tinha outros sonhos, um dos quais era desfilar nas procissões de São Cosme vestida de anjo. Meus pais, não sei porquê, mostravam-se pouco recetivos… por fim, foi a avó Maria quem me presenteou com um traje de túnica e asas amarelas! E lá fui eu, seráfica e colorida, entre anjos de asas brancas, em passada lenta e devota, pelas ruas atapetadas de flores e de folhagem verde, atrás de pequenos andores…. Muitas fotos documentam a felicidade desses momentos. Um dia em pleno! Antes de sair da Vila Maria, muito compenetrada, para o cerimonial, um pouco menos compostura numa refrega com a prima Inesinha, iniciativa dela. Pediu que me baixasse para me dar um beijo (era bastante mais pequena), e, quando eu aquesci, deu-me um estalo sonoro. Em vez de oferecer cristãmente a outra face, persegui-a, correndo com as asas a abanar, e retribuí com dois ou três bofetadas, perante uma avó Maria petrificada. Ficou ali demonstrada a sabedoria do velho ditado: “o hábito não fez o monge” (ou o anjo…). Muitas das alegres imagens da minha primeira idade situam-se na Vila Maria, que já só existe na lembrança: o nosso mundo perfeito, com as suas fronteiras protetoras, muros altos de granito, que permitiam, lá dentro, uma completa liberdade às criancinhas, entre o mirante da frente, com vista para a rua principal, os jardins simétricos de roseiras (as famosas rosas do avô António Aguiar, etiquetadas em latim), o arvoredo, o chalé, a casa da eira, a casa do pão, os tanques de pedra, a hortas, as vinhas, que se estendiam até ao mirante das traseiras, de onde ainda se desfrutava a idílica ruralidade de São Cosme. Depois, uma rua larga atravessou os vinhedos, e o mirante desapareceu do lado de lá, onde se construiu uma escola e o Auditório da cidade… Muitos outros episódios de uma infância movimentada aconteceram no Porto, em Espinho, e, sobretudo, em Avintes, onde neles entram simpáticos primos, o sucedâneo afetivo dos irmãos que meu pai não tinha. Uma das primas, a Maria Angélica, fazia, nessa altura, criação de cães “pequinois” e ofereceu-me, aos 7 anos, um belo exemplar, uma cachorrinha gorda e fulva, à qual dei o (pouco criativo…) nome de “Chinita”. A maior aventura ligada à casa de Avintes podia ter acabado mal. Foi uma minha tentativa de pilotar o carro do pai, estacionado à porta, na rua 5 de Outubro, que ali desce, em plano muito inclinado para uma ponte sobre o rio Febros. Sorrateiramente, esgueirei-me até ao carro, cujas portas nunca estavam trancadas, sentei-me no lugar do condutor e imitei pose e gestos paternos. Liguei a ignição, baixei o travão, pus as mãos no volante… E eis que o bólide obedece, inicia, devagar, devagarinho, a sua marcha. Tudo muito rápido, o avô Manuel, que, de longe, vira a minha manobra, correu para o carro, e, à mão, conseguiu trava-lo! Era um atleta, e a adrenalina terá ajudado ao milagre… Ainda hoje sinto a emoção daquele brevíssimo momento de gozo! Daí em diante tive de me contentar com o volante dos carrinhos de feira. Das pistas saía sempre contrariada, achando pouco… Aos cinco, seis anos, distinguia todas as marcas dos modernos carros em circulação. Os meus tios do Porto (Lena e David) divertiam-se imenso a fazer-me o teste, à janela, na sua casa da Rua Firmeza. Eu escolhia sempre o Tio David, e o seu Citroen “arrastadeira”, nas passeatas de fim de semana, do exuberante grupo excursionista de tios e primos. Os automóveis circulavam em fila indiana, serpenteando por estradas secundárias do Entre Douro e Minho, à procura de um novo restaurante para almoçar. E eu queria ir, sempre, no da frente. Aquele tio David, um volante, excecional era aposta segura. Às vezes, no regresso, passávamos pela fascinante casa do Zé do Telhado e pela a confeitaria dos bolinhos de amor, que ficava em caminho – paragem obrigatória!. As façanhas do Zé do Telhado eram-me contadas, com mal disfarçada simpatia e benevolência, pela avó Maria e pela tia-avó Rozaura (nome invulgar, que era o de uma personagem de romance de cavalaria que seu pai e meu bisavô Barbosa, andava a ler em vésperas do seu nascimento). Eu própria beneficiava de benevolência, em malfeitorias de outra ordem, à medida da minha idade e condição. Quantas vezes, escutando, escondida onde não me viam, a ouvia zurzir os meus jovens progenitores, pela sua inexperiência: “Não sabeis lidar com esta menina! Ela obedece facilmente, mas é preciso explicar-lho o porquê das coisas”. Já então, para mim, obedecer, ou não obedecer, era coisa a avaliar por critérios de extrema exigência pessoal. O mundo da escola Esperei a entrada na escola primária impacientemente (a -impaciência é uma das minhas incorrigíveis caraterísticas). Por ser nativa de junho, não me matricularam no ano letivo de 1948/49. Que frustração!… Tinha pressa de desvendar os mistérios da escrita e da leitura- Festejei os meus sete anos, ainda analfabeta (data em que ganhei a “Chinita” como presente), e só quatro meses depois, em outubro, pude, enfim, entrar na velha escola do Souto, em São Cosme, eufórica, como se fosse para a escola de bruxaria e magia de Hogwarks... “Entra com o pé direito, para dar sorte” recomendaram-me. E eu, que confundia esquerdas e direitas, (ainda hoje confundo, exceto na política), de alma alvoroçada, por cima daquele distúrbio, troquei os pés e avancei com o esquerdo… A maldição não se faria sentir, o meu esquerdismo compensou. Adorava a escola e a professora, e, dentro da sala, tinha comportamento irrepreensível. Já no recreio, ou em horário pós-escolar, me permitia criar o pandemónio, a meias com a melhor amiga, conhecida com “a Arminda do mato”, filha de pequenos larápios. Imaginem o dueto, a “Arminda do mato” e a “speedy Manuela”… Nesse ano letivo de 1949/50, dei um grande salto qualitativo, entre em nova etapa de crescimento, converti-me numa nova Manuela – apesar de tudo, com mais juízo. Ultrapassei a fase das mentirolas criativas, em favor do realismo narrativo da verdade nua e crua. E tornei-me leitora compulsiva da revista “O Mosquito”, dos livros da condessa de Ségur, dos jornais (O 1º de Janeiro, O Comércio do Porto), embora só na secção das notícias desportivas. No ano seguinte, meus pais decidiram prolongar a época de praia, na casa de Espinho e eu frequentei a escola da Rua 23 (uma das escolas do Conde de Ferreira, agora sede da Junta de Freguesia). Correu mal, era incompatível com a professora. Desinteressei-me, faltava às aulas (às terças e sextas para comprar e ler “O Mosquito”, que chegava ao início da manhã à estação de comboio), e quanto mais castigos ma caíam em cima, pior… A mudança para a escola do Magarão, em Avintes, permitiu-me recuperar o estatuto de aluna distinta. Na 3ª classe, a família decidiu elevar socialmente as minhas amizades e desterraram-me para um internato de Irmãs Doroteias, a quinta essência do elitismo – o Colégio do Sardão. De novo, um mundo fechado por muros altos, parques, quinta agrícola, esplêndidas estruturas desportivas, (ginásio, “court” de ténis, campo de jogos polivalente, rinque de patinagem…). E ainda um baloiço com mais de três metros de altura, onde, por sorte, apesar de tentarmos atingirmos a linha horizontal, nunca ninguém se despenhou no lago de patos fronteiriço. Houve uma exceção, e benigna – a Clarinha Menéres, que calculou mal o salto de saída e caiu entre os patos, a baixa velocidade. Viria a ser uma grande escultora, era, porém, menos dotada para o desporto. Eu estava nas antípodas. Nos meus sete anos de Sardão, embora fosse aluna de “quadro de honra”, o meu enfoque era o desportivo, até organizava torneios de futebol clandestino. Fui apanhada uma só vez e imediatamente levada ao gabinete da Mestra-Geral. Um susto! Esperava pesadas sanções, talvez mesmo a pior, supressão do fim de semana em casa. Mas a Madre estava em dia “sim”, surpreendeu-me com uma leve admoestação, reiterando a caráter impróprio do futebol para meninas, mas terminando assim: “Em todo o caso, como sei que gostas muito de futebol, dou-te autorização para jogares. Só a ti, às outras, não!” De semelhante compreensão não beneficiei no campo literário. Era uma infatigável escrevinhadora de peças de teatro, romances e crónicas, todos muito apreciados pelas colegas, embora o seu destino fosse, futuramente, o caixote do lixo. Guardei apenas uma “crónica de humor e maldizer” sobre o pequeno gueto colegial, não pelo seu interesse literário, mas pelo seu significado afetivo. A obra, ainda incompleta, em pleno desenvolvimento, foi apreendida por mão censória. Alguém me tinha denunciado…O escândalo foi tremendo, a aluna subversiva suspensa e recambiada para casa paterna, com uma “guia de marcha”, em forma de uma carta da Madre Superiora para o “Encarregado de Educação”: quatros páginas, em que era acusada do cometimento de inúmeras malfeitorias, entre elas, uma falsa, a de ser “comunista”. Só faltou enviarem cópia para a PIDE... Incultura democrática, absurdo psicológico. Como podia uma adolescente que questionava tudo e todos, ser acusada de militar num partido de “obediência”? Anarquista, quando muito. Desse epíteto teria gostado. Anarquista como o tio-avô António Barboza, que acabou deportado em São Tomé, durante o mandato de Sidónio. Era, porém, insulto que caíra em desuso Esperava a expulsão, desenlace compaginável com a tradição familiar: na geração anterior, a Tia Glória Doroteia (Lolita), fora banida do Colégio da Esperança por delito de opinião semelhante, (embora a tia centrasse a prosa crítica mais na ementa gastronómica do que na “praxis” autoritária da instituição) e o Tio José Augusto, expulso de vários externatos do Porto, com fundamentos vários, um dos quais ter provocado uma explosão no laboratório do colégio. Não atingi esse patamar de glória! Ao fim de uns escassos dias, em que estudei afincadamente para os exames já próximos, fui reintegrada, sem explicações e sem devolução da minha peça de ficção realista. A obra só não se perdeu, graças à minha fantástica memória juvenil, que me permitiu reescreve-la, na íntegra, durante as férias de verão, sem falhar uma virgula. Nunca se sabe como os pais reagem a estas vicissitudes. Por sorte, os meus, muito felizes com as notas dos meus exames do antigo 5º ano (dispensa das orais a Letras e a Ciências), não perdoaram o Colégio, por me moverem um processo nas vésperas de provas decisivas. Aproveitei para excluir o Sardão do meu futuro e reclamar o ingresso na escola pública. Era a hora de todos mudarmos de vida! Meus pais converteram-se, por fim, à ideia de arrendaram um andar no Porto. Depois de muito procurarem, escolheram um pequeno e simpático apartamento na rua Latino Coelho, a dois passos do Marquês de Pombal e do Colégio da Paz e perto do Estádio das Antas. A Lecas e eu há muito queríamos morar no centro do Porto, perto de cinemas e cafés, livrarias, boutiques e tudo o mais que nos oferecia a grande cidade. Os avós estavam inconsoláveis. A avó Maria, a mais inconformada, com o humor trocista dos Barbosas, chamava aos prédios de apartamentos as “ilhas verticais do Porto” … A nós, aos 14, 16 anos, encantava-nos a modernidade daquele andar, urbano e “cozy”, e gostávamos dos vizinhos, em especial de um casal que dava ao prédio o seu toque de cosmopolitismo: os Razzini. Ela, a Maria do Carmo, algarvia de Olhão, loira e elegantíssima, parecendo uma sósia da Kim Novak, ele, Salvatore, um siciliano tranquilo e sociável, e o filho de oito anos, Gian Carlo, que, em dois tempos, convertemos ao “portismo”. A proximidade do Colégio da Paz indiciava que os pais queriam deixar-nos entregues à prestigiada pedagogia das Doroteias, em modalidade de externato. A Lecas aceitou, prontamente. Eu não. Teimei em me matricular no Liceu Rainha Santa Isabel, que ficava a milhas. Não me convenceu nem o argumento geográfico, nem o aziago precedente do pai, que, no ano em que trocou o Colégio dos Carvalhos pelo Liceu Rodrigues de Freitas, se divertiu muito, estudou pouco, chumbou e teve de regressar ao internato, para acabar o curso do liceu. Eu, não. pelo contrário, tratei de estudar e de me divertir, nas doses precisas, passei dois anos fantásticos no “Rainha”, com maravilhosas colegas e professoras, e, nos exames finais do liceu, até ganhei o “prémio nacional”. Estávamos em 1960, ano de comemorações henriquinas, pelo que à distinção académica acresceu conteúdo turístico: uma viagem-prémio ao Norte de África, na boa companhia dos vencedores de cada liceu (ou cidade?). Um deles era João Bosco Mota Amaral, que aparece nas fotos de grupo, inconfundível. O prémio tinha um “senão”, que era obrigar-me a voar. A perspetiva era aterradora, e eu não podia desistir, mas, enquanto tive alternativa, o medo dominou os meus dias sobrantes, na contagem decrescente para a partida, como se fosse viajar de Cap Canaveral num foguetão. Depois, dentro do aparelho da TAP, o meu pragmatismo veio ao de cima e todos os receios se dissolveram no pleno gozo das fantásticas vistas aéreas, nuvens coloridas, formas mutantes de um branco de neve, contra o azul celeste, como visões alpinas de pernas para o ar. E, lá em baixo, mar e mais mar, até ao primeiro vislumbre do círculo castanho da costa. Foi uma visita sem sustos, perfeita, nos ares como em terra. Todos bem-dispostos e bem-comportados, simpatia a rodos à nossa volta, paisagens belíssimas, aqui e ali, a lembrar a serra da Arrábida, palácios, feiras, mercados, antigas fortalezas (vestígios do nosso passado bélico), bons hotéis, transporte em “limousines” com motoristas marroquinos, que falavam francês, cidades imponentes, Tânger e Ceuta, lugares com história, como Alcácer-Kibir, onde, todavia, não consegui sentir nem ver sombras de D Sebastião. Mais difícil de aceitar, pela família, foi, estranhamente, o convite do “Rotary Clube” do Porto. Naquele tempo, qualquer organização, que não girasse na órbita da igreja ou do regime, levantava suspeitas. Ninguém queria que eu fosse receber o diploma do Rotary! Queria eu, e foi feita a minha vontade. Guardo memória já vaga, mas ainda assim exultante, dos salões do “Grande Hotel do Porto”, dos discursos, da entrega de diplomas, com protocolo e cerimonial rigoroso e palavras de elogio e incentivo para cada um de nós, raparigas e rapazes. O presidente lamentava não poder oferecer-nos um prémio pecuniário condigno, mas, para nós, bastava a bem-intencionada homenagem, e o ótimo jantar. Imagine-se o imenso gáudio de descobrirmos no grande envelope, junto ao diploma, um segundo, mais pequeno, com quinhentos escudos. Um dos rapazes, ainda na Rua Santa Catarina, teve a ideia de vasculhar o interior do envelope e encontrou a surpresa. Quinhentos mil reis, geridos, com parcimónia, duraram o verão inteiro, em cinemas, livros e discos. De qualquer modo, no meu caso, o turismo histórico-cultural em Marrocos e o jantar no Grande Hotel, mais do que prémios significavam uma aposta ganha na minha primeira decisão de risco, na pertinácia de trocar o certo, o colégio privado, com lagos de nenúfares e ginásio completo, pelo incerto, o liceu público, num velho edifício tão degradado, que, às vezes, a caliça do teto tombava, como flocos de neve, sobre as nossas cabeças. Nas férias grandes de 1959, antes ainda da incursão no norte de África, ousara outra aventura não menor, uma viagem solitária ao estrangeiro (de comboio…). Hoje, as minhas jovens primas só ganham fama de viajantes, em excursões exóticas à Patagónia, ao Perú, à Indonésia… No “meu tempo”, aos 16/17 anos, para tanto, bastava transpor uma fronteira terrestre, e eu atravessara três. O projeto de passar um verão inteiro na Inglaterra foi, naturalmente, assunto controverso, no círculo familiar. A mãe foi a principal opositora, enquanto os avós, tomados pelos mesmos receios (do desconhecido), faziam contracorrente mais discreta. Inesperadamente, o pai pôs-se do meu lado. Pesaram, na sua avaliação, a anglofilia, o apoio firme do Padre Leão, sempre consultado quando a dúvida campeava nos espíritos, e o facto da Madre King, minha antiga professora de inglês, providenciar acolhimento num lar de religiosas irlandesas. Os avós de Avintes financiaram a expedição, bilhete de comboio e estada no lar por duas semanas. O resto era comigo, ou arranjava trabalho temporário, “au pair”, ou voltava para casa. Parti, de mochila às costas, numa manhã de junho, em vésperas de aniversário, com uns verdes 16 anos. Na ida, tive a ótima companhia de uma colega do “Rainha”, a Margarida Losa. Os nossos pais ficaram a acenar-nos, a oito mãos, no cais da estação de São Bento, até o comboio desaparecer no grande túnel. Longa e lenta foi a marcha até Paris, onde fizemos uma paragem de dois dias para ver a cidade. Tínhamos reserva no “Grand Hotel St Michel”, Rue Cujas, onde, com um pouco de sorte, nos cruzaríamos com Maria Lamas. O que, “hélas”, não aconteceu! Em compensação, reunimos com os tios alemães da Margarida, que estavam hospedados num hotel cinco estrelas (o nosso, de “grand” só tinha o nome). Os tios eram um gentil casal de meia-idade, com quem demos magníficos passeios e nos alimentamos em excelentes restaurantes. Ao terceiro dia, continuamos a viagem, até Calais, e atravessamos a Mancha, sem grande agitação marítima, como eu teria preferido. Nunca me vira no alto mar. Sensacional! Senti-me definitivamente, descendência de antigos navegantes. Em Londres, Margarida separamo-nos na estação, ela já com destino laboral – a casa de duas velhinhas excêntricas, de quem haveria de contar coisas divertidíssimas – eu com alojamento no Saint Catherine’s, onde fiquei até conseguir, através das prestáveis freiras irlandesas, um emprego por dois meses. A cuidar (ou descuidar) duas filhas pequenas de um jovem casal de judeus abastados, os Balin. Fui substituir, temporariamente, uma competente “nanny” suíça, ausente em férias. Tal como a Margarida, trouxe comigo infindáveis “estórias” para animar serões. Resumindo, direi que, na Inglaterra, a excêntrica era eu, pelos métodos de lidar com as crianças. Elas, contudo, reagiam bem, gostavam de mim. Os Balin foram extraordinariamente pacientes e compreensivos, relevando as minhas óbvias insuficiências. Ele, brilhante advogado de barra, quando chegava a casa, ficava “de serviço”, coadjuvando-me nas tarefas domésticas, que eu executava com anormal lentidão. A mulher não saía do sofá, diante de um soberbo aparelho de televisão. Incomum, por padrões portugueses…. Os judeus, mais do que os outros ingleses, passaram para o topo das minhas preferências! Tudo visto, tive imensa sorte. De Londres, no verão mais quente de que havia memória, rumámos a Hove, na vizinhança de Brighton. A minha tarefa principal consistia em levar as crianças à praia. Fartei-me de dar banho às meninas e mergulhos num mar tranquilo e fui melhorando o domínio da língua inglesa, pelo menos ao nível da conversação com uma criança de cinco anos, a Lilian, muito parecida comigo, nessa idade (uma chata…preferia outra, que ainda não falava e andava sempre bem-disposta). Também muito me ajudaram as recomendações de leitura de Mr. Balin, que selecionou Agatha Christie e Somerset Maugham, como bons escritores, mais acessíveis do que outros a principiantes. “The body in the library” foi o meu livro de estreia, um mistério desvendado por Miss Marple, que me fazia pensar na minha perspicaz tia Rozaura e, talvez por isso, sempre preferi a Poirot. Para o Porto voltei sozinha e definitivamente apaixonada por viagens, trazendo na mala os meus policiais, e pequenas lembranças para toda a família, a tempo do recomeço de aulas, no meu último ano do liceu. Não alterei uma metodologia vencedora – muita atenção nas aulas, estudo quotidiano de “manutenção”, dando espaço à leitura, a ouvir música, deambular pelas ruas do Porto (cujos encantos descobri muito antes dos turistas do século XXI), ir ao cinema, e conversar à mesa dos cafés. Não faltavam temas, incluindo o feminismo, é claro. Tinha perdido a noção de quanto era assunto pioneiro no pequeno Portugal de cinquenta, até uma das minha colegas mais próximas, a Ana Luísa Janeira, me ter dito, há poucas semanas, que fui a primeira a usar a palavra no nosso círculo do Rainha Santa. Para além do sufragismo, as minhas causas iam crescendo - a abolição universal da pena de morte, e de quaisquer guerras, ditaduras e manifestações de intolerância ou racismo…. Quando Caryl Chessman foi executado, andei vestida de negro, de luto pesado. Anne Frank era livro de cabeceira. Acompanhava, de perto, as lutas cívicas dos negros americanos, a guerra do Vietnam, depois, a presidência de J F Kennedy. E recuava a genocídios do passado, vivos na escrita de Virgil Gheorghiu, de Bernanos... Todavia, pelo meio, igualmente, me permitia ligeireza, em livros, cinema e música - policiais da Vampiro, comédias de Doris Day ou Audrey Hepburn, rock and rol - muito “rock” nas festas, em que a Lecas, com a sua formosura e “joie de vivre”, era sempre a estrela. O Colégio da Paz revelava-se alfobre de serões dançantes, (longe de portas, evidentemente), e eu era, por imposição paterna, obrigada a acompanhar a mana, na sua muito intensa vida social. A Lecas colecionava de pretendentes, todos mantidos a uma certa distância. No meu caso, eram menos os pretendentes, e eu aceitava-os, invariavelmente, como bons amigos. Todos mostravam a sua dedicação, limpando as lentes dos meus óculos, sempre cobertas de pó. Por trás dessa cortina de poeira, estavam olhos verdes, que eles preferiam ver, claramente. Acabaria a namorar (e a casar) com o menos ajustado ao meu feitio e o mais distante do meu tipo ideal de marido. Com ele e por ele, perdi a oportunidade de me divertir mais e melhor em Coimbra, e de aprofundar amizade com o homem mais bonito que conheci na juventude. Um alemão atípico, de ascendência russa e francesa, com imenso “charme”. Foi, durante dois ou três anos, meu “pen pal (o equivalente atual a “amigo no facebook”), e, em 1060, veio trabalhar para o Porto, numa empresa alemã, precisamente quando eu fui para Coimbra. O seu êxito em Portugal foi imediato, tanto na frente profissional, como entre portuguesas de qualquer idade e abona muito a seu favor não ter nunca perdido a simplicidade. Integrou-se na sociedade portuense às mil maravilhas, futebol incluído. Hoje, o Jürgen, onde quer que esteja, é mais um adepto do FCP, um dragão do mundo. Coimbra, Faculdade Direito. Porquê Coimbra e porquê Direito? O Porto da década de sessenta tinha tudo o que eu queria, menos uma Faculdades de Direito, ou de Letras. As minhas notas de exames a Letras e Ciências, no 5º ano, eram equivalentes e eu hesitava entre os dois ramos. Decidi-me por Letras, e continuei a hesitar entre Ciências Jurídicas e Germânicas, e, também, entre Coimbra e Lisboa. Confesso que, para mim, chega a ser agradável o “suspense” dos meus momentos dilemáticos, mais invulgares do que os de decisão pronta e nem sempre esplêndida. Dois escritores, sem nada em comum, jogaram um papel crucial na opção final por Direito e por Coimbra: Trindade Coelho e Earl Stanley Gardner. A representação de um mundo de capas negras, velhas tradições, e transgressões criativas do “In illo tempore” de Trindade Coelho apelava ao meu lado lúdico, e Gardner ao meu lado sério, a quimera de ganhar causas perdidas em tribunal, como Perry Mason conseguia sempre nas páginas dos seus policiais. A realidade ficou grande distância do sonho, desfazendo miragens… O sistema judicial da América e de Portugal não são comparáveis… E sobre a academia do tempo de Trindade e do meu, quase o mesmo se pode dizer. Porém, de dois equívocos, de inspiração literária, nasceu, por sorte, a escolha certíssima. Gostava em especial das disciplinas de Direito Civil, mas, foi em Direito Penal que recebi o “Prémio Beleza dos Santos”, “ex- aequo” com dois bons colegas, que haviam de seguir fulgurantes carreiras académicas, Manuel Porto e o Joaquim Canotilho. De volta ao Porto, aqui fiz o estágio de advocacia no Porto, como defensora oficiosa de pequenos larápios ou casais desavindos. A melhor recordação que ficou dessa lúgubre experiência foi o convívio tertuliano com dois grandes advogados (e ainda melhores pessoas e contadores de histórias extraordinárias e verídicas, à Trindade Coelho): Artur Santos Siva, pai do banqueiro com o mesmo nome, e Fernando Fonseca, colega e grande amigo de meu pai no Colégio dos Carvalhos. Por pouco não enveredei pela advocacia, no escritório deste último, mas o convite coincidiu com a chamada do Manel para a tropa, e eu troquei uma trepidante carreira forense pelo remansoso trabalho de gabinete, e, mais tarde, pelo ensino em três sucessivas universidades. Depois, acabei a desperdiçar o “know-how” adquirido em Coimbra e Paris, numa trajetória política de quase três décadas, em que só, de forma esporádica, me cruzei com o Direito. Coimbra onde uma vez… O que dizer da minha Coimbra, 1960/65? Foi, antes de mais, um projeto de estudo, em ambiente de camaradagem nas tertúlias de café e de afirmação feminina nos bancos da Faculdade, então um universo muito masculino. O objetivo de regressar a casa munida da carta de curso dentro do canudo metálico, foi cumprido, sem desastres no currículo. E teve mais um ingrediente: romance - um namoro de cinco longos anos, que, olhado retrospetivamente, limitou horizontes, diversões e relacionamentos mais descontraídos, menos obsessivos. Tudo acabou num casamento que, em menos de cinco anos, teve o seu epílogo pressagiado por várias vozes proféticas. As incompatibilidades estavam lá, desde o princípio, e foram-se acentuando. Não porque, como na canção de Rui Veloso, não gostássemos da mesma canção. Ou do mesmo filme, do mesmo livro, da mesma linha política. O problema era outro, a fantasia (dele), o realismo/pragmatismo (meu). Para o Manel, dois e dois podiam ser cinco ou seis e para mim eram prosaicamente quatro. Um boémio sem emenda, um cábula mais interessado nas atividades cineclubista ou na poesia de Reiner Maria Rilke do que na maçadora leitura das sebentas. E eu, com os pés em terra, sempre a tentar ser a sua orientadora de estudos. O curso dele deu-me mais trabalho do que o meu… No livro de finalistas, escrevi, na sua página, a terminar a gozosa contribuição da praxe: “Nunca ninguém conseguiu tanto, com tão reduzido estudo”. O nosso encontro/desencontro estava escrito nas estrelas. Fomos apresentados no primeiro dia em que coincidimos na cidade de Coimbra, (nos “Gerais”), por uma amiga comum, a Maria Emília Castro Solla, que por ele tinha uma secreta paixoneta. Assim me disse, mal o avistamos, com o seu blusão de couro e uma dissonante gravata de seda… Ao longo do ano, haveríamos de formar um inseparável trio de estudo e conversação, nos bares de Letras ou Farmácia, no Mandarim ou no Tropical, nas ruas da Baixa, nos comboios da linha do Norte. Rapidamente entrámos num encadeamento de confidências: ele confidenciou à amiga de praia, (sem pressentir o seu “crush on him”), que gostava de mim; ela, prática e conformada, confidenciava-me as confidências dele, já no meio de grande risota; e eu, que não amava ninguém, fazia de conta que não sabia de nada… Um triângulo para guião de cinema, em tom de comédia. No fim, sobrou para mim, acabei enredada na mal fadada relação, cheia de altos e baixos, enquanto a Maria Emília seguia em frente, e, no fim do ano, abandonou a velha academia. Faltava-lhe a paciência para minudências jurídicas e acertou no regresso ao Porto, ao inscrever-se no Instituto Inglês, onde completou, brilhantemente, o “proficiency”. E no Instituto ficou a lecionar por muito anos. Dos três, só eu me sentia bem no universo jurídico coimbrão. O Manel, qualquer que fosse a área de estudo, estaria sempre mais interessado em matérias não curriculares. O pior de Coimbra: Exames, praxe e outras prepotências O pavor dos exames foi uma constante no meu percurso escolar e académico, que pouco me importava, porque nunca vi nas estatísticas do passado um bom prognóstico de futuro. De facto, o único resultado dececionante não foi um chumbo (em matéria de chumbos tenho uma trajetória imaculada), mas uma passagem “sem distinção”. No exame oficial da 4ª classe, em V N de Gaia, na escola primária, onde compareci com a farda chique do Sardão. Caiu-me em sorte uma examinadora republicana, ateia e laica, alérgica a meninas de colégio de freiras, com quem me envolvi numa bizarra querela jurídico constitucional. À pergunta. “Quem manda mais, o Presidente da República ou o Presidente do Conselho?”, achei rigoroso responder: “Nem um nem outro. Quem manda mais é Deus”. E não se falou de mais nada, para além da autoridade suprema, a decidir entre Deus, o Marechal Carmona e o Doutor Salazar! Sem conseguir impor o meu Deus, saí furiosa e sem “distinção”, ainda que inabalável na crença divina. Fui levada pela mão de uma Doroteia em estado de choque para o colégio e aí recebida como uma mártir da cristandade… Nos males de Coimbra, o segundo lugar ia para a praxe. Mais exatamente, para praxes abusivas, que incidirem, sobretudo, na metade masculina daquela “quinta dos animais” orwelliana. De qualquer modo, sentia-me solidária com os colegas. As raparigas não eram ouvidas nem achadas pelos repúblicos, estavam sujeitas a praxe minimalista, limitada a pouco mais do que as regras do traje académico. Traje que eu usava imenso, gostava da capa preta, tão prática e elegante! Dividia, assim, as tradições em boas e más. Condescendia com serenatas, festas da Queima ou latadas, forma benigna de gozação, em que os caloiros fazem de palhaços, dando sinais de apreciarem o seu número de circo, mas era, (e ainda sou), militantemente, contra tudo o que se assemelhasse a “bulling”. Abominava as trupes que atacavam os caloiros, depois do pôr do sol, tempo de recolhimento obrigatório para eles, salvo se estivessem sob proteção de uma senhora, que podia bem ser uma caloira... O castigo mais comum consistia em tesouradas no cabelo, que obrigavam a vítima a rapar o crânio com máquina zero. A “proteção” era andar de braço dado com uma rapariga qualquer, um ser de saias. Salvei muitas cabeleiras, porque sabia onde os trupistas se escondiam, para o assalto e, com os meus reflexos rápidos, metia o braço no acompanhante. Sendo vários, optava pelo mais próximo. Não ignorava o rigor do cânone – era o rapaz que devia dar o braço – mas olhava-os salteadores com tal ferocidade, que nenhum nunca se dispôs a discutir o detalhe comigo. Só duas vezes reagi em causa própria. Primeiro no Lar das Dominicanas, onde as “doutoras” se arrogavam privilégios de “república” feminina. O jogo de dominação era idêntico, menos as tesouradas nas cabeleiras. Aguentei uns minutos… quando interpelada, ripostei com um dichote, de igual para igual e fui, rudemente, mandada calar. Saí pela porta fora. Estava expulsa da “república”! Um degredo sem conteúdo prático, porque o lar não era mais do que um dormitório, o meu dia era vivido na Faculdade, nas ruas, nos cafés, em ambiente saudavelmente misto. A segunda e última batalha praxística aconteceu “no baile dos finalistas”, a propósito do “dress code”. As fitas dos finalistas só podem ser usadas com traje académico, mas estava, há muito, aberta exceção para as “doutoras” poderem levar ao baile de gala a sua pasta de fitas largas, em vestido de cerimónia. Nesse ano, porém, o “Conselho de Veteranos”, ou seja, boémios marialvas, impôs o rigor antigo: insígnias só com capa e batina! Era a maneira ínvia de reservar aos machos o uso das insígnias, como se não houvesse mulheres na Academia. Em modo de combate, fui para o baile de capa e o fato preto, com a pasta de fitas vermelhas debaixo do braço. Á entrada, a trupe de veteranos. quis barrar-me o caminho, evidenciando o que intuíra: a guerra dos trajes escondia a guerra dos sexos. Limitei-me a gritar-lhes: “Estou trajada a rigor, tenho o direito de entrar com as insígnias. Saiam da minha frente”. A muralha de veteranos resistiu. Eu persisti. A minha argumentação jurídica ganhava seguidores e dividia a “polícia de costumes”. O impasse jogava contra os praxistas mais radicais, atrapalhava a entrada. Era evidente que eu não ia embora, nem me calava. Entrei e fui muito felicitada pela minha resiliência (como agora se usa dizer). Lá dentro, estava uma temperatura “de ananases”, como diria o nosso Eça, o fato era quente, a saia travada atrapalhava os meus passes de dança, mas dancei a noite inteira, a brandir as fitas rubras como um troféu… Ser minoria Em Direito, éramos pouco mais de 10% de mulheres. Basta-me folhear o livro de curso para constatar que somo 12 mulheres para 63 homens. Ao desnível estatístico, viria a acrescer a diferença de oportunidades que tivemos na vida… Havia algumas excelentes juristas, mas, das doze (como os apóstolos), quantas tiveram um papel de mais ou menos relevo nas instituições públicas? A resposta é “não tiveram”. Já dos 63 foram muitos os que se distinguiram na política (Daniel Proença de Carvalho, Laborinho Lúcio, António Campos, Luís Fontoura, João Padrão…), no domínio em que a investigação, o Direito se cruza com a Política, (Gomes Canotilho, Manuel Porto…), nas Letras, (Mário Cláudio ou José Carlos Vasconcelos...), na diplomacia (João Quintela, então meu assíduo parceiro de estudo nas mesas do Tropical, que havia de reencontrar como Cônsul-Geral e Embaixador, décadas depois). E há, ainda Juízes do Supremo, Procuradores da República, advogados, à frente de grandes escritórios…. Às mulheres, no setor público, apenas se abriam as carreiras do notariado e das conservatórias No entanto, é verdade que convivíamos fraternalmente, juntos estudávamos, discutíamos política, a guerra colonial, o regime, as leis, os costumes. Os costumes iam mudando devagar, mas não as leis, imutáveis, como o regime, até ao dia 25 de abril de 1974. Na política, coisas boas só aconteciam no plano internacional. Na América, onde JF Kennedy venceu Nixon, em 1960, quando eu chegava a Coimbra. Dois anos depois, recebi a notícia do seu assassinato à porta da casa onde morava, em frente a uma das repúblicas tradicionais, a “Rapa o Tacho”. E mais “Kennedista” me tornei. Acreditava que Bob seria o próximo presidente e, sem o segundo assassinato na família, teria sido. Somente o nosso ditador parecia eterno, como o código de Seabra, que consagrava a “capitis diminutio" da mulher em geral e, mais ainda, da mulher casada. Napoleão deu-se mal com a invasão do nosso território, mas não com a invasão do nosso Direito pelos seus códigos cavernícolas. Se não fosse feminista de infância, teria passado a sê-lo, na Faculdade. Estava em restrita e seleta companhia - a Helena Vaz e poucas mais... Alguns homens, entre eles, o meu namorado, que chegara ao feminismo pela via da literatura, com o seu Ibsen, a sua Heda Gabler…. Nessa década de sessenta portuguesa, era difícil suscitar a questão da igualdade de sexos: Não estava na ordem do dia e o meu discurso soava a radicalismo e excentricidade, até em meios mais abertos, como o “Graal” de Teresa Santa Clara Gomes e Maria de Lourdes Pintasilgo. Por causa disso, na década seguinte, vi-me na política, no governo de independentes do Doutor Mota Pinto, que me desafiou com um argumento de peso: “Manuela, se não aceitar o desafio, fica responsável por não haver mulheres neste Governo”. Como boa praticante das minhas convicções, estava “subjetivamente obrigada” a aceitar o cargo e o encargo, em domínio para o qual não me sentia fadada, antes pelo contrário. Não pertencia a nenhum grupo ou clube, exceto o FCP e só uma vez me tinha concorrido a eleições. Em Coimbra, como candidata pelo “Conselho de Repúblicas” a um lugar cuja designação exata esqueci. O colégio eleitoral era 100% feminino e servia, sobretudo, para preencher, por inerência, uma vaga na direção da Associação Académica. Uma espécie de quota, “avant la lettre” (ou “avant la loi”). A derrota provável, porque, em regra, as mulheres votavam à direita (nas listas da LIA), mas o facto de ter sido derrotada deixou-me a certeza de ser uma perdedora nata, embora em nada afetasse a minha combatividade, que não depende de resultados, O que me muitíssimo me afetou nesse ano de 1964, a inesperada morte da minha irmã mais nova, a Madalena, tão bonita, sempre tão alegre e despreocupada. Completamente imune a tuso o que mais me atormentava, testes, exames, notas, doenças (no meu caso, hipotéticas). Chegava do colégio e entrava em casa a cantar com uma voz que rivalizava com a de Gal Costa. Adorava dançar. Adorava música, Adamo, Modugno, Marino Marini. Não perdia concertos, lançamento de livros… Pediu autógrafos a escritores como Érico Veríssimo e a músicos como Marini, e não se ofendeu por ele lhe dirigir um piropo. Vestia-se pelo último figurino, permitia-se uns toques de extravagância. Parecia saída de um filme, assim como a personagem da” Rosa púrpura do Cairo”. À sua passagem nas ruas havia quem parasse a admirar a visão ali materializada, como se não acreditassem que fosse real. Talvez por ela encarnar a imagem da “joie de vivre”, ninguém acreditava nos diagnósticos médicos de leucemia grave, e a sua súbita partida foi um choque tremendo. A mãe atravessou um largo período depressivo, anos vestida de preto rigoroso. Eu, por meu lado, perdi a fé em todos os mundos –o outro, e este em que fugazmente existimos. Passei a viver um dia de cada vez, fazendo o possível, o meu possível. Por feitio, por hábito, por teimosia, e sem perder velhas crenças terrenas. Anos depois, um dos esplêndidos chefes com quem trabalhei, o Doutor António da Silva Leal, haveria de me dizer: “A Manuela é a pessoa menos ambiciosa que eu conheço”. E nem sequer o disse num tom crítico. A fé religiosa andou perdida e foi (parcialmente) recuperada, muito mais tarde depois, numa conversa com o Prof. Barbosa de Melo, em que ele me levou a concluir que a fé é compatível com a dúvida, ou mesmo uma constelação de dúvidas. O que não recuperei mais foi a ambição pessoal. Nem sei bem ao certo o que me manteve por mais de trinta anos política. O desafio de ser mulher a fazer coisas que a tradição reservava a homens? Ou, mais simplesmente, a “fazer coisas”, coisas diferentes, que é coisa que gosto de fazer. São hipóteses. A 2 de novembro de 1965, dei por finda a tarefa que me ocupara ao longo de dezasseis anos: tirar um curso. Dia de finados. Algumas colegas queriam adiar para o 3 de novembro, mas eu tive de recusar, porque era o dia do 1º aniversário da morte da Lecas. Nas fotos da formatura, nos Gerais, ou com a torre em fundo, estamos todos de preto vestidos. Eu, de traje académico, naturalmente, para cumprir a praxe, que aos rapazes manda estraçalhar a batina, camisa e mais vestuário, e às raparigas, apenas cortar, delicadamente, a gravata. Foi a Helena Vaz quem se encarregou do corte simbólico. Eu já estava casada com o incontornável Manel VQ – casamento em agosto, mês azarento, segundo a supersticiosa dona da casa (do quarto) onde morávamos. À despedida deu-me, de presente, um gato amarelo fenomenal. Recebeu o nome de Mandarim, como o café dos nossos estudos. De gato ao colo disse adeus a Coimbra. No desemprego Terminara bem o projeto de qualificação académica iniciado de pé esquerdo, na escola do Souto, em Gondomar. E estava sem novo projeto, ou seja, sem saída profissional à vista pela circunstância agravante de ser mulher. Para os colegas homens a escolha abundava, desde a magistratura à carreira diplomática, interditas ao sexo feminino, com cobertura constitucional. A Constituição de 1933 proclamava a igualdade de sexos, assim como outras veleidades democráticas, mas, quanto às mulheres até explicitava exceções decorrentes da “natureza feminina” e do bem da família, justificando todas e quaisquer desigualdades impostas e praticadas pelos poderes constituídos. Havia, como é óbvio, tanta igualdade quanta democracia… Com o colega e marido me mantive na casa dos meus pais, na rua Latino Coelho, muito perto da igreja do Marquês, onde nos casámos. Ele muito elegante de casaca, eu vestido comprido, de renda de Bruges, um modelo de linhas sóbrias, com assinatura da costureira portuense Esmeralda. Recusei, nomeadamente, levar um véu a cobrir a cara, a epístola de São Paulo e a adoção do apelido conjugal. O vestido veio a mostrar-se um bom investimento, durante os meus cerca de sete anos de Governo, fase em que recebi uma dezena de condecorações, (no grau de Grã-Cruz, é claro), e em que a robusta renda de Bruges se revelou útil para enfiar os ganchos dos “crachás”. Nos tecidos lisos têm estes de ser presos em ilhós, ou diretamente cozidos sobre o tecido, à direita da faixa larga, cruzada sobre o peito… A veste cerimonial fora guardada, como “souvenir”, dentro da sua caixa de papelão, mas envelhecera mal, com algumas manchas de cor amarelada. Tingi-la era a solução – e de preto, a única cor segura, pelas regras da tinturaria. A superstição popular diz que tingir de preto o vestido nupcial dá azar ao marido, mas eu estava definitivamente divorciada e ele já casado com a sua segunda mulher, pelo que só a ela cabia o privilégio de assim o azarar. Em 1966, na constância do matrimónio, fazíamos, ambos, o estágio de advocacia, no Porto, e eu preparava, simultaneamente, uma dissertação sobre “acidentes de trabalho”, com uma bolsa da Faculdade de Direito de Coimbra. Sem certezas de completar a tese, deixava no Banco Português do Atlântico, intocado, o valor da bolsa… O outro estudante da casa era meu Pai, que, em tempos de juventude, desistira do curso universitário e o retomava aos quase cinquenta anos. O que só lhe fez bem! Rejuvenesceu, entre jovens, e completou, sucessivamente, um bacharelato no Instituto de Estudos Sociais e a licenciatura em sociologia no ISCTE. Foi, por sinal, através dele que consegui o primeiro emprego. Estávamos no átrio do Instituto, num grupo de amigos, a quem eu me queixava de estar sem trabalho, apesar da minha média de curso, ao contrário dos colegas masculinos formados com notas rasteiras. Nesse preciso momento, discreto, passava ao lado o Secretário –Geral do Instituto, Dr. Carneiro Leão, pelo que assistiu ao improvisado “comício” feminista. Não me conhecia, mas aproximou-se do grupo, cumprimentou-me e disse: “Com essa média de curso, garanto-lhe uma colocação em menos de oito dias”. Este foi o minuto em que o imprevisto começou a comandar o resto da minha vida. Encantada com a solidariedade daquele senhor tão simpático, não escondi a minha descrença em oportunidades para mulheres numa sociedade tão patriarcal… Três ou quatro dias depois, telefonou-me, para me transmitir o convite do Diretor do Centro de Estudos do Ministério das Corporações e Previdência Social para uma vaga de Assistente. “Não decida já, estou a procurar alternativas”, insistia, do lado de lá do telefone o meu solidário aliado, mas eu aceitei, sem hesitar, até porque já estava a tentar uma especialização em Direito do Trabalho. Nessa época, muitos Ministérios criavam o seu próprio corpo de consultores e investigadores, recrutando, sobretudo, em universidades. Não desperdiçavam milhões em “outsourcing” … Fui a Coimbra falar com o Doutor Queiró, que me convidara a fazer a pós-graduação com uma bolsa de estudo, agradeci e devolvi, de imediato, a totalidade de prestações recebidas, que, no banco, em conta à ordem, aguardavam destino. O Prof Queiró, embora lamentasse a minha decisão, sugeria, simpaticamente, que eu devolvesse a bolsa em prestações. Não era preciso, prudentemente, não usara um só escudo…. Razão tinha um dos meus amigos de juventude que me considerava “uma ingénua com o pé atrás”. Um gabinete com vista para a Praça de Londres E assim me vi na Praça de Londres, no emblemático edifício de 17 ou 18 andares, então, o mais alto da capital, ou seja, do país. O Ministério do Trabalho, chamado “das Corporações” deveria ser a quinta essência do espírito “corporativo” salazarista, mas, bem pelo contrário, a começar pelas suas posições no campo da emigração, sempre nas antípodas do persecutório Ministério do Interior. Em qualquer caso, o Centro de Estudos era um departamento aparte, com vocação mais científica do que política, formado por uns dez ou doze Assistentes, todos com o mesmo estatuto, na dependência hierárquica de um Diretor. Depois de 74, a maioria dos Assistentes iria distribuir-se pelo PSD, PS e CDS, entre simpatizantes, dirigentes partidários, deputados, membros de governos, (Sérvulo Correia, Rui Machete, Branca Amaral, Monteiro Fernandes, Santos Ferreira, Luís Galvão Teles, Nogueira de Brito, Bernardo Lobo Xavier…).Os que se situavam mais à direita ou mais à esquerda, eram minoria no Centro de Estudos antes da Revolução, como depois no país inteiro. Nos meus sete anos na arranha-céus da Praça de Londres, só tive dois Diretores, ambos de boa memória. O primeiro foi o Dr. Cortez Pinto, homem do regime, no sentido de ser uma sobrevivência do antigo corporativismo, naquele fim de regime, mas, também, exemplo de tolerância. Jamais sugeriu que alterássemos uma vírgula dos nossos pareceres ou dos artigos para a revista “Estudos Sociais e Corporativos”. Reuníamos com ele uma vez por semana, para distribuir trabalhos e fazer o ponto de situação dos nossos compromissos. Apontava tudo num caderninho, em tinta de uma cor raríssima, acastanhada. Quando falhávamos um prazo, a invariável desculpa era: “está a dactilografar”, e, na semana seguinte, havia que entregar o texto do artigo, do projeto de lei, ou do parecer. Ninguém abusava da simpatia do chefe, incapaz de um remoque… Éramos bem remunerados (muito acima dos vencimentos em qualquer Faculdade, embora sem vínculo de funcionalismo público, num esquema que hoje diríamos de “recibos verdes”. A nossa presença não era obrigatória. Os gabinetes bem podiam ficar desocupados, se aparecessem os resultados. O mesmo aconteceria nas diversas funções que fui exercendo. Só na Assembleia da República soube o que era assinar um livro de ponto. Felizmente, porque a minha produtividade no trabalho domiciliário era muito superior. Ia ao Centro de Estudos, diariamente, para trocar impressões e conviver com os colegas ou para consultar bibliografia. Ao longo da minha vida, nunca tive uma falta justificada por doença. Era, sem dúvida uma pessoa saudável. O pior que neste capítulo me aconteceu (já quinquagenária) foi um acidente de automóvel ao serviço (“pro bono”) do Ministério da Saúde, na qualidade de Coordenadora da Comissão de Humanização dos Hospitais. Era uma chuvosa tarde de 6ª feira, e, no início da semana, com várias costelas partidas, lá estava no hemiciclo de São Bento. Meu primo Mário, um muito prestigiado médico do Hospital Santo António, discordou da minha opção. “És louca! Qualquer outra pessoa estaria de baixa mais de um mês”. No Centro de Estudos, ao Dr. Cortez Pinto, aí por 1971/72 sucedeu o Professor Silva Leal, um académico, superespecialista em múltiplos domínios. Estava lá todos os dias, com o gabinete de portas abertas, pronto a dar-nos orientações, ideias, ou, simplesmente, a conversar sobre questões jurídicas ou outras, cinema, livros, política. Sem tabus! Era encantador, cultíssimo, enciclopédico e um “gauchiste”, em comparação com o antecessor. Que saudades das gargalhadas e do sentido de humor desse alentejano, de extração castelhana (seria esta ascendência que o tornava geneticamente tão extrovertido e divertido?). Lembro-me de uma cena particularmente cómica, ele sentado nas escadas, em frente ao seu gabinete, a apertar os atilhos dos sapatos e a dizer-me: “Faço isto, de vez em quando, para não terem a tentação de me convidarem para Ministro”. Não seria o primeiro académico a assumir tais funções no 16º andar (o andar ministerial). Gonçalves Proença, um homem de espírito comparativamente arejada nesse “ranking”, fizera com brilho bastante o seu doutoramento em Coimbra. O Centro de Estudos funcionava longe do 16º, no 1º andar, junto à Biblioteca, dispensando utilização dos elevadores, que tinham fama de avariar. A Biblioteca era moderníssima, parecia saída de um filme de Jacques Tati, e a bibliotecária também. Uma senhora extraordinária, sempre elegantemente vestida de roxo, combinado, ou não, com outras cores. Detestava duas coisas na vida: que as outras mulheres competissem com ela, usando roupa roxa, e que alguém lhe retirasse livros das estantes… Impossível satisfazer este último desejo. Todos nós lhe “desarrumávamos a casa”. A Praça de Londres era a minha Lisboa, aminha Broadway, cheia, não de teatros, mas de cineteatros ou cinemas, o Roma, o Londres, (com as suas fantásticas cadeiras hidráulicas), o Quarteto, o Apollo 70 e um outro na Av. Guerra Junqueiro, cujo nome esqueci…. Enquanto houvesse um filme para ver na cidade, lá estava eu, a partir das 6h00 da tarde. O cinema não era a única atração da Praça, uma praça com espaço jardim, entre as “avenidas novas”, igreja para os mais devotos, lojas chiques e vendedores de rua, delegação do Banco Português do Atlântico, restaurantes, confeitarias e cafés famosos, o Londres, a Roma, a Mexicana… O meu preferido era o Londres, onde ia, com os colegas ou sozinha, ler “A Bola”. Hoje há mais um banco no lugar desse café e uma loja chinesa no espaço do fantástico cinema cujas cadeiras que desciam suavemente sob o peso de cada espectador …. (um dos meus colegas, Almeida Policarpo, sábio distraído, apanhou um susto, convencido de que tinha avariado, desastradamente, o assento). O Centro de Estudos tornou-se, para mim, também, um alfobre de oportunidades de formação no estrangeiro, com várias bolsas de estudo das mais respeitáveis organizações internacionais. Comecei por me candidatar a uma bolsa do Instituto Internacional de Estudos do Trabalho (OIT, Genebra) para um curso de três meses sobre economia do desenvolvimento. Portugal nunca tinha participado em tais programas. Estávamos no início 1968 e, por mais incrível que isso hoje nos pareça, era a única mulher entre trinta e quatro homens, de diversos países da Europa, África, Ásia, Oceânia. Nem no corpo docente havia mulheres – só mesmo no secretariado. Guardo a foto de grupo como testemunho da discriminação de sexo visível a olho nu. Foi uma experiência bastante proveitosa, do ponto de vista profissional e não só, porque reunia bolseiros de meio mundo e muito diversas origens - sindicalistas, funcionários públicos, investigadores e políticos, os mais graduados dos quais eram o Vice-Ministro do Paquistão, Dr. Rahman, e o Deputado Jimmy Mancham, das Ilhas Seychelles, que, pouco tempo depois, e por pouco tempo, seria Primeiro-Ministro. Variada também, como disse, a origem geográfica, muita Europa, (do Norte, Sul, Leste), Japão, Tailândia, Índia, Paquistão, ilhas do Pacífico, Austrália, Turquia, Nigéria, etc. etc. Fiz grandes amizades, e habituei o ouvido a toda a espécie de estranhas maneiras de falar o inglês. Entre os melhores amigos se contavam o checo, os paquistaneses, (três, a mais numerosa delegação nacional), o japonês, o finlandês e (imagine-se!), o russo. O checo Václav, investigador sénior, partilhava connosco as esperanças da “primavera de Praga”. O russo, Yuri, professor de um Instituto Internacional, ficava a meu lado nas aulas e logo percebi porquê: falava um português impecável (de princípio com pronuncia brasileira, que foi perdendo ao longo dos três meses, nas nossas infindáveis conversações). Kauko, o finlandês com dois metros de altura, um bem-disposto, e o Professor Maeda, um académico e tenaz colecionador de pequenas pedras (para o seu jardim - suponho que, no voo de regresso, terá pago por excesso de peso da bagagem). Os três paquistaneses não podiam ser mais diferentes uns dos outros: o Vice-Ministro Rahman, muito elegante e redondo, parecia um Poirot sem bigode Nasir, jovem universitário, alto e bonito, muito consciente da sua excelência mental e física e um mais modesto funcionário, cujo nome esqueci, e que parecia a versão asiática de Charlot, a começar pelo estado de conservação dos seus sapatos. Contudo eu gostava dos três por igual. Nas últimas semanas do curso começaram a chegar as esposas, que, ao menos em festas e excursões, ajudaram a feminizar o ambiente. Quaisquer familiares eram automaticamente convidados para a trepidante vida social do Instituto, caso da minha prima Maria Eduarda (Docas), vinda de Luanda a Genebra, para duas semanas de férias. Sendo morena, lindíssima e a única mulher solteira, ali conviveu cercada por uma corte de admiradores.... De entre as esposas, a minha predileta era Mrs. Rahman, muçulmana da alta burguesia, de meia idade, magra e elegantíssima nos seus coloridos saris. Descobri, com espanto, que conseguia ser tão feminista como eu! O curso foi, assim, pontuado de surpresas, quase todas boas. Os trabalhos de grupo, em projetos de desenvolvimento simulados em regiões para mim exóticas, os passeios no lago Lehman, sky em Les Rousses, nos Alpes franceses, o torneio de hóquei em patins em Montreux, (que Portugal venceu no fim de semana pascal, com uma grande claque lusa, na qual a Docas e eu nos incluímos), as excursões a França, onde eu, por ser a única que falava francês, funcionava como guia e intérprete. Guardo o testemunho de Nasir, depois de um dia inteiro passado, em numeroso grupo, na cidade de Lyon: “Manuela walked, and walked and walked and tired us all”. As minhas aptidões linguísticas foram muito sobrevalorizadas. Ainda hoje, alguns dos 34 colegas do curso estão convencidos de que eu falo russo. Yuri e eu éramos ouvidos a dialogar, incansavelmente, numa língua que soava como se fosse eslava. E ele e eu divertimo-nos a manter o equívoco. Ambos do signo “Gémeos”, ruidosamente extrovertidos, passávamos as aulas a comentar os brilharetes ou os lapsos dos diversos intervenientes, até que um dos professores nos repreendeu. Adotámos, então, o plano B – trocávamos notas por escrito, continuamente. Guardei esses divertidos bilhetes algures. Não deito nada fora e nunca encontro nada, salvo por puro acaso. Regressada à Praça de Londres em abril de 68, apresentei um volumoso relatório e retomei as prazenteiras rotinas, recensões para a “Revista”, um ou outro artigo, os pareceres, e, nos tempos livres, as tertúlias do café, as matinés no cinema. Por pouco tempo, meses depois, parti, de novo, para fazer uma pós-graduação em Sociologia do Direito. A Sociologia, tal como a Coca-cola, fora um dos tabus do Estado Novo, mas, naquela reta final do regime, a minha proposta de me especializar nesse antigo domínio proibido foi muito bem acolhida. Iniciei um processo de candidatura a bolsas de estudo para os EUA, fiz os testes de inglês, respondi a entrevistas e acabei selecionada. Propuseram-me Northwestern, Evanston, Illinois, proposta que, levianamente, subestimei. Preferi a alternativa europeia – uma bolsa da Gulbenkian para Paris. Ter perdido a oportunidade americana foi um erro grave, aquele de que mais me arrependo no conjunto da minha vida viandante. No Illinois tudo estava preparado para me receber, com plano de estudos e orientador de tese. Para Paris fui “ao Deus dará” e Deus deu-me umas coisas, mas não outras. Paris, Paris Nesse outubro de 1968 as matrículas para a Sorbonne estavam fechadas… Inscrevi-me na “École Pratique des Hautes Études”, no curso de Alain Touraine, na novíssima Universidade de Vincennes, com o Prof Hérpin, especialista em sociologia americana, e, mais tarde, também na Faculdade de Direito e Ciências Económicas do Instituto Católico de Paris. Aí me propus obter o Diplôme d’ Études Supérieures et de Recherche em Droit, que segundo me informaram na secretaria, equivalia a uma “maîtrise”. Talvez sim, na verdade, nunca me dei ao trabalho de pedir equivalência. Paris foi melhor no plano convivial do que do ponto de vista académico. Tudo era fluído e obsessivamente focado no fenómeno “Mai 68”. Em compensação tive ampla oportunidade de seguir os cursos de Althusser, Bourdieu, Chombart, Raymond Aron, e Touraine, sobretudo Touraine, o visionário da sociedade pós-industrial, o mais charmoso de todos esses profetas parisienses. Privilégio que não compensava a desistência do “sonho americano”, coisa bem mais grave do que desistir, por essa mesma altura, de um marido incompatível, embora amável pessoa. Mais recomendável como amigo do que como cônjuge para a vida. Ainda assim Paris valeu a pena pela festa, que ainda luzia, a espaços, no rasto deixado pela revolta estudantil. Havia CRS’s na rua, armados para assustar, com as suas carrinhas a pintar esquinas de azul marinho…. O ensino emergia do caos, irregularmente. Frequentei cursos avulsos na Sorbonne, em Nanterre, e em Vincennes, a festa, dentro da festa, com confrontos entre clãs adversos, cadeiras partidas e vidros estilhaçados, com regularidade. Face à cauta ausência da polícia, o Partido Comunista mantinha a ordem, desancava os “gauchistes. Nas salas de aulas reinava a imensa diversidade. Umas eram seguidas por multidões apaixonadas, em grandes auditórios (Althusser, paradigmaticamente), outras em pequenas salas tranquilas, à moda antiga, como a sociologia americana, com Nicolas Herpin, de longe, o mais convincente dos meus professores de Paris. É hoje diretor honorário de investigação no CNRS, em cujo site aparece sorridente, exatamente como o lembro meio século atrás. Sendo pessoa amante de contrastes, tão à vontade em organizações como em desorganizações, adorei Paris. Morei, por dois anos, no paradisíaco gueto que era a Cité Universitaire. Em 1968/69 na “Casa de Portugal”, da Fundação Gulbenkian (du coté de Gentlly). Da janela do meu quarto via a Igreja, que acolhia a comunidade portuguesa, e o tráfico incessante do “périfherique”. Em 1969/70, transitei para a Fundação Argentina, uma antiga mansão de charme, com um quarto voltado para o Blv Jourdan, e um feérico ambiente sul americano. Por coincidência, duas Casas que tinham sido invadidas em maio de 68, por pertencerem a países sob ditadura…. A nossa reabriu a medo, e fechada às “conquistas da revolução”, uma das quais era o “droit d’affichage”, pilar da liberdade de expressão e de reunião. Ao abrigo desse direito, avançámos, sem pedir licença ao Senhor Diretor, com um processo eleitoral, colocando no “placard” de parede a convocatória e, em simultâneo, a nossa lista concorrente, encabeçada pelo Luís Galvão Teles. O furioso Diretor veio, de imediato, impugná-lo, repondo a antiga ordem, e invocando a ilegalidade da convocatória feita por “uma trintena de residentes”. A partir desse incidente (anti) democrático, fomos rotulados de “católicos progressistas”. Era o patamar anterior ao labéu de “comunistas” …Na verdade, uns éramos católicos, incluindo dois padres, os Prof. Mário Lages e Michael Pereira, mas outros não. E quanto a progressismo, o mesmo se poderia dizer. O que nos unia era simplesmente a amizade, numa quase vivência de colégio interno. Ainda hoje, quando nos encontrámos em Lisboa, é como se nos reencontrássemos em Paris e tivéssemos, de novo, 20 anos. Depois da repetição da eleição para os Órgãos da Casa, deixamos campo livre aos “homens do presidente”, e passámos a reunir em divertidas jantaradas, no salão da cave, que estava equipado com uma cozinha completa, e mais ninguém utilizava. O maior embaraço para o timorato diretor foi a imediata saída do nosso líder, o cineasta Luís Galvão Teles, filho de um Ministro do Governo. O Luís transferiu-se, de imediato, para a Casa da Suíça, que ficava a dois passos, e nunca mais pôs os pés na nossa conturbada “Maison”. Íamos, nós, visita-lo, ou combinávamos encontro com ele, na vizinha Casa Brasil, para um cafezinho. Os nossos serões, ao longo desse ano, foram gozados sem visíveis obstáculos. Não nos faltavam experientes cozinheiros, comíamos bem, bebíamos o famoso café arménio do Padre Mário, com o pozinho depositado no fundo da chávena. Os menos dotados, como eu, no fim, lavavam os pratos. Seguiam-se horas de debate, charadas, jogos de mímica. Às vezes, juntavam-se a nós, vindos de fora, o Padre Januário Torgal Ferreira, que depois seria um dos mais notáveis Bispo da sua geração, e o não menos notável Alfredo de Sousa, o primeiro português doutorado na Sorbonne com 20 valores. Um outro conviva, igualmente genial e o mais excêntrico e divertido de todos, era Nadir Afonso. Devíamos ter gravado as conversas… No ano seguinte, o diretor tratou de sanear, com uma ampla panóplia de desculpas, a maioria da “trintena de residentes”. Não conseguiu, porém, afastar-nos uns dos outros, nem da Casa de Portugal, onde continuávamos a reunir, ao serão, aos fins de semana, a toda a hora… Eu fui “desterrada” para a “Fundação da Argentina”, com uma bela vista para o Boulevard Jourdan, e em novos círculos de convivialidade. De facto, vivia em três países ou comunidades, em simultâneo. Todos os dias atravessava fronteiras invisíveis – passando do meu país, entre portugueses, à Argentina, num ambiente cosmopolita, cheio de música e de festas com muito tango e vinho tinto, e, à França, durante as aulas e os passeios por Paris. Curiosamente, dessa altura, não recordo o nome dos colegas franceses (mais tarde sim, sobretudo os do Conselho da Europa). Contudo, adorava Paris! O Maestro António Vitorino de Almeida diz sempre “Viena é a minha cidade, mas a Áustria não é o meu país”. Sinto precisamente o mesmo, em relação a Paris e à França. A “Cité” era uma ilha dentro de Paris, onde os franceses estavam submersos na gigantesca vaga multinacional, dispersa em residências, pertença de não sei quantos países ou instituições, separadas por jardins e arvoredo, com estilos arquitetónicos, idades e confortos os mais diversos. A nossa, então propriedade da Gulbenkian, era das mais modernas, mas nem por isso das melhores. Os estúdios eram pequenos, com aproveitamento máximo de espaço, um divã encostado à parede, encaixado numa estante, e, no lado oposto, uma mesa de trabalho. Nas paredes afixei posters enormes, comprados em St Michel. Kennedys! John, em frente à secretária, Robert, à entrada, seguido de um terceiro de John e Bob, lado a lado. Há poucos anos, Ani Bettencourt, colega em Paris e, na década de noventa, na Assembleia da República, dizia-me: “Achava-te original, com os teus posters dos Kennedys, em vez do Che Guevara, como toda a gente” Aos estúdios faltava tudo o mais - casa de banho privativa, telefone, sistema de som, televisão…. Havia uma única televisão na sala de estar do rés-do-chão, por sinal, pouco frequentada. Eu era uma exceção, sempre atenta aos noticiários. Aí vi, muitas vezes, serem entrevistados os mediáticos Spínola, cujo monóculo encantava os franceses, e Amílcar Cabral (em entrevistas separadas, é óbvio), e, também, Neil Armstrong a caminhar sobre a lua, e Eddy Merckx a ganhar o “tour”. (Eddy era, com Brel e Hergé, um dos meus heróis belgas…). Quanto a música (eu não posso viver sem música!), tratei de comprar um gira-discos barato e funcional, dotado de uma tecla de repetição. Quando me deitava, premia a tecla, quantas vezes fosse preciso, até adormecer. Durante meses, só com dois discos, um de Barbara (Il pleuvait sur Brest, sans cesse, ce jour lá) e outro de Reggiani (Les loups sont entrés à Paris…). Se a música se ouvia no apartamento do lado a colega estaria farta da chuva de Brest e dos lobos de Paris, mas nunca se queixou… Para compensar a diminuta dimensão dos estúdios, havia uma sala de convívio em cada andar, cuja luz fechava, invariavelmente, às duas da manhã. Ora os nossos jogos de canasta, nos fins de semana, arrastavam-se pela madrugada adentro, porque a Eduarda Cruzeiro e eu, sempre em duos concorrentes, não queríamos terminar a sessão com o sabor da derrota, pelo que acabavam, sempre, à luz baça das velas… O grupo dos “católicos progressistas” liderado por Mário Lages, um dos fundadores da U Católica de Lisboa, integrava brilhantes engenheiros nucleares, António Marques de Carvalho e outros, que, num curso altamente seletivo, espantaram os franceses ao ficaram em 1º, 2º e 5º lugar, a Eduarda Cruzeiro, mulher de Letras, a cientista Adelaide Brandão, entre outros, matemáticos, economistas, sociólogos… Havia tempo para tudo, para o estudo e para o lazer, onde cabiam conversas sérias e lúdicas, idas aos restaurantes do “Quartier”, ao cinema, ao Bobino e ao Olympia, e jogos de basquete e futebol no estádio da “Cité” (ideia minha, evidentemente). Não sei o que mais terá contribuído - a impetuosidade no campo de jogo ou no jogo de palavras - para que os meus amigos me oferecessem o álbum de banda desenhada “Calamity Jane”. Não me achava merecedora de comparação, e, ainda por cima, não gosto de armas de fogo… O meu 2º ano de Paris, na Fundação Argentina, foi ainda mais feliz. A residência, apesar de antiga, tinha quartos espaçosos, casa de banho privativa, ambiente bem mais festivo, muita música, muito tango – coisa jamais vista na Casa de Portugal… Quase todos tocavam violão e, pelo menos, uma, muitíssimo bem: a filha do diretor, Mercedes Covian (Morita), Era estudante de psicologia, e uma genial melómana. Aos sábados, o salão enchia-se para um convívio e até eu, que danço o tango como o Presidente Obama, (desajeitadamente, mas com boa vontade), nunca ficava sentada. Todos contavam histórias incríveis do país amado, de Buenos Aires, onde, segundo eles, havia avenidas muito mais longas do que os Campos Elísios e parques maiores do que os londrinos. Achava-os encantadores, mas um pouco exagerados. Vivi na Argentina extraterritorial e nunca pensei visitar o país da geografia, o que veio a aconteceu precisamente dez anos depois E ao atravessar a famosa 9 de julho constatei que, afinal, eles e elas, ao falarem das suas avenidas, só pecavam por modéstia. E sentia saudades do meu quarto argentino de Paris, suficientemente espaçoso para convidar uma dezena de colegas a tomar um café à portuguesa, enquanto alguém tocava violão. O que nunca consegui foi juntar os meus amigos portugueses e sul-americanos. A “Cité” era formada por muitos círculos que não se intercetavam. Eu pertencia a vários e o mais divertido era o argentino – gente tão simpática, tão esfusiante! Talvez os meus amigos exorcizassem ali os demónios da ditadura. Até Morita e os pais, democratas conservadores se viram forçados ao exílio em São Paulo. Reencontrei os em 1985, numa associação portuguesa da Gran Buenos Aires, durante um espetáculo de fados de António Bernardino. Uma noite inesquecível, porque todos os espetáculos de “Berna” eram inesquecíveis e porque o simpático Embaixador Baptista Martins teve a ideia de convidar os Covian. Um outro pequeno e singular círculo parisiense era o da “Catho”, que funcionava em ambiente pré maio 68. Com o simples transpor de um portão de entrada, fazia uma espécie de viagem no tempo - professores e estudantes de fato e gravata (ou hábito clerical), e “curricula” à moda antiga. A pós-graduação da Faculdade de Direito do Instituto Católico, exigia a aprovação em três cursos, livremente escolhidos numa longa lista de especialidades. Acertei na escolha de “Sociologia do Direito” com o Prof. Monconduit, (o Herpin da “Catho”). Um pequeno grupo, muito assíduo. Quase todos padres -cinco polacos, outros tantos franceses, e eu, mulher laica. Fui classificada com um “trés bien”. Em “Filosofia do Direito”, havia mais do dobro de estudantes e avaliação tradicional (testes, exames escritos e orais). Mantive-me na linha da frente, com um “bien”. No 3º curso, “Sociologia e Política”, o titular era um padre “três à la mode”, que atraia uma multidão de alunos (ou “fieis”), e entregava a um assistente as “aulas práticas”. O meu relacionamento com o assistente, ao longo do ano, foi excelente, mas não o exame final com o grande sociólogo, cujo nome, “hélas”, esqueci. Discutimos, e eu passei sem louros e com dores de cabeça. Do penoso diálogo segui, diretamente, para um cinema do “Quartier”, que exibia filmes em sessão contínua, e vi “The graduate”, duas vezes. Só pela música encantatória de Simon e Garfunkel valia a pena e, na verdade, a comédia faz o meu género, no cinema como na literatura. Por essa altura, descobri PG Wodehouse, que se tornaria um dos meus escritores favoritos, graças ao ilustre etnólogo Mário Lages, poliglota (até arménio falava), melómano, “chef” e “gourmet”, condutor de alta velocidade, animador cultural, fotógrafo. Excelente fotógrafo, que ensinou a um grupo de entusiastas, (entre os quais, me conto), a arte de revelação de películas, num laboratório da “Cité” . Mais de meio século depois, as imagens que, sob a luz vermelha, mergulhei nas tinas e retirei, no tempo certo, (sob sua superintendência) mantêm perfeita nitidez. Em julho de 1970, depois de ter recebido visitas de minha mãe, da prima Docas e Gesine, amiga de Bingen, e de ter comprado um Peugeot 304, regressei à pátria, ao volante, com a mala cheia de tralha que fora acumulando ... Nos meus dois anos de Paris, perfizera 12 viagens entre Lisboa ou Porto e Paris – e nenhuma de avião… Mais imprevistos Estava de volta à Praça de Londres, onde nada parecia ter mudado, exceto na minha vida doméstica. Com a separação judicial de pessoas e bens decretada, e um marido a menos, tinha um novo Peugeot e uma nova morada, num andar arrendado na Avenida do Uruguai, em Benfica, uma governanta, a Maria Póvoas, (uma daquelas preciosas empregadas antigas, que tinha andado com a minha mãe ao colo) e uma cachorrinha Serra d’Aires, que comprei no Rossio, a um vendedor de jornais… A Endora, em homenagem à minha tia Glória, a quem o genro chamava assim, sendo espectador da série “Casei com uma feiticeira”. Endora roeu todo o mobiliário com arestas disponível, sem vestígio de danos próprios, e tornou-se uma cadela fenomenal, alegre e mansa, embora turbulenta. Um dia, em maio de 74, foi vista a galgar o corredor, com um cravo entre os dentes. Maria e eu ficámos sobressaltadas. Seria o meu, do desfile do 1º de maio, ou o da Maria Póvoas, trazido do túmulo do Padre Cruz, em Benfica. Foi averiguar e voltou sorridente: “Não foi o cravo do bondoso Padre Cruz, foi o cravo do 25 de abril!”. O meu insubstituível “souvenir” … Poucos meses depois do regresso de França, continuava mais focada nas matérias jurídicas do quotidiano do que em voos sociológicos. De repente, os estudos parisienses abriram-me outros horizontes profissionais: dar aulas na Universidade Católica, a convite de Álvaro Melo e Sousa, sociólogo doutorado por Madrid, que nem sequer conhecia. Era amigo de um amigo, o Carlos Branco, colega no Centro de Estudos. Convidado Carlos rejeitara, firmemente, propondo o meu nome sem nada me confidenciar. Uma dança de cadeiras, que eu não queria dançar! O insólito convite foi feito pelo telefone e eu disse, imediatamente, “não”. Do outro lado, a lindíssima voz masculina insistiu numa conversa face a face. Irrecusável, naturalmente, marcámos encontro para o dia seguinte, um sábado, às 15h00, no Café Londres. Carlos Branco não pode fazer as apresentações, estava fora, e, meio a sério, meio a gozar, sugeri a identificação pela flor na lapela, solução que não despertou entusiasmo. A minha segunda proposta foi que descrevêssemos a nossa aparência e indumentária. Ele, segundo ele, era “um senhor forte, moreno, de fato escuro”. Eu acentuei o meu cabelo comprido, liso e claro (um amigo cinéfilo diria à Veronica Lake”), os óculos retangulares e um saia e casaco castanho. Cheguei cedo, com “A Bola” debaixo do braço e vi um senhor que podia ser o Prof Melo e Sousa, mas tendo olhado na sua direção, sem que ele reagisse, sentei-me, pedi um café, embrenhei-me no jornal. No Londres durante a meia hora seguinte, não entrou ninguém, e eu chamei o empregado, pequeno e tímido, e pedi-lhe que fosse perguntar aquele senhor forte se ele é o Prof Melo e Sousa” O jovem, um “empata” hesitava, mas o visado, discreto observador da cena, logo se levantou, e veio à minha mesa: “É a Dr.ª Manuela Aguiar?” O impasse du para rir e eu descobri que, para um espírito científico, um “tweed” bege e castanho não é de considerar castanho… Como era previsível, não segurei a negativa, vi-me contratada e nunca me arrependi. Álvaro Melo e Sousa foi o meu melhor “patrão” académico, a turma estimulante, (para alguns docentes, que não para nós, difícil) e a leitura e análise ainda recentes de Merton, Talcott Parsons e outros favoritos de Nicolas Hérpin, revelaram-se utilíssimas. E a experiência, em si mesma, transformou-me de criatura tímida perante audiências em pessoa que falava fluentemente, sem papel. As aulas práticas foram uma forma de tirocínio para improvisos futuros na vida política. Tenho de agradecer àqueles jovens rebeldes, mas amistosos, da Católica de Lisboa.. Nunca me deixei incomodar por um ocasional bruaá. Atalhava, com um convite: “Falem mais alto! Partilhem a graça connosco”. E eles partilhavam. Eu compreendia os. Também não aprecio autoridades rígidas e deixei vir ao de cima duas facetas minhas, a lúdica e a pragmática. A fórmula entre aula tertúlia didática resultou em cheio. No fim do ano, o amável “patrão” partiu para outras paragens académicas, e eu, a breve prazo, faria o mesmo. O segundo convite, não foi menos inopinado, ocorreu durante umas jornadas sobre emprego, onde o insigne criminalista Professor, Eduardo Correia, marcava inexplicável presença. Depois do festivo abraço entre antigo professor e antiga aluna, veio uma súbita pergunta: “A Manuela quer vir dar aulas na Faculdade de Economia de Coimbra?”. Tremendo desacerto da minha parte, responder com uma pergunta estúpida: “Em Coimbra já há uma Faculdade de Economia?”. Resposta:“Há, há! Eu sou o Diretor”. Estava explicada a sua presença ali.. Só uma aceitação imediata podia atenuar a gafe. Sem hesitação, dei o meu “sim”! Passaria a dividir a semana entre Lisboa e Coimbra, e regressava à Sociologia, como assistente de Boaventura de Sousa Santos. Tomei posse na véspera de um dia histórico, a 24 de abril de 1974. Na semana seguinte, Eduardo Correia era Ministro da Educação do 1ª Governo Provisório, e o maio de 68 chegava, enfim, a Coimbra: abolição de exames e classificações, saneamentos não só de fascistas “latu sensu”, como dos docentes, que gostavam demais de “chumbar” estudantes, ambiente de grande efervescência…. Com o Doutor Boaventura, não havia limites à criatividade. Os seus assistentes podiam propor novos cursos, até extramuros, para o que poderiam utilizar as carrinhas do MFA, ao serviço da “dinamização cultural”. Escolhi duas temáticas – Sindicalismo e “Estudos Femininos”. Não sei se nos subúrbios da cidade nos teriam acolhido de braços abertos ou corrido à pedrada. Como o 1º ano foi substituído pelo 12º ano do Liceu, perdi a oportunidade de averiguar, assim como de me ter tornado a primeira docente de um curso sobre feminismo em Portugal. Anos depois, no MNE, quando me preveniam contra funcionários que tinham participado em “campanhas de mentalização” nas carrinhas do MFA, nunca vi mal nisso – só por acaso, eu própria não andei.. No recomeço do ano, em outubro de 74, mudei de Faculdade… Novo acaso me levara para a Faculdade de Direito: um encontro com o Professor Ferrer Correia, à sombra da velha torre. Ao saber que estava numa Faculdade ali ao lado, aliciou-me para a sua (e minha). Aceitei tão depressa, e num tom tão ligeiro, que o ilustre interlocutor estranhou. Ao contrário do Doutor Eduardo, não era adepto de decisões tão prontas: “Manuela, eu não estou a brincar! Já com maior compostura, respondi: “Eu também não, Senhor Doutor!”. Na verdade, estava encantada! O convite para a minha própria Faculdade vinha com uma década de atraso, mas chegava. Fui Assistente de dois grandes juristas, Rui Alarcão e Mota Pinto, e integrei uma linha de investigação de Direito de Família do Doutor Pereira Coelho. Em 1975/76 dei as teóricas de “Introdução ao Estudo de Direito” a salas cheias de "caloiros" muito bem-comportados, (ganhando aos pontos, no aspeto disciplinar, à agitada burguesia da Católica), e as práticas de Teoria Geral do Direito. Eram aulas facultativas e turmas pequenas, mas nunca me faltou assistência. Em dias de sol, convidava-os para o Bar de Farmácia, ao ar livre, ali bem perto. Primeiramente, dava a matéria, tirava dúvidas, depois conversávamos sobre questões jurídicas e outras. O Doutor Alarcão não fez reparo, os alunos gostavam. Igual sucesso tinham as aulas de sábado no Porto, para alunos voluntários. Eles estavam organizados numa cooperativa (CATEDIN), conseguiram cedência de salas na Faculdade de Letras, por cortesia do Diretor Óscar Lopes. Esta inovação era um expoente de voluntariado, o deles, o meu. Sei que o trabalho deve ter remuneração justa, e recebi do Estado aquilo a que fazia jus, mas sempre preferi trabalhar “pro bono” …. Não sei porquê, mas sei que tudo me corria melhor. Entre os colegas com quem fiz equipa em Coimbra não havia mulheres, mas eles eram ótimos colegas - o Proença, o Fernando Nogueira, o Cordeiro Tavares…. Sendo todos dez anos mais novos do que eu, ajudaram-me a rejuvenescer. Por exemplo, na música trocávamos discos dos Pink Floyd, Moody Blues, Alice Cooper… Os tempos politica ou socialmente conturbados são-me favoráveis - dei-me bem em Paris, no pós- Maio de 68, e em Coimbra, no pós 25 de Abril. Torna-se possível fazer coisas diferentes - como dar as tais aulas "extramuros" no Porto, ou no Bar de Farmácia. Os rapazes, note-se, eram de variados quadrantes ideológicos, que não o meu, e isso não obstava a um bom relacionamento, sem proselitismos. O mesmo poderei dizer do convívio em família, com o José Joaquim, ou Zé Quim, que residia no centro da cidade - era bibliotecário da Biblioteca da Universidade. Um primo direito de minha mãe, um Barbosa da estirpe revolucionária! Durante a ditadura tinha mesmo pertencido ao Partido Comunista e em 74/75 estava no MDP/CDE. Acolheu-me no grande apartamento, onde vivia com a Janice, americana de Kansas e leitora de inglês na Faculdade de Letras, e com os filhos dessa união, mais o Zé Severo do primeiro casamento (com uma das bonitas manas Biscaia da Figueira da Foz). Era um ambiente multicultural e politicamente muito heterogéneo. Cenário ideal, até porque gostava muito deles todos, dos adultos aos pequeninos. Na cidade, para além de uma ou outra manifestação (marcha de SUV’s, desavenças violentas entre estudantes esquerdistas), nada se passava, mas víamos a revolução na TV, em boa harmonia, e, por vezes, convergência. - Dominava, talvez, simplesmente o bom senso…. A Janice, é claro, achava que os portugueses estavam todos loucos… oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo Eu chegava do Porto de comboio, no domingo à noite, dava aulas à 2ª e 3ª feira e partia à tarde para Lisboa, o epicentro de confrontos. Aí participei na marcha do 1 de maio de 74, com um cravo cor de rosa na mão, entre bandeiras vermelhas, foices e martelos, dos quais tentava desalinhar-me, e, depois, na de 75, numa pequena vaga cor de laranja, dissolvida à pancadaria na Praça do Arieiro, (que agora se chama Sá Carneiro). Nesse tempo remoto. A Praça ainda se via cercada de pequenas hortas, separadas por muros baixos, para onde escaparam, muitas das bandeiras das setas, teimosamente erguidas. Esteticamente, uma cena perfeita para filmar, mas eu não levava gravadores… Não houve mortos nem feridos. A onda laranja reconstitui-se adiante, atravessou as “avenidas novas”, saudada das janelas por uma média burguesia surpreendida e entusiasmada, e terminou na Praça José Fontana, num minicomício improvisado, com Rui Machete a encerrar aquela pioneira marcha de rua. A maioria das outras marchas em que segui atrás de Mário Soares, fizeram percurso, mas foram menos chamativas. Lisboa oferecia, assim o espetáculo a que o resto do país assistia sentado no sofá, em frente ao pequeno ecrã. A minha itinerância fazia-me falhar a eventos grandiosos, como o da Alameda Afonso Henriques ou o do Terreiro do Paço (o do célebre “é só fumaça” de Pinheiro de Azevedo, em resposta a estrondo de bombas). Em marchas menos históricas, fiz quilómetros de ruas atrás do Dr. Soares, sentindo que a democracia avançava com a nossa passada e o eco dado a palavras de ordem, dos quais só evitava o duvidoso brado “partido socialista, partido marxista”. O Dr. Soares, naquela época, não se me afigurava muito marxista. Marxista talvez ainda fosse o primo Zé Quim, embora pelo aspeto, não parecesse, sempre elegantemente vestido, a fumar um glamoroso cachimbo. Um sentido de humor ácido fazia parte do seu “charme”. Janice dizia-me que se os americanos o conhecessem, perderiam o medo dos comunistas. De facto, o Zé era um homem encantador, filho de um Juiz Conselheiro do STJ, e de uma senhora de antiga linhagem, a tia avó Celestina, que apresentava notórias semelhanças físicas com Agustina Bessa Luís, contrastando com o pai da Janice, que fora operário e vivera a pobreza dos anos trinta americanos. Desta minha segunda vida em Coimbra levava boas recordações e o reatamento de relações próximas com amigos envolvidos no turbilhão político em que a democracia se desenhava, para além de uma dose reforçada de autoconfiança, ganha na regência de “Introdução ao Estudo do Direito”, que é uma espécie de trave mestra do curso. O ensino foi a ponte que atravessei para a política. Não é caso raro. Quando, nos anos noventa, a convite de Cavaco Silva, coordenei o vago coletivo que se designa por “Mulheres Sociais-democratas”, fiz, através de um “Observatório da desigualdade”, o levantamento do perfil profissional das militantes ativas do partido e constatei a predominância de professoras de vários graus de ensino.! Aquele convite vai para a longa lista de imprevistos do meu nomadismo político. De facto, eu estava, notoriamente, contra as posições oficiais do partido, por exemplo, em matéria de quotas, à época defendidas, apenas por outras raras exceções, como Leonor Beleza, Marcelo eJM Júdice. Organizei esse trabalho, ciente de que tudo o que fizesse teria poucas probabilidades de me sobreviver na tarefa, tratei de combinar o projeto partidário com a criação de ONG’s focadas nas questões da igualdade, fora da órbita partidária - . a Associação Ana de Castro Osório arrancou, sob a direção das deputadas Ana Bettencourt, do PS, e Margarida Silva Pereira, do PSD, a Associação das Mulheres Parlamentares com as deputadas Ana Paula Barros (PSD) e a Julieta Sampaio (PS) e a Associação Mulher Migrante (AMM), com a Dr.ª Rita Andrade Gomes, antiga Presidente do Instituto de Emigração e outras. Aderi a todas, sem lugares de direção. A Associação Ana de Castro Osório começou fulgurantemente, com a organização de um “Congresso Paritário” de deputados, que decorreu no Senado, com a presença do Presidente Soares, e a publicação de um livro de entrevistas: “As Mulheres e as suas causas” (de Maria Barroso a Maria de Lurdes Pintasilgo). A Associação das Mulheres Parlamentares reunia deputadas de todos os partidos –coisa inédita, então, no panorama europeu. Uma pena ter perdido dinâmica, e não por culpa do Presidente da Assembleia, que a via com bons olhos… Vida longa só teve a AMM, que está prestes a celebrar o 30º aniversário. No PREC, em vários ofícios Mais tarde ou mais cedo tinha de deixar Coimbra, porque na Faculdade de Direito, o doutoramento é obra para uma vida inteira. Incitamentos não me faltaram, incluindo de meu pai, mas eu já estava em outro comprimento de onda. Mantinha-me em funções de assessoria em gabinetes dos Ministros dos Assuntos Sociais, de Graça Moura a Rui Machete. Continuava a dar pareceres, colaborava em projetos de Lei – lembro-me, pelo menos de um, sobre transplantação de órgãos, em que colaborou o meu primo Mário, pioneiro dos transplantes no Porto, no Hospital de Santo António. Recordo-me, também, de ter presidido a um grupo de trabalho para a proteção das vítimas dos acidentes de trabalho (na prática, a cobertura pela segurança social, com pagamento imediato de pensões provisórias pelo Estado, como já acontecia no caso das doenças profissionais). Há muito eu defendia essa solução! A comissão a que presidi, integrava cinco membros: a Dr.ª Salomé Silva, o Sr. António Pernão, um funcionário do Ministério das Finanças, de quem fiquei amiga, e um representante do Grémio dos Seguradores. Ou seja, duas mulheres, a encabeçar a lista, e três homens. O despacho é de 10 de dezembro de 1974, e tínhamos 30 dias para apresentar relatório. Cumprimos, rigorosamente! Nunca tinha presidido a nada, funcionei em mesa redonda e os meus companheiros escolheram-me para relatora. No dia seguinte partilhei um longo documento, que não mereceu reparo – só espanto pela milagrosa rapidez com que o apresentei, dactilografado! Não podia dizer-lhes, que era um texto inédito guardado numa gaveta - um artigo, destinado a uma coletânea sobre o 40º ano da criação do INTP, em preparação quando o 25 de abril ocorreu. Tão atual antes como depois do 25 de abril…. Limitei-me a cortar, a traço grosso, as esparsas referências ao INTP, tornando-as ilegíveis. Os parceiros do lado, mostravam-se intrigados, com os espaços riscados, mas não comentaram. A unanimidade foi alcançada, de imediato. Unanimidade era o que não havia noutro projeto em que, por essa altura, participava com todo o entusiasmo: a linha de investigação de Direito de Família, na Faculdade de Direito. Acabar com a “capitis diminutio” da mulher, em particular da mulher casada, era da maior das prioridades. No conjunto das reformas, havia consenso, mas não por exemplo, no que respeita à adoção pela esposa dos apelidos dos maridos. A minha proposta de que não houvesse qualquer alteração do nome dos cônjuges, ou, em alternativa, a adoção de um nome de família, adotado pelo casal, foi recebida jocosamente! O Doutor Pereira Coelho e o Fernando Nogueira eram os mais divertidos, a fazerem composições dos seus apelidos com a das suas esposas… A minha ideia não fez vencimento, a mulher ficou com a tradicional possibilidade de manter o nome inalterável (como eu fizera e, antes de mim, mãe e muitas antepassadas) ou acrescentar o do marido, e o marido passou a poder fazer o mesmo. Quando ambos o fazem, fazem-no, em regra, com a ordem dos apelidos invertida. Eu tinha razão... A minha segunda e última despedida de Coimbra coincidiu com o final do 1º semestre, quando era já assistente do Doutor Mota Pinto em “Teoria Geral do Direito”, uma das minhas matérias preferidas. Continuaria a ter por colega Fernando Nogueira, com quem me entendia “às mil maravilhas”. No dia mais difícil das nossas vidas como membros de um júri de exames não hesitamos em tomar decisão de comum acordo. Tudo corria em perfeita normalidade, com um “chumbo” de vez em quando até uma tarde em que apanhámos os cábulas por junto, na letra Jota. Uma dezena de Josés, completamente a leste das matérias…. Argumentei que se passássemos aqueles rapazes, perdíamos a moral para chumbar fosse quem fosse. O Fernando concordou. Com muito boa vontade, resgatámos um, que, aqui e ali, mostrara saber umas coisas. E lá foram afixadas as reprovações em massa, vistosamente assinaladas a vermelho, com a pequena exceção a azul. O Prof Alarcão, “dono” do curso, profetizou, com genuína preocupação: “Manuela, vamos ser saneados! ” Procurei tranquiliza-lo. “Não vamos, não, Senhor Doutor! Aposto que não haverá protestos!”. Ganhei a aposta, não houve protestos… Nunca nada me correu tão bem como as tarefas docentes. O mais maçador eram os exames escritos. Páginas e páginas, repetitivas, que eu tinha de ler, escrupulosamente, com uma ou outra mais rara e divertida calinada…”Sed lex, dura lex”, …ou a melhor de todas: a enumeração, entre as fontes do Direito de “ tratados escritos e falados”. Quando referi esse achado, oo Doutor Alarcão, futuro Magnífico Reitor ele exclamou: “Perfeito! Os tratados falados somos nós, a Manuela e eu!” Se estava tudo tão bem, porque mudei de rumo? Simplesmente porque não resisti a um novo desafio, mais um súbito convite. Desta vez do Ministro Rui Machete, a quem o Provedor de Justiça pedira um especialista de Direito da Segurança Social para integrar, em regime de requisição, o Serviço do Provedor de Justiça - nome português do Ombudsman nórdico. O defensor da legalidade, da justiça, da ética, um poder que se impõe pela pura autoridade moral, uma figura, digamos, politicamente romântica… Não era assim que o 1º Provedor, o Coronel Costa Braz, encarava a missão. Na sua cuidosa escolha de assessores, entrevistava, em alongada conversa, os candidatos. Alertou para o carater rotineiro da maioria das tarefas. Mais ou menos assim: “Com o seu curriculum, receio que ache o trabalho aqui demasiado burocrático, menos interessante do que as atividades em que está envolvida”. Quanto a isso, tranquilizei-o - já tinha experiência de trabalho jurídico de gabinete e gostava. Agradava-me, sobretudo, participar no nascimento de uma instituição. O Coronel ter-me-á achado um pouco excêntrica, mas contratou-me. Pela minha parte, nunca me arrependi. Deixei a Faculdade com saudades antecipadas e bastante resistência por parte dos meus antigos professores, um dos quais, o Doutor Pereira Coelho, observou, pertinentemente: “A Manuela parece um pássaro, sempre a levantar voo”. Um traço essencial para o autorretrato! Na verdade, sentia-me muito bem a assessorar o Coronel Costa Braz, a colaborar de estruturação de um serviço sem sombra de tradição entre nós, e em tão esplêndido ambiente humano. Éramos poucos, todos amigos, todos empenhados na missão pioneira. Como no velho Centro de Estudo, nós, os assessores, éramos todos iguais, cada um com a seu setor de especialidade. Ninguém queria o lugar de ninguém, muito menos o do Provedor, ou dos coordenadores, magistrados de grande prestígio e impecável trato – o Juiz Sampaio da Nóvoa, o Juiz Vaz Serra Lima, o Juiz Guimarães (com as suas histórias divertidíssimas, que animavam a pausa café). Ainda por cima, em termos de estatuto e remuneração, estávamos no topo da escala da Administração Pública, com plena liberdade, plena responsabilidade. Quando o trabalho exigia especial concentração eu ficava em casa, com a Serra de Aires Endora por companhia, e a Maria Póvoas a trazer-me cafezinhos, de vez em quando. Adoro cães e gatos, desde que me conheço, embora, segundo minha mãe, não saiba disciplina-los. A Endora roeu o mobiliário da casa, metodicamente, ao menos tudo o que tinha esquinas… !976/78, dois anos, bem preenchidos por inúmeros pareceres jurídicos, mais bolsas de estudo (um longo estágio em diversos países da Europa para um estudo comparativo dos serviços de Ombudsman, com bolsa das Nações unidas), e muito cinema - a Provedoria ficava ao lado do Nimas, a dois passos do Monumental, perto do Apollo e de outros… A política, mais estabilizada, embora, ainda nos oferecia espetáculo e curiosos personagens... Eu até no Serviço, discutia política. Não de início, não com o Coronel Costa Braz, mas com o advento de um segundo Provedor, oriundo da sociedade civil, o Dr. José Magalhães Godinho, grande advogado, grande humanista De início, nenhum de nós gostou de perder um “capitão de abril” para um militante partidário, numa instituição que se quer imune a interferências de diretórios partidários. Foi preciso algum tempo para acreditarmos no Dr. Godinho, à maneira de São Tomé. Ele, sentindo a nossa polida frieza de trato, limitava-se a enviar-nos os processos, do seu gabinete do rés-do-chão, para os nossos, no 1º andar, com instruções numa letra ilegível, que só a secretária, a Maria da Luz, decifrava. Eu própria cheguei a dizer que, no 1º andar, continuávamos “en attendant Godinho” … Até que um dia ele nos visitou e foi o degelo! Mas eu era a única que discutia política com ele, face à “maioria silenciosa” dos meus cautos colegas. Uma verdadeira amizade foi cimentada nas mais turbulentas e contraditórias análises de situação politica e desportiva (ele era benfiquista…). Neste aspeto, sempre tive sorte com sucessivos “patrões” mas o meu predileto foi, sem dúvida, o Dr.Magalhães Godinho. Lembrava os lendários tios republicanos que não cheguei a conhecer bem, desapareceram prematuramente. O Dr. Godinho ocupou o seu lugar vazio. Era família - não aquela em que se nasce, mas a que, por vezes, raras vezes, se ganha no convívio. E como na família acontece, as divergências ideológicas, desportivas ou outras, são irrelevantes. Discutíamos, a toda a hora, política, futebol… Poeta repentista, retratou-me assim numa simples quadra: “Se a querem ver satisfeita E com um ar prazenteiro É darem vivas ao Porto E ao Dr. Sá Carneiro”. Todos os colegas foram da mesma forma mimoseados em versos – pena eu não os ter anotado. Nunca se vira convivialidade igual num serviço público. Havia o tempo de trabalhar, com entusiasmo, e o tempo de conviver, com alegria. Qualquer pequena efeméride era ocasião de festa – a data da inauguração do serviço, a da tomada de posse do Dr. Godinho, aniversários…. Combinava-se o que cada um trazia de casa, petiscos, doçaria, bebidas. E, depois das 18h00, encerrada a jornada laboral, começava a tertúlia… Do Provedor aos motoristas, todos à volta da metafórica mesa redonda! Era a hora em que o ele contava histórias prodigiosas, declamava, cantava, versejava. E nós, também - até peças de teatro representámos, com guião da nossa autoria… Uma vez, imitei o Vasco Gonçalves no discurso caótico em que deixou cair ao chão os papéis do seu longo e desconexo discurso… Em fins de 1978, entrava no meu 3º ano de Provedoria, acabava de chegar a Lisboa depois de seis semanas passadas em vários países da Europa, a estudar o funcionamento dos serviços de Ombudsman no Reino Unido, Suécia, Dinamarca e França, terminando em Genebra com a apresentação de conclusões ao competente departamento da ONU. Entreguei o relatório final, pronto e assinado, ao que me disseram, coisa inédita… Fui-o escrevendo o texto, como um diário, enquanto tudo estava bem fresco na memória. O que deu mais trabalho foi, depois, traduzi-lo do sucinto original inglês para a minha mais complexa língua. Por essa altura, o General Eanes, após mais uma queda de Executivo minoritário, tomou a decisão de nomear o 2º governo de iniciativa presidencial. Uma decisão que não tumultuou a vida do país, tanto quanto a minha… (revisto) Estes governos não partidários abriram um mercado político para independentes. O primeiro foi o de Nobre da Costa, que se situava ao centro, ou centro esquerda, e só não passou no parlamento, porque a metade direita do hemiciclo viu com desconfiança o elenco do Ministério do Trabalho, conotado com o PCP. O segundo era encabeçado por Mota Pinto, um dos fundadores e ideólogos do PPD, que deixara o partido após o congresso de Aveiro e fora, entretanto, Ministro de Mário Soares. O programa de IV Governo Constitucional passou incólume na Assembleia da República, e a equipa do Prof Mota Pinto lançou-se ao trabalho com um horizonte de cerca de um ano de duração, com termo nas eleições legislativas de outubro de 1979. Eram tempos de transição para a democracia plena, o poder estava em Belém, nas ruas e no Terreiro do Paço, em partes desiguais. Nas ruas, com a polémica sobre unicidade sindical/pluralidade, sindical, em que se digladiavam hostes da CGTP de um lado, e, do outro, os doutores Soares e Salgado Zenha, o PSD, .o CDS, e, obviamente, o IV Governo Constitucional. Um dos ministérios da frente de combate seria o do Trabalho, e foi precisamente aquele para o qual fui convidada. Para mim, o lugar era indesejado, mas não particularmente por isso. A ir para o Governo, antes esse pelouro, que me era familiar, do que outro qualquer… Quando me perguntam as razões que me trouxeram à política, não resisto a responder com a verdade nua e crua: “Foram as razões erradas: o facto de não ter militância de partido e de não querer ser política”. Bem vistas as coisas, foi, indiretamente, aquele convite do Doutor Eduardo Correio que, tendo-me levado para Coimbra, num primeiro tempo, me levou, num segundo tempo, ao Governo de Lisboa, pela mão de um outro professor de Coimbra, e, depois, por cerca de trinta anos, à vida pública. A minha combatividade verbal em defesa de causas como o feminismo estava, pelo visto, ainda bem lembrada pelo Doutor Mota Pinto e foi o argumento usado para me convencer: "Se recusar, não haverá mulheres no meu Governo". Estar do outro lado… Era-me, assim, dada a oportunidade de passar da conversa de café ou de corredor para o terreno de luta. E num cargo visto como eminentemente masculino…. irrecusável! Fui uma involuntária voluntária… A ousadia da designação valeu ao Professor Mota Pinto um rasgado elogio de Marcelo Rebelo de Sousa num editorial do Expresso, que guardo na minha pasta de recortes especiais. Até a nível europeu surpreendia a titularidade do cargo, supostamente pesado para ombros femininos. Em reuniões internacionais, pressupunham que era Secretária de Estado do “Trabalho Feminino” e, quando eu esclarecia que era mesmo Secretária de Estado do Trabalho de ambos os sexos, pasmavam: “Lida com os sindicatos?”. E eu, respondia, tranquilamente: “Sim, claro que sim”. A negociação sindical era o menos dos meus problemas – ninguém acreditava, mas era. Conhecia o ministério, estava familiarizada com as matérias e as pessoas, tinha o suporte de funcionários competentíssimos. O ideal: uma máquina eficiente e um governo tão determinado como eu própria. Mais complicado do que lidar com os sindicatos foi, ao menos de início, lidar com a “entourage” do Ministro. O Ministro Eusébio Marques de Carvalho vinha do setor privado, cheio de metas, objetivos, pressa, impaciência, e, é claro, preconceitos sobre a ineficiência da administração pública. Acabou ele convertido à eficiência real da que lhe coubera em sorte. E eu à sua maneira de trabalhar, num turbilhão de urgências. Rapidez foi sempre uma caraterística minha, era “sprinter” no atletismo e difícil de travar no futebol, “Speedy Manuela” … Na decisão, procurava travar os ímpetos com uma dose (variável) de prudência. Faceta que um amigo de infância uma vez sintetizava assim: “És uma ingénua de pé atrás”. Naquele meu retorno à Praça de Londres, em nova veste, foi isso que me permitiu avançar com cautelas, sobretudo na escolha de uma equipa muito experiente e capaz de me converter à política do “wait and see”, quando necessário. o Chefe de Gabinete era meu colega do Serviço do Provedor de Justiça, o Manuel Marcelino, grande especialista de Direito Administrativo. Peça chave! Quando assinava um documento, que passara pelo seu crivo, fazia-o com absoluta tranquilidade. Tive, naturalmente, preocupação com o equilíbrio de género: um chefe de gabinete, uma adjunta e um adjunto, ambos funcionários do Ministério, e duas secretárias, diplomadas pelo ISLA e com larga experiência. Três mulheres e dois homens. Se contasse com o motorista três/três, paridade total. Este era o único funcionário que não conhecia, herdei-o, e a primeira impressão não foi muito boa – com uma vénia exagerada, ao abrir-me a porta traseira do carro, e uma pergunta desastrada: “Como é que V. Ex. cia deseja ser tratada, por Senhor Secretário de Estado ou por Senhora Doutora?” Horrorizada com a ideia de ser tratada por “senhor”, optei, pelo “Doutora”. O homem era pequenino e redondo, de bochechas coradas, ou pelo embaraço, ou por outra coisa qualquer. Uns meses passados, consegui uma troca com a Secretária-Geral do Ministério, e ganhei um profissional expedito e simpático, o Senhor Caravana. O meu melhor motorista, numa lista longa, englobando governos e parlamento. Às vezes, com a pressa, passava o sinal amarelo a virar vermelho – o que os franceses chamam “bruler les rouges”. Tinha conduzido dirigentes do Ministério pela zona da reforma agrária durante o PREC, considerava-se o meu segurança e andava armado de pistola - suponho que com licença de porte de armas. Contava, sobre aventuras dessa época louca, saborosas histórias. Sempre bem-disposto! Eu detesto armas de fogo, tinha mais medo da pistola do que de um improvável assaltante, mas não fiz reparo, para não o desapontar. O que mais recordo dos primeiros dias da transição do mundo dos governados para o dos governantes? Não muito, mais sensações do que pormenores de conversas ou encontros. Entrei em funções, como se fosse para a sala de exame, angustiada e pessimista sobre a minha “performance”. A tomada de posse, no salão do Palácio da Ajuda fora particularmente enervante, desde os poucos passos dados até à mesa onde Presidente e Primeiro Ministro, como estátuas, de pé, nos olhavam, impassíveis, a leitura do compromisso de honra, à assinatura do livro de atas, e à leve vénia na direção das altas figuras do Estado.Sempre à espera de fazer asneira. E, para cúmulo dos cúmulos, sob a bateria de jornalistas e fotógrafos, os “flashes” incessantes… Uma ordália! Para o Palácio fui de boleia com o Dr. José Magalhães Godinho, e as minhas colegas Camila e Branca Amaral - preferência às mulheres, num carro com a lotação esgotada. Levava um fatinho de “tweed”, comprado de véspera, num saldo da Boutique Ayer, e um colar de pérolas de cultura. Quando, na segunda boleia para a Praça de Londres, já aliviada do suplício e em alegre companhia, comentava o ato solene, atirei o colar, descuidadamente, para dentro da carteira, e Camila bradou, repreendeu-me: “Cuidado! Isso não é maneira de tratar as pérolas!” Escandalizei-a, ainda mais, ao justificar-me: “Oh, não tem importância. São falsas”. Na tomada de posse seguinte, não estava menos enervada, porém, à volta do pescoço, as pérolas eram verdadeiras e, para tranquilidade de Camila, nem as retirei… Do resto desse dia inicial não guardo memória muito precisa. Estava de volta ao arranha-céus da Praça de Londres, no elitista 16ª andar, num enorme gabinete, entre o do Ministro Eusébio Marques de Carvalho, esse perfeito desconhecido, e o do titular da pasta do Emprego, João Gualberto Coentro Padrão, um caríssimo colega de curso, que seria um apoio constante naqueles meses de governação. Do encontro de trabalho a três, só sei que recebemos instruções para afastar os colaboradores do anterior Executivo naquele Ministério, que, por serem alegadamente comunistas, tinham provocado a queda do III Governo Constitucional. Nessa altura, o meu plantel ainda não estava completo, faltava-me uma secretária. Dias depois, falou-me o Secretário de Estado da Presidência, Doutor Xavier de Basto (meu antigo professor, e excelente professor), a recomendar, com os maiores elogios, precisamente uma das secretárias do gabinete tabu do meu antecessor. O Doutor Xavier de Basto punha as mãos no fogo por ela – insuspeita de ser uma sabotadora! Era funcionária pública dos quadros da Presidência do Conselho de Ministros, e de inteira confiança. Nomeei-a, de imediato. A minha outra Secretária, a Maria de Lurdes Escudeiro (Milú), juntou-se ao coro de elogios - tinham sido colegas do ISLA. De facto, a Ana (Pinto de Sousa) era despachada e muito capaz de pôr “os pontos nos is”, com respostas secas e definitivas. Dias depois, uma das vítimas dessa secura, não sei quem, foi denunciá-la ao Ministro, e ele chamou-me a capítulo. Em vão invoquei a recomendação vinda do SE da Presidência do Conselho. Marques de Carvalho exigia que a demitisse, ponto final. Contra a Ana militava somente a ocasional falta de paciência no trato. Para um despedimento, coisa pouca. Comuniquei ao Ministro que a Ana ficava! Reação dele: “O meu gabinete é de inteira confiança. O do Dr. João Padrão, também. Se houver alguma fuga de informação, é do seu gabinete”. Aceitei prontamente o desafio: “Muito bem, Sr. Ministro. Se houver fuga de informação é do meu gabinete”. Não houve… nem sequer sobre algumas discussões mais acesas, que não respeitavam a questões de fundo, mas a interferências com o meu pessoal, não por parte do Ministro (salvo no caso da Ana), mas do seu chefe de gabinete, que teimava em dar ordens ao meu. Cheguei a ameaçar demitir-me, mas não o fiz nunca - nesses imbróglios, intervinha, atempadamente, o João Padrão, grande mediador de conflitos. É evidente que nunca me queixei ao Primeiro Ministro, não ia maçá-lo com questões menores. Porém, findo o Governo, num almoço com ele e uma sua colega de curso e minha colega de Ministério, a Maria Luísa Pinto, achei por bem perguntar, mal entramos nos “hors d’oeuvres”: “Onde é que o Senhor Doutor foi desencantar aquele seu Ministro do Trabalho?” .O Doutor Mota Pinto mostrou-se surpreso: “Não sabia que se desentenderam. Ele disse-me sempre tão bem da Manuela!” Foi a minha vez de ficar atónita…. Murmurei “Nada de importância, realmente” e mudei o rumo da conversa para assuntos mais divertidos. Nesse momento, passei a admirar aquela Ministro que dizia o pior de frente e o melhor pelas costas. O contrário da maioria… Mota Pinto era, sempre, um brilhante conviva com um humor incisivo, mas benigno. De todos os políticos que conheci nenhum correspondia menos à imagem que os “media” davam dele. Apresentavam-no como o professor de Coimbra, rígido e conservador. Não era uma coisa nem outra. Todos os alunos dirão o mesmo. Tão justamente admirado e consensual em Coimbra, e não em Lisboa, sabe-se lá porquê… O seu Governo foi um grande Governo, corajoso e fazedor, o que não se esperaria dado o peso que nele tinham os académicos. Tantos que chegaram a comparar o seu Conselho de Ministros a um Senado universitário. Um Governo de viragem, com que se desfez o mito de que, em Portugal, não era possível enfrentar o poder da rua, a fação esquerdista do MFA e o PCP. Antes dele, julgava-se que o PS era a fronteira da governação possível. Com ele, ficou demonstrada a governabilidade do País num novo quadrante ideológico, e a AD pode ganhar com maioria absoluta, as eleições de outubro de 1979…Um Governo curto, mas decisivo na nossa caminhada democrática, por representar uma primeira alternância! Por isso, à despedida, disse ao Prof Mota Pinto que sentia imenso orgulho em ter participado na sua equipa governativa, embora tivesse sido, apenas “uma pequena peça do todo”. Já estávamos cá fora, em direção ao parque de estacionamento. Ele estacou, olhou-me, muito sério, e exclamou: “Como pode dizer isso? Foi Secretária de Estado do meu governo, num cargo de grande responsabilidade! Fomos todos colegas no mesmo Governo!” Eu não me via, de todo, como colega do Doutor Pinto, na sua qualidade de professor, ou nade político, mas relato o episódio, porque o retrata tão bem! Que outro Primeiro-Ministro, em Portugal, na Europa, no mundo, diria outro tanto a um membro júnior da sua equipa? Gosto de quem fale assim, e, pessoalmente de trabalhar nesse espírito. A primeira pessoa a quem, já no pelouro da Emigração, atribuí uma medalha de mérito foi ao motorista da Delegação do Porto, em vésperas de se aposentar. Ele merecia! Eu procurava ser justa, o que não significa que fosse fácil trabalhar comigo, sobretudo pela pressa que via em tudo, num constante encadeamento de ideias e iniciativas, consideradas urgentes. Não sei se já seria assim ou se me tornei assim por inspiração do Ministro Marques de Carvalho, tomado como “role model “! Com ele mantive, posteriormente, as melhores relações e acabei por reconhecer que me apoiou em tudo o que de mais interessante pude levar a efeito, que gozei de larga margem de manobra, quer as minhas iniciativas estivessem sua lista de prioridades excêntricas. O caso da jovem secretária suspeita de ser a “Mata-Hari da Praça de Londres” foi exceção. Para o poupar a mais ralações, nunca lhe demos conta do seu currículo completo: ela tinha pertencido ao gabinete do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves no verão quente de 1975 – apenas por ser a única funcionária do quadro da presidência perfeitamente bilingue, em inglês. Muitos nos ríamos no meu gabinete, nas pausas-café…. Estar rodeada de amigos, o João Padrão, o Manel Marcelino, a Fernanda, a Milú e a Ana, e, também, os diretores-gerais, sobretudo o Garcez Palha e o Fernandes Marques, ajudava-me a combater, eficazmente o “sress” inicial… A certa altura, comecei a perceber a equivalência de dar ou de receber um parecer para execução. A sentir-me bem na pele de “mulher de ação”, no meu domínio quadripartido pelas Direções-Gerais do Trabalho, das Relações Coletivas, da Higiene e Segurança e da Inspeção do Trabalho. Terei feito alguma diferença pelo facto de ser mulher. Não sei, Pelo facto de ser feminista, certamente (mas os homens também o podem ser…). Introduzi as temáticas de género na agenda, com fácil adesão sos quatro diretores-gerais. Em 1979, foram nomeadas as primeiras mulheres Inspetoras do Trabalho, a primeira mulher Chefe de Delegação do Ministério do Trabalho (no distrito de Aveiro), e foi criada a “Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego” (CITE). Por sorte, encontrei, no fundo de uma gaveta, um parecer da Comissão da Igualdade, no sentido de criar uma instância de acompanhamento das condições do trabalho feminino. Pensei no modelo sueco do “Ombudsman para a Igualdade”, ou Provedoria da Igualdade, que conhecia da minha ronda europeia pelos serviços do “ombudsman”, no ano anterior. Apressei-me a constituí um grupo de trabalho para preparar um anteprojeto de diploma, no prazo de 30 dias. Convidei, para presidir ao GT um dos meus colegas da Provedoria da Justiça, o mais jovem de todos nós, um brilhante jurista, e um aliado certo no campo da igualdade, que, umas décadas depois, seria Presidente do Tribunal Constitucional: o Dr. João Caupers. Com ele, o GT cumpriu todos os prazos, procedeu a audições dos parceiros sociais e apresentou o projeto da CITE, como instância tripartida (Governo, sindicatos, patronato), que a OIT viria a considerar um paradigma para toda a Europa Porque entreguei a presidência do GT a um homem? Justamente para passar a mensagem de que as questões da igualdade de género envolvem mulheres e homens, não são questões de gueto…. Fundamental era escolher a pessoa certa. O Ministro aceitou o diploma da CITE, sem objeção, e decidiu inclui-lo no chamado “pacote laboral”, ambiciosa revisão global da legislação do trabalho, elaborada no seu gabinete, que foi aprovada em Conselho de Ministros e enviada para promulgação ao Presidente da República, mas não promulgada. Logo depois, o Governo pediu a demissão, o Presidente dissolveu a Assembleia da República, nomeou novo Governo, chefiado por Maria de Lurdes Pintasilgo, e ela teve direito de veto na matéria…. (Thatcher acabava de ser eleita para o mesmo cargo - por pouco, Pintasilgo não foi a primeira mulher Primeira-Ministra na Europa). Lá se ia a CITE!... Não me conformei, pedi ao meu sucessor, o Dr. Ribeiro Cardoso, uma reunião durante a qual lhe disse que a CITE era, e não era, parte do rejeitado pacote legislativo. Tinha origem e tratamento autónomo, com ampla discussão e consenso, no campo sindical e patronal. Ele mostrou-se muito recetivo, mas como a decisão não era só dele, saí sem certezas. Foi assim com grande regozijo que vi o Decreto –Lei criador da CITE ser promulgado sem alteração de uma vírgula e com a assinatura de Mota Pinto! Só por isso, já valera a pena a minha primeira aventura governativa, mas ainda houve mais dois “conseguimentos”: a regionalização dos serviços do Trabalho na Madeira e nos Açores (que acabaria por acontecer com Sá Carneiro, um convicto regionalista), e o reconhecimento do direito à liberdade de emigrar dos jogadores de futebol (que, estou certa, não teria acontecido por muitos anos…). Na regionalização a minha parte foi aplanar o terreno para a sua rápida e pacífica implementação, com a transferência dos serviços para a órbita dos Governos das Regiões Autónomas, salvo a Inspeção de Trabalho, que mantinha o comando em Lisboa, para respeitar ditames da OIT. A exceção foi mal recebida na Madeira e a Secretaria Regional do Trabalho retaliou, tomando conta das instalações, da documentação (mapas de pessoal, etc.) e do carro que antes os serviços partilhavam. A Inspeção estava na rua, sem teto, sem viatura e sem papéis. O Diretor-Geral do Trabalho trouxe o assunto a despacho, em modo de cruzada anti autonomia. Habituado à mansa aquiescência dos governantes, ficou visivelmente perturbado pela minha discordância. Argumentei, mal disfarçando a irritação. “Quais são concretamente as suas soluções, Senhor Doutor? Invadir a ilha, com a Marinha e a Força Aérea para recuperar a casa, a documentação e o carro? Se não quisermos ir por aí, resta o diálogo. Eu trato disso! Chamei a Lisboa, para conversações, o Secretário Regional, Bazenga Marques. Veio de imediato, mas entrou no meu gabinete a olhar-me de lado. Abri o jogo, pus todas s cartas na mesa, mal nos sentámos: “Sei que tem havido alguns desentendimentos no processo de regionalização dos serviços. Vamos resolvê-los! Há o problema das instalações. São vossas! Só lhe peço que nos ajude a encontrar uma casa para a Inspeção. Eu sei que, no centro do Funchal, não é coisa fácil. Há, também, a questão dos mapas de pessoal e mais documentos. Vamos combinar o modo de os fazer circular de uns serviços para os outros. Quanto ao carro, eu consigo um outro para a Inspeção. O longo monólogo foi mudando o semblante do meu parceiro regional. Quando terminei, estava outro! Tomamos café, falámos de tudo e de mais alguma coisa. E posso dizer, sem exagerar, que ficamos amigos para o resto da vida, porque cumprimos o programa traçado, escrupulosamente. Nunca ia ao Funchal, sem o contactar, mesmo quando o meu pelouro já era outro. O detalhe mais urgente, do meu lado, era o automóvel, mas eu sabia que o Ministro não me deixaria ficar mal. Relatei-lhe o feliz curso das negociações madeirenses, com o pedido: “O Senhor Ministro tem na sua frota um Peugeot 304, pouco utilizado. Importa-se de o mandar para a Madeira?”. Não se importou nada. O Peugeot viajou para a Madeira num dos dias seguintes. Passadas poucas semanas, a equipa ministerial completa foi convidada a visitar a Região, e a assinar “in loco” os protocolos das transição de serviços. Tudo em ar de festa, com banquete de despedida no Reid’s, do qual eu costumava dizer: “Uma mesa cheia de homens. Era a única mulher. E de saias compridas só o Bispo do Funchal e eu”. Ficamos alojados no Savoy, o velho Savoy, com o seu “charme” antigo e uma praia privativa a que se chegava atravessando um bonito jardim. Para o mar profundo descia-se por uma escadinha. Os meus minutos livres foram passados aí. Outra das atrações do hotel era um bar discoteca com uma vista assombrosa sobre a cidade. O Ministro, o João Padrão, e o Luís Garcez Palha, um dos Diretores-Gerais, fomos gozar a vista, descontrair, conversar. Com um “senão”: pregaram uma grande partida. Pedi um cocktail de fruta, sem álcool, e alguém trocou a encomenda. Com o meu fraco olfato, julguei a bebida inofensiva, e repeti… Só quando me levantei senti o efeito (a discoteca a andar à roda). Segui em frente, em linha reta, sem olhar para o lado. No dia seguinte o Luís Garcez Palha comentava: “Só se notou que caminhava muito hirta. Demais! Como uma inglesa, habituada a beber”. O João Padrão nera o principal suspeito, até porque sorriu, quando o acusei no dia seguinte, mas, na verdade, eu só não duvidava da inocência do Ministro. N ausência de qualquer prévio contencioso, não houve deslocação semelhante aos Açores, e o protocolo foi assinado na Praça de Londres, com a presença do Ministro da República e do Secretário do Trabalho da Região, o Dr. Gentil Lagarto, com quem eu mantinha longos contactos telefónicos. Era-me fácil o relacionamento com as autonomias, que se continuaria nos domínios da emigração, sentindo-me, sempre, mais do lado de lá do que do lado de cá… Tive, em cima da secretária, até ao fim de mandato, uma pequena bandeira açoriana que me foi oferecida durante aquela cerimónia. Curiosamente, não foi pela resolução de grandes greves ou conflitos regionais, que cheguei a fazer manchetes de imprensa (para isso lá estava, e muito bem, o Ministro), mas pelo decurso de uma polémica emigração de futebolistas, como que prognosticando uma próxima transição de pelouro… Um caso inédito de transferência de quase meia equipa do SCP para os Tea men” de Boston. Alguns dos jogadores candidatos à emigração americana (Jordão, Keita e outros) não preenchiam os requisitos para saírem do país, segundo as regras da Portaria de Regulamentação de Trabalho (PRT) em vigor: idade mínima e um período de permanência no clube de, pelo menos, três anos. Esta última exigência, a meu ver, atentava contra a liberdade de emigrar, consagrada na Constituição. A assessora do Provedor de Justiça, que havia dentro da Secretária de Estado reagiu, sem hesitação. A imposição de um largo período obrigatório ao serviço de uma entidade patronal coartava esse direito. A polémica estava instalada entre SCP e SLB (preocupado com o súbito enriquecimento do rival). Não cedi a pressões, que foram muitas, autorizei as transferências e mandei rever a regulamentação à luz dos princípios jurídico-constitucionais. Em vão clamaram clubes rivais, comentadores, políticos (incluindo colegas do Governo). A minha decisão poria, segundo eles, em causa o futuro do futebol. Não acreditei no discurso catastrofista, e, mesmo que acreditasse, não recuava. Nada justifica o sacrifício de direitos fundamentais. O Ministro, impecável, não interferiu. Seria adepto do futebol? Não sei. Desportistas, era, daqueles que vão correr pelo asfalto às 6.h00 da manhã. Cruzava-se, em fato de treino, com operários que gritavam: “vai trabalhar, malandro!” Não sabiam que ali ia um incansável trabalhador. Nas reuniões restritas do 16º andar, sempre intensas, ao ritmo ministerial, gozávamos, ás vezes, uma pausa/café, e o Dr. Marques de Carvalho contava histórias deste género, com surpreendente humor. Eu gosto imenso de futebol e sou muito portista (como era o João Padrão), mas nunca me determinaria, em questões desta ordem, por paixão clubista. Contudo, só fui poupada a suspeições, porque o imbróglio não envolvia o FCP. Não me poupou, porém, ao mediatismo, embora tenha tentado reduzir a exposição. Dei apenas uma grande entrevista a um jornal. Fiz, assim, a minha estreia absoluta, na primeira página de “A Bola”, com desenvolvimento nas páginas seguintes. Em que medida ter olhado um caso do futebol pelo ângulo, que se impunha, o da emigração terá levado o Primeiro-Ministro do VI Governo a convidar-me para a respetiva pasta? Certo é que não fui, bem pelo contrário, o único membro do Governo Mota Pinto a ser mobilizado por Sá Carneiro. O IV Governo foi um viveiro de políticos futuros e, a meu ver, porque, embora sem obediência partidária, tinham quadrante ideológico (centro-esquerda, naquela conjuntura, acantonado à direita) e uma visão estratégica para o país. Não eram jovens tecnocratas, ainda que se estreassem como decisores políticos. No início da democracia, assim era, aprendia-se a governar, governando. Uns conseguiam melhor do que outros…. O Ministério do Trabalho esteve entre os de sinal mais, no seu braço de ferro com a Intersindical, em inúmeros conflitos laborais, num quotidiano trepidante. A firmeza vinha de cima, do Primeiro Ministro, que nos permitia avançar sem receios, sem recuos. Sorte minha!… Vem-me da infância o traço de ser disciplinada só quando aceito a bondade de comando, do projeto e, ali, aceitava. Pelo meio, redescobri-me. Estava convencida de que a minha vocação era a consultadoria, naquele Executivo aprendi dar andamento a processos, apoiada na consultadoria alheia. A superior sabedoria de colaboradores nunca me incomodava - quanto mais geniais, melhor! O colega João Padrão também foi fantástico, até a lidar com certos sindicatos me ajudou – caso dos estivadores de Leixões, numa das greves mais difíceis, suscitada pela mecanização de tarefas e consequente redundância de trabalhadores. Chegámos, ao fim de muitas e intermináveis jornadas, e rodadas de café, a um consenso salomónico, sem sangue derramado, salvando redundantes, na medida do possível…. Mais frustrante foi o meu repetido insucesso na luta contra a desigualdade salarial entre sexos, que, aliás, 25 anos passados, permanece. As tarefas femininas são canonicamente subavaliadas! Um exemplo, a apanha da azeitona: os homens varejavam, as mulheres apanhavam as azeitonas do chão. Eles ganhavam o dobro, para trabalho menos custoso… Eu protestava, mas sindicatos e patronato olhavam como uma utopista… Mais tarde, um jornalista de Toronto (Cruz Gomes) faria manchete, chamando-me uma “D Quixote de saias”. Talvez seja, porque os desaires me desanimam. Porém, ao contrário do cavaleiro, tenho, também outras formas de tenacidade, mais pragmáticas (o meu lado Sancho Pança?), que me levaram a visitar todas as delegações distritais do Ministério - nenhuma mão ficou por apertar, nenhuma voz sem ser ouvida. Anotei tudo, metodicamente… coisas incríveis, casas degradadas, sem aquecimento, à espera de obras, água escorrendo pelas paredes, funcionários que trabalhavam de sobretudo, frota automóvel a cair de podre, enormes despesas de manutenção e riscos de acidentes. No fim, entreguei ao Ministro um volumoso relatório, mas, como o governo caiu por essa altura, sob fogo cruzado das oposições parlamentares, ignoro o que lhe aconteceu. Situações lúdicas, também as houve. Nesta categoria se incluem as várias intervenções públicas, em que me afirmava como feminista, perante atónitas audiências, dada a (imerecida) aura conservadora do Governo. E uma tomada de posse de delegados do Ministério, que encheu, por completo, o meu (enorme) gabinete. Entre os delegados estava o Nuno Tavares, colega de Coimbra, que confidenciara ao amigo Garcez Palha a sua surpresa por Mota Pinto ter escolhido uma “comuna” para aquele pelouro (imerecida fama granjeada num tempo em não havia centro, os da esquerda moderada conotados com os comunistas, os da direita democrática com o salazarismo). Garcez Palha queria que, no preciso momento em que o Nuno assinava o auto de posse, eu lhe dissesse: “Oh Nuno, andas para aí a espalhar que eu sou comuna?”. Ele teria um sobressalto e, com um pouco de sorte, talvez até rasgasse os selos (assinava-se sobre vistosos selos colados em folha de papel azul). Deixei-o assinar, em paz, e só depois, quando todos confraternizávamos, lancei a terrível interrogação…. Atónito, ele negava: “Não, eu não andei a dizer isso!” Avivei-lhe a memória: “Disseste ao Garcez Palha!”. Com um encolher de ombros, justificou: “Sim, mas esse é um amigo!”. O dito privado foi assim publicitado, em ambiente geral de boa disposição. Eu gostava de conviver com os funcionários do Ministério, sentia-me entre pares, porque, na verdade, embora num departamento que vivera sempre a leste das cadeias de comando, tinha começado por ali o meu trajeto profissional. Apesar de ter feito amigos no Ministério que se seguiu, nunca haveria de sentir por lá nada de semelhante. Mas também me diverti bastante noutros ambientes, para mim, inteiramente novos, em colóquios internacionais, receções e jantares de gala, onde conheci a Dr.ª Maria Barroso (foi perfeita sintonia à primeira vista!) e o Dr. Mário Soares, com quem descobri que podia ter conversas divertidamente informais… Esplêndidos, também, os almoços de Secretários de Estado, onde se coordenavam ações governativas e se falava de tudo um pouco. O Secretário de Estado da Cultura era David Mourão Ferreira…está tudo dito!… E a Madeira… a visita à Madeira foi o momento alto. No continente os ânimos estavam ao rubro, acontecera nas vésperas a cisão do grupo parlamentar do PSD, quase metade abandonara a bancada, votando a favor do orçamento do Governo Mota Pinto. Jardim regressava de um grande comício, e, aproveitando a presença de três Governantes da República, proclamava, com ar provocatório, que o comício revelava a força e a vitalidade do partido! “Ainda bem!” respondi-lhe eu. E, a partir daí, o diálogo, fundamentalmente a dois, perante o olhar complacente do Dr. Eusébio e do João Padrão, e o pasmo dos demais participantes, virou para a crítica mordaz aos socialistas, onde também estávamos de total acordo. A equipa da Praça de Londres era fidelíssima a Mota Pinto, e, muito social-democrata, também. Tínhamos consciência de que preparávamos os caminhos do Governo que havia de nos suceder. O de Sá carneiro, é claro. PARTE II A viagem breve à desconhecida geografia do “Poder”, pouco e com bilhete de ida e volta, de facto, não o foi, porque reincidi, em mais governos, e, depois, na Assembleia da República, nas Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental. O inimaginável, uma ida sem regresso, entrando pela idade da reforma…. E, contudo, nem o primeiro ensaio, em 1978, nem a primeira recidiva, em 1980, faziam adivinhar semelhante desfecho. O VI Governo Constitucional, apesar de maioritário, tinha prazo de validade de 10 meses apenas, com uma imposição constitucional de novas eleições em outubro desse ano. A média de duração de Governos nos primeiros setes anos após a revolução era de uns quantos meses, e, por isso, integrar o respetivo elenco era sempre, previsivelmente, coisa passageira. Foi, porém, moroso o processo de formação do Governo da “Aliança Democrática” (AD), e, semana após semana, nas páginas dos jornais muito se especulava sobre os possíveis ministeriáveis. No Expresso, os nomes de vários antigos membros do Executivo de Mota Pinto eram notícia e eu vi-me selecionada como provável Ministra do Trabalho. Fui, assim, ministeriável, mas não Ministra… (Pintasilgo continuaria a ser, ainda por vários anos, a única mulher Ministra - para além ter sido, até hoje, a única Primeira-Ministra na democracia, e, mais latamente, na história do país. Neste circunstancialismo, não posso dizer que um telefonema do Primeiro Ministro, em inícios de janeiro de 1980, tivesse finalidade inesperada ou misteriosa – um convite para uma qualquer Secretaria de Estado era aposta segura… Desconhecia pessoalmente Sá Carneiro, mas conhecia bem o seu pensamento e a sua praxis. Era o meu” herói”, o meu Kennedy português… Um liberal no sentido norte-americano. Desde que se declarou, numa entrevista a Jaime Gama, "social-democrata à sueca", compreendi que ali estava o meu profeta da democracia (futura), segui-o na “Ala liberal”, nos discursos na Assembleia Nacional, admirei-o pela coragem de estar ali e de sair dali (assinalando, com esse gesto, o fim da “primavera” marcelista, li os seus “vistos” no Expresso, e, depois da Revolução, vi-me de acordo com cada uma das suas palavras e atitudes. “Democracia, já”! Sem tutelas militares, sem medo. Ninguém falava tão claro, ninguém era tão coerente a passar das palavras aos atos. Gostava tanto das suas qualidades, quanto dos defeitos que lhe apontavam, e eram, para mim, superiores qualidades…) No Centro de Estudos, falávamos muito de política, uns com os outros e eu, desde 1969, defendia “à outrance” as posições de Sá Carneiro contra tudo e todos. Durante o PREC, em Coimbra, a política estava ainda mais na agenda do dia e eu continuava incondicional de Sá Carneiro, embora fosse praticamente a única, entre os mestres e colegas de Faculdade - onde os do PPD, eram pouco Sácarneiristas… E, na Provedoria, a minha ruidosa apologia de um herói polémico despertava até a verve poética do Dr. Magalhães Godinho… Nesse dia frio e cinzento de janeiro, pelo telefone, Sá Carneiro, foi sintético e seco, a agendar uma audiência para as 5.00 horas da tarde, o que me levou a partir para a reunião inquieta, para além de mal penteada e mal vestida – o meu normal. Receava, sobretudo, que ele fosse pessoa distante e pouco simpática, e, com isso arrefecesse o meu entusiasmo ideológico, porque tenho muita dificuldade de suportar pessoas antipáticas, mesmo estando em tudo o mais de acordo com elas (e,”mutatis mutandis”, tem-me sido fácil gostar de gente amável, por mais que divirja do seu pensamento… ) Sá Carneiro foi pontualíssimo – uma primeira boa impressão, porque pontualidade é coisa que eu cultivo, militantemente - Não cheguei a sentar-me na sala de espera, e, mal transpus a porta do gabinete, todas as minhas dúvidas de dissiparam com o seu sorriso luminoso, que começava nos olhos muitos claros! E, nos encontros que se seguiram, as minhas palavras, mesmo as mais heterodoxas, foram, invariavelmente, recebidas, com esse olhar sorridente. Azul, magnético, mobilizador… Estou convencida que a minha fama me precedia – era, desde 1969, ”Sacarneirista” assumida, que secundava, abertamente, as suas posições democráticas , nos tempos da Praça de Londres, da Rua 5 de Outubro, ou dos cafés de Coimbra e de Espinho, e Sá Carneiro terá tido eco dessa nota extracurricular. A sua extrema cordialidade o indiciava… Quando a ele me dirigi pelo seu título oficial, atalhou prontamente: "Não me chame Primeiro Ministro". Ao que eu respondi: "Desculpe, mas é como o vou chamar, porque me dá imensa satisfação que seja Primeiro-Ministro, e esperei anos para o poder tratar assim". Tratamento cerimonioso aparte, a conversa decorreu na maior informalidade, como entre amigos de longa data. Sei que havia quem ficasse inibido na sua presença, mas eu, pelo visto, sentia-me à vontade. O Doutor Sá Carneiro, em pessoa, era, uma esplêndida surpresa. A segunda surpresa da tarde veio do pelouro que me propôs: a emigração, num Ministério onde nunca tinha sequer entrado, o dos Negócios Estrangeiros! Seis anos depois da Revolução, as mulheres continuavam a ser uma pequena maioria no Parlamento e uma raridade nos sucessivos Executivos. E, por isso, qualquer uma que aceitasse um cargo se tornava pioneira! Eu já o fora na Secretaria de Estado do Trabalho, agora seria a primeira mulher no MNE, em 250 anos de história. E, como (impulsivamente) me filiei no PPD/PSD, a primeira militante deste partido num Governo da República. Em 1980, a AD apostara apenas em três mulheres Secretárias de Estado, uma de cada um dos partidos, Margarida Borges de Carvalho pelo PPM, Teresa Costa Macedo pelo CDS e eu pelo PSD (num impulso, filiei-me por essa altura). Digamos, a "quota mínima", tripartida... Naquela tarde, porém, nada disso estava no meu pensamento, sob a perspetiva aterradora de me ver numa pasta, que obrigava a constante exposição mediática, a falar em público, onde tinha a certeza de ficar paralisada e, o que, para mim, não era de somenos, a andar de avião, à volta do mundo, sem parança… Sá Carneiro introduziu o tema com duas perguntas inopinadas – se eu falava francês e inglês e como me dava com diplomatas. A primeira respondi pela positiva, à segunda com a informação de que não conhecia nenhum de perto. (no que me enganava, até colegas de curso reencontraria nos corredores do Palácio das Necessidades). Eram preliminares para o indesejável convite: - O que lhe parece ser Secretária de Estado da Emigração? - Eu no ministério dos Negócios Estrangeiros? Ando sempre mal penteada e malvestida! Além disso, é muito difícil… nem pensar! Da primeira parte da argumentação dava ali prova visível, mas não o suficiente para dissuadir o Primeiro-Ministro…. Ateve-se à final. - Difícil? Como pode dizer isso, depois de ter estado na Secretaria de Estado do Trabalho? - Oh, não…isso foi fácil. Estava dentro dos assuntos, despachava os processos, rapidamente, ia para casa com a secretária livre de papéis… Sá Carneiro sorria abertamente, como se eu estive apenas desvalorizar grandes feitos, com uma excessiva humildade, que fica sempre bem. E, contudo, “Il y avait du vrai”… Neste tom jocoso, de parte a parte, fluía a conversa, até que o Dr. Sá Carneiro achou que estava na hora de chamar ao gabinete, o Doutor Freitas do Amaral. Mais um imprevisto. O que fazer, perante tão diferente personagem? É claro que não podia mudar de tom, mesmo com o risco de espantar o eventual futuro chefe, mas ele entrou na descontração da conversa, como se fosse normalíssimo. A certa altura, até me disse sorridentíssimo, que, para eu não estranhar o novo posto, já tinha colocado na minha agenda uma greve do pessoal consular para me entreter…. À saída, despedi-me com uma frase bombástica: - Senhor Primeiro Ministro, eu por si faço tudo – vou com um escadote colar os seus retratos na parede, vou, de balde e pincéis, pintar AD nas ruas. Tudo, menos ser Secretária de Estado da Emigração! Tinha de dar resposta na manha seguinte. Todos os amigos com quem falei nesse fim de dia – Mota Pinto, Rui Machete, um antigo titular do cargo, a família… - me encorajaram a aceitar. E, na manhã seguinte, no último e decisivo telefonema, Sá Carneiro, obviamente, também. Eu prevenia que ia ser um fracasso, ele tranquilizava-me, o mais possível, recomendado que não me preocupasse. Assumia a total responsabilidade pela escolha. Despreocupada, não posso dizer que me sentia, mas o incondicional apoio ajudou. O Primeiro Ministro, mesmo se pensou que eu exagerava, com espalhafato, os receios e os riscos, não deixou de me acompanhar no quotidiano, até perceber que já encarava os obstáculos com a necessária serenidade… Até aí, durante umas semanas, telefonava, a dar sugestões, a elogiar uma decisão de que tinha conhecimento, e como ligava pela linha direta e, às vezes, se enganava no número, era atendido pelas secretárias, que regozijavam, emocionadíssima! A mais jovem, que era da próxima da UEDS, acabou votando AD. De facto, um Primeiro Ministro, informalmente, do outro lado da linha, era uma singularidade e um Governo a trabalhar tão eficientemente, também… Os meus receios, ao menos em toda a sua primordial extensão, revelaram-se, na verdade, algo excessivos. Um Governo eficaz, um Primeiro Ministro tão esplêndido e solidário, um MNE próximo, amigo, cultíssimo, sereníssimo, facilitaram a missão, subjetivamente, vista como impossível…. Foi o melhor ano da minha vida, até ser abruptamente interrompido a 4 de dezembro. Também porque a missão, em si mesma, era ideal – a pontos de eu não ter querido, em várias vestes, jamais pôr-lhe fim… A emigração, ou melhor dizendo, a Diáspora Portuguesa. (porque falo não só do movimento, mas das estruturas em que, no estrangeiro, se gerou e se transmite, uma vida própria, coletiva, imersa na nossa cultura)) foi uma esplêndida descoberta - andava de comunidade distante em comunidade distante, sempre e reencontrar-me em Portugal Estava confrontada com o fenómeno, antes por mim insuspeitado, do que chamava a extraterritorialidade da nação, que mais do que á presença individual dos emigrantes, se deve a um poderoso associativismo, do qual emergiram as comunidades portuguesas, enquanto comunidades orgânicas, coesas e resistentes ao passar das gerações. Um admirável mundo português embora um mundo de homens. Eu era a primeira mulher que lhes aparecia, como face feminina Pátria…. Esperava o pior, mas, afinal, fui bem-recebida, com naturalidade e simpatia. Não fiz unanimidade, é claro, mas tive sempre a impressão de que os afrontamentos havidos foram, regra geral, devidos a posicionamentos políticos, não a questões de género. Mesmo nas hostes ideologicamente adversárias encontrei, quase sempre, boa vontade para trabalho conjunto, até no, (por vezes), agitado Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), que me coube organizar e presidir, desde1980/81. A tarefa de preparar a legislação do CCP foi-me entregue na primeira das reuniões com o MNE Freitas do Amaral. Era a prioridade das prioridades e, durante todo o tempo que me mantive naquelas funções, com mais três Ministros, guardou esse estatuto. Por duas razões que se entrelaçavam. Antes de mais, porque era a grande assembleia com que dava voz á emigração – a meu ver, com ela o 25 de Abril chegava, finalmente, ao Portugal extra território – e, para além disso, porque era o órgão desenhado para coordenar ações no terreno com o movimento associativo. Uma parceria Estado/Sociedade civil, com que se abria um novo ciclo de políticas para as comunidades portuguesas, respeitadas na sua autonomia e não apenas para a emigração, olhada com o paternalismo tradicional, que alternava com o não menos tradicional descaso do Estado. Ao longo de quase sete anos e quatro Governos, a prioridade não se alterou nunca, nem a linha estratégica e a visão civilista. “Libertar a sociedade civil” era o mote do PSD de Sá Carneiro, e de toda a AD, que, em 80, se revelou bem mais unida e harmónica do que o esperado, ainda que depois, perdido o líder indiscutível, se tenha desagregado a alta velocidade. Cinquenta anos depois, o slogan libertário parece caído em desuso, embora não porque os fenómenos de dependência de que então se falava estejam hoje definitivamente ultrapassados. Em todo o caso, nas comunidades do estrangeiro, o problema era o oposto, os emigrantes sempre se substituíram aos Governos ausentes, apoiando-se uns aos outros, com a criação de impressionante rede de instituições voltadas para a entreajuda social e a preservação da identidade e das tradições culturais. Ou seja, pura sociedade civil sem Estado. Mas o certo é que o tradicional abandono das comunidades se tornara intolerável face a uma Constituição que restituía aos emigrados os direitos de participação política, de cidadania, de inclusão nos programas de ação governativa no campo cultural e social, com a defesa dos seus interesses em terra estrangeira, e com a facilitação do regresso voluntário. Como é sabido, a aplicação dos grandes princípios e das leis, na letra tão perfeita, é, de facto, em tantos e tantos casos, defeituosa ou irregular, avançando, quando muito, por pequenos passos. De gritante desigualdade se podem queixar ainda agora, geralmente, os expatriados, e mais nuns destinos do que em outros. As primeiras medidas de apoio social e acesso ao ensino da língua quase se limitavam à Europa, à França e à Alemanha, maioritariamente. Eis um desequilíbrio, que eu podia atacar, ao menos no respeitante ao meu próprio enfoque e atuação de proximidade, a todas as iniciativas dependentes do orçamento da Secretaria de Estado, modesto, porém, apesar de ter mais do que duplicado em 80. O CCP, como fórum eleito pelas associações, fortalecido pela dimensão do seu poder, seria o instrumento eficaz para assegurar a equidade da representação dos diversos continentes e regiões, e da dinâmica assim gerada, do encontro das partes viria o resto. E veio, mas devagar, não obstante aquele Governo andar depressa e bem. O Decreto-lei que criou o Conselho foi concluído no meu gabinete, por um grupo de experientes peritos, em tempo recorde, pouco mais de um mês – o que é dizer muito, tratando-se de um órgão representativo e consultivo inovador, sem precedente ou modelo a seguir, no nosso sistema. Em Direito comparado, o único paradigma era o francês, o “Conseil Supérieur des Français de l’ Étranger”, em que nos inspiramos, sem seguidismo. Adotamos o mesmo enquadramento no Ministério dos Negócios Estrangeiros, a ideia de um colégio eleitoral associativo e do funcionamento em plenário e por comissões temáticas. Todavia, o CCP singularizou-se no confronto com o seu antecessor francês e com os posteriores Conselhos espanhol, italiano e grego, porque se autoconstruiu por dentro, com um grau de autonomia que o tornou o mais “civilista” de todos. Todavia, o diploma que o criava foi retido por largos meses no Palácio de Belém (o que então se chamava o “veto de bolso” presidencial) e promulgado nas vésperas das eleições legislativas de outubro, seguidas de eleições para a Presidência, em dezembro, o que inviabilizou a sua convocatória. Tudo isto decorria do clima de aberto conflito entre órgãos da soberania, Presidente e Conselho da Revolução, de um lado, e, do outro, o Governo da AD, sustentado pela primeira maioria parlamentar da jovem democracia. Um conflito especialmente centrado no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na Política Externa e na problemática das Comunidades Portuguesas, antes muito influenciadas por Belém… Em tom de chalaça, dizia-se nos corredores do Palácio das Necessidades que Melo Antunes era o “MNE do Senhor Presidente” e Vítor Alves o Ministro da Emigração do Senhor Presidente” Eu não procurava sarilhos, era absolutamente involuntária nos Governos onde teimavam em me meter, mas estreava-me sempre na linha da frente das refregas políticas da conjuntura. Em 78/79, na guerra da unicidade sindical, e, em 80/81 no preciso sítio do embate frontal entre Governo e Conselho da Revolução. A descoberta simultânea da Diáspora pela Presidência e pela Executivo redundou na dupla tentativa de implementar mecanismos democráticos de representação. O Governo Pintasilgo, na sua 25ª hora, lançara-se na organização de um Congresso das Comunidades, sob Presidência do Conselheiro da Revolução Vítor Alves, o Governo da AD erigia em promessa maior do seu programa, nesta área, a criação do Conselho das Comunidades Portuguesas, sob a presidência do Secretário de Estado da Emigração. Adivinha-se o choque das presidências! Num primeiro tempo, ambas as realizações foram, impiedosamente, travadas pelos contendores – o Governo pediu a ratificação do Decreto-Lei de Pintasilgo na AR e, com o seu voto maioritário, adiou o Congresso para 81, (atraindo-o para a sua órbita), o PR respondeu, certeiramente, “congelando” a legislação da AD, que, por isso, teve também de adiar o “seu” CCP para o ano seguinte… Um “braço de ferro” que prosseguiu no interior das comunidades que nunca se viram tão visitadas – onde quer que eu fosse já lá tinha estado, ou ia brevemente estar, Vítor Alves. E, de mim, poderia ele dizer o mesmo… Nenhum de nós desistiria. Aparentemente, a minha missão tornava-se mais espinhosa, face a um adversário de peso, com muito mais alto estatuto, para além da experiência, pessoal, militar e política, e do seu reconhecido “charme”. Apesar disso e da consequente agudização de tensões políticas, que, sobretudo na Europa, marcaram este tempo e o nascimento do CCP, não era esse cenário o que mais me preocupava. Eu não sou de começar uma guerra, mas, vendo-me nela, faço-a por gosto! E, apesar de ter estado, convictamente, com o chamado “Grupo dos Nove” e o General Eanes, na sua 1ª eleição, achava que chegara a hora de os militares regressarem a quartéis e deixarem a democracia viver plenamente, sem tutelas anquilosantes. “Democracia, já!” queria Sá Carneiro, e eu, com ele… Tenho até pena de nunca me ter então encontrado, frente a frente, com o Coronel Vítor e pergunto-me o que teria mudado. Questão pertinente, porque o meu primeiro encontro com o Presidente Eanes mudou, para sempre, a minha perceção dele. Que nova sensação descobrir a sua esplêndida frontalidade, que havia de o tornar, por isso e por tudo o mais que deu à democracia, um dos meus heróis! Na verdade, uma das melhores coisas que a passagem pela política me deu foi conhecer de perto praticamente todos os grandes protagonistas destes 50 anos de democracia portuguesa, e, em muitos casos, ter alterado o meu sentir, se não sobre os acontecimentos, ao menos sobre as pessoas. Eanes foi, com certeza, o exemplo mais improvável, mas também Freitas do Amaral, Mário Soares, Jorge Sampaio, Firmino Miguel, o Marechal Spínola. E, lá por fora, surpresas absolutas, pela simpatia, como Jacques Chirac ou Hugo Chavez… “Fringe beneficts” … Na verdade, fundamental foi a autodescoberta, a corrida pela minha estrada de Damasco. Um a um, medos e dúvidas iam caindo- e depressa! Não resistiram ao fim da primeira visita à Diáspora, às duas costas dos EUA e ao leste. Canadá. As Américas A Europa era o destino recorrente dos meus antecessores, com algumas exceções, é certo. Havia que dar um sinal de mudança, começar pelas comunidades relativamente mais esquecidas. Nos dois primeiros meses, deixei-me ficar no gabinete, a estudar dossiers, a preparar diplomas legislativos, com o CCP à cabeça, mais o programa e orçamento anual. No terceiro mês, parti de Lisboa para NY, com uma alucinante agenda nas duas costas dos EUA e no leste do Canadá- -vinte e um dias, mais de vinte aterragens em outras tantas cidades, mais de uma trintena de comunidades e muito mais de uma centena de discursos, à média de seis ou sete por dia. Ao mesmo ritmo acelerado, perdia os temores de voar, de falar para câmaras, microfones e audiências. Vinte dias, mais de vinte aterragens em outras tantas cidades, mais de uma trintena de comunidades e muito mais de uma centena de discursos, à média quotidiana de seis ou sete. Regressei definitivamente convertida à Diáspora, e com a sensação de não ter saído do país… Andara apenas num outro Portugal, vislumbrando, entre compromissos agendados, cidades estrangeiras, vizinhança improvável das aldeias portuguesas onde convivia, de manhã à noite, nas nossas escolas, igrejas, restaurantes, cafés, e salões de convívio, em intermináveis sessões de esclarecimento e conferências de imprensa, ou em festas, almoços de trabalho, jantaradas onde nunca faltava o bacalhau, o Mateus rosé, a doçaria tradicional e o folclore. Estreei-me em Newark, Nj, a disfarçar bravamente a timidez, numa agitada sessão de apresentação. Pareceu-me agitada, e, até mais, um pouco agreste. Talvez não, talvez tivesse apenas um reflexo da minha própria estranheza… A partir daí, em direção ao norte, a temperatura baixava, a neve tombava sobre a Nova Inglaterra (era março e ainda nevava!…), mas o calor humano parecia subir em cada nova paragem: New Bedford, Fall River (almoço com a mítica Senadora Fonseca); Providence (visita organizada pela primeira diplomata que encontrava no caminho, Anabela Cardoso, que muito me impressionou – almoço com o Governador do Estado, o Senador Castro, luso americano, o Maestro Cassuto (numa espécie de exílio?); Boston, as universidades de Harvard e Brown, conversa com o famoso Prof Rodgers; Connecticut, os primeiros encontros, em Waterbury e Danbury, com os que viriam a ser grandes amigos, o Cônsul Honorário Adriano Seabra da Veiga e a mulher, Rita, o Padre José Alves Cachadinha, futuro líder do CCP, futuro Monsenhor. Quando, ao fim de uma semana de peregrinação, cheguei a Toronto, já era a outra (a que gostava daquela nova vida), já tudo me parecia familiar, antegozava cada nova etapa… Recordo tudo mais distintamente: a Casa de Trás-os-Montes, horas de uma sessão pública, a responder a intermináveis perguntas, até que o Grupo de Pauliteiros de Miranda/Toronto entrou em cena e eu me calei. A meu lado, estoicamente, o Embaixador Gois Figueira… Depois, passei pela Rua Augusta com as suas casas pintadas de vermelho e verde, a cumprimentar os donos dos pequenos comércios, (portugueses, porta sim, porta sim), visitei o “First Portugueses Canadian Club”, que era realmente a nossa primeira associação na cidade, jornais, estúdio de rádio e TV, fiz amizades, que iriam durar, vitaliciamente, jornalistas de elite, como a Málice Ribeiro, o Cruz Gomes, o Alexandre Franco… Havia ainda o Alvarez, um galego completamente adotado pela comunidade portuguesa, com o seu grupo em ascensão de imprensa, rádio e televisão, não esquecendo contactos com o Mayor, e o Primeiro Ministro do Ontário… Depois Otava, o Ministro Axworthy e mais três, um almoço de trabalho com eles, seguido de reunião com uma dezena de Diretores-gerais. E, por fim, Montreal, encontro com outro mito vivo, o Maire Drapeau, que foi gentilíssimo e me levou a ver as vistas da cidade antiga, na varanda onde De Gaulle lançou o seu grito: “Vive le Québec Libre!”. O périplo terminaria no “far-west”, na Califórnia. Ao contrário do que acontece no Canadá, onde há muitas pequenas comunidades espalhadas no interior, nos EUA, os nossos emigrantes são gente do litoral (uma emigração iniciada no ciclo de pesca à baleia, sabe-se, mas é curioso que, várias gerações depois, ainda se encontrem, maioritariamente, nas duas costas, a do Atlântico e a do Pacífico). Levava na mala discursos escritos, mas já não os lia, nem mesmo nas sessões mais desafiantes das Universidades de Stanford e Berkeley. Fiz a incursão no sentido Sul-Norte, começando por San Diego, onde a organizadora do programa de festas foi a fenomenal picoense (ou picarota, como ela preferia) Mary Giglitto, a mulher que renacionalizou o navegador português João Rodrigues Cabrilho, celebrado no Festival a que dá nome, prosseguindo por Los Angeles (onde pontificavam um Cônsul que mais parecia um Embaixador sénior, Edmundo Macedo, e dois académicos muito prestigiados, Ramiro Dutra (com sua mulher, Natália, que esteve na origem do 1º encontro mundial de mulheres emigrantes) e Mayonne Dias. A LA portuguesa não fica, obviamente, em Beverly Hill, mas nos subúrbios de Chino e Artesia, com magníficos clubes comunitários, cheios de movimento e de tradição – música, em coreto, e até touradas (permitidas, com adaptações – nada de maltratar o touro. Assim, sim…). A norte, também não é em São Francisco que se concentra o nosso povo. Tirando o centro da grande cidade, estão por todo o lado, San José, Santa Clara, Hayward., Berkeley, Oackland.... Oackland foi onde nasceu, em fins do século XIX, o movimento fraternalista feminino, com a Sociedade Fraternal Rainha Santa Isabel e a União Portuguesa Protetora do Estado da Califórnia, que têm em toda a Califórnia uma história fantástica - chegaram a atingir 10.000 a 15.000 associadas e um cash-flow de negócios de milhões e milhões de dólares. Na nossa emigração universal, não houve nem há nada de semelhante. Fundiram-se, entretanto, com grandes companhias seguradoras, mas em 80, ainda estavam em grande plano…Berta Madeira era a presidente das “Rainhas”. Uma madeirense meio açoriana, (a mais de 90%), e uma das tais raríssimas mulheres que já sobressaía no dirigismo hegemonicamente masculino e uma herdeira das heroicas pioneiras de Oackland Durante o circuito na área de San Francisco, reservamos um dia para ir e vir, num pequeno avião, a Tulare, no vale de San Joaquin, onde milionários do setor leiteiro e “cow-boys” estão, lado a lado, nas recordações de uma receção especialmente calorosa. Este setor é dominado por portugueses, a partir de dois polos, o formoso vale de San Joaquin, e, a sul, Chino e Artesia. Os açorianos, que, a oeste, são mais de 90% da nossa emigração, levaram consigo as tradições religiosas. Nessa década, havia ali mais de trezentas Sociedades do Divino Espírito Santo, equipadas com gigantescos panelões onde se cozinhavam as deliciosas “sopas do Divino”. Como continental, aí redescobri, com assombro, o culto Isabelino, o legado da “joaquimita”, rainha dos pobres, que dava nome ao meu liceu portuense. Foi o meu primeiro contacto com os Açores, pela via da Diáspora, não do território. (como se compreende a aversão a aeronaves me afastara de férias em ilhas no meio do Atlântico…). O José Gama, organizador de todo o programa de viagem, já não estava connosco (comigo e com os meus colaboradores, o chefe de gabinete, e uma secretária, a Milú), depois de ter participado no itinerário de NY a Boston. Foi uma mais valia! Fazíamos uma boa dupla: ele, orador nato, brilhante, arrebatava as audiências (havia quem chorasse de emoção!), assegurando o sucesso do evento. Conformemente às regras de protocolo, eu encerrava, muito jovial e esforçada, e sem graça nenhuma, enumerando, em linguagem muito terra a terra, as políticas de reencontro e diálogo, as ações concretas em curso, e as propostas de lei – dupla nacionalidade, direitos políticos, Conselho das Comunidades. Ao fim de pouco tempo, já sabia de cor o meu discurso entediante. A vantagem era não fazer promessas que não pudesse cumprir. No imediato, isso não granjeia especial simpatia, mas compensa no longo prazo. No casamento como na política, é prudente, e, mais ainda, estimulante, basear na verdade a relação… Em maio, voei para o Brasil. Terra de memórias familiares, revelou-se terreno fértil em revelações do talento e de empreendimento à portuguesa (ou melhor, à portuguesa, fora de Portugal). De espantar, os grandes hospitais das Beneficências, os clubes desportivos (o “Vasco da Gama”, do RJ, a “Portuguesa de Desportos” de SP, a “Tuna Lusa” nordestina…), os Gabinetes de Leitura - o do Rio, deslumbrante “catedral” de livros, que foi a primeira sede da “Academia Brasileira de Letras”. Falou-me dessa velha aliança o próprio presidente da Academia, Austregésilo de Athaíde, que ocupava o cargo há mais de vinte anos e continuaria a ocupá-lo, por mais vinte. Em 1948, já ele coabitava com os imortais, reconhecido como o principal artífice da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Pessoa maravilhosa, com um sentido de humor, muito “british” tropical. Era frequentador do Gabinete de Leitura e do nosso associativismo em geral, tive o privilégio de o rever, regularmente, no Rio, ao lado do Dr. António Gomes da Costa, do Comendador Artur dos Santos Pereira e uma legião de simpáticos comendadores. Lideranças femininas no Brasil, , nem por exceção… Em S Paulo, à frente da Sociedade de beneficência, Hermírio de Morais, herdeiro de um dos maiores grupos económicos do país, Valentim dos Santos Diniz, outro generoso mecenas, encantador “self made man” de origens modestas e porte aristocrático, o Dr. Almeida e Silva (o mais jovem dos notáveis, que viria a ser um dos grandes construtores do CCP), o Comendador Marques dos Reis, de Belém (pioneiro do turismo no Pará) o Comendador Guilherme Silva, (genialmente enriquecido a comercializar terra de Brasília, em frascos coloridos!…). As mulheres limitavam-se a dar colorido a eventos sociais, por mais cultas e interessantes que fossem, ali, não passavam de esposas. Em qualquer caso, agradava-me a informalidade do trato, eram bem menos cerimoniosos nos rituais de receção do que os compatriotas norte-americanos. No espaço associativo, recordo mais a festa do que acesos debates…. Ia registando pormenores, especificidades, comparando, com um entusiasmo de neófita. Tanto mundo português, tanta coisa a fazer, a potenciar, com um pequeno investimento, uma palavra, um gesto. Começava a sentir-me uma “mulher de ação”, o lado prático que, insuspeitado, coabitava com a rapariga aérea e distraída que também era. Tive até receio de tirar a carta de condução. Para onde levaria o carro, ou o carro me levaria, em modo de “day dreaming”? Mas não! Ao volante, o meu foco estava na estrada, provado por um imaculado curriculum de sessenta anos de condução automóvel. E, pelo visto, o mesmo foco punha nas oportunidades de ação que se me abriam. Trabalhava em grupo, como gosto, sem esquecer que a responsabilidade de decidir era minha. Na verdade, também gostava de decidir. No Brasil, uma das coisas que em encantava era não distinguir entre brasileiros e portugueses, todos igualmente calorosos, incluindo os políticos. Ministros, nem sei quantos conheci – Jarbas Passarinho e muitos outros. Abundavam no banquete oferecido pelo nosso Embaixador, em Brasília. Mais Governadores dos Estados, como Maluf, em SP, e António Carlos Magalhães, em Salvador. Prefeitos. Parlamentares. Tinham em comum o serem todos homens. A entrada das brasileiras na política estava por fazer, e o meu cargo chamava a atenção da imprensa. “Porque não perguntam a esta professora portuguesa?” foi a manchete de um dos jornais. Neste longo roteiro, a única mulher, realmente influente, que vi sobressaindo com luz própria, foi Dona Benvinda Maria, não à frente de prefeituras ou de prestigiadas instituições, mas de um jornal, “O Mundo Português. Por palavras e obras, uma guerreira que ninguém ousava afrontar… De Belém do Pará, da Amazónia, ao Rio Grande do Sul, o que mais estranhava era voar horas e horas, e ainda estar naquele “meu” país, entre a “minha” gente. Nem pela fala distinguia conterrâneos, poucos guardavam, estanque a influências, o sotaque de origem. A dimensão territorial do Brasil é um milagre! Falta diminuir o fosso medonho entre pobres e ricos. Para já, as favelas convivem com condomínios luxuosos. Vi com os meus olhos, nos três dias em que habitei o Palácio de São Clemente, antiga Embaixada, atual Consulado. Nas traseiras, lá no alto, tem a “sua” favela” - boa vizinhança, incluindo os assaltantes, que preferem exercer longe dali. Após mais uma vintena de dias, dezenas de horas de voo e muitas mais de convívio, regressei com a sensação de ter passado o exame. Não pela oratória… talvez pela sua ausência. Descompliquei o mais possível, no meu discurso direto. O sentimento de pertença ao país apossara-se de mim, mal pus o pé no aeroporto do Galeão, ali perto da ilha Fiscal, onde aconteceu o último baile do Império, tão graciosamente ficcionado por Josué Montello. O passado (narrativas da avó Maria, a meias com histórias, romances de Érico, Josué ou Jorge Amado, telenovelas da “Globo”), dissolvia-se, suavemente, no presente. A realidade ultrapassava o imaginado. Um mundo de homens Naquele mundo de homens esperava ser marginalizada – não surpreendentemente, porque sempre esperava o pior, em qualquer exame, e ali me via em transe semelhante… Mas isso não aconteceu. Tal como no círculo mais estreito dos meus tios, a falar de política e futebol, parecia-me ter passado o teste. Constatava, simplesmente, deixei de me questionei sobre as agruras de ser mulher no espaço público, até ao dia em que fui entrevistada, em San Diego, por Paulo Goulart, jornalista de uma rádio local e rosto do Festival Cabrilho, onde representava o papel de navegador. A conversa continuou ao almoço, num restaurante com esplendorosa vista de mar - o Pacífico, muito igual ao Atlântico de Oeiras ou Cascais… Enquanto degustávamos um prato de tubarão (peixe que recomendo), Goulart relançou a questão, já meio esquecida, numa curiosa perspetiva. Falando de gente da política, confidenciou-me: “Sabe, aqui só há dois políticos de quem gostámos, a Manuela e o João Lima". (o João Lima, era, na altura, como eu, Deputado pela Emigração e antigo Secretário de Estado). Dito isto, fez uma pausa, como quem “remói um pensamento”, e acrescentou: “Pensando bem, o João Lima tem muito mais valor, porque é homem e socialista". Chamar ” socialista” a alguém, na América, é meio insulto, quase sinónimo de comunista, definitivamente uma menos valia, e, mesmo sem Mc Carthy no encalce, não dava muita popularidade ... Já a apregoada desvantagem de ser homem me deixou num tal estado de pasmo, que nem me lembrei de averiguar os fundamentos de tão perentória conclusão! Não sendo ele nem socialista, nem feminista, antes um observador neutro, equidistante das figuras comparadas, a afirmação tinha um selo de autenticidade. Insinuou alguma dúvida no meu espírito. Fiquei atenta, fui detetando sinais que iam no mesmo sentido, Por vezes, até expressos em verso. João Pereira da Siva, de Belo Horizonte, um dos pioneiros do CCP, poeta repentista nas horas vagas, tal como o Dr. Godinho, dedicou-me estas duas quadras: “Eu sou do resto do mundo/ E de estrangeiro chamado/Apesar de amor profundo/ Ao Portugal tão amado Dama de ferro da gente/ Secretária, aqui d’el Rei! / Emigrante justamente/ É português e de lei”. Lá estava a justa revolta contra o descaso pátrio, e o apelo à minha capacidade de luta solidária. Apesar das discordâncias ideológicas com a “dama de ferro” original, (a inglesa), no contexto, soava bem aquele: “dama de ferro da gente”! Extrapolando (quem resiste a extrapolar?) do meu caso particular para o geral, firmei a convicção de que para os portugueses não é difícil aceitar mulheres, qualquer que seja o cargo exercido - difícil é elas chegarem lá! Eu cheguei acidentalmente e por aposta alheia e masculina… Surpreendente, sobretudo porque os homens importantes com quem dialogava eram, regra geral, séniores, da idade de meus pais, se não dos avós. Como se compreende, na minha agenda inicial de preocupações, somava as questões geracionais às de género, ao receio extra de, com o meu falhanço, prejudicar o coletivo feminino, agravar estereótipos de incapacidade feminina. Missão complexa. Sim, missão, embora, não contasse ser apelidada “missionária”. Pois fui mesmo, numa carta dirigida ao Provedor de Justiça! Naquele ano de oitenta, ainda me via como assessora do Provedor, transitoriamente destacada para tarefas governativas. E, tendo constatado que a Provedoria era instituição desconhecida, entre emigrantes, tratei de a propagandear, para que ficassem em igualdade de circunstâncias com os residentes no recurso gratuito e fácil ao serviço, contra a Administração Pública e o Governo. A democracia é para todos! Um dos emigrantes ouviu-me, apressou-se a apresentar a sua reclamação (já não me lembro contra quem), explicitando que o fazia a conselho de uma “missionária”. Durante uns tempos, até o episódio ser esquecido, era recebida pelos meus colegas com um: “Viva a nossa missionária!”, entre abraços e risadas. Mais tarde, seria chamada outros nomes, como “D. Quixote de saias” (por jornalistas, em letras gordas …), Dama de Ferro”, em prosa e verso, e, pior ainda, “Catarina de todas as Rússias” - dentro do meu Gabinete, onde essas graças eram permitidas aos séniores. Entretanto, ia-me habituando a aceitar críticas, pertinentes ou impertinentes., a ser notícia nos media, e em várias línguas, à medida que as “políticas de encontro ou reencontro” com as comunidades avançavam. Seguia o conselho de Sá Carneiro, que me dissera “Vá onde houver portugueses”. E eu fui… até fui à República da Africa do Sul, que estava sob boicote internacional, imposto ao regime de “apartheid”. E bem. O que eu não compreendia era a ausência de iguais sanções a Estados em que as mulheres são excluídas da cidadania, escravizadas pela lei e pelos costumes, perante o silêncio do mundo civilizado… O meu circuito africano começou no Zaire, onde os portugueses eram ainda muitos milhares, e se podiam orgulhar das mais esplêndidas instituições - a “Amicale Sportive Kinoise”, (o melhor clube privado do país, impressionantes salões, piscina olímpica, campos de futebol e outros desportos, e associados de mais de uma trintena de nacionalidades) e o “Colégio Português de Kinshasa”, nessa época, o único que oferecia, (e com qualidade), o currículo completo do Liceu. Kinshasa foi o meu primeiro e feliz contacto com a África meridional. Tive audiências com o Primeiro-Ministro Karl-i Bond, homem interessantíssimo, antigo professor universitário na Bélgica, e com o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Embaixador Izumbuir, outra figura de um nível intelectual que não pensava possível na equipa governativa de Mobutu. Por coincidência, (ou não…), ambos tinham sido apoiados, nos seus estudos, por comerciantes portugueses e não poupavam elogios à nossa comunidade. A “Casa Nogueira”, no setor do café, era uma referência, e um dos seus funcionários, o mítico Comendador Jaime da Cunha Viana, tornara-se o mais querido dos líderes locais, o nosso “embaixador de facto”, quando distúrbios obrigavam ao fecho da Embaixada oficial… Por sorte, isso não aconteceu durante os meus mandatos governamentais, com os Embaixadores Batista Martins, Quartim Graça e Álvaro Guerra a viverem, com tranquilidade, na imponente mansão, que era a residência oficial (não sei se ainda é). Guardo boas memórias, também, das embaixatrizes. A primeira (Baptista Martins), uma senhora chiquérrima, muito extrovertida e com um toque de rebeldia, levou-me a fazer compras de arte nativa em bairros onde nenhuma outra europeia se aventurava. Era ali recebida, em festa e familiarmente. Vi cenas inesquecíveis… as crianças a correrem atrás da “limousine” da Embaixada, nas ruelas poeirentas, os artistas nas suas bancas de ourives, a vagarosa negociação dos artefactos, as mães a darem banho a meninos nus, ao pôr do sol, nos pátios, com baldes de água, ao pôr do sol, enquanto conversavam umas com as outras e connosco, convivialmente. Voltei, depois, muitas vezes a Kinshasa, mas nunca mais às alegres incursões no bairro supostamente perigosíssimo, onde comecei a gostar da África e dos africanos. Outra grande atração foram os mercados, ruidosos e coloridos, onde, infelizmente, era proibido tirar fotografias. Talvez para não desocultar no estrangeiro o seu lado mais macabro – os pequenos macacos mortos, vendidos como galinhas num talho, os insetos vivos, que os naturais compram e comem à nossa frente, como cerejas ou uvas. A paragem seguinte foi a RAS, a RAS interdita ao mundo. Cheia de portugueses, mais de metade madeirenses. Por todo o lado, ia mapeando grandes clubes e associações, cidade a cidade - Pretória, Joanesburgo, Germiston, Durban, Capetown, Port Elizabeth, East London, Nelspruit e a surpreendente Vanderbijlpark, na região industrial do aço e do equipamento mineiro, onde emergia uma forte comunidade, que me recebeu com especial entusiasmo. A meio deste roteiro, num fim de semana, consegui visitar a Suazilândia - Manzini e M’Babane. Uma decisão repentina, ideia do Cônsul de Joanesburgo, Carlos Teixeira da Mota, não muito bem aceite pelo Embaixador Coutinho. Estávamos convidados para uma excursão ao Kruger Park, e eu fiz a troca, sem hesitação. A primeira de muitas vezes em que optei por trocar o momento lúdico-turístico por momentos não menos lúdicos entre portugueses… O que explica a singularidade de nunca ter ido a Sun City, a Las Vegas africana, apesar de quase sempre constar da agenda inicial… Em terras suazis, não tendo havido tempo para organização oficial, pudemos partilhar a normal vivência coletiva em associações populares, de dimensão e qualidade raras vezes atingidas por cá, fora do círculo de clubes altamente elitistas. Ouvimos as inevitáveis queixas de isolamento e falta de apoios dos Governos, sobretudo, no domínio crucial do ensino da língua. Esquemas oficiais de ensino de português, só havia na Europa, e aquém do desejável… Com uma exceção, precisamente, no Gauteng, por iniciativa do dinâmico Carlos Teixeira da Mota. Iniciativa tão louvável, quanto polémica, porque a abertura de aulas extracurriculares gratuitas, nas escolas sul-africanas, levou ao declínio do ensino associativo e, consequentemente, ao declínio de grandes associações, pelo progressivo afastamento das crianças, e de famílias inteiras. Ora, nos poucos meses que levava em funções, já eu estava convertida ao associativismo, ao seu papel insubstituível na criação de comunidades no sentido orgânico, sociológico - o único que realmente relevava no quadro da ação concreta. Neste domínio, eu teria, certamente, procurado compatibilizar os cursos existentes com a abertura dos novos cursos, distribuindo os apoios pedagógicos por todos, deixando aos pais a escolha por uns aos outros. Na realidade, as aulas no meio português eram continuadas em atividades desportivas e culturais, enquanto numa escola estrangeira duravam uma hora, finda a qual as crianças, sem mais, voltavam a suas casas. Em setembro de 1980, a querela era ainda incipiente e a vida associativa estava no auge. A campanha eleitoral, também, e eu evitava agir em duas vestes. O deputado José Gama pertencia a outra escola de pensamento e não hesitava em apelar ao voto na AD na minha presença e não se ralava nada com a minha censura - “ex-post”, é claro, não podia dar escândalo público, seria pior a emenda do que o soneto. Em qualquer caso, para além dos nossos diferendos, (ele o político de raiz, eu a passageira da política), éramos demasiado amigos para nos zangarmos, irremediavelmente. Eu admirava as suas qualidades, o seu denodo, que marcaram uma vida cedo demais interrompida, mas cheia de êxitos, no Parlamento Europeu e à frente da da Câmara Mirandela, onde fez história, modernizando a terra e alcançando recordes nacionais de votação! Onde ele me poupou ao discurso partidário, porque a tal de opunha o regimento interno, foi no almoço da “Academia de Bacalhau” – um núcleo associativo de uma singularidade absoluta. Uma espécie de cruzamento bem-sucedido entre o “Rotary” (ou “Lyons”) e uma tertúlia à antiga portuguesa, que começou em almoços habituais de homens de negócios portugueses de Joanesburgo, que, um dia fausto, o Diretor do “Bank of Lisbon and South Africa”, Dr Durval Marques, teve a original ideia de transformar em clube, acrescentando ao convívio social, descontraído, lúdico, uma finalidade nova, solidária e beneficente. Chamou-lhe “Academia do Bacalhau”. “Academia” porque replicava rituais académicos. Do “Bacalhau”, mais por razões simbólicas (o “fiel amigo… do que gastronómicas. Entre associados o tratamento, pela mesma razão era de “compadre” (supostamente, também, o melhor amigo). Para a crucial recolha de fundos, o expediente foi criar regras, mais ou menos impossíveis de cumprir, e aplicar multas pela infração. Tudo era proibido: falar de negócios, de política, de religião… As multas multiplicaram-se, alimentaram o apoio aos refugiados de Angola e Moçambique, à fundação do Lar da Beneficência de Joanesburgo (o melhor e o mais funcional que conheço) e a muitas outras obras boas. Em breve, a semente frutificava em outras comunidades da África Austral, depois, com o retorno de muitas emigrantes, na Madeira e no continente. E não parou por aí, avançou pela Diáspora, um pouco por todo o mundo, tornando-se o que é agora: um grande movimento transnacional, coisa rara se não coisa única, no panorama das multisseculares migrações portuguesas. Tanto a ideia, como a sua consecução me encantaram, o que era natural porque sempre pendi para os domínios da inovação. E nem o facto de não haver mulheres me apoquentava. Primeiro, porque, ao tempo, o género feminino estava praticamente ausente do dirigismo associativo. E, além disso, porque a iniciativa juntava homens de negócios ao almoço, num meio onde, de facto, não havia mulheres. (elas, as comadres, eram, todavia, sempre convidadas para jantares de família – meras convidadas, é certo). Entretanto, já tinham aberto exceções, não para as esposas, mas para aquelas que faziam carreira no espaço público. A primeira foi Amália Rodrigues, a segunda, a jornalista Vera Lagoa, e a terceira fui eu. Quando a Academia chegou à América do Norte, já em fins de século, abriu-se, por imposição local, às mulheres, e, em Toronto, a primeira presidência foi logo feminina. Começou bem. Uma das razões da minha pronta adesão às “Academias” foi justamente o seu caráter expansivo, o seu potencial de passar fronteiras. Na falta de internacionalização do nosso associativismo, (uma exceção em termos europeus, apesar de ser tão forte no interior de cada país), era o que eu ensaiava através do Conselho das Comunidades, visto como instrumento da “federalização”. Entre estas longas e muito didáticas viagens pelas Américas e pela África desloquei-me, no começo do verão, ao centro da Europa, a Paris. Dizia um dos meus antecessores, o Embaixador Paulo Enes, que Paris é a melhor cidade do mundo para todos os visitantes, exceto um: o Secretário de Estado da Emigração portuguesa… Em junho, parti de avião para a ordália, depois de ter festejado o “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades” em várias cidades da Venezuela e dos EUA –o que é possível sem ter o dom da ubiquidade, porque a celebração vai acontecendo, aqui e ali, ao longo de todo o mês. Constatei isso, assim como o entusiasmo que rodeia essas festas do 10 de junho, a data mais importante do ano, ponto alto das saudades da Pátria, de cooperação generalizada, de visibilidade dada à cultura-mãe, através de paradas, missas solenes, banquetes, exposições, conferências, competições desportivas, festivais de música e muito, muito folclore. Há eventos para todos os gostos! Ainda com a cabeça a vibrar de música e a alma a vibrar de afetos, aterrei em Orly, à espera do pior. Recebeu-me com infinita amabilidade o Embaixador Siqueira Freire, na residência da Rue Noisiel. Um diplomata elegantíssimo, com a beleza física que a idade não retira a alguns homens de cabelos brancos, muto hábil, muito sereno. Convocara, para a sessão pública principal dirigentes associativos de todo o país e, em vez de os chamar à Embaixada, escolheu um auditório na mais discreta periferia. Sentou-se na mesa “governamental, a meu lado, e, de comum acordo, estabelecemos as regras do jogo. Daríamos a palavra, a cada um dos presentes, para a primeira volta de questões, e, depois, se veria. À nossa frente, filas e filas de homens de semblante carregado. Após os cumprimentos da praxe, de microfone na mão, e abri o período de perguntas. às quais ia respondendo, uma a uma. Até que se levantou uma voz, sugerindo a agregação das questões, em grupos de três, para poupar tempo. Assim fiz. Pouco depois, novo protesto: preferiam voltar à fórmula inicial. Já com um pequeno remoque, satisfiz a exigência. Um atrás de outro, apresentavam-se como presidentes de uma determinada associação e, a despropósito, afirmavam-se politicamente “independentes”, o que eu traduzia para “comunistas” ou “compagnons de route”… Até que há um lá do fundo, que diz: “Venho de Estrasburgo. Sou do PSD”. Seguiu-se uma medonha gritaria, onde “fascista” ou “fascismo” era “leitmotiv”. O Senhor Embaixador, já acostumado a semelhantes “bagarres”, mantinha-se imperturbável. Eu, não. Tomada por uma genuína indignação, usei a poderosa arma que tinha na mão, o microfone: “Silêncio, meus senhores, silêncio!”. Fez-se um relativo silêncio, que aproveitei para acrescentar: “Estamos em democracia! Aquele senhor ouviu os outros dizerem de onde vieram, mais a respetiva posição partidária – todos independentes. Muito bem. Agora, tendes de ouvir, com o mesmo respeito, o vosso colega de Estrasburgo, que é do PSD! Teria, é óbvio, feito igual apelo qualquer que fosse o partido do cidadão de Estrasburgo. Antevia reação à minha reação, e, se não se calassem, teria de dar por findo o evento. Mas não, o ambiente mudou radicalmente, os trabalhos decorreram em tom de quase tertúlia de café, com graças à mistura, e até me permiti protestar contra a absoluta falta de mulheres emigrantes naquele encontro… No final, um dos mais aguerridos, veio falar comigo sobre a questão feminina no associativismo e dirigir-me um convite para visitar a sua associação – em Pontault -Combault. No dia seguinte, lá estivemos, o Embaixador e eu,-recebidos, com “champagne” e tudo! Um exemplo de hospitalidade e de bom serviço aos compatriotas, no campo social e educativo. Assim ia aprendendo que mesmo os mais radicais se podiam tornar aliados naqueles setores, os que mais interessam ao bom funcionamento das comunidades. Uma aprendizagem crucial para decisões tomadas, futuramente, no interior do CCP, construído, por dentro, com as pessoas e um mínimo de intervenção governamental (isto é, minha). A criação do Conselho, como órgão de dupla face, representativa (das organizações comunitárias), e consultiva (do Governo) foi a minha prioridade, em quatro executivos, durante sete anos. Partíamos do zero, sem precedentes, sem modelos a seguir, sem diretrizes, para além de um parágrafo de um programa eleitoral. Foi uma coisa fantástica este poder estruturar, com ilimitada liberdade, uma instituição completamente nova, aberta ao diálogo entre os representantes do associativismo, e deles com o Governo, sobre as políticas para as migrações e a Diáspora. O Conselho foi o que queria que eu sonhava que fosse: a mais civilista instituição que, num país de tradição autoritária. O meu papel, na evolução do Conselho, foi o de diminuir ao mínimo esse papel… Em matéria de consulta, pus o foco no programa de atividades da Secretaria de Estado e no respetivo orçamento de apoio. Não interferi nas principais reformas que moldaram o Conselho – reformas inteligentes, de dirigentes com grande experiência da vida comunitária, com as quais me via, praticamente, sempre de acordo. Vivíamos, ainda, num tempo próximo do PREC (ou, nalguns casos, numa espécie de PREC propriamente dito – Paris, por exemplo). E, por isso, foram claras as divisões no que respeita ao conteúdo de certas políticas dos Executivos da AD, do “Bloco Central”, do PSD), que marcaram a imagem mediática do Conselho. No entanto, ficou na “sombra mediática”, o esplêndido consenso geral alcançado no que respeita á arquitetura do órgão. Na sua reconfiguração não houve uma só proposta dos conselheiros que eu obstaculizasse – a regionalização do Conselho, a instituição da Comissão Permanente e da Comissão de Peritos, a presidência das reuniões de trabalho (mantendo a Secretária de Estado, apenas, a presidência formal das sessões solenes de abertura e encerramento), a organização de Comissões temáticas, a reunião mundial de jornalistas da emigração, o primeiro encontro mundial de mulheres (iniciativa pioneira em termos mundiais, patrocinada pela UNESCO). Sorte minha, estar no lugar certo, na hora certa, o que esteve para não acontecer…. Com o desaparecimento do Primeiro Ministro, desfez-se o “trio maravilha”, ele, Freitas do Amaral e Ribeiro Telles, em que assentava a sua coesão interna – e eu só permaneci no Governo em 1981, por insistência do Prof Freitas do Amaral, não do cinzento PSD, sem Sá carneiro Em setembro de 1980, como disse, era candidata às eleições legislativas, como cabeça de lista pelo Círculo de Fora da Europa. Nunca gostei de fazer discurso partidário nas comunidades, preferia falar para todos. Contactava os núcleos do PSD, onde existiam, com certeza que sim, mas preferia separar as águas. Nas seis eleições seguintes, tive de me envolver em diversas campanhas, mas procurando manter a linha divisória entre visitas oficiais e partidárias. De resto, a melhor propaganda faz-se com trabalho honesto e proximidade, ao longo dos anos, não com discursos e “slogans”. Foi, pois, no território que me habituei ao tom comicieiro, e surpreendi-me com a facilidade de o adotar. Mais do que o conteúdo, importa o tom de voz. A 4 de dezembro estava escalada, juntamento como Ângelo Correia e Soares de Brito, para um comício nos arredores de Lisboa. Jantávamos no “Great Gatsby”, junto à Gulbenkian, divertidamente, quando um empregado de mesa nos veio dar a trágica notícia. A sensação de mágoa e de perda foi imensa. Tive a imediata certeza de que acabava uma era. Acabava ali, também, o melhor ano da minha vida. A última vez que estive com o Dr. Sá Carneiro foi, dois dias antes, num encontro de autarcas - mais de trezentos - no Sheraton. Soares Carneiro e Mota Pinto vieram dos Açores, com um enorme atraso. De pé, aguentamos, sem dificuldade, encantados a ouvir Sá Carneiro, em tom informal e divertido. No fim, ele deixou a mesa de oradores, apertando uma infinidade de mãos. Eu estava ao lado do Zé Gama e combinei com ele, poupá-lo a mais um cumprimento, mas ele viu-nos e atravessou a sala, com o seu sorriso aberto, para nos dar um abraço… Não sabíamos, mas, afinal, era uma despedida. Depois da tragédia, a AD entrou em processo de desagregação. Dificuldades de relacionamento entre Balsemão e Freitas do Amaral vinham de trás, agravadas pela interferência de Balsemão na questão Saharauí - e outros sarilhos. Foi penosa a formação do Governo. Eu só fiquei por imposição do CDS (do Prof Freitas do Amaral….). Se eu não permanecesse, reclamava o lugar para o seu deputado da emigração (o meu amigo Zé Gama). Comecei, assim, com um Primeiro Ministro hostil, a minha terceira experiência governativa, e segunda na emigração. O novo MNE era o excêntrico professor de Direito, André Gonçalves Pereira. Impulsivo e determinado, não era, à partida, um interlocutor fácil, mas, depois, de uns pequenos despiques, entendemo-nos bem. O seu lado extravertido e politicamente desalinhado, combinava com o meu. No calor do debate era teimoso (como eu…), mas, fazendo uma pausa, (no dia seguinte), podia reconsiderar. No que respeita ao CCP, deu-me carta branca. Não, porém, no Congresso das Comunidades Portuguesas, que fora retirado da órbita presidencial para o MNE, com Vítor Alves substituído por Rosado Fernandes (um catedrático de Letras, ligado à CAPe ao CDS), coadjuvado por um sindicalista do PSD, próximo de Balsemão. Vista à distância de tantas décadas, não foi uma grande ideia… Vítor Alves era um diplomata nato e um operacional, com anos de experiência à frente das comemorações do 10 de junho. Julgo que, frente a frente com ele, teria cooperado, sem que algum de nós perdesse a guerra, muito embora, à distância, por ofícios, o nosso relacionamento fosse gélido. Também o fora com o General Eanes, até a uma primeira conversa, que mudou tudo. Numa manhã de janeiro de 1981. À tarde, iria tomar posse do meu 3º Governo. Reservei a manhã para corresponder a um convite do General Conceição e Silva para a inauguração do ano académico no Instituto de Defesa Nacional, em cujo curso tinha dado a aula sobre emigração. Estava eu tranquila em diálogo com altas patentes militares, quando, para mim inesperadamente, entra o Presidente, Mal me viu, veio, em linha reta, na minha direção e disse, muito sério: - Senhora Doutora, vou oferecer-lhe uma Constituição. Quer com dedicatória ou sem dedicatória? À nossa volta, o silêncio era absoluto. Dei a resposta mais fácil: - Muito obrigada, Senhor Presidente. Com assinatura, naturalmente! O pior, estava para vir: É que, a avaliar por umas suas declarações recentes, parece-me que a Senhora Doutora, nunca leu a Constituição. Sem hesitação, aquiesci: Tem toda a razão, Senhor Presidente. Nunca li a Constituição, de ponta a ponta. Vou vendo artigo pr artigo, quando é preciso! Suponho que o Presidente, de um membro da classe política, esperava tudo menos a verdade, nua e crua, admitida como quem bebe um copo de água. Como o olhava, de frente e de perto, detetei o irreprimível esboço de um sorriso, na sua máscara inalterada de severidade. Passei a gostar do Presidente, nesse preciso momento! E logo enveredei por um tom amigável, dizendo, que havia um inciso constitucional, que particularmente apreciava, o art.º 13º, o da igualdade. E o Presidente entrou na onda, concordando. Depois, mencionei um parecer que, ao abrigo desse comando constitucional, dera ao Provedor de Justiça, defendendo que as mulheres prestassem serviço militar obrigatório. A concordância presidencial foi perfeita, mas logo eu contribuí com uma nota dissonante, confessando que já não era para mim, por ter ultrapassado a idade. O Presidente discordou: Não se preocupe, vamos dar à legislação eficácia retroativa! E, neste tom jocoso prosseguia a conversa, até que o General Conceição e Silva que lhe pôs fim, levando consigo o Presidente para o auditório do IDN. Daí em diante a minha opinião sobre o Presidente mudou radicalmente, ainda que possam ter persistido divergências políticas. O que teria acontecido com Vítor Alves, não sei. Só o conheci, pessoalmente, anos depois, à mesa de um restaurante, onde no reuniu uma amiga comum, a famosa Dona Benvinda Maria. Nesse ano de 81, teve lugar a primeira Reunião Mundial do Conselho das Comunidades, em abril, e o Congresso das Comunidades em junho, provocando na opinião pública, e até na generalidade dos “media”, tremenda confusão… De facto, separados pela guerra institucional em curso, tiverem diferentes destinos – o Congresso acabou em guerra aberta, sem fazer história, as suas recomendações esquecidas no fundo de uma gaveta. O Conselho está bem vivo, mantendo a sua identidade ao longo de metamorfoses várias. Coube-me materializar a iniciativa original da AD, o que fiz à minha maneira, evitando pelejas supérfluas, para melhor resolver as indispensáveis. Curei de escolher moderadores muito qualificados para as comissões temáticas - não o perfil de propagandista partidário que desgraçou o Congresso…. E foi no recato das comissões, não no Plenário, que se alcançaram incríveis avanços. O Conselho começou numa tentativa de boicote e acabou em consensos e abraços. Dei o meu sim a todas as propostas, que me pareceram aceitáveis, incluindo a entrega da presidência do Órgão a um conselheiro eleito. Desse pormenor soube o MNE pelas notícias de imprensa e chamou-me a capítulo: - Com que então a Senhora Dr.ª retirou-me a presidência do Conselho? Confirmei, tranquilamente: sim, dei o acordo à proposta nesse sentido, porque havia consenso. O Senhor Ministro fazia muita questão de presidir a essas sessões? Importa-se? Ao que ele respondeu: Não, não me importo…. Limitei-me a tirar a conclusão: - Então está tudo bem!… E, realmente, estava, para duas pessoas pragmáticas, como éramos Não ignorava que teria sido prudente dar-lhe conhecimento prévio da decisão, mas, se parasse para pedir opinião alheia a cada passo, atrasaria o ritmo dos trabalhos. Findo o feliz evento, sentei-me no gabinete do Gonçalves Pereira e contei-lhe, com pormores, os mais coloridos episódios, o desencontro/encontro de continentes, (o europeu “operário”, face aos outros, com a fama, nem sempre o proveito, de empresários ricos), o choque ideológico entre os “gauchistes” parisienses e os moderados de todas as geografias, o papel pacificador de um significativo número de padres, representantes de organizações laicas das suas paróquias. O MNE ouviu. Ouviu e disse: - Já percebi. Quem salvou o seu Conselho foram as hostes do Cardeal Medeiros! Quanto ao Congresso, processou-se em duas fases: uma melhor (os “Encontros Preparatórios”, nos quatro cantos do mundo), outra pior, a magna assembleia de Lisboa, que decorreu em plenário contínuo de cerca de trezentos congressistas, que, com os tempos rateados irmãmente, dispunham de uma a dois minutos para as intervenções! Uma loucura nem sempre mansa… A sessão solene de abertura foi precedida de agressões ao representante do Presidente Eanes, o Conselheiro da Revolução Vítor Alves, a que o país assistiu em direto pela RTP. E, depois, ao longo dos dias seguintes, pudemos assistir a muitas refregas menores, roçando a violência física, para além da verbal, que era uma constante. E, no encerramento, parte dos congressistas (à volta da uma centena) abandonaram a sala, com bastante estrondo mediático. No Congresso entrei e saí, muda e tranquila. Do Governo também sai, dois meses depois. Parece que só mesmo eu não percebi que a minha marginalização no agitado evento era sintoma de marginalização no Governo (até na biografia de Vítor Alves sou conotada com a fação minoritária do PSD, mais aberta e progressista, que se opunha à demagogia reinante no Congresso). Curiosamente, o MNE tentou manter-me no cargo, talvez assustado com a escolha do novo colaborador que lhe propunham. Chegou a transmitir-me um convite formal, em nome do Primeiro Ministro, embora confidenciando que ele me julgava próxima dos seus opositores internos, e cedia ao seu pedido sem entusiasmo…. Aceitei, porque a opinião do Primeiro-Ministro me era razoavelmente indiferente, e tinha em mão importantes assuntos inacabados, a consolidação do CCP, a legislação da dupla nacionalidade, as negociações com Stoleru, em Paris, a implementação de programas culturais com as associações, etc. etc.… No dia seguinte, o volte-face: Balsemão insistia em nomear para a Emigração um dos seus fies, José Vitorino. Tranquilizei o MNE, que se desculpava, invulgarmente embaraçado. E a seu pedido, tratei de pôr o sucessor a par dos principais dossiers, com o CCP à cabeça. Perda de tempo, ele iria a bloquear, de imediato, o seu funcionamento, e quase tudo o mais, também. A substituição deu brado na imprensa. Nuno Rocha no semanário “O tempo”, falou mesmo de “desconvite”. Um neologismo que tinha vindo para ficar. Em rota para São Bento A Assembleia da República (AR), vista de fora, parecia-me mais “glamorosa” do que o Executivo. Ou seja, uma atrativa mudança, como são, em regra as mudanças, descontando a eterna dúvida sobre a minha capacidade de sobreviver às sabatinas do hemiciclo. O primeiro choque foi a falta de condições de trabalho dos deputados, sete anos depois da revolução. Ao meu dispor não tinha secretária pessoal nem gabinete, apenas uma sala comum, com cadeiras alinhadas contra as paredes, três ou quatro mesinhas com telefones fixos, e um cacifo aberto para a correspondência de cada um. Parecia uma espécie de estação de comboio em hora de ponta, num vaivém constante de gente apressada, com correrias coletivas quando a estridente campainha chamava para o hemiciclo. Faltava tudo menos camaradagem, ao menos dentro de cada clã. Levei uns dias a adaptar-me ao novo meio ambiente, não muitos. Fui em demanda do grupo dos “críticos” ao qual era suposto pertencer, assim fazendo do prematuro prognóstico de Balsemão realidade pura e dura. Ele ainda terá tentado estender-me um ramo de oliveira, o convite (indireto) para ocupar o lugar na “quota dos “críticos” na sua Comissão Política. Declinei… Na AR, sem entraves ministeriais, recuperava a inteira liberdade de circular pelas comunidades – o equivalente parlamentar das “presidências abertas”. E circulei, incansavelmente! Primeira viagem: Toronto, para o 25º aniversário do “First Portugueses Canadian Club”. Aí dei a Cruz Gomes, o diretor de “O mundo”, uma entrevista de três páginas, em que Sá Carneiro era citado vezes sem conta, e em que não me esquivava a responder ao tópico do “desconvite”, considerando que a mudança de titular tem sempre um lado positivo: “Quanto mais políticos houver interessados na emigração, melhor! Cruz Gomes era militante do PDS, um Sá carneirista que gostava de Balsemão (havia alguns, não muitos), mas detestava o novo titular da emigração, como se adivinha no elogio com que encerrava o artigo: “Eis na íntegra a conversa tida com uma mulher cuja simplicidade, sabedoria e capacidade governativa ensombra muita gente”. Uma espécie de obituário pela ex Secretária, que me causava infinito espanto, pois não pensava ter imagem de “ensombrar” os homens - os que se deixavam ensombrar, evidentemente. Retomei, assim, as viagens, mais longas, a mais comunidades, colmatando omissões dos sempre apressados roteiros de Secretária de Estado. A primeira levou-me ao Oriente, à Índia – (Goa, Nova Deli) -a Hong-Kong e Macau, e à Austrália (Sidney, Camberra, Melbourne, Perth). A Austrália contrastava com a antiga Diáspora da Índia ou da China, era uma emigração recente, a emergir como comunidade. Em Sidney, as associações ainda funcionavam em sedes modestas, que eu fiz questão de visitar, numa longa peregrinação noturna. A ideia inicial (do Cônsul-Geral) era reunirmos com dirigentes associativos no consulado, porque não causaria atritos privilegiar um ou dois dos clubes existentes, não havendo tempo de ir a todos. Eu driblei o obstáculo no decurso do encontro, com uma proposta simples, que mereceu aprovação geral: sortear uma das associações. Os interessados – todos os participantes, sem exceção… - escreveram o nome das suas agremiações em papelinhos, e lançaram-nos numa caixa, de onde eu, de olhos fechados, retirei um. Um sorteio amador, mas inatacável. Marchamos alegremente para o salão vencedor, e confraternizámos até que um deles pediu que fossemos, também, à sua sede, que era muito perto dali. Fomos. Depois, seguimos para uma terceira, que não era muito longe… E, de seguida, como não podia deixar de ser, corremos as restantes, pela madrugada dentro, de festa em festa Quando voltei à Austrália, 14 anos mais tarde, as modestas associações dos começos de oitenta, tinham crescido assombrosamente. Uma delas, era, até, proprietária de um grandioso estádio de futebol! Em Camberra, os portugueses eram poucos – organizaram um jantar muito agradável num pequeno restaurante. A minha agenda foi mais focada em contactos com políticos australianos. Eram Embaixadores de Portugal os meus amigos Tessa e Inácio Rebelo de Andrade, que, por várias vezes me tinham recebido em NY, na famosa “Dacota House”, que era, então, a mais atrativa residência consular à face da terra. Com eles, andei de receção em receção, de jantar em jantar, com Diplomatas, Ministros, Deputados, Presidentes de Tribunais… E, sendo Tessa a quinta essência do dinamismo, ainda conseguiu encaixar na agenda a incursão ecológica a uma reserva de animais nativos. Não tínhamos concorrência de turista algum, vimo-nos só as duas no centro das atenções de dezenas de simpáticos cangurus. Foi esplêndido! Emes comem pão, imagine-se - íamos munidas de grandes pacotes, e fizemos uma ordeira distribuição… Em Melbourne, a comunidade estava em vias de se organizavar, sob o impulso do Doutor Carlos de Lemos, que ainda não era, mas havia de ser o mais extraordinário e cosmopolita dos nossos cônsules, juntando a cordialidade latina e o humor britânico, que irrompia num artigo publicado em “O Português na Austrália”: “[…] pode dizer-se que foi durante o “reinado” da Dr.ª Manuela Aguiar, como Secretária de Estado, que Portugal descobriu a Austrália”. Bem, no sentido de me interessar pelos seus problemas, sim, mas o que verdadeiramente “descobri”, graças a ele, foi a comunidade timorense refugiada na Austrália – o Timor-Leste extraterritorial. Um encontro muito emotivo, muito revelador, e que teve consequências muito concretas: ao chegar a Lisboa, tive uma conversa com o Manuel Tilman, único deputado timorense, para propor a criação da “Comissão Parlamentar para o Acompanhamento sa Situação de Timor-Leste”, o que fizemos conjuntamente. Toda a gente esteve de acordo. O emblemático jornal “O Português na Austrália”, através dos seus correspondentes, deu amplas notícias sobre as minhas reuniões com as comunidades. E o teor das reportagens é igualmente simpático. Um deles até me descreve como “uma senhora muito simpática e desempoeirada”, e quase todos destacavam o domínio da língua inglesa, “causando admiração aos próprios australianos”. A visita, tem como nos EUA, terminou a oeste – em Fremantle e Perth na Austrália. De salientar uma presença feminina com visibilidade muito superior ao habitual – um escol de professoras primárias, a dirigente da “Comissão de Pais”, Ana Pereira, e uma líder carismática chamada Manuela Faria, para quem não havia impossíveis”. Em fecho de périplo, levou-me no seu carro a caminho do aeroporto, insistindo em fazer um desvio até um parque natural, onde pude ver de perto e tocar o pelo sedoso dos koalas, que tanto me fascinavam… Para isso, Mrs. Faria arranjou maneira de abrir, para nós, as portas do parque natural às 7.00 da madrugada! Outra novidade: a existência de um núcleo do PSD, em Fremantle! O seu presidente, muito bem relacionado com o partido homólogo, surpreendeu-me com um programa intenso de diálogo político. A democratização de Portugal, apenas meia dúzia de anos depois da Revolução, ainda entusiasmava os ânimos, do outro lado do mundo… Outra singularidade: as esplêndidas instalações da associação portuguesa, que superavam todas quantas tinha visitado. E nelas pude encontrar-me, de novo, com muitos tomorenses! De Perth voei em direção Joanesburgo, para mais uma volta às principais comunidades da RAS, seguida de visitas ao Zimbabué e ao Zaire. Os segundos e subsequentes encontros nas comunidades são radicalmente diferentes do primeiro. Perde-se o seu mistério, ganha-se em tudo o mais. Abraçam-se amigos, debate-se o avanço ou retrocesso da situação, as questões que se arrastam, que se agudizem, que reaparecem, e as que se resolvem - tudo abordado já num clima de cumplicidade. E a presença é exigida em inaugurações, celebração de efemérides, eventos especiais. No Brasil, dizem que “prestigia” a iniciativa - sempre da “sociedade civil”, a parte do Estado é, comparativamente, insignificante. Se as centenas de grandes associações que existem nos cinco continentes dependessem de subsídios governamentais (à semelhança do que acontece no território…) não nem uma, para amostra… Por isso, eu procurava, ou pedir a sua colaboração ou responder às suas solicitações, sem interferir na sua vida. E, também por isso, achava importante não partidarizar a relação, até porque a maioria dos emigrantes, sobretudo em comunidades antigas, se liga ao país mais pela cultura do que pela política. No país, pelo contrário, divertia-me imenso em campanhas eleitorais, arruadas, mercados, feiras, festas, com muitos discursos e muito folclore… E até me iniciei em comícios, revelando alguma queda para animar multidões. Basta gritar, com convicção – e convicção não me faltava. A minha primeira experiência parlamentar proporcionou-me, assim, os prazeres que política partidária em minoria, em oposição, dentro do partido (o “situacionismo” pode dar mais oportunidades de chegar aqui ou ali, mas não tem a mesma graça…). Nas bancadas de São Bento, convivia com génios, como Natália Correia (que tinha idade para ser minha mãe e me chamava “menina”, quando se zangava) ou Francisco Sousa Tavares, a heterodoxia em pessoa. Raridades em qualquer parlamento, em qualquer época. Não sei se eram compatíveis entre si. Comigo eram. Os chamados “críticos”, também. Eram a minha família política, uns mais do que outros. Mais, Amélia e Amândio de Azevedo, um pouco mais velhos, muito menos impcientes, preocupados em atenuar os meus ímpetos… Ou António Maria Pereira, aliado na defesa da causa animal, então tão ignorada - a décadas do nascimento do PAN - Dinah Alhandra, cujos ímpetos ninguém conseguia travar, e que falava, sempre, com uma incontornável franqueza: “Que mal te fica esse vestido, menina!” Ou: “Hoje estás com um aspeto horrível, o que te aconteceu?”. Em compensação, quando nos fazia um elogio, podíamos acreditar! Estreei-me no hemiciclo nas temáticas de emigração, a expensas do PCP, que parecia ter contas a ajustar comigo. Sem deputados de emigração, o pelouro estava entregue a Custódio Gingão. Os seus ataques, diretos e repetidos, em matérias que ambos dominávamos, eram mutuamente benéficos. Mas mais para mim, a debutante. Olhava-o quase como o meu “orientador de estágio”. E um dia, disse-lhe isso. Não foi uma grande ideia, ele perdeu um pouco da sua agressividade e eu também. As nossas divergências e convergências eram reais e expostas com civilidade. Os comunistas da Assembleia e os do CCP (com algumas honrosas exceções), nem pareciam gente do mesmo partido… O hemiciclo estava a ser um bom palco, e não era o único. Atravessara três governos, a sentir-me jurista, militante das minha velhas causas, a leste da vida partidária. Só então, passei a frequentar, com assiduidade, o Conselho Nacional do PSD, as Secções do partido no país e na emigração, o Gabinete de Estudos (da área metropolitana de Lisboa). E a pronunciar-me, abundantemente, dentro e fora do hemiciclo, sobre variadas questões de política nacional e internacional. A ocupação dos Montes Golan ou o confinamento da família Sahkarov na URSS, a par da revisão constitucional de 82, prestes a subir a plenário. A extinção do Conselho da Revolução, permanecia no centro das minhas preocupações – um legado de luta de Sá Carneiro. Continuava a receber convites surpreendentes, como o do líder da bancada do PSD, o Dr. Moura Guedes, (“balsemista”, evidentemente), para uma das suas vice-presidências… Não aceitei, achava-me demasiado impreparada, para além de me situar no que o jornalista Nuno Rocha chamava a “ala hipercrítica” do PSD - com Helena Roseta e Dinah Alhandra. No meu caso, o meu sucessor ajudava, ao desmantelar, com denodo, tudo quanto vinha do meu mandato, saneando funcionários, e, suprema malfeitoria, suspendendo as reuniões mundiais do CCP. Isso lhe valeu o afastamento dos deputados da emigração, os três da AD e o da oposição, João Lima, um antigo Secretário de Estado, com quem eu trabalhava bem. Numa entrevista a “O Mundo” de Toronto, ele dava-me reciprocidade, considerando-me “uma boa sucessora” e reconhecendo que “nada tinha a ver com o atual secretário da Emigração”. Na verdade, meu foco não era o abate de correligionários, mas outros combates, contra a desigualdade entre sexos, (a discriminação das profissões de perfil feminino), entre residentes e expatriados, entre regiões. Tentava pôr no mapa dos “media” nacionais e dos políticos, as questões da emigração e da Diáspora – tarefa infindável, dissolvida em milhares de dias, compactados numa mancha imprecisa, aqui e ali, pontuada por nítidas imagens de encontros com pessoas e lugares… Santa Barbara, Mécia de Sena e Maria de Lurdes Belchior (em licença sabática), São Paulo, Ruth Escobar, o General Sarmento Pimentel, Capetown, Walter Sisulo, o Bispo Tutu, Kuazulu, o Rei Goodwill, Recife, Gilberto Freyre, Belo Horizonte, José Aparecido de Oliveira, Amarante (a geminação das Amarantes, a do Porto e a do Piauí) e o Embaixador Alberto da Costa e Silva, o Canadá, e o sei Embaixador Lloyd Francis, Paris, Jacques Chirac (oh, quanto insuspeitado charme!), Venezuela, o Presidente Hugo Chavez (idem), Grécia, Melina Mercouri (no papel de Ministra da Cultura). E as e os grandes aliados europeus, na Suécia, Anita Gradin, na França Georgina Dufois, Bernard Bosson, no Luxemburgo, Jean Claude Junker… Vaivém entre os Palácios de S Bento e das Necessidades Outro palco de ação e, todos o mais lúdico, era o partidário. Lutar e votar contracorrente não me stressava. Já era assim em criança, sempre do lado do “underdog”. O tempo era propício, a AD desagregava-se, o PSD estava em polvorosa. A hora dos críticos de Balsemão estava a chegar, mas não com Eurico de Melo, Nem com Cavaco, que não quis avançar, obviamente porque o Governo Balsemão deixava o país à beira da bancarrota (curioso que ninguém fale disso, hoje…). Com eleições à vista, avançou, corajosamente, o melhor de todos: Mota Pinto. O resultado obrigou a uma coligação, inédita, do PS com o PSD, para fazer frente à inevitável intervenção internacional. A formação do Executivo do “Bloco Central” foi complicada, morosa. Eleita pelo Circulo de Emigração Fora da Europa, com uma maciça votação, aproveitei esse início de junho, para ir à América do Norte, comemorar a vitória e o Dia Nacional, a 10 de junho e nas semanas seguintes. Em Newark, na mais popular celebração do universo português, desfilei em carro descapotável ao lado do Embaixador Leonardo Mathias, sob um sol tórrido, uma temperatura de quase 40º…. Voltei a Newark muitas vezes, e, avisadamente, deixava-me ficar à sombra, na bancada da Ferry Street, de onde os convidados discursavam no ato de encerramento. Nesse “dia de ananases”, já corriam nas Américas as notícias que me davam como nome certo para a Secretaria de Estado da Emigração, mas ninguém me contactara, ao que depois vim a saber, porque não me localizaram. Não havia telemóveis, “facebook”, “whatsapp”… O que originou um desagradável “quid pro quo”, na última etapa do meu roteiro americano, em New Bedford. Numa longa entrevista dada ao Diretor do “Portuguese Times”, o meu amigo Adelino neguei que tivesse sido convidada para o novo Governo, e a minha resposta fez manchete de primeira página na edição do sábado seguinte, o preciso dia em que eu tomava posse no Palácio da Ajuda! O que era verdade na 5ª feira, deixara de o ser dois dias depois. Mal aterrei em Lisboa, fui chamada ao gabinete do Vice-Primeiro Ministro e “intimada” a voltar às Necessidades. Sabia que a Secretaria de Estado estava falida, tal como o País e eu ainda tentei dizer “não”, mas o Doutor Mota Pinto não levou a sério a minha negativa. Tinha razão. Com ele, eu avançaria, sempre, em toda e qualquer circunstância. E, assim, no sábado, pela manhã, compareci na Ajuda. Num sábado, coisa inédita, a coincidir, desgraçadamente, com a manchete, desatualizada, do “Portuguese Times”! Os meus receios confirmavam-se – recebia do meu sucessor/ antecessor (a quem a Ministra Georgina Dufois chamava “votre intercalaire”) uma pesada herança de nomeações, de 25ª hora, para o estrangeiro, que arruinavam o orçamento de ações. Com o meu "intercalar" e eu, em matéria de migrações, nunca estive de acordo, mas, felizmente, a “entente” interpartidária com o MNE, então Jaime Gama, funcionava, de novo. A solução, apoiada por ele, foi sustar nomeações, poupar verbas para o fundamental, ou seja, o processo eleitoral e à preparação da Reunião Mundial do CCP. Realizou na época ideal, o último trimestre, com abertura solene, pública e pacífica, no salão árabe do Palácio da Bolsa, sessões de trabalho no INATEL de Santa Maria da Feira (garantia de máxima economia possível, em estação baixa) e encerramento na Universidade de Aveiro. No Porto, presidiu, a meu convite, o Ministro da Cultura Coimbra Martins, um ex-emigrante, e foi orador, ao meu lado, o Secretário Regional dos Açores, Costa Neves. Em Aveiro, encerrou o Ministro da Educação, José Augusto Seabra, que também tinha uns anos de exílio no “curriculum” e era um tribuno notável. Nunca me importei de ceder a mediática presidência da sessão a notabilidades, em favor de uma maior visibilidade do próprio CCP… As jornadas de trabalho tiveram os seus momentos de acesos despiques, com os invariáveis agitadores parisienses. Às vezes, eu perdia, genuinamente, a paciência com eles e deixava-os em campo aberto contra os outros todos, em outras geria conflitos, à maneira de Isabel de Aragão, a patrona do meu liceu portuense. No fim, tudo acabou bem, e à portuguesa, num jantar de despedida. À saída, referindo-se, talvez, á minha veia mediadora, dizia-me, entre risos, o famoso padre operário, Filipe Rios. “Pois é, há quem queira estar de bem com Deus e com o Diabo!”. Ao que, de pronto, respondi: “Sem dúvida, sobretudo alguns padres…” Eu gostava do Conselho em todos os seus contrastantes climas. Nada me deu mais gozo, no curso da política, do que engendrar essa interface de sonhos e de realizações muito pragmáticas. O que mais lamento foi ter sido sempre uma estrutura tão misógina, em que apenas recordo, entre 1983/85, duas Conselheiras, ambas jornalistas. Os representantes dos média formavam uma categoria específica, mas, na prática, misturavam-se com os eleitos das associações, e, nos plenários, apresentavam recomendações e participavam livremente nas votações. Graças a isso, a jornalista Maria Alice Ribeiro, diretora do Correio Português de Toronto, esteve na génese das políticas de género, com a sua audaciosa proposta de audição das mulheres emigrantes num encontro mundial. O encontro foi o primeiro do género na Europa, e, tanto, quanto se sabe no mundo. E, ainda por cima, aconteceu em 1985, no ano de encerramento da Década da ONU para as mulheres, e foi patrocinado pela UNESCO. Mais um exemplo de como o CCP abria caminhos novos às políticas públicas… Órgão associativo, corporativo, nas antípodas do corporativismo de Estado (à moda do “Estado Novo”), um espaço de voluntariado social, beneficente, cívico e cultural. Um paradigma de “libertação da sociedade civil”, de que a AD tanto falava. Terá havido muitos, muitos mais?... Como disse e repito, a ideia da criação do Conselho não foi minha, caiu-me nas mãos para executar, sem livro de instruções. Apenas uma diretriz: respeito pela autonomia da “sociedade civil”. Segui-a à risca, elaborando, depressa e julgo que bem, uma lei flexível, aberta a consulta “ex post”. Só o “veto de bolso” do Presidente ao diploma da AD, impediu o arranque do CCP em 80, mas há males que vêm por bem. O bem foi ter tido tempo para contactar comunidades dos quatro cantos da terra, observar as suas caraterísticas, virtualidades, problemas, carências numa dupla veste de estudo e ação no terreno. Daí ser chamada “uma missionária que passou por aqui”. De facto, não correspondia ao estereótipo do governante, nem na indumentária, nem no discurso. Até nos hotéis, olhavam para mim e para as senhoras ou senhores da comitiva, davam-lhes o quarto grande e a mim o quarto pequeno. Foi assim que um assessor, o Dr. Victor Gil, passou uns dias numa faustosa “suite” do Copacabana Palace, no Rio, enquanto eu me via confinada a um antiquado quartinho de traseiras… E com a Presidente do Instituto, Maria Luísa Pinto, isso acontecia, recorrentemente. Às vezes, descobríamos o engano, quando eu comentava que o hotel era bom, mas os quartos um bocadinho acanhados. Logo a Maria Luísa queria fazer a troca dos seus belos aposentos, que eu rejeitava, invariavelmente. Ela andava sempre muito mais chique do que eu – era o seu natural. Contudo, um dia, para variar, aparecemos no IAECP com vestidos iguais - iguais mesmo, ainda que de cor diferente, comprados num “shopping” de Waterbury, onde era costume o Cônsul, Dr. Seabra da Veiga, levar-nos num curto intervalo da agenda do dia. Para evitar a coincidência dos vestidos, a Maria Luísa saía com o dela (flores em fundo azul), no dia seguinte àquele em que eu tinha arejado o meu (flores em fundo vermelho). Solução perfeita, eu nunca repetia o mesmo fato dois dias seguidos, mas nesse dia, por exceção, à pressa, porque a agenda começava cedo, repeti o vestido. Ia assinar, de manhãzinha, um solene protocolo com um governante de Macau. A maioria dos homens não presta atenção a indumentária de senhoras, mas não era o caso dele. Estava espantado! De vez em quando, mirava-nos de lado, tentando ser discreto, como se não acreditasse no que via. Parecíamos saídas de um catálogo de “La Redoute”. Na altura, dominava-nos a sensação de desconforto, mas passado o momento, divertimo-nos a contar a história a toda a gente, a vivo e a cores, desfilando no Instituto de Emigração com os nossos “uniformes”. Por puro acaso, foi o vestido com o qual, meses depois, fiz a minha inesperada estreia na presidência do plenário da Assembleia da República. Um vestido predestinado para ocasiões de sobressalto. Nada de semelhante aconteceu no dia inaugural do Conselho. Por uma vez, cuidei da aparência, pressentindo o simbolismo do momento. Eram 10h00 do dia 6 de abril de 1981, quando comparecemos no salão de espelhos e talha dourada e creme do Palácio Foz. Seis dezenas de Conselheiros, seis membros do Governo, o Provedor da Justiça, Deputados, representantes dos parceiros sociais, jornalistas, e um grupo de assessores e peritos. Respirava-se expetativa e ansiedade, no cenário de luzes e sombras, que antecedeu o começo. Silêncio, quebrado apenas por dois discursos breves, o da Secretária-Geral Fernanda Agria, mais enervada do que expectante, e eu, muito expectante, mas serena, embora à espera de terçar armas. Fervilhavam boatos, desde a chegada dos Conselheiros a Lisboa. O clã de França mantinha-se aparte, acolitado pela intersindical. Foram vistos, nos alojamentos do INATEL, em conciliábulos pela noite fora, o que, para os emigrantes dos outros continentes, não augurava nada de bom. Os alinhamentos estavam feitos – uma enorme maioria aderia ao CCP como fórum de diálogo com o Governo, enquanto uma pequena e ativa minoria queria fazê-lo o grande palco da sua discórdia. Tão ativa, tão ativa que, ao longo de sete anos, conseguiu, sempre, dominar as manchetes de imprensa. Usavam a força da palavra em conferências de imprensa, porventura, mais do que dentro das salas de reuniões. Com protestos, insultos… Insultos contra o Governo em geral, mas personificado no detentor ou detentora do cargo da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. Só duas vezes chegaram, como ambicionavam, falar com o Chefe do Governo. Primeiro com Mário Soares, o incidente mais badalado, em 1985, depois, em 1987, com Cavaco Silva, menos mediatizado, mas muito mais letal para o próprio Conselho. Nem um nem outro dos políticos visados reagiram bem ao destrate, mas enquanto a irritação do Dr. Soares foi passageira e sem mais consequências, a do Prof Cavaco fez “boomerang” e traçou, não de imediato, (ou seja, não enquanto eu permaneci em funções…), mas logo depois, a destruição do Órgão eletivo. Sucedeu uma estrutura complexa e inoperacional, baseada em escolhas das Embaixadas e nomeações ministeriais…. Porém, tudo isso ocorreria vários anos depois. Nessa esperançosa semana matricial de 6 a 10 de abril, foi possível escolher caminhos de forma livre, democrática e… unânime! A unanimidade perder-se-ia nos Plenários seguintes, numa normal vivência democrática, em que as maiorias ditam a sua lei, mas viu-se, então, facilitada pelo enfoque na arquitetura da instituição, a mais consensual das questões, sempre…. E assim levaram a cabo a reforma da lei fundadora que o Governo, avisadamente, submetia a livre consulta. Nos anos sete anos seguintes, no que respeita aos contornos do Conselho, às suas principais reconfigurações, nunca houve divergências de maior. A ausência de tutela governamental nas metamorfoses neste órgão consultivo, tornou-o um "case study". E, ainda por cima, num país onde o ímpeto centralizador e o autoritarismo ainda campeiam, meio século depois da revolução dos cravos. Os dois anos de mandato do meu “intercalar” não deixaram pegada, porque nada se passou, não houve consulta nem reuniões mundiais e fracassou uma tentativa de alterar a legislação, que o Conselho de Ministros, avisadamente, “chumbou”. Em Portugal, há a perigosa convicção de que tudo se resolve com um arranjo da lei, geralmente feito à pressa. Nesse capítulo, o CCP também se singularizou, escapando à febre legiferante, reformando-se por dentro, no quadro do Decreto-Lei nº 372/80. Entre 80 e 87, regista apenas uma alteração pontual, para consagrar a "regionalização" (ou seja, a alternância entre as reuniões mundiais, por secções temáticas e plenários, e reuniões mundiais, escalonadas por grandes regiões - América do Norte (mais Austrália), América do Sul, África e Europa. Na nova modalidade, os trabalhos decorriam em plenário contínuo, nos países de cada círculo geográfico, rotativamente. Uma muito excelente recomendação dos Conselheiros. A organização do evento passou para as mãos deles, primeiro a nível regional, depois, també, nos Plenários Mundiais. Assim se resolveu, na prática, a questão da presidência do órgão: os Conselheiros presidiam às sessões de trabalho, o Ministro ou o Secretário de Estado às sessões solenes de abertura e encerramento. É exatamente o que se passa hoje, apesar da própria letra da lei, a partir de 1996, entregar a presidência a um conselheiro eleito… Todas as demais melhorias introduzidas no funcionamento do Conselhos, vieram dos seus membros eleitos: a criação da “Comissão Permanente”, das reuniões preparatórias da reunião atual, da “Comissão de Peritos”, da Secção Permanente da Comunicação Social, das “Conferências” temáticas promovidas, anualmente, pelos Conselhos de País, e da “Comissão Interministerial para a Emigração e Comunidades Portuguesas”, (com competência para dar sequência e resposta ao conjunto das recomendações do CCP). Igualmente se lhes ficaram a dever as propostas de organização do 1º Encontro Mundial de Jornalistas das Comunidades (em 1982), e do 1º Encontro das Mulheres no Associativismo e no Jornalismo (1985). Hoje em dia, o Órgão de consulta queixa-se de que é pouco consultado, enquanto nesse ciclo inicial, até o programa detalhado de atividades da SECP lhe era submetido para parecer! E, note-se, todas propostas de reconfiguração do Órgão aprovadas por maioria ou consenso foram aceites pelo Governo. Ao invés, na última revisão legislativa, em 2023, as principais reivindicações dos Conselheiros, foram ignoradas, incluindo a da adoção do voto eletrónico. Aqui, como na História em geral, o progresso não avança, necessariamente, em linha reta… E depende mais da “praxis” do que da norma… Quando, no 40º ano da criação do Conselho das Comunidades Portuguesas, editei uma pequena publicação sobre o processo da sua construção e chamei-lhe, no subtítulo, um “espaço de utopia e experimentação”. Sim, o CCP andou em busca da sua identidade, lugar e destino, e não há dúvida que os encontrou. Sobre a sua natureza e missão não houve divergências de fundo entre esquerdas e direitas ou entre países e continentes. Já no que respeita a políticas públicas, as divergências se manifestavam, com estrondo e ruído, sempre amplificados nos media… E assim se consolidou a “lenda negra” do Conselho, escondendo a sua faceta dialogante e eminentemente democrática. Pela minha parte, até a “revolucionária” reivindicação da presidência por um emigrante aceitei de bom grado. Só não foi por diante porque os eleitos em 1983, por maioria, retrocederam na decisão inicial. Já em 1981 eu tinha dado, publicamente, acordo à solicitada transferência de poder formal. O MNE não gostou de saber a novidade pelos jornais. E interpelou-me: “Com que então retirou-me a presidência do Conselho?”. Confirmei. Na verdade, “de jure” o lugar era dele, eu ocupava-o por delegação de competências… Expliquei que a solução me parecia razoável e facilitava consensos importantes, pacificava dos ânimos. Foi a minha vez de lhe fazer uma pergunta crucial: “O Senhor Ministro importa-se?”. Ao que ele, com um encolher de ombros, disse: “Não. Não me importo”. Fechei a conversa, no mesmo tom ligeiro. “Nesse caso, está tudo bem!” E estava. Encerramos os trabalhos num ambiente de esperança que contrastava com o tenso, ou mesmo bélico, ambiente da inauguração… A verdadeira metamorfose do Conselho aconteceu na 1ª Reunião Regional em Danbury, Connecticut, no outono de 84. Tudo correu idealmente, na acolhedora paróquia do Imaculado Coração de Maria. Á frente da paróquia estava o Padre Doutor José Alves Cachadinha, presidente do CCP dos EUA, e um dos grandes reformadores da instituição, homem espírito vivo e poderoso orador. Um intelectual que a descolonização trouxera de Angola para a imigração, e que, já Monsenhor, havia de regressar a Luanda (Universidade Católica). Além da qualidade intelectual era um organizador nato. Ali houve tempo de trabalhar, e tempo de conviver, em grandes festas comunitárias… Algumas das melhores propostas, surgiram à mesa dos repastos, oferecidos pela comunidade local. Foi de uma conversa informal entre a Conselheira Maria Alice Ribeiro e a mulher de um Conselheiro da Califórnia, Natália Dutra, que nasceu a ideia de da convocação de uma primeira conferência mundial de mulheres portuguesas. O primeiro ato do Conselho da América do Norte foi a eleição do presidente, a quem coube conduzir os trabalhos. Uma revolução sem pompa ou ruído, e sem necessidade de mudar uma vírgula da lei. Estava aberto o precedente. O mesmo aconteceu no CCP da América do Sul e África, e, no anos seguinte, na Reunião Mundial, em Porto Santo. Esse ato de empoderamento dos Conselheiros, na Madeira, passou completamente despercebido. Os holofotes mediáticos estavam assestados na ruidosa dissidência de meia dúzia de conselheiros “parisienses”, que abandonaram a Reunião Plenária, ao terceiro dia… É claro que estavam de volta, como se nada tivesse acontecido, nas reuniões preparatórias do Conselho mundial, por regiões, no ano seguinte. E em 1986, até organizaram, muitíssimo bem, o Conselhos Regional da Europa, em Estugarda… A partir de 1984, quando decidi, “de motu proprio”, apresentar à consulta formal do Conselho, os dispêndios em ações e subsídios do Instituto de Apoio À Emigração e Comunidades Portuguesas (IAECP), e o programa de atividades do ano seguinte, a recetividade receção foi sempre boa, inclusive na Europa…”. O primeiro olhar dos Governos para além das fronteiras, antes e depois da Revolução, centrou-se nos problemas sociais e culturais da emigração europeia. O “Secretariado Nacional da Emigração” (SNE), em 1972, deu o primeiro passo, continuado pela Secretaria de estado da emigração em 1974. Pioneiro na aproximação às comunidades distantes foi, desde 1978, a Presidente Eanes, ao recuperar as festividades do Dia de camões, centradas nas Comunidades Portuguesas. Na qualidade de organizador das comemorações o Conselheiro da Revolução Vítor Alves correu mundo. Em 1980, onde quer que eu fosse, ou ele já lá tinha passado há pouco, ou estava para chegar. Esta duplicação começou com um governo que queria estender a sua ação à Diáspora, com isso, entrando no espaço ocupado pela Presidência da República. O choque era inevitável, e lá estava eu, involuntariamente, de novo, na linha da frente de um conflito… À duplicação das viagens (não há fome que não traga fartura…) juntava-se a duplicação de Conselhos (o CCP da AD e o Congresso presidencial, que, entretanto, o Governo desviara para a sua órbitra). No Conselho que me coube implementar, não fomentei querelas políticas – já me bastavam as que se geravam, entre os conselheiros, e de Belém não se falou… Fiz o meu trabalho o melhor que pude, em intermináveis “sessões de esclarecimento”, visitas a centros comunitários, a meios de comunicação, a consulados, a homólogos de governos estrangeiros, a organizações internacionais…. Deixei de ter vida de família, fins de semana, férias, passei a fazer escritório em salões VIP de aeroportos, aviões e quartos de hotel. Deixei de ir ao futebol, ao cinema, e até deixei de ler, exceto policiais em inglês, em edições de bolso… E escrever só mesmo alguns discursos. A partir de certa altura, dei-me ao luxo de ter um “ghost writer”, um antigo colegado “Centro de Estudos”, Carlos Branco. Ele e eu discordávamos em muitas coisas, mas em matérias da emigração conseguia expressar as (minhas, nossas…) ideias melhor e mais sinteticamente do que eu. Não todas… sobre questões femininas saía tudo da minha pena… Ele era da geração dos meus pais, solteirão, solitário, um excêntrico, um sábio - um sábio distraído, óculos de tartaruga redondos, fato completo escuro, gasto e “démodé”. Viajava pouco, os seus horizontes abriam-se dentro de bibliotecas. Eu gostava muito dele, e a recíproca era verdadeira, mas irritava-o com a minha impaciência. Chamava-me, nessas alturas, “Catarina de todas as Rússias” ou começava a conversa reclamando: “Calma e serenidade!”. Duas coisas que me faltavam, assim como quase tudo o que caraterizava a histórica Catarina… Contudo, partilhávamos a visão das comunidades como realidade orgânica, com coesão interna, capacidade de preservar a língua, as tradições e os costumes. E daí o lugar central que ganhavam na execução das políticas públicas, por exemplo, na transmissão de informação de toda a ordem, jurídica, económica, social, no apelo à participação cívica, na cooperação em projetos de apoio ao ensino da língua, do teatro, folclore, desporto, de pesquisa ou de divulgação cultural (exposições, colóquios, conferências, intercâmbios. A colaboração entre Governo e Comunidades era imensamente vantajosa para ambas as partes e, com ela, se abria o que batizámos como “O Ciclo das Comunidades” - “políticas de reencontro” prosseguidas de uma forma sistemática. Uma forma de combater o centralismo do Terreiro do Paço, e o paternalismo tradicional. Não queria incumprir a parte do Estado, todos os programas de apoio que herdámos do passado eram para continuar, mas em diálogo – ao menos ma minha pequena Secretaria de Estado, acantonada no MNE. Mais difícil era sensibilizar o resto do Governo, a grande maioria, para a resolução dos problemas específicos dos expatriados. Os Ministros dos Assuntos Sociais, da Educação, das Finanças (para só citar os principais) tornavam-se frequentemente, “forças de bloqueio”, a pretexto de uma crónica falta de meios (sempre na cauda da Europa!). E, assim, o combate contra o “fogo amigo” foi o mais inglório, mas nunca desisti. No 1º Governo Balsemão, o meu protesto violento contra a insuficiência do orçamento terá determinado a minha expulsão da equipa governamental, juntamente com o meu colega da Cultura, Braz Teixeira. Ela afirmou que o orçamento da Cultura era vergonhoso, eu fiz manchetes de jornal, ao menos no Diário Popular, a adjetivar o orçamento da Emigração como “ridículo”! No 1º Governo de Cavaco Silva – o primeiro dele e o meu último – um novo episódio, que me colocou na situação de demissionária. Logo de início, recebemos instruções para cortar ligações diretas com os Governos Regionais, enviando todo e qualquer processo através do Ministro da República, General Rocha Vieira. O império lisboeta atacava em força! Um “diktat” impossível de obedecer, sob pena de inutilizar o património de confiança mútua, e de cooperação no quotidiano, falando de igual para igual, inclusivamente dentro do CCP, onde os Secretários Regionais e os Diretores de Serviços das Autonomias participavam, por direito e por gosto. Grandes amigos, como Virgílio Teixeira e Duarte Mendes. A minha desobediência militante passou despercebida na Madeira, mas não nos Açores, onde as relações entre Ministro da República e o Governo Regional eram péssimas, embora Rocha Vieira fosse consensual no continente (no seu diálogo com Soares e Cavaco). Fui, como sempre, convidada para mais um Congresso das Comunidades Açorianas pelo Secretário Regional Costa Neves. Aceitei, naturalmente, e parti, antegozando abraços com meio mundo e sem sequer me lembrar de prevenir o Ministro da República… Fui recebida, no aeroporto, pelos amigos açorianos, passei a tarde com eles, com eles parti para o salão do Congresso e aí me encontrei com o General Rocha Vieira. Da parte dele, cumprimento formal, que se diria amistoso, e pergunta ínvia: “Muito me regozijo-me em vê-la aqui, Senhora Doutora. Como veio?” Ao que dei resposta breve (que é a forma de evitar mais complicações): “No avião da TAP, naturalmente, Senhor General” O Congresso foi esplêndido. De tantas intervenções brilhantes, uma há que me ficou gravada na memória, a da professora do Rio Grande do Sul, a dizer: “Estou aqui a matar saudades de 300 anos…” Semanas depois, numa celebração em Lisboa, enquanto aguardava a entrada no auditório, entre muitos governantes e autarcas, veio falar comigo o PR Mário Soares. Recordolevava vestido um casaco escuro e, ao pescoço, um rolo de raposa (do que hoje, animalista mais consciente me envergonho…). O Dr. Soares, à mediada que ia pondo questões, distraidamente, puxava as pontas da raposa: “O que foi a Senhora Doutora fazer a um Congresso separatista nos Açores? Vi logo de onde viera o informe, e confirmei pela metade: “Estive realmente num Congresso das Comunidade Açorianas. E gostei muito, Senhor Presidente. De separatismo, nem sombra!”. O presidente mantinha a sua: “O problema é que não há comunidades açorianas, só há comunidades portuguesas!” E eu, também, convictamente: “Desculpe-me a discordância, Senhor Presidente. Claro que há comunidades açorianas! E minhotas, transmontanas, madeirenses, algarvias, etc. etc. Se não reconhecermos esta realidade, é que fomentamos o separatismo.” Uma das muitas virtudes do Doutor Soares era podermos falar-lhe, com esta inteira franqueza. Foi a falar assim que fiz a minha “estrada de Damasco” do soarismo. É coisa de que se pode dizer, também, do Presidente Eanes, mas não, por exemplo, de um Cavaco Silva, de um Rocha Vieira, com o seu semblante de jogadores de “poker” político…. Era evidente que Rocha Vieira fizera, apresentara igual queixa de mim a Soares e a Cavaco, com a sua subjetiva e legítima visão das coisas (tão legítima e subjetiva quanto a minha). O Presidente, sem revelar fontes, quis saber a minha posição, o Chefe de Governo, não. Mas eu, na primeira oportunidade, contei-lhe o engraçado diálogo com o PR. O seu único comentário foi: “O Doutor Soares puxou-lhe as raposas? Em público? Menos divertido foi o imbróglio orçamental, em fins de 1986. Era Ministro Pires de Miranda, engenheiro, especialista em negócios de petróleo, (nos corredores do Palácio, conhecido como “o petroleiro”), conluiado com o seu Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, cortou, em 300.000 euros, o orçamento da SECP para 1987, deixando-a com verbas que mal cobriam os custos do pessoal. De imediato, apresentei por escrito uma exigência da reposição, ou, em alternativa, o meu pedido de demissão. Um ultimato de prazo muito curto. Percebendo que a ameaça era séria, tratou de recompor o “meu” orçamento, com verbas subtraídas ao seu próprio gabinete. Durante o período de “suspense”, em plena discussão do Orçamento na Assembleia, pus os deputados da Subcomissão das Comunidades a par da situação. Todos, da esquerda à direita, me manifestaram solidariedade e souberam manter o sigilo… Apesar destas divergências com o Ministro,1986 foi um ano fausto. Depois da pequena tempestade de Porto Santo/85, a Reunião Mundial do CCP, por Regiões, correu esplendidamente nos quatro cantos da terra (Cabo, Maringá, Toronto e Estugarda). Em Capetown, o Conselho, para além da sua agenda regular de trabalhos, constitui-se em ato preliminar ou das comemorações da passagem de Bartolomeu Dias pelo Cabo da Boa Esperança. O Embaixador Villas Boas foi nosso convidado e acompanhou os trabalhos, do início ao termo. No final, resumiu a experiência, dizendo: “Este foi o melhor exemplo de prática democrática a que assisti em toda a minha vida”. Em Maringá, também a Reunião foi livre e esplendidamente organizada pelos Conselheiros e conseguiu projetar-se para o exterior, com impacto nas relações bilaterais luso-brasileiras, a nível da cidade (geminada com Leiria) e com o Estado. Imagine-se a minha surpresa ao ser recebida no aeroporto com guarda de honra militar, seguida de conferência de imprensa em que que câmaras e microfones pareciam querer bater recordes. Para quem chegava de uma viagem intercontinental, com pequena paragem em S Paulo foi um choque tal, que me despertou da sonolência em que vinha, a sonhar com um bom duche e uma cama de hotel… O descanso teve de esperar, mas, como dizem os brasileiros: “tudo bem!”. Em Toronto, a mesma simbiose. Estava no auge o escândalo dos pedidos de asilo de portugueses, que invocavam perseguição religiosa na qualidade de Testemunhas de Jeová. Ora Portugal é um dos países que melhor trata estes fiéis e os falsos perseguidos tinham todo o ar de serem também falsas testemunhas. Entretanto, todos os nossos compatriotas sofriam restrições de entrada no Canadá. Um tema escaldante, em que o Ministro da Imigração do Ontário, o meu amigo Tony Ruprecht, estava abertamente a nosso favor. Tinha sido meu convidado, em Lisboa, no Porto, e em Amarante, poucas semanas antes, e retribuiu, em Toronto, com um grande banquete de homenagem ao Conselho, para o qual convidou dezenas de dirigentes de associações luso-canadianas. Na reunião propriamente dita, participou Mota Amaral, que se encontrava no Ontário a festejar, salvo erro, uma década de Autonomia. Lá em festa, no país longínquo, em polémica – mais uma “guerra de bandeiras”, mais cretina de todas. Se bem entendi, tratava-se apenas de uma bandeira açoriana hasteada no hotel canadiano onde Amaral estava alojado!… Alheia à questiúncula, convidei-o a estar presente na sessão solene de abertura, ele aceitou, ficou “in the picture”, discursou e saiu, ao som das palmas. Por fim, a Europa não ficou atrás dos outros continentes. Nada a apontar, debates frutuosos, recomendações vigorosas e uma festa de encerramento, com fados nas belas vozes (fadistas) de José Gama e Caio Roque (eu não pude contribuir, porque desafino) De realçar que o CCP continuava a sua rota de transformação, com duas propostas de grande alcance: a criação uma “Comissão Interministerial para as Comunidades Portuguesas”, onde seriam trabalhadas as matérias das recomendações e feito o ponto de situação, e a convocatória de “Conferências” temáticas, anualmente, por país, na órbita do Conselho. Era uma forma de alargar o círculo associativo à comunidade inteira, em debates sectoriais. Pelos Conselheiros foi concedida prioridade a três: ensino, juventude e questões económicas e financeiras. Eu aproveitei para acrescentar mais uma: a “Conferência para a Igualdade e Participação das Mulheres” - aceite, sem objeções (nem objeção, nem entusiasmo…). Era preciso implementar as recomendações do 1º Encontro Mundial de Mulheres, realizado no ano anterior, desenvolver consistentemente políticas públicas de igualdade na emigração. A queda do governo minoritário, vítima da moção de rejeição do PRD, sufragada pelo PS, foi o princípio do fim daquele partido novo, mas também do CCP, que do seu ponto mais alto caía num buraco negro – e, com ele, as esperançosas conferências temáticas e as políticas de género. Menos dramática era a minha situação pessoal. De volta à AR para ficar, durante quase duas décadas de imparáveis digressões, que fizeram as crónicas e os “cartoons“da “Manuela a voar”. Tudo somado, muitas voltas ao mundo, embora ao mundo familiar. De facto, fui, por exemplo, mais de cinquenta vezes ao Brasil e nenhuma ao ao Equador, ao Perú ou a Cuba- onde pode haver compatriotas solitários, mas não comunidades… Todavia, a minha fama de “globetrotter” ignorava essa limitação. Até o Doutor Soares, quando se falava de um qualquer país remoto se virava para mim e perguntava, mais em tom de ponto de exclamação do que de interrogação: “A Senhora Doutora já lá esteve?!” Uma eventual negativa, não o inibia de reinserir em conversa futura. De várias saídas de Governo guardo díspares memórias. Em agosto de 1981, estave num grande encontro de emigrantes, em Santo Tirso, toda de branco vestida, a apelar à sensibilização do país para as realidades da emigração. O Ministro Gonçalves Pereira viu a utopista, pela televisão, e, no “day after”, com ar de gozo, fazia-lhe ambíguos elogios… Em 1985, vivia o rescaldo de uma tragédia de proporções dantescas – o desastre ferroviário de Alcafache. Soube, em primeira mão, através de Amândio de Azevedo, Ministro do Trabalho, e pus-me a caminho, sempre em contacto com a Delegação da Guarda. Antes de chegar, já o responsável, Prof Campos, estava no hospital. A visitar os emigrantes internados e a emitir passaportes provisórios aos que tinham perdido tudo no incêndio. (anotava os dados pessoais e tirava os retratos, com a sua máquina fotográfica!). Foi onde o encontrei. Na manhã seguinte reuni com dezenas de viajantes, ouvi relatos de horror, muitos choravam mortes de familiares e outros companheiros de viagem. Havia um número elevadíssimo de jovens, com quem reuni no dia seguinte, enquanto esperavam a emissão do passaporte de emigrante. Não sei porquê, tive o pressentimento de que alguns iam à procura de emprego e tratei de os esclarecer: não estava ali para fiscalizar a situação de ninguém, mas para ajudar todos. Contudo, o passaporte de emigrante só servia a quem tivesse esse estatuto, porque tinha de ser renovado no consulado, onde tivessem inscrição prévia. A mensagem passou, disseram a verdade… A esmagadora maioria ia, de facto, “a salto” para França. As nossas fronteiras estavam abertas, as da CEE, ainda não e.eu jamais imaginara que o êxodo invisível fosse, então, de tal ordem de grandeza. Aquele número multiplicado pelos dias do ano, dava muitos, muitos milhares de portugueses “clandestinos”. O que fazer, naquelas circunstâncias tão dramáticas? Pedimos ao Governo Civil que facilitasse a concessão de passaportes de turismo, como nós fazíamos com os passaportes de emigrantes. Em 1987, antes ds retirada (definitiva) pude presidir á 3ª Conferência Ministerial do Conselho da Europa para as migrações. Na anterior” Conferência”, (Roma/83), tinha sido Vice-Presidente, juntamente com a Ministra sueca Anita Gradin. Nesses três dias romanos, se forjou uma cumplicidade duradoura entre três mulheres, Anita, Georgina Dufois e eu. Elas de poderosos países de imigração, eu de um grande país de emigração, unidas pela mesma visão humanista (o que a Georgina iria custar, anos depois, o seu lugar na Assembleia Nacional e no Governo). Éramos, as três, feministas – defender os direitos das mulheres e os direitos dos estrangeiros é, mais ou menos, a mesma coisa. As três tomámos a palavra e falámos alto e claro na Conferência. Eu não hesitei em abordar a questão sensível dos regressos, que os países de acolhimento queriam estimular e os de origem temiam. No caso português, pressenti que aquele retorno estava em curso - e a correr, globalmente, bem. Levava um documento, preparado pelos serviços, em Lisboa, a afirmar que “não havia regressos significativos a Portugal” e no meu discurso cortei o “não” e disse. “Há regressos significativos a Portugal” Nem o Instituto (IAECP), nem eu, tínhamos números concretos, mas enquanto os funcionários viviam fechados nos gabinetes de Lisboa, eu percorria as terras de forte emigração, falava com muita gente, via as casas novas na paisagem rural, ia formando outra opinião. Os primeiros estudos científicos (de Manuela Siva e Sousa Ferreira), divulgados nos anos seguintes, dar-me-iam razão… Outra matéria que suscitei, agitando águas paradas, foi a da dupla nacionalidade, procurando mostrar que corresponde ao sentir de mulheres e homens afetivamente relacionados com os “seus” dois países, aquele de onde vieram e aquele que escolheram para viver: A dupla nacionalidade, declarei, não serve apenas a finalidade de manter laços à terra originária, mas também facilita, enormemente, a adoção da segunda nacionalidade, e, com ela, a melhor integração no novo destino. Assim começava o combate ativo pela revogação da Convenção de 1953 do Conselho da Europa, que consagrava a unicidade de cidadania. Um longo caminho a fazer…Foi já como membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, nos anos 90, que participei no derrube da anacrónica “Convenção” As intervenções feitas na 2ª Conferência deram-me oportunidade para apresentar a candidatura de Portugal, à organização da 3ª Conferência de Ministro, que foi aprovada no final. Estava prevista para Lisboa e eu consegui, não sem dificuldade, desviá-la para Norte. O Conselho da Europa privilegiava as capitais, argumentando com os requisitos de mediatismo, segurança e facilidade de transportes aéreo. Eu mostrei que no Porto teríamos presença de todos os “media”, que era uma cidade mais segura (até, então, atentados terroristas, só em Lisboa e no Algarve…) e ligada à Europa por todas as grandes companhias de bandeira (hoje, quase desaparecida a TAP do Aeroporto Sá Carneiro, continua bem conectada, mas por companhias” low-cost”). Foi uma aposta ganha! Reunimos no fabuloso salão árabe do Palácio da Bolsa (todos gostaram e os turcos, em particular), almoçamos e jantamos, em lugares especiais, do elitista Clube Portuense às caves de vinho do Porto, oferecemos espetáculos para todos os gostos, de concertos de piano de Pedro Burmester a exibição de ranchos folclóricos, a desfilarem entre pipas de vinho fino. Ministros e funcionários internacionais deslocavam-se em autocarro de luxo, com vistosa escolta policial, e, a fechar o cortejo, o veículo de socorros médicos. Uma organização impecável, que em muito se ficou a dever aos poderes locais, (sobretudo ao Eng.º Carlo Brito mais tarde, Ministro da Defesa…). O único reparo foi uma queixa da Polícia contra o meu constante incumprimento das medidas de segurança impostas aos Ministros. Fiquei admirada, não me considerava abrangida pela regra… andava ocupadíssima, a cuidar de pormenores relevantes como anfitriã, e sentia-me à vontade, nas ruas da minha cidade…. Julguei que estava excecionada da regra geral. Mas mesmo quando não estava, na verdade, tentava escapar. A segurança provoca-me insegurança… O mais frisante exemplo foi ter de atravessar as vielas estreitas da velha Jerusalém, cercada de soldados de metralhadora. Num domingo de Páscoa, que por lá é um dia como outro qualquer…. Só na igreja do Santo Sepulcro, repleta de cristãos, senti o ambiente de festa. Enfim, como convidada da Embaixada de Israel, não tinha alternativa. O mesmo aconteceria na Grácia, com escolta bem mais discreta – dois homens e uma mulher, muito bem vestidos, não destoavam nem mesmo no átrio do nosso hotel cinco estrelas e eram amabilíssimos (nos gregos a amabilidade é natural). Os soldados de metralhadora só faziam o turno da noite, em frente à suite do hotel…A adjunta que me acompanhava, quando abriu a porta do quarto contíguo e deu de caras com uma metralhadora, por pouco não desmaiou. Lívida veio ter comigo (os quartos eram contíguos) e eu tranquilizei-as: “Não se preocupe, Isabel, eles são a nossa segurança”. Nem em Israel iam tão longe. Ali justificava-se, do ponto de vista helénico, porque andavam na rua gigantescas manifestações anti-NATO. A Nato estava reunida em cimeira ministerial na Turquia, país para onde, por acaso nos dirigíamos, embora não para o “convívio NATO”. A emigração era a finalidade, tal como ali em Atenas, onde reunimos com a Ministra da Cultura, Melina Mercouri (na Grécia, as questões da Diáspora estavam no seu pelouro – e muito bem!). Na África do Sul, logo na primeira visita, destacaram, para minha proteção, dois seguranças, um major e uma sargento (ou sargenta), de origem portuguesa. Ambos encantadores. Sempre que as refeições não eram demasiado oficiais, convidava-os para a minha mesa e conversávamos descontraidamente (coisa que nunca lhes tinha acontecido em missões semelhantes). O país mais liberal, neste capítulo, foi o Brasil. Bastava-me assinar uma espécie de “termo de responsabilidade” e a segurança eclipsava-se. Se considerar, rigorosamente, a minha última noite de governação, direi que terminou em nota alta. Nota é a palavra certa, nota musical: foi num Festival da Canção Migrante, realizado dentro das muralhas do castelo de Santa Maria da Feira. Em ambiente mágico… O último e o melhor dessa série de Festivais, já com um percurso de vários anos. De princípio, nos moldes da canção da Eurovisão, com votação de júri. Suspeições e protestos eram inevitáveis e, por fim, decidi por um novo figurino. Cada país (ou comunidade), organizava o seu evento e enviava à finalíssima o seu representante. A Portugal vinham, assim, os vencedores, todos homenageados por igual, num “Festival dos Festivais”. Em festa e em paz! Foi assim uma saída em palco, entre artistas, abraços, flores e aplausos Findava o vaivém entre o Executivo e o Legislativo. Em tempo de balanço concluo que “tanto monta, monta tanto” o primeiro como o segundo. Aquele em que me achei a resolver problemas práticos, em luta quotidiana contra a pesada máquina burocrática (no início, com cenas que pareciam saídas do “Yes; Minister) e os minguados orçamentos. (a exceção foi o Governo de Sá Carneiro), a fazer coisas pelas pessoas e com as pessoas num espaço sem limites conhecidos (quantos somos? Ninguém sabe ao certo…). E o outro, em que entrei cheia de dúvidas… o meu normal estado de espírito face ao desconhecido e reentrei, antegozando um novo regresso a casa. Em 1987, tinha recusado, liminarmente, candidatar-me pela emigração, depois dos episódios dos cortes orçamentais, e de problemas vários, com o MNE e um Governo, no qual os Secretários de Estado tinham descido ao estatuto oficioso de “ajudantes de Ministros”. Ao que me contaram, questionado no Conselho Nacional sobre o meu afastamento dos Círculos da Emigração, o Prof. Cavaco terá respondido, secamente “Ela não quer”. Era exato! Aceitei um convite da Distrital do Porto. Um dos meus tios avós tinha sido, na 1ª República, deputado pelo Porto. Interessante sentar-me na mesma cadeira, sete décadas depois! A campanha eleitoral foi a mais divertida de sempre, com Deus Pinheiro como cabeça de lista. Um dos eventos foi um concerto de música jovem, ruidosa, na Foz. Cheguei atrasada de uma outra ação, com o Dr. Brochado Coelho. Enganámo-nos no ponto de entrada dos oradores e éramos obrigados a dar uma volta completa ao improvisado redondel, acotovelando uma multidão de blusões de couro. Horrorizada, sugeri ao meu companheiro de aventura que saltássemos a barreira, caminhando em linha reta para a meta. A barreira é alta…consegue saltar?” Estava se saia curta, mas o local era escuro, ainda sem holofotes ligados. Tranquilizei-o: Sem problema. Vamos! E saltamos a coberto da escuridão. Porém, eu aterrei em cheio em cima de montes de tubagem preta, e os meus óculos voaram.... Tivemos de os procurar, antes de, discretamente, tomarmos lugar no palco. Ainda esperamos um bom bocado, até um dos jovens organizadores vir ao microfone explicar que o concerto se atrasara e estivera em risco, por causa de uns vândalos que tinham andado a dar pontapés aos cabos de ligação! Brochado Coelho e eu nem pestanejámos… A vitória retumbante, no Porto e por todo o lado, deu ao Prof Cavaco a primeira maioria absoluta de um só partido, desde a Revolução. Desta vez, tinha pela frente um horizonte de quatro anos e o retorno das dúvidas: longe dos familiares domínios das migrações, o que poderia eu fazer de útil na Assembleia? A resposta veio de mais um insólito convite: o PSD, ou seja, o Prof Cavaco, escolhera-me para ser candidata à 1ª Vice-presidência de Assembleia – a primeira mulher, e, por pertencer ao partido maioritário, a primeira dos quatro vice-presidentes. Um parêntesis para dizer que em matéria de igualdade de sexo, PSD e PS escolheram caminhos diferentes. O PSD apostou sempre em nomeações inéditas de mulheres para altos cargos: as primeiras Governadoras Civis, as primeiras juízas do Tribunal Constitucional, as primeiras mulheres Ministras, (Leonor Beleza, Teresa Gouveia, Manuela Ferreira Leite). Eu terei sido a primeira Secretária de Estado, militante de um partido político, pelo PSD. Até aí as poucas mulheres a ocupar cargos de Governo, incluindo a Chefe do Governo Pintasilgo, eram “independentes”. O PS jogou na sua ascensão em massa, a diversos níveis de participação política, e, consequentemente, adotou o sistema de quotas. A meu ver, não há razão para não apostar, em simultâneo nas duas vias, mas a ter de escolher, começaria pela segunda (seguindo a passada da social democrata sueca). Contudo, reconheço que o mais vistoso é realçar as “mulheres-exceção”. Ser a primeira mulher a presidir ao Plenário, a chefiar Delegações Parlamentares, e a ocupar (supostamente) o 2º lugar na hierarquia do Estado teve esse efeito imediato. A 1ª Vice-presidente estava, sim, no topo para substituir, ou suceder, ao Presidente da Assembleia da República(PAR) e era, por isso, a segunda na linha de sucessão do Presidente da República. Quer dizer: se a fatalidade tivesse atingido as duas mais altas personalidades, tornar-me-ia, Presidente da República em funções, até à realização de novas eleições. Por sorte, todos acabamos o mandato de boa saúde. E, em todo o caso, a visibilidade foi colossal, superior até à que mereceria a eleição de uma Deputada para a Presidência da Assembleia, já no século XXI, por iniciativa do PSD (embora só depois de falhar a candidatura masculina do Dr. Fernando Nobre…). Devo dizer, aquelas não eram funções que me deslumbrassem. De positivo, o facto de combater estereótipos masculinos no dia a dia, o que recomendava um envolvimento no máximo possível de ações. O cargo, tirando a necessidade de substituir o PAR no hemiciclo, de vez em quando, teria o conteúdo que eu lhe quisesse vazar. Podia ficar na bancada, à espera de uma chamada do Presidente para assumir a cadeira da presidência, ou aceitar uma multifacetada agenda de compromissos, obviamente a minha opção. O perfil discreto de um presidente introvertido terá convertido essa agenda na mais densa e variada de sempre. Choviam convites, que eu aceitava – receções do corpo consular, onde fiz amizades com embaixadores de todo o mundo, comemorações dos três ramos das Forças Armadas, eventos marcantes das autarquias, e de instituições de toda a natureza e, “last but not least”, constantes, afetivos, irrecusáveis solicitações das comunidades da Diáspora! Habituei-me a fazer tudo isso, ao mesmo tempo, durante quatro magníficos anos, porque, apesar de ter mão dura a dirigir os trabalhos, fui eleita e reeleita, anualmente, até ao fim da legislatura. Porém, não tendo desejado o lugar, intrigava-me ter sido escolhida para o ocupar. Servia, evidentemente, uma estratégia partidária de nomeações femininas, mas porquê eu? Ouvi dizer que, de todas as eleitas pelo PSD, fui considerada a mais indicada para manter a lei e a ordem, pelas provas dadas a presidir aos tumultuados plenários mundiais do Conselho das Comunidades! A “lenda negra do CCP dava dividendos…incrível! Na realidade, as escaramuças do Conselho nunca me maçavam, ao contrário dos golpes de teatro do hemiciclo de São Bento, a que achava pouca graça. Na mesma corrente navegava o PAR Vítor Crespo, um não jurista, catedrático de Química, doutorado por Coimbra e Berkeley, que me entregava, com frequência, a condução dos trabalhos. A primeira vez, não tardou. Fez-me um simples sinal com a mão, para subir à mesa da presidência, e lá fui eu ocupar o cadeirão de veludo rubro, o mais discretamente possível, para escapar a discursos de boas vindas. Ilusão que não durou um minuto. Natália Correia e Helena Roseta levantaram-se a aplaudir e logo deputados de todas as bancadas as imitaram. Foi a minha primeira e última “standing ovation”! Levantei-me, também, com um meio sorriso, sem gozar o momento, a mente ocupada a magicar o mais breve modo de dizer “muito obrigada”. Apenas me ocorreu dizer que aquelas palmas não eram para mim, mas para todas as portuguesas, para a presença ali de uma mulher, que há tanto tempo se fazia sentir. No dia seguinte, em vários jornais, aparecia retratada com o meu vestido de flores, inadequadamente juvenil, e o tal sorriso tímido. O episódio era saudado como um 8 de março antecipado. De todos os artigos e comentários, nenhum me sensibilizou tanto como o de Elina Guimarães, a feminista que sobrevivera à sua gloriosa geração. As avós ideológicas, com as quais persisto em me identificar (pouco “woke”, eu sei…). Escrevi-lhe, de imediato, a agradecer e dela recebi uma carta que guardei como verdadeira preciosidade – a mensagem vibrante numa letra já trémula. O episódio seguinte da minha presidência foi um teste, depois do qual tudo o que acontecesse não podia ser pior: o caso Cicciolina! A deputada italiana, atriz porno em part-time, atriz “ Entrou na Assembleia invocando a primeira qualidade, para exercer a segunda… De vestido branco, a arrastar pelo chão, grinalda de flores no cabelo e ursinho ao colo, irrompeu na tribuna VIP, sem que a Mesa tivesse dado a (obrigatória) autorização para a sua presença. Sentia-se a sala eletrizada. O meu colega da direita, o Reinaldo, pôs-me a par da situação e recomendou-me. “Olha”! A irritação levou-me fazer o contrário: “Não olho!” Impassível, focava-me nos oradores, enquanto o Secretário contactava o Presidente Crespo. De acordo com as suas instruções, deixei correr o plenário… Até ao ato de desnudamento, que fui a única a não ver, mas adivinhei na excitada movimentação de cabeças de todas as bancadas. As cabeças ondeavam como uma seara ao vento. Nogueira de Brito, no auge da indignação, interpelou a Mesa, mas não precisou de acabar o protesto. Atalhei: “Esta suspensa a sessão”. O hemiciclo esvaziou-se e reinou o caos por um quarto de hora nos Passos Perdidos, entre a festa de alguns (ou algumas, como Natália, eufórica com a metamorfose surreal do patriarcalista fórum) e o absoluto furor de outros. Longe da romaria, eu conversava com o Presidente Crespo, que, á claro, preferiu manter-se a de fora desta história. Expulsa a intrusa, retomei a presidência, e, no meu lacónico estilo, encerrei emoções em poucos segundos. “Esperava-se que a deputada se tivesse comportado como deputada”. Sem mais, dei a palavra ao orador inscrito. E, assim, depois da onírica aparição, ficou reposta uma normalidade particularmente morna. A principal consequência foi o Prof Crespo tender a delegar-me a presidência em futuros imbróglios, menos mediáticos, é certo, mas que não escapavam ao olhar crítico dos jornalistas parlamentares. Um deles, em linguagem terra a terra, escreveu que me deixava “as batatas quentes”, o que alimentava alguma animosidade presidencial (contra mim, não contra a imprensa), só desvanecida, quando ambos abandonámos os cargos. Nunca me queixei, embora me sentisse como a provadora da comida de um chefe com medo de ser envenenado. E colhi alguns frutos, por exemplo, ser incumbida de presidir à Delegação Parlamentar ao Japão, simultaneamente, a primeira da Legislatura, a primeira historicamente liderada por uma mulher, e a primeira ao país do sol nascente. Isso só aconteceu porque era viagem de alto risco, na pendência de uma guerra, ainda não fechada, entre a AR e o MNE. O Ministério, a pretexto do não reconhecimento da anexação soviéticas das Repúblicas Bálticas, obrigara ao cancelamento, na 25ª hora, de uma visita oficial do PAR Fernando Amaral a uma dessas Repúblicas (já não sei qual…). A eventual hostilidade da nossa Embaixada em Tóquio assustava o Prof Crespo, pelo que lá fui eu em seu lugar, acompanhada dos líderes parlamentares Correia Afonso, (PSD), Narana Coissoró, (CDS), Octávio (PCP), e Rui Silva (PRD), atéTóquio, Nagasaki e Kyoto. Li Wenceslau de Moraes, o Embaixador Janeira, conversei, em restaurantes lisboetas com mais recentes Embaixadores no Extremo-Oriente, contactei o detentor do posto, Embaixador Melo Gouveia, preparei os presentes e os textos para discursos (que depois não li). Tudo valeu a pena… Melo Gouveia foi de uma simpatia inexcedível, fez todas as viagens connosco, sempre pronto a contar histórias pedagógicas e divertidas (era um verdadeiro “orientalista”) e, no final, enviou uma mensagem que eu li, no plenário, a elogiar superlativamente toda a Delegação e o seu êxito. E nem precisou de exagerar. As memórias desses cinco ou seis dias fantásticos davam um livro inteiro… Do lado nipónico, organização perfeita, o programa e a execução – audiências com o Primeiro Ministro, o Parlamento (Presidentes das Câmaras, Comissão de Negócios Estrangeiro, Governadores, Universidades, empresários, monges budistas, e lugares simbólicos da presença portuguesa – Omura e Nagasaki, fundada pelos portugueses sobre uma colina, e sacrificada pelo holocausto atómico americano no século XX… Preveni os ilustres colegas a pontualidade era obrigatória. Se se atrasassem, não esperava por eles, ameaça que foi levada a sério. Mais difícil era obriga-los a gostar do que eu gostava - o chá verde, o peixe cru, a carne quase crua das vacas massajadas vagarosamente…. Sina minha no estranho universo da política, entendo-me sempre melhor com estrangeiros do que com nacionais, sejam zulus, modernos vickings, sul americanos ou orientais. O diplomata nipónico que integrava a comitiva, de início muito formal, a meio da estada, já parecia um de nós. Muito divertido era, igualmente, o nosso Embaixador, que estava de bem connosco e de mal com o MNE (por causa das despesas de representação que, na caríssima cidade de Tóquio eram semelhantes às das bem mais acessíveis Seul ou Bangcoc. Para nos provar a sua razão, informava-nos dos preços de tudo – refeições bebidas, bolos, transportes. Era de estarrecer! Estávamos em Nagasaki quando Rosa Mota venceu a maratona de Seul, e a gerência do hotel festejou, oferecendo-nos champanhe “Moet et Chandon”. Melo Gouveia não perdeu a ocasião de pôr o preço em cima de cada garrafa. A bebida mais cara das nossas vidas! Prudentemente, eu dissuadira os meus colegas de levarem as mulheres com eles. Não sendo convidadas teriam de pagar as suas contas. Quanto os levei a poupar! Outra das recomendações foi a de viajarmos todos, até ao Japão, em 1ª classe. Era prática comum, que eu não seguia, mas os serviços da AR aceitavam, a troca dos bilhetes para classe económica, usando a diferença para as (ou os) acompanhantes. Eu não queria ficar na sala VIP do aeroporto, com o comité de receção, à espera dos que saíssem dos fundos do avião. No regresso, cada qual fazia como entendesse. Finda a missão, não me competia dar palpites. De Tóquio partimos para a Tailândia, de onde Octávio seguiu para Lisboa e Narana para Goa. Os demais ficaram comigo em Bangcoc. Estávamos por nossa conta, sem despesas para a AR, embora aproveitássemos para mais os contactos parlamentares bilaterais. Fomos recebidos pelo “Speaker” e representantes dos vários partidos, numa reunião muitíssimo cordial. A história de Portugal está viva na Tailândia, onde nos foi oferecida uma magnífica Feitoria, para instalação da Embaixador (privilégio de que não goza algum outro país). O mesmo pudemos constatar por todo o Japão e em Malaca, etapa seguinte do nosso périplo asiático. Na Malásia, a ausência de representação diplomática em Kuala Lumpur, inviabilizou o diálogo interparlamentar, a receção (quase) oficial. À saída do aeroporto, tomámos um táxi para Malaca, onde nos esperava um “embaixador informal”, o Padre Pintado, um estudioso da história e do dialeto luso-malaio, que é lá designado por “cristang”. Com os goeses (Narana e Correia Afonso) de visita à terra ancestral, o nosso grupo estava reduzido a Jorge Lacão e o Rui Silva, suas mulheres (ambas encantadoras jovens) e eu. No Palácio das Necessidade, poucos meses antes, eu tinha recebido, o “Chief Minister” de Malaca, que, na sua terra, retribuiu em grande! Durante os três dias de estadia, fomos tratados com pompa semelhante à de uma visita oficial - carros oficiais ao nosso dispor, luzida escolta policial, a animar as ruas, encontros e convites para jantar dos Ministros do Turismo, da Cultura, da Economia, visitas a museus, templos, lugares históricos (o que resta da” Famosa”, por exemplo). Malaca guardava, sem complexos, a memória dos sucessivos encontros com o Ocidente, Portugal, depois a Holanda e a Inglaterra. Nós, é claro, com menos património material, mas mais memória e a força de uma comunidade de fala seiscentista e inabalável fé cristã. Ainda estão connosco, apesar de os ignorarmos há 500 anos! O encontro no “Portuguese Settlement”, com uma comunidade luso-malaia, ainda hoje ligada à faina piscatória, foi inesquecível - folclore, gastronomia, carinho, um ambiente de romaria minhota… Porém, o melhor estava reservado para o dia seguinte. Voltámos à Praça Portuguesa, sem receção organizada para ver como era no quotidiano e saiu-nos a sorte grande. Deambulávamos, por ali, quando nos cruzámos com três pescadores, que vinham do mar. Mal nos ouviram falar, correram para nós de braços abertos, exclamando, como se de uma aparição/milagre se tratasse: “Temos aqui a nossa gente!”. E abraçaram-nos. Todos, eles e nós, em lágrimas…Um feliz fim de missão. No ano seguinte, chefiei outra delegação à Hungria, então a entrar numa fase pré-democrática, a anunciar bons ventos de mudança (quem diria que três décadas, com Orbán, o vento sopra ao contrário?). Budapest encantou-nos. Os nossos interlocutores, também. As fotos mostram-nos, descontraídos e sorridentes, nas conversações parlamentares e governamentais. Garanto que expressam bem a realidade. Nas ruas do centro, o mais apetecível eram as graciosas pastelarias e as pequenas lojas, que vendiam os discos de vinil mais baratos do mundo. E, também, cambistas clandestinos, numa atmosfera de prevaricação libertária (eu não lhes dei dólares a ganhar, mas outros deram. Ainda liderei uma terceira Delegação à Suíça, mas a meias com o Prof Crespo, que esteve ausente apenas na primeira metade. Talvez por ser o país da Europa onde, com exceção da França, mais cursos e estágios fizera, não conservei, desses poucos dias, tão precisas e detalhadas recordações, como as que permanecem do Japão (sobretudo do Japão!) e da Hungria. Posso, contudo, assegurar que também decorreu no melhor dos ambientes humanos. À despedida, ofertas chiques para todos os membros da Delegação, e com “upgrade” para os dois chefes da Delegação, Victor Crespo e eu : relógios suíços, é claro! Iguais, ambos de homem…. Só uma senhora do “comité de receção” se apercebeu do desajustamento de género, no meu caso. Quis tranquilizá-la (afinal, dava um ótimo presente para meu pai), mas não consegui. Rápida, desapareceu por minutos e voltou com um presente suplementar, bem feminino, um belo lenço Cartier, que eu uso imensas vezes. Foi o gesto que, para mim, marcou visita (uma simples caixa de chocolates teria tido o mesmo impacto). Outro capítulo foi o da liderança de delegações femininas – que, suponho, nunca houvera na história parlamentar portuguesa. A primeira foi ao Iraque, em plena guerra com o Irão. A iniciativa partiu, naturalmente, do Embaixador iraquiano, um dos meus inúmeros amigos diplomatas, que me sabia, como feminista, grande adversária do regime dos aiatolas. Ditadura por ditadura, preferência à que era laica e defendia a participação cívica e política das mulheres. O Embaixador transmitiu-me um convite da Federação das Mulheres Iraquianas dirigido às Deputadas da Comissão da Condição Feminina. Não hesitei em lhe dar andamento. Eu presidia à Comissão e consegui agilizar o processo, com apoio unânime das e dos colegas. A Delegação foi composta por cinco Deputadas (do PSD, PS, PRD e PCP). Partimos num Boeing 747 da companhia iraquiana, para uma semana num país em pé de guerra. (e quanto ao avião, havia rumores de que o avião, que vinha do Brasil, no porão transportava, armas. Não sei…). Passageiros, na luxuosa 1ª classe, éramos poucos. Um voo tranquilo, descontando os atrasos. Chegámos com um atraso de horas a Bagdad. Nessa semana aconteceu de tudo um pouco. No 1º dia, caiu um míssil a 500 metros do nosso hotel (o famoso “Al –Rachid”), no preciso momento em que entrávamos nos carros. O chão tremeu, à nossa frente erguia-se uma densa coluna de fumo. Um vislumbre de guerra… Durante a noite, já houvera uma (falsa) ameaça de invasão aérea, a desencadear enérgica reação nos céus iraquianos, com imenso estrondo e um “show” de balas tracejantes. Três das minhas colegas refugiaram-se no interior dos quartos, das casas de banho, Só uma, a ribatejana do PSD, abriu os estores e gozou o espetáculo. No dia seguinte contava: “Que bonito! Parecia fogo de artifício”. Eu nem sequer acordei (possivelmente caso único nas redondezas). Nos seis dias restantes, no capítulo bélico, nada mais ocorreu, por perto. Circulávamos à vontade, na companhia das nossas anfitriãs, vestidas de saia curta, com cabelos descobertos, como nós, almoçávamos e jantávamos em hotéis de luxo, vazios de turistas. Só em zonas rurais vi mulheres de negro vestidas. A nossa agenda foi intensíssimo, entre visitas a “sites” arqueológicos e museus, audiências com Ministros de perfis radicalmente opostos, uns agressivos, outros amabilíssimos e cultos, (incluindo um poeta), com mulheres interessantes, orgulhosas do seu trabalho, curadoras de museus, Diretoras –Gerais, Deputadas… O mesmo não poderei dizer das nossas anfitriãs, as dirigentes da Federação das Mulheres Iraquianas. Não se aproveitava uma – muito “básicas”, a debitarem os “slogans” do regime. Muitas estavam visivelmente grávidas, cumprindo as metas de Saddam, que encorajava as mulheres a darem filhos à pátria (para a guerra da próxima geração). Algumas já velhas demais para a incumbência. As nossas mundividências não se ajustavam, as relações não eram as melhores. Até quiseram cortar do programa a desejada visita a Babilónia, com pretextos nebulosos de falta de condições. Mas a sorte esteve connosco… No último almoço oficial, o Presidente do Parlamento (um verdadeiro “gentleman”, que falava um inglês perfeito), quis saber as nossas impressões do país, e eu, a meio da conversa, não perdi a ocasião de lamentar a não ida a Babilónia, por “questões de segurança”. A nossa guia, entrou em pânico. Que divertido foi vê-la a alegar um mal-entendido gerado na tradução, gesticulando imenso. Consequência: dali sairíamos diretamente para a Babilónia! A sinistra criatura, nervosíssima, ia pelo caminho, ao telefone, a combinar os detalhes da receção improvisada. Se mais não tivesse havido, isto bastaria para nos elucidar sobre a natureza do regime, assente no medo, e onde qualquer erro ou intriga podia ser fatal… Nesse aspeto, igual aos vizinhos… Diferente, porém, pelas singularidades. O laicismo de estado, a tolerância religiosa, a promoção da igualdade de sexos, com um terço de mulheres no Parlamento, muitas na Administração Pública, um estilo de vida semelhante ao nosso… Saddam tinha o seu “quê” de Ataturk iraquiano. Nas políticas de género, ganhava de longe a Salazar e, até, a Caetano. Ao contrário do cinzento homem de Santa Comba, exibia, em mil e um retratos a sua boa figura, nos comércios, nos restaurantes, nas repartições, nos cartazes espalhados pela cidade. Fotogénico, sem dúvida!. Nas lojas, nas ruas, por todo o lado, as pessoas eram amáveis, sorriam, pareciam apreciar presença estrangeira. Quando, no início do milénio, o país foi destroçado, pela invasão americana, era nelas que eu pensava. Nesse ano de 88, a atividade bélica já declinava em Bagdad, não havia mais do que a explosão de um míssil por dia. Perguntávamos se já tinha caído o míssil, como quem discute o sol ou a chuva. Facilmente nos adaptamos a qualquer nova normalidade. Por essa altura, outras das nossas colegas foram dar a sua solidariedade ao Afeganistão, contra a barbárie misógina de talibãs. Assim alinhávamos com os movimentos de “empoderamento” de mulheres nas mais improváveis regiões do mundo. Do Iraque regressei, pelo visto, mais conhecedora das realidades iraquianas e da psicologia do ditador do que o Presidente dos EUA, os seus diplomatas e espiões. Saddam não tinha “armas de destruição maciça”, e, mesmo que tivesse, não as usaria a ocidente. Era um homem racional, sem impulsos suicidas… Regressámos a Lisboa no mesmo 747, que ligava Bagdad ao Brasil, com escala em Larnaca, onde (que coincidência!) estava acantonado um avião sequestrado, que se temia pudesse explodir a qualquer minuto. Passar a poucos metros daquele alvo prestes a explodir e imaginar que ali estava tanta gente condenada à morte, foi a hora mais negra da viagem … Por milagre, todos haveriam de sair com vida e saúde daquela caixa voadora! A Comissão da Condição Feminina estava, assim, a funcionar como nunca se vira, o que era essencial, tratando-se de uma Comissão muito dependente das maiorias parlamentares. Em regra, emergia com o PS e desaparecia com o PSD. Em 87, a maioria Cavaquista hesitava sobre o seu destino, mas acabou por me convidar para a sua presidência. Aceitei, naturalmente. A primeira tarefa foi “varrer” uns misóginos do PSD, que minavam os trabalhos, com graçolas e despropósitos, e “recrutar” substitutos na ala sindical do partido, que é a melhor. E, em bom ambiente, logo entramos na dinâmica de outros parlamentos internacionais e das instâncias europeias. Passámos do “zero” à vistosa participação em conferências do Conselho da Europa e da Comissão Europeia, em Bruxelas, Estrasburgo, e em intercâmbios com congéneres do vasto mundo… A Comissão da Condição Feminina, em contactos internacionais e deslocações ao estrangeiro (Iraque, URSS, Israel, Espanha, Suécia…), excedia todas as outras, inclusive a de Negócios Estrangeiros, que quase nunca vai a lugar algum. E foi isso o que, por mais incrível que pareça, determinou a sua extinção… Misoginia, inveja a dobrar. Nada de novo. Já “Os Lusíadas terminam com o substantivo inveja…. Se não queriam movimentação, não deveriam ter-me querido à frente da Comissão. Eu, até no tempo da Ditadura, multiplicava diálogo e contactos internacionais, (embora não na URSS, como é óbvio). Mais tarde, na presidência da Subcomissão das Comunidades Portuguesas também promovi uma pioneira peregrinação pela emigração portuguesa, na África do Sul, Moçambique, Zimbabué… A segunda viagem de solidariedade estava programada para a Venezuela, quando caiu o Governo Santana Lopes. Suponho que, até hoje, nunca mais se fez, nem a Caracas, nem a qualquer outro destino Muito mais intensa foi, é claro, a minha agenda pessoal, (por não envolver custos, nem entraves burocráticos). Incluiu convites e temas variados - a visita oficial do Presidente Soares à URSS (Rússia, Arménia e Azerbaijão), uma conferência sobre a defesa do Atlântico em Rabat (na boa companhia do Ministro da Defesa Eurico de Melo, Ângelo Correia e outros Deputados), as comemorações dos 500 anos da viagem de Bartolomeu Dias, uma numerosa delegação em que estavam, por exemplo, João Soares e Dias Loureiro. Qualquer delas com muitos episódios inesquecíveis… Na URSS de Gorbatchev, em plena perestroica, o Doutor Soares fez-se acompanhar de uma numerosa comitiva parlamentar, em que todos os partidos, grandes e pequenos estavam representados por um só membro. A ideia era “pedagógica - ensinar o pluralismo político – pelo que não perdia uma única oportunidade de nos apresentar na nossa máxima e convivial diversidade. E, como genuíno parlamentarista, queria-nos sempre a seu lado, no lugar protocolar que nos era devido - na democracia portuguesa, que não, obviamente, na conceção parlamentar soviética. Os organizadores russos distribuíam pelas limousines pretas os funcionários, os empresários, os intelectuais, os jornalistas, e só depois, a fechar o cortejo, numa medonha furgoneta, os Deputados da Nação Portuguesa! Ora o Presidente recusava-se a começar a cerimónia, qualquer que fosse, sem nos ter ao lado. Estávamos, pois, obrigados a correr longas distância, chegando ofegantes à linha da frente, com o Presidente à espera, cada vez mais impaciente. Por nosso lado, também crescia a irritação, e era eu quem tinha de encabeçar o protesto. E certo que não me custa muito protestar e fi-lo com a habitual veemência. Porém, onvencer aqueles espíritos não foi coisa fácil. Em todas as três Repúblicas só consegui vencimento de causa – isto é, carros oficiais e a devida precedência - a meio do segundo dia... Em Rabat, o mais interessante aconteceu depois da Conferência. O Ministro Eurico de Melo foi convidado para uma audiência com o rei de Marrocos e, à maneira do Doutor Soares, queria levar com ele os Conferencistas/Deputados. Éramos quatro ou cinco e aceitámos prolongar a estada por mais um dia. Só que a audiência foi sendo adiada, o Ministro teve de ir cumprir outra missão e ficámos nós, os Deputados, e os colaboradores militares do Gabinete da Defesa. O hotel era superluxuoso, e Rabat uma cidade com muito para ver, entre almoços e jantares oferecidos pelas mais altas entidades políticas. A única mulher presente era eu, ainda por cima, protocolarmente a nº 1, depois que Eurico de Melo partira. Os olhares de pasmo, os sussurros dos marroquinos não me incomodavam nada, mas registava… Era bastante pedagógico estar ali, provocando tanto desconforto masculino…. Nunca chegámos a ser recebidos pelo Rei. Ao 3º ou 4º dia, o impasse resolveu-se com um simpático jantar de despedida, oferecido pelos dois Príncipes, o herdeiro, e atual monarca, e o irmão mais novo. Tivemos direito a cobertura televisiva e a conversa informal com ambos os anfitriões, durante os aperitivos. Depois, passámos à sala de jantar, onde estávamos distribuídos por duas grandes mesas redondas, cada uma presidida por um dos reais senhores. Tive, de imediato, um pressentimento: vão sentar-me à mão direita do príncipe menor! Acertei! Jaime Gama, a maioria dos deputados e todos os militares ficaram na mesa principal, onde se falou de tudo menos de assuntos bélicos. Já na minha mesa, o Príncipe, muito jovem e muito charmoso, só queria falar de aviões, indústrias de Defesa, inovação tecnológica, matérias sobre as quais, nada de inteligente podíamos dizer - todos os especialistas desses assuntos estavam na outra mesa.De qualquer modo, foi uma agradabilíssima noite diferente de todas as outras. Ao contrário da Conferência marroquina, a missão parlamentar às comemorações da Cidade do Cabo (da Boa Esperança), em 1988 foi inesperadamente encurtada. À última hora, foi agendada uma votação e Correia Afonso, líder da bancada do PSD, não dispensou os seus deputados do PSD. Não era nada de grave, mas ele não era político para “descomplicar”. Ou talvez pusesse reticências à missão, sintonizado com Cavaco Silva, que não permitiu a participação de membros do Governo naquelas festividades. A Embaixada Sul-Africana solucionou o imbróglio criado, refazendo o roteiro, com a Lufthansa, via Frankfurt. No conforto da 1ª classe, dormi como num hotel de cinco estrelas, apesar do barulho de conversa dos meus colegas durante toda a noite. À saída, um dos passageiros, alemão, perguntou-me qual era a nossa nacionalidade e eu, sabendo que o português soa a língua eslava, para salvar o bom nome da pátria, respondi: “Polacos”. Em Joanesburgo a ligação para o Cabo foi à justa, obrigou a correria de corredores e no Cabo eramos esperados no aeroporto para seguirmos diretamente para as cerimónias, que já iam a meio… (avisadamente, mudei de fato durante o voo). Uma prova de resistência, que valeu a pena para homenagear o nosso Bartolomeu. Entre1987 e 1991 perdi a conta às viagens que fiz a comunidades da emigração. Os convites chegavam em catadupa e eu não me escusava. Vítor Crespo, um “estrangeirado”, com doutoramento californiano (Berkeley? Stanford?) dava-me carta branca para representar a Assembleia onde quer que fosse, desde que o fizesse à expensas próprias. Eu corria por gosto, custear bilhetes de avião não me travava. Encantava-me rever amigos, acompanhar a vida associativa e não desgostava de irritar o meu sucessor, que via nessas minhas presenças uma invasão do “seu” território. … coisa absurda, as comunidades convidam quem querem e há lugar para todos. Junho era o mês mais movimentado, andava sempre longe de casa – na Africa, nas-Américas… Os Estados de Connecticut e Nova Jersey eram de visita obrigatória. O enérgico Cônsul de Connecticut, o meu amigo Adriano, telefonava-me no princípio de maio para me participar: “Manuela, já anunciei a sua vinda nos jornais. Agora não pode faltar! E eu lá ia, de comunidade em comunidade, de parada em parada, de discurso em discurso – em Waterbury, Danbury, Hartford, Bridgeport, Elizabeth, Newark etc. etc. Newark era um “must” absoluto. A Fundação Coutinho organizava (e organizou durante mais de trinta anos) a maior festa camoniana dos “lusíadas” em diáspora. Faço anos a 9 de junho, mas felizmente, nessa era pré-Facebook, ninguém sabia. Assim escapava aos rituais da data, que aprecio pouco, embora confesse que achei muito divertido festejar, sigilosamente, os meus 60 anos na Ferry Street, desfilando como “Grand-Marshall” da parada, com a larga faixa verde rubra sobre um vestido amarelo. Coincidências… Neste roteiro pluricontinental, que escolhia em plena liberdade, houve, porém, uma exceção, um tabu: a Jamba! Sucederam-se delegações de Deputados e de Mulheres em que eu fazia parte das listas, mas fui liminarmente barrada pelo Presidente Crespo, a pretexto de ocupar cargo demasiadamente representativo. A representação colava-se à pessoa, e a AR não queria estar representada na Jamba. Nela lógica, recusei um amável convite de SAR, o Duque de Bragança, para o acompanhar num périplo através do sul da África. O convite explicava-se pelo facto de ter mediado a organização de visita de Dom Duarte Pio a essas paragens. Por acaso, durante as Comemorações de “Dias 88” chegara ao meu conhecimento uma intriga de bastidores, que levara a retirar da lista de convidados oficiais, onde justamente estava, o descendente do Rei D. João II. Com um pouco de sorte, fiquei a saber tudo sobre o instigador e o “influencer” principal. Ameacei este último de me zangar com ele, se não reparasse tão malévola manobra, com um novo convite da comunidade a SAR. À partida, não era coisa fácil, visto que os monárquicos não abundavam, mas logo um se disponibilizou a ser o anfitrião da histórica visita real: o Sr Castro, grande amigo da Rei Goodwill Zulu, empresário de excelente reputação e sólida fortuna. E grande amigo da Rei Goodwill Zulu. Também por acaso, em conversa com o republicaníssimo Presidente Crespo, mencionei esta história e a minha recusa do convite monárquico. Comentário dele: “Mas porque é que não aceitou?” Espantada, resolvi testar o não menos republicano líder da bancada do PSD, Dr. Montalvão Machado, que teve idêntica reação. Embora não entendesse o critério destes expoentes do pensamento republicano, concluí que estava a agitar tabus imaginários, eu que até tenho simpatia confessa por monarquias progressistas (de facto, meia dúzia de monarquias têm dado à Europa mais chefes de Estado do que todas as repúblicas juntas…). De imediato, telefonei o meu “sim” ao Senhor Dom Duarte e ao Senhor Castro. E ao longo de pouco mais de uma semana, vi uma África para além da que me era familiar (a das nossas comunidades): as cortes dos reis Zulu e Suazi, os campos de refugiados moçambicanos, chegados pelo corredor de fuga de Ressano Garcia, apoiados pelo Padre Le Secour, e pelo português António Pacheco, que seria mais tarde, um dos principais colaboradores da Dr.ª Maria Barroso. E, ainda, a turística área do Kruger Park. Mas também não faltaram os convívios em associações portuguesas, com Dom Duarte Pio a ser sucesso, pela sua facilidade de palavra e simpatia natural, tivesse, ou não, em fundo de palco, a bandeira verde e vermelha da República. Quanto à Jamba, curiosamente, a Assembleia, na minha pessoa, não foi lá, mas a Jamba veio à Assembleia e eu pude saudá-la na pessoa de Savimbi! Na qualidade de Vice-Presidente, (de que me não deixavam prescindir), recebi-o, à entrada do Palácio, como é de praxe, acompanhada por Pacheco Pereira. Enquanto subíamos a escadaria, o CDS pediu no hemiciclo, com perfeita sincronia, uma suspensão de trabalhos, que permitiu aos deputados dirigirem-se para a sala do Senado – a mesma câmara onde foram recebidos os presidentes de Angola ou de Moçambique. Ladeado pelo Presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros e por mim, que lhe dirigimos os habituais cumprimentos, proferiu palavras memoráveis num Senado completamente cheio! De seguida, no meio de um mar de gente, sem escolta e sem medo, percorreu, demoradamente, os Passos Perdidos, os corredores, os salões…. Havia, então, ainda, em São Bento, muitos retornados de Angola, e para eles foi um dia grande, Dia Nacional, embora eu tivesse a impressão de que eram maioritariamente mais próximos do MPLA. Se sim, naquela tarde, esqueceram a militância, atraídos pelo carisma de Savimbi. Mais tarde, outro angolano, Abel Chivukuvuku, fez, igualmente, furor em São Bento, embora no círculo mais restrito da Comissão de Negócios Estrangeiro. Raras vezes assistido a tão brilhante exposição, em matéria de política internacional, e ainda mais raramente ali viramos homem tão elegante, um operacional militar de muitas guerras, com rosto de galã de Hollywood. Nas minhas duas décadas de parlamento, sempre pertenci a esta Comissão, que teve à frente alguns dos nossos principais políticos, mas nunca foi a lado nenhum, nem nos proporcionou abundância de grandes momentos em abundância. É vertente que não consegue apaixonar a classe política, nem os media, nem o país. Atipicamente, sempre me interessei pelo se passava lá fora, talvez por ter sido ovem num tempo em que cá dentro não acontecia nada. Revia-me no Papa João XXIIII, em JF Kennedy. O meu primeiro herói, no meu Portugal, foi mesmo Sá Carneiro, o Sá Carneiro da “Ala Liberal”. Depois do 25 de Abril, aderi ao partido que fundou, com paixão, colantes na lapela e bandeiras em punho, mas sem inscrição partidária, como a prudência aconselhava a quem não é de obediências. Durante anos, em minha casa, só a mãe tinha ficha partidária, no PPM, embora depositasse em urna um voto útil no CDS. Ela que tinha sido tão antissalazarista, virara à direita. Nos cafés de Espinho, onde toda a gente se conhece, dizia em voz alta o que pensava, o que no verão quente de 75 podia ser perigoso. Meu pai já tinha desistido de a dissuadir, restava eu: “Mãe, não faça comícios no café. Um destes dias é presa pelo COPCON” A perspetiva não a preocupava, houve que aumentar a parada: “E levam o pai também! Manteve-se irredutível: “Pouco me importo. Agora só estão presas pessoas de bem!” Felizmente, as atenções do COPCON não estavam concentradas em pacatas estâncias de veraneio, nem em donas de casa burguesas. A mãe, com a sua enorme descontração, era a única de nós a cumprimentar as personalidades que visitavam Espinho, Marcelo Caetano, (em 1973, a descer a Rua 19), Sá Carneiro, (no final de um comício, em 75), Freitas do Amaral, (pouco depois, num avião em rota para o Funchal…). Circunstâncias muito diferentes me levaram ao encontro de (quase) todos os altos vultos que refundaram a democracia portuguesa: Contracenei com eles, ainda que num pequeno papel. Dos “quatro grandes” – Sá Carneiro, Soares, Freitas e Cunhal - só com Cunhal tive contacto episódico, cerimonioso, ainda que suficiente para sentir o seu carisma. Dos outros três, sim, direi que ganharam em ser conhecidos. Cultos, estimulantes, divertidos! O Dr. Soares era, e parecia ser, isso tudo. Sá Carneiro e Freitas do Amaral, pelo contrário, não mostravam para fora, os seus dotes de bom humor. Neste aspeto, porém, o caso mais extremado era Mota Pinto, um sobredotado em inteligência e saber, extremamente simples e simpático, que tinha uma imagem pública em absoluto deformada. Sem desculpar os “media” da parte que lhes cabe, reconheço que alguns colaboradores, quando não ele próprio, por vezes, facilitavam o resultado. O cartaz de campanha de 1983 exemplifica isso muito bem. É o pior cartaz de que me lembro… O líder aparece sentado num cadeirão de couro, com um vaso de tulipas laranja, ao lado, a olhar em frente, impassível. Para um óleo de parede, muito bem. Para um cartaz de mobilização partidária, acho que não .. Por acaso, o Doutor Mota Pinto perguntou-me se eu gostava daquele “outdoor” e eu não me contive: “O cartaz é medonho, Senhor Doutor. Só faltou porem-lhe uma manta nos joelhos! Ficou surpreendido, mas riu-se e não protestou com um “Oh, Manuela, oh, Manuela!”, que reservava para sancionar os meus excessos de humor crítico. Eu não resistia a usar este tom, o que, entre nós, é bastante arriscado, porque tudo se leva muito a sério, tudo é tomado à letra. Com exceções. Havia aqueles com quem eu estava sempre em roda livre - Natália e Odete Santos, Barbosa de Melo, F. Sousa Tavares, Miguel Urbano Rodrigues, Adriano Moreira, Paulo Portas e até também os predestinados a altos cargos internacionais, como Durão Barroso ou António Guterres… Mas mesmo com outros, eu arriscava. Prudência e a contenção ficavam reservadas para missões oficiais, presidências de assembleias e comissões, e similares, onde procurava ser tão lacónica e precisa, quanto era palavrosa e festiva, nas ocasiões mais informais. Do oito ao oitenta… No hemiciclo circulava por todas as bancadas, para pedir e dar informações ou articular questão de trabalho, o que era incomum. Talvez o facto de ter estado, naquela legislatura de 87 a 91, na Vice-presidência da Assembleia, em posição suprapartidária, tenha tornado mais fácil esse convívio e movimentação, que continuou. Não só de alguns políticos guardo boas memórias. De militares, também. Até me iniciar a política, conhecia muito poucos, apenas dois, que por sinal, admirava imenso: um amigo de infância de meu pai, o Coronel Novais e Silva, e um meu amigo de infância, o Manuel Alberto. Na família, até onde o meu conhecimento genealógico chegava, havia de tudo (até bispos!), menos oficiais das Forças Armadas. Só milicianos, em serviço militar obrigatório. Fora deste quadro, o primeiro militar que conheci de perto, e para quem tive a sorte de trabalhar, foi o Coronel Costa Braz, 1º Provedor de Justiça. Com todos os outros convivi “divertidamente”, em receções de embaixadas, jantares de gala, conferências, paradas e outras cerimónias. A conversa fluía sempre. Certo é que lá me ia adaptando ao perfil dos cargos. Enquanto no Governo ia, geralmente, contrariada para almoços e jantares oficiais, preocupada com a minha agenda de trabalhos, embora “in loco”, acabasse por me sentir bem. Na nova veste, pelo contrário, logo à partida me encantava a perspetiva de participar em todo o qualquer evento social. Pelo visto, interiorizei a ideia tudo isso era parte da minha incumbência de representar a Assembleia. E não tinha uma pilha de dossiers à espera de leitura e decisão no gabinete. O pior de tudo era mesmo dirigir o plenário, onde, por cautela e inexperiência, tendia a fazer cumprir o regimento com muito rigor e pouca simpatia…. Qualquer pretexto para estar em agenda externa era uma boa escapatória. E, assim, em salões e jardins do Restelo e da Lapa, em colóquios e cerimoniais um pouco por todo o país, ia fazendo amizades com militares, que, pela franqueza e desinteresse partidário, normalmente, ultrapassavam os civis. Entre os meus favoritos, General Firmino Miguel (o primeiro de todos) e o Marechal Spínola, que tantas vezes vira nos ecrãs da televisão francesa, em finais de sessenta, com o seu intimidante monóculo, que fascinava os gauleses. No convívio, um velho senhor simpaticíssimo. “Ubi commoda, ibi incommoda”, diziam os romanos (nós, juristas, não prescindimos de citações latinas). Neste caso, deveria inverter a sequência. Votada aos “incomoda” (substituir Crespo na cadeira da presidência parlamentar), fui multiplicando os “commoda”, a vida social, que ele parecia detestar. Introvertido/extrovertida, éramos complementares, mas ajudava muito estarmos longe um do outro. Depois da infância, este terá sido o período mais despreocupado da minha vida. Lisboa tornou-se, para mim, uma “cidade tertúlia”. Ou no plural, girândola de tertúlias, onde tinha lugar cativo. Todavia, a “fanática do trabalho” nunca hibernava totalmente. Ia tecendo redes de colaboração, presente ou futura, avançando por novos caminhos e atalhos de cooperação. Do mundo militar também recebi convites para conferências, palestras em auditórios (sobre emigração, é claro, começando nas aulas do curso do IDN), e para comemorações oficiais. Fui, segundo me disse o meu anfitrião, General Altino de Magalhães, a primeira mulher convidada a discursar no dia 9 de abril, na impressionante cerimónia anualmente realizada no Mosteiro da Batalha. Tudo terminava em gestos de apreço, medalhas, placas, diplomas… O máximo dos máximos, foi a receção no Dia do Exército, em Aveiro, com a prestação de honras militares. Salvo erro, em 1988. Comunicaram-me que seria a segunda mulher, depois da Primeira Ministra Pintasilgo, distinguida com tal honraria. Para me inteirar sob o rigoroso protocolo consultei Marques Júnior, capitão de Abril, e meu colega na Vice-Presidência, mas ele não acreditou em tão extraordinário “upgrade e opinou que bastaria parar junto às bandeiras, saudá-las, com a vénia do costume. Enganou-se! Chegada à imponente Praça, fui escoltada até um pequeno palanque, à altura de um degrau de escada, de costas para a tribuna das altas autoridades presentes, e de frente para a orquestra (em formação militar, evidentemente). Imóvel no meu palanque, assisti a interminável peça musical. Esplêndida, mas interminável. Assaltou-me uma dúvida: estariam à espera da tal, de que falara Marques Júnior? Na dúvida, ensaiei uma vénia muito leve, quase impercetível. Sem efeito…. Aguardei mais uns minutos, para fazer a devida vénia, visível, e e dirigir-me à tribuna. Fui recebida, festivamente, com a fila da frente a gozar comigo: “Com que então, queria apressar a atuação? Nada escapara e tantos olhos muito atentos… De volta a Lisboa, fiz o relato detalhado a um atónito Marques Júnior - homem de pouca fé no que respeita à cortesia do Exército para com a representante do Parlamento… Não foi, contudo, caso único de imperfeita leitura protocolar. Já no Governo do Bloco Central isso me acontecera, e no mesmo Distrito, em Ovar. Fui chamada a substituir o Ministro da Defesa (e Vice-Primeiro Ministro) Mota Pinto, na 25ª hora. Em seu lugar, coube-me discursar (o mais fácil) e passar revista a uma formação de bombeiros, em uniforme de gala (mais desafiante, uma estreia). Tal como vira em reportagens de televisão, avancei paralelamente à garbosa fileira, seguida pelo Comandante. De repente, vi surgir, à altura do meu ombro esquerdo, a sua mão enluvada de branco. Tomei o gesto como indicação para caminhar mais perto da formação e prossegui, decididamente, até ao último homem. O Comandante segredou-me, então, novas instruções: “Senhora Secretária de Estado, não se esqueça de saudar a bandeira”. Sem olhar para trás, baixinho, perguntei como, e ele, por uma vez, foi claro: É só parar em frente à bandeira e fazer uma vénia. Cumpri à risca e só depois, ao almoço, conversando com o Comandante, me apercebi de que tinha passado revista à charanga, coisa assaz invulgar. De Ovar levava, assim, uma “estória”, com coloridos pormenores, para animar os serões lisboetas. E até encontrei adeptos do meu procedimento, entre eles o General Firmino Miguel. Passar revista à charanga tinha sido prestar-lhe uma homenagem invulgar, mas merecida… Conversa providencial tive, um dia, com o Almirante Sousa Leitão, Chefe do Estado-maior da Armada. Lembrei-me de lhe perguntar se sabia como encomendar uma réplica de um padrão de descobertas. Eu tinha de satisfazer um pedido concreto da comunidade do Havai, e não era artefacto que encontrasse no mercado. Com o simbólico padrão queriam comemorar, em Honolulu, o centenário da chegada dos nossos primeiros imigrantes, depois de firmemente terem rejeitado um projeto do Município de arte abstrata, que, em regra, não agrada às nossas comunidades). O Almirante, homem jovialíssimo, que, tal como eu, sorria com facilidade, considerou a ideia interessante e disse-me: “Não se preocupe mais, em vou-arranjar um padrão!” Umas semanas depois, reencontrei o Almirante, mas julguei ser muito cedo para abordar os avanços do “projeto Havai”. Foi ele quem veio ao meu encontro e disse: “O padrão já vai a caminho do Havai. A Marinha norte americana ofereceu-se para o levar!” São assim os militares – pelo menos os bons. Cumprem! Não fazem a coisa pela metade. O Almirante Sousa Leitão encomendou uma réplica do padrão de Diogo Cão e providenciou o transporto. Talvez o camarada da US Navy, ouvindo-o referir uma réplica, tenha pensado numa miniatura, mas quando lhe entregaram um, em tamanho natural, não recuou. Graças à cooperação militar, os Portugueses puderam inaugurar, em Honolulu, o seu monumento de sonho. Fim de um processo que, antes de me contactarem, se arrastava há mais de sete anos… E hoje lá está o padrão, para a eternidade, implantado no centro de uma calçada portuguesa. Ideia minha, muito bem aceite localmente. Os dois mestres calceteiros, que executaram a obra foram providenciados pela Câmara do Porto assim como a Arquiteta Alda, que desenhou o traçado. Eles receberam, em Honolulu, durante dois meses, tratamento VIP, com jantaradas diárias, colares de flores. (os famosos “lei” havaianos), abraços e lágrimas à despedida. Viraram, tal como o padrão e a calçada, símbolos da nossa cultura. Símbolos vivos! Não sei em que língua se entendiam. Os calceteiros não falavam inglês e, entre os luso-havaianos, a língua ancestral há muito se perdeu, mas talvez ainda houvesse uma ou outra exceção. E para o fim ficou o mais extraordinário de todos, o General Eanes – general, porque não aceita ser marechal. Mas é, na realidade é, mais do que Costa Gomes e até Spínola. Primeira nota: o seu sentido de humor, acutilante e imparável. É impossível chegar ao seu nível e muito difícil acompanhá-lo, mesmo em tom menor…. Tive a sorte de ir com desusada frequência ao Palácio de Belém para a entrega de credenciais de Embaixadores, em substituição do MNE. Fui até a primeira mulher a estar presente nesse cerimonial e nessa qualidade (como já disse, era o tempo em que as mulheres saíam da sombra e, em qualquer cargo ou cerimonial, eram pioneiras). É um ritual moroso, ocupa, praticamente, uma manhã inteira, envolve conversas alongadas com entre o PR e o MNE, antes da receção ao representante estrangeiro e depois da sua partida, e. pelo meio, o principal: as conversações com o novel embaixador. Gama evitava esses solenes eventos, de que eu tanto gostava, sempre podia. Ao que constava, ao contrário do que acontecia comigo, as relações entre ele e o Presidente não eram exatamente muito fáceis. Ouvi dizer, mas nunca vi nada nem comentei o assunto. O meu percurso de substituições é, pois, longo e acidentado - do MNE ao PAR , e episodicamente, ao Ministro da Defesa. Houve mesmo um ano em que me vi, durante todo o mês de agosto, Ministra em exercício… Em princípio, nada acontece em agosto, mas nesse ano, a Austrália decidiu reconhecer oficialmente a anexação de Timor-Leste pela Indonésia. Timor estava entre as minhas causas centrais. Não sei qual teria sido o posicionamento de Gama. Se pomba, se falcão…. Eu reuni com o Secretário-Geral, (sorte minha, era um amigo, o Embaixador João Sá Coutinho), para avaliarmos as retaliações possíveis. Optamos pela mais dura: chamar a Lisboa o nosso Embaixador em Camberra, que era Inácio Rebello de Andrade, outro dos diplomatas de m círculo de amizades. Inácio veio zangadíssimo, do outro lado do planeta. Pelo visto, não tão “linha dura”, ou não estava tão afetivamente ligado à causa. (eu sim, depois dos encontros havidos precisamente na Austrália). “encontros timorenses”, precisamente na Austrália, em 1982. Pouco depois, uma associação timorense convidou-me a ser peticionária junto da Comissão de Descolonização da ONU, onde clamei abertamente contra um dos mais sangrentos genocídios do século XX. Em NY, coincidi com uma delegação oficial da Assembleia da República e não foi uma coincidência feliz, porque me vi envolvida numa das demagógicas campanhas em que “O Independente” era pródigo. No caso, o “escândalo” era o custo da limousine em que os Deputados se deslocaram na cidade. Ora eu tinha custeado minha viagem de avião e as demais despesas, e nem de longe vislumbrara a limousine, mas tive um trabalhão (semanas da minha teimosia minhota…), para obrigar o periódico a desmentir, em duas linhas, a notícia no que me respeitava … Não que fosse crime ou sequer incomum, usar aquele luxo em NY. No entanto, o eco desse pequeno escândalo pesaria sobre uma outra missão parlamentar por Timor, realizada já após o massacre de Santa Cruz. A única delegação oficial pro Timor de que não fui excluída! O PSD, por uma vez, indicou o meu nome, para me juntar a Teresa Santa Clara Gomes (PS), Queiró (CDS) e Miguel Urbano Rodrigues ( PCP). Chefiava a Delegação o Prof Crespo, que deixara a presidência da AR, mas continuava Deputado por Leiria. Receoso de nova polémica, insistiu com a Embaixada de Washington para alugar uma modesta carrinha, ou uma furgoneta, para as deslocações dos parlamentares. Nunca tal se vira e os nossos diplomatas ignoraram o pedido e providenciaram a limousine da praxe. Perante os protestos de Crespo, responderam que não havia furgonetas no mercado: “Aqui não se usa. Não há.” Ficamos, assim, condenados a conforto sumptuário pelos nossos padrões, em Washington, Boston e NY e a Assembleia da República não foi atacada por perdulária, mas, ao invés, pela sua pelintrice! O correspondente da RTP, outro Crespo zurziu forte e feio nesse flanco (Crespo contra Crespo). Pelo contraste com o investimento indonésio em paralela tentativa de influenciar a opinião pública americana, nesta questão. A visita do Ministro Ali Alatas coincidiu com a nossa e, enquanto ele dava conferência de imprensa, com dezenas de jornalistas, em hotéis de luxo, oferecendo lautas receções, nós, os cinco deputados, em palco modesto e sem iguarias, denunciávamos os crimes Indonésios e defendíamos a autodeterminação de Timor, na presença meia dúzia de representantes de agências noticiosas. Ainda por cima, não levávamos um tradutor, a Teresa e eu, à vez, assumíamos esse papel, pormenor que foi particularmente verberado. Tanto na América, através desse Crespo, Mário, salvo erro, como à chegada, em Lisboa, choviam reparos sobre a glosada pobreza de meios em comparação com o fausto indonésio, o “timing” escolhido, por tardio, a falta de recetividade dos nossos contactos. Os meus colegas, com Crespo (Vítor) à cabeça, tendiam a dar-lhes razão. Eu, irritada com a falta de senso e medida dos críticos, rebati argumentos, ponto por ponto, insistindo no sucesso do objetivo principal - levantar a voz pelos timorenses, na altura ideal, quando a consciência americana despertava para os horrores vividos naquela ilha remota, graças às aterradoras imagens filmadas por Max Stahl no cemitério, a 12 de novembro de 1991. A propaganda milionária de Alatas, chocava com a verdade, já evidente para a grande imprensa americana (o NY Times, o Washington Post, o Boston Globe), para as Igrejas cristãs, para políticos de 1ª linha, como Edward Kennedy, com quem dialogamos no Senado. O mérito da reviravolta não era nosso, mas estava a acontecer, e era importante reforça-la. Anos mais tarde, reconhecendo a evolução imparável, que se seguiu, pelo menos um dos meus colegas, o Miguel, deu-me, “posteriori” razão. Com o Miguel se passou, por acaso, o episódio mais divertido. A Administração Clinton continuava incondicionalmente ao lado da Indonésia, vista como barreira anticomunista em Timor-Leste. Ciente disso, sugeri que falássemos a uma só voz, (coisa fácil porque não havia divergência entre nós), sem pôr o foco em partidos. E o Miguel, que gostaria de se proclamar o comunista do grupo, foi-se abstendo de o fazer. Até que, em Washington, a discórdia com altos funcionários da Administração atingiu o ponto mais alto. Um deles, desancava a ineficácia da administração colonial portuguesa, para elogiar o generoso dinamismo do aliado indonésio, que, em poucos anos, tinha feito mais do que os portugueses em cinco séculos, exemplificando com a rede de estrada, a rede de escolas… Com uma fúria fria, e uma agressividade igual à dele, desmascarei a escola indonésia, como simples instrumento de desnacionalização, de “brainwashing” de crianças e jovens, e a abertura de vias de comunicação como meio de facilitar o movimento das tropas invasoras. Nada de novo, Hitler fizera o mesmo. Juntei à minha tese outra invasão, outro massacre, o japonês. em 42, induzido pela prévia ocupação ilegal da ilha pela Austrália. Só com Portugal os timorenses tinham sido livremente timorenses, a vantagem de “colonizar de menos”! O americano olhava-me, petrificado, e eu rematei “E não julgue que eu sou comunista. Bem pelo contrário! Comunista é aquele meu colega!” E apontei o Miguel, que me ouviu, sereníssimo. Eu pusera fim ao meu próprio tabu. Timor, para mim, como para imensos portugueses era uma paixão. Segui todo o processo, militantemente. E, quando, em fim do século XX, a utopia deu lugar a uma referendo para a autodeterminação, estranhei que surgissem no palco, sob bandeira das Nações Unidas, apenas os Estados ex-aliados do invasor Indonésio – os EUA e a Austrália. Portugal desaparecera de cena. Porquê? Quando deixara de ser a potência administrante? Entre os meus pares não achei respostas, recorri aos mais bem informados, os jornalistas. A um, em particular, por ser meu amigo e por ser o “máximo” – Pedro Cid. Juntamos memórias, recapitulamos incidentes… nada explicava a nossa ausência. Na primeira oportunidade, Pedro Cid fez, publicamente, a pergunta ao MNE Jaime Gama. Ele nem gostou nem explicou. Timor (a liberdade de ser Timor) e o Brasil (a dação de reciprocidade ao estatuto de igualdade de Direitos) estiveram sempre na minha agenda de prioridades, tal como a luta contra as discriminações de sexo e as discriminações dos emigrantes. Por várias formas e estratégias, fosse à frente da Comissão da Condição Feminina, em contactos internacionais e nacionais, ou na criação de ONG (muitas – a Associação Mulher Migrante, a Associação Ana de Castro Osório, a Associação das Mulheres Parlamentares, o Fórum Internacional das Migrações, etc. etc.). E, também, por exemplo, nos contactos parlamentares bilaterais, com a criação de Grupos Parlamentares de Amizade, que não existiam na Assembleia, antes da visita ao Japão. Foram os colegas japoneses, membros da Comissão de Amizade com Portugal, que nos pediram reciprocidade! Presidi a esse primeiro Grupo, depois avancei para a constituição de outros - Canadá, Brasil, Israel França, etc.etc.. A tarefa de substituir o Presidente na Mesa da Assembleia, apesar do seu valor simbólico, acabou por ser de somenos, soterrada numa vasta agenda bem mais interessante. Temos sempre a alternativa de fazermos o cargo, em vez de nos deixarmos aprisionar por ele. Preferi, pois, andar numa roda viva, que é como gosto de viver. Terminei o mandato em 1991, o ano da maior vitória cavaquista, época de “vacas gordas”, com avalanche de fundos comunitários, e esquecimento dos sinais da pobreza passada, (como a sua emigração). O PSD apostou, de novo, numa mulher para a Vice-presidência da AR, um peso pesado do PSD, a sua única mulher poderosa e uma feminista militante: Leonor Beleza. Escolha ideal!. Eu, reeleita por Aveiro, meu distrito de residência, entrei em novo ciclo, novo ritmo, novas aprendizagens. Pela primeira vez, levantei a mão e disse o que queria (atitude comum aos homens, e a algumas mulheres, que fazem política, sempre a querer este ou aquele lugar). O meu alvo era a delegação à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Tinha antecedentes no Conselho, na sua vertente governamental, onde somei representações do país e presidência de conferências ministeriais e reuniões várias, mas nada disso contava em missão muito cobiçada. A direção da bancada, quase sempre privilegiava gente próxima, entre “velhas glórias” e “boys”, e eu não entrava em nenhuma dessas categorias. Foi o Ângelo Correia, um aveirense de adoção, que, em janeiro de 1992, defendeu o meu caso. Dera.me um lugarzinho de suplente. Treze anos depois, deixei a Assembleia Parlamentar, como Presidente da Delegação Portuguesa, com um currículo comprido de presidências de comissões e subcomissões, moções, relatórios e recomendações. Em 1995, com Fernando Nogueira, um colega de Coimbra, voltei ao meu antigo Círculo da Emigração Fora da Europa. Viajava todas as semanas, sem parança. Muitas vezes, depois de uma escala em reuniões das Assembleias do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental, seguia em voo de longo curso para o Ocidente ou para o Extremo Oriente. Nada demais para quem gozava de boa saúde, não sofria de “jet lag” e se sentia bem em movimento. “Manuela a voar” tornou-se manchete tentadora, ainda que pouco original, para certa imprensa…. Nas comunidades, retomei as chamadas “políticas de reencontro” ( para uma deputada o equivalente ao conceito Soarista de “presidência aberta”). A nível internacional, no eixo interparlamentar, começava do zero. Uma das virtudes de organizações internacionais, como a APCE e a AUEO, é cada um (uma), tem de fazer, ali, caminho individual, com o seu trabalho. O curriculum não substitui o labor quotidiano. Antigos líderes de Governos, de Ministérios ou Parlamentos, em regra, não vão longe – e compensam a frustração, dedicando-se mais a visitas a livrarias, concertos e exposições… Não era o meu caso. Modesta Deputada em São Bento, entre outras coisas por falta de oportunidades de intervir, vía-me, ali num areópago, onde tinha o direito de iniciativa e não precisei de muito tempo para ter papel ativo nas Comissões e para ser convidada para o Bureau (direção da bancada) do Grupo Liberal. Acabei a presidir à Delegação Portuguesa. Ao todo, foram mais de treze anos de trabalho parlamentar intenso. Ali, o espírito era outro, mais propício ao diálogo interpartidário, com um enfoque nos Direitos Humanos, na denúncia de situações concretas da sua violação e desrespeito. A APCE não tem o poder legislativo dos parlamentos nacionais, nem o que vem ganhando o Parlamento Europeu – muito dos seus relatórios e debates dão origem a recomendações aos Governos nacionais, as suas Convenções vinculativas exigem a adesão dos Estados Membros. Em contrapartida, é um espaço de livre reflexão, de procura de diretrizes e de soluções concretas para os maiores problemas das sociedades atuais, onde utopia e pragmatismo se podem cruzar, onde os Membros gozam de uma enorme margem de liberdade são encorajados ao diálogo interpartidário O PSD pertencia à Internacional Liberal e Reformista, que no início dos anos 90, ao menos na APCE, se situava no centro-esquerda, com lideranças muito europeístas - Daniel Tarschis, um sueco sóbrio e pragmático, depois, um escocês brilhante e excêntrico, Sir Russel Johnston, político que, a meu ver, encarnava o espírito humanista do “Conselho” e que foi o melhor e o mais divertido dos amigos que fiz em fóruns internacionais. Daniel, seria eleito em 94 para o cargo de secretário-Geral e durante o seu mandato a Assembleia estendeu-se a Leste, do Báltico à Ucrânia, e aos confins da Federação Russa. Russell, (nessa altura já Lord Russel-Johnston), viria a ser eleito para a presidência da Assembleia – campanha em que me empenhei com o maior entusiasmo (entusiasmo, um meu traço idiossincrático, que, de qualquer modo, tem os seus pontos altos). Russell ofereceu-me uma fotografia do preciso momento em que eu depositava o voto em urna, legendado. “A minha apoiante Manuela, a exercer a sua tarefa favorita”. Ele, já avançado na idade e na sabedoria, era uma espécie de lenda viva, pelo seu cosmopolitismo, e pelo seu sentido de humor. Num e noutro terreno nos encontrávamos em sintonia, ele em grande, na estatura política e física, eu uns patamares abaixo. Juntos, ao desafio, a natural jovialidade redobrava, nos jantares do Grupo, como nas salas de reuniões, onde para não perturbarmos os trabalhos, trocávamos comentários sobre tudo e todos, por escrito, numa folha de papel que andava num vaivém, de um para o outro. Com um chefe assim, o Grupo Liberal só podia ser um retalho do céu na terra. Pouco importava que fosse um grupo sensivelmente menor, face aos “dois grandes”, o Socialista à esquerda e o PPE, à direita. Ganhava em qualidade, contribuía para equilíbrios, e, no interior do Grupo, o PSD era uma delegação de peso. Em 1994, as duas presidências de Comissões Parlamentares, que, (num total de onze) cabiam aos Liberais, foram entregues a portugueses (100%...): Pedro Roseta na de Cultura e Ensino, e eu na das Migrações, Refugiados e Demografia. Duas presidências, num parlamento, com centenas de representantes de muitos países, não era coisa pouca… Portugal estava no Conselho da Europa desde setembro de 1976 e só por uma vez tivera uma presidência, por sinal, a das Migrações, com António Guterres, por por um breve período (o Governo caiu, o que, então, acontecia frequentemente, e o PS nacional não o recandidatou nas suas listas. Pedro e eu tivemos, nesse aspeto, mais sorte e pudemos ser reeleitos, por unanimidade, pelo tempo máximo de três anos. A partir da insólita transferência do PSD do campo Liberal e Reformista para o PPE, as nossas hipóteses de acesso a esses tão disputados cargos diminuíram drasticamente. O problema não se punha no que respeita a Vice-Presidências de Comissão ou presidências de Subcomissão, que escapavam a partilhas partidárias e eram de livre escolha dos respetivos membros. Ao longo de anos, fui eleita por diversas vezes– candidatavam-me! Às vezes, colegas de outros quadrantes, caso de Lord Finsberg, conservador inglês, (numa primeira Vice-Presidência, na Comissão do Regimento), ou de mulheres socialistas, nos pelouros da Igualdade (fui Vice-Presidente da Comissão, Presidente da Subcomissão). Ou seja, umas vezes jogavam as afinidades ideológicas, noutras, talvez, o fator experiência e um modelo de presidência sóbrio, de poucas e precisas palavras. Evitava cair na tentação de falar demais, combatia o falso estereótipo dos europeus “do Sul”, relaxados e permissivos, cumpria a agenda, com rigor. Fora da mesa da presidência, intervinha e falava a meu bel-prazer, e sobre os meus temas prioritários, como a não expulsão de imigrantes, o direito à reunificação familiar, o direito à identidade cultural dos migrantes e suas comunidades, a dupla nacionalidade, o estatuto de direitos dos emigrantes no país de origem… A demissão do Governo Santana Lopes cortou a meio o meu último mandato, quando estava num momento fausto, como relatora em temas das temáticas mais quentes: Religiões e discriminação feminina; Denúncia de perseguições a Testemunhas de Jeová; Condenação dos crimes do comunismo totalitário… A discriminação das mulheres no desporto era, nesta fase, o meu único que estava pronto para subir a plenário. Foi aprovado, consensualmente, na Sessão Plenária de abril de 2005. No mês seguinte, participei em Paris numa última reunião de Comissão, por sinal, a Comissão da Igualdade. Um adeus como nunca tinha visto, e já ia no meu 14º ano de APCE. Os colegas decidiram uma pausa nos trabalhos, para fazerem, na sala ao lado, uma grande festa, com “champagne”, bolos, discursos divertidos e abraços. Que simpáticos! Em maio, já estava em pleno funcionamento a nova Assembleia da República, mas ainda não a nova delegação eleita à APCE, pelo que mantinha, nos termos regimentais do “Conselho”, o meu mandato internacional. E, assim sendo, terminei a vida parlamentar, em Paris e em festa… “Estava escrito nas estrelas!”, como diria o Primeiro Ministro cessante, Santana Lopes. De facto, na ponta final de cada período ou roteiro político, cruzei-me, sempre, com o Conselho da Europa: - Em 1981, na véspera da primeira tomada de posse como Deputada, no último dia como Secretária de Estado, passei a tarde, a debater políticas de emigração, num encontro com a Comissão das Migrações e Refugiados, de visita oficial a Lisboa: - Em 1987, na hora de sair definitivamente do Governo, tive a oportunidade de presidir, no Porto, à III Conferência dos Ministros do Conselho da Europa responsáveis pelas migrações. - Em meados de 2005, retirava-me da vida política nacional na sede da APCE, em Paris, não em Lisboa. Final perfeito, pois tinha sido sempre mais feliz no Palácio da Europa do que no Palácio de São Bento! Melhor, só mesmo outra organização em que, simultaneamente representava o país - a Assembleia da União da Europa Ocidental (AUEO), criada no pós guerra, em 1948, pelo Tratado de Bruxelas, por cinco países aliados (Reino Unido, França, BENELUX), pioneira no projeto de cooperação intereuropeia. Uma boa parte do seu espaço foi ocupado precisamente pelo Conselho da Europa), e, a partir de então, a UEO colocou o foco em questões da Defesa. As delegações parlamentares à AUEO eram compostas pelos representantes de cada um dos países membros eleitos à APCE. Assim me vi envolvida em matérias sobre as quais jamais me debruçara – o que vai para o meu rol de imprevistos e um dos melhores. A AUEO era uma assembleia mais restrita do que a APCE - membros efetivos eram somente os países NATO/EU, ligados pelo Tratado de Bruxelas modificado, ou seja, pela assunção do dever de defesa mútua. Os demais países podiam integrar a UEO, com estatutos diversos. Na área da defesa, a UEO dispunha do “know-how” de um Instituto de estudos estratégicos e de uma assessoria de altíssimo nível, entre civis e militares, com uma capacidade impar de pensar a Europa da Defesa, em primeira linha, com os países disponíveis para assumir compromissos vinculativos de proteção mútua. A sua vocação era converter-se na ala europeia da NATO, dando-lhe coesão e operacionalidade. A EU desaproveitou-a e destruiu-a, em convergência com a posição americana, então muito avessa a veleidades autonómicas da Europa . Hoje pagámos o preço da dependência e da ameaça de abandono, se o “trumpismo” vencer. Eu lutei até ao fim pela sobrevivência da UEO, mesmo sem esperança. Foi-me entregue, num dos anos do fim, o relatório anual da Assembleia, dirigido aos Governos, que é o mais importante e aproveite para definir linhas muito claras, a partir desta ideia- chave: a defesa da Europa não pode fazer-se com países neutrais (então 1/3 do total). A UEO era insubstituível, ao menos, enquanto dentro da EU persistisse essa divisão. Aceitei todas as alterações que não tocassem essa “linha vermelha”. E consegui. Entretanto fora eleita Vice-Presidente da Assembleia e, nessa qualidade, fiz a minha despedida parlamentar. Logo depois, em junho de 2005, recebi uma distinção que, para mim, teve enorme significado: o estatuto de membro honorário, recém-criado para antigos deputados. Fomos três os primeiro a recebê-lo: o britânico, Terry Davis, então Secretário-Geral do Conselho da Europa, e dois portugueses – Pedro Roseta e eu. Na semana seguinte, foi-me atribuído o mesmo estatuto na APCE… nada de comparável. O diploma de “honorário” era, correntemente, atribuído a todos os que tivessem mantido o cargo ao longo de dez anos – uma prova rotineira de resistência, nada mais…. Lá estive, na companhia de Pedro Roseta, Mota Amaral e Medeiros Ferreira. Decorria a sessão plenária, fomos convidados (os do PSD) para o jantar de confraternização do PPE. Apesar das minhas divergências políticas profundas com a maioria dos colegas, foi uma ocasião simpática e calorosa. Na hora da despedida, como Coimbra, temos mais encanto. Quantas vezes, eles tinham votado contra os meus relatórios e eu contra os deles, apesar de eu pertencer ao Bureaus, (o que decorria do facto de ser Presidente da Delegação Portuguesas…). Amigos, amigos, convicções à parte… PARTE III RETIRADA. E RECOMEÇO Para as últimas despedidas, que fecharam esse primeiro semestre de 2005, andei, na geografia d’além-mar, de comunidade em comunidade, entre amigos, alguns dos quais me tinham eleito na maior parte dos meus 25 anos como “Deputada da Nação”. Alguns, porque, como é sabido, a maioria não vota, ou porque é difícil ou porque não é o que mais lhes importa. E não somos nós que lhes vamos impor o modo de “viver a Nação”, a tal “identidade portuguesa”, seja isso o que for… Estava em vésperas de atingir os meus 63 anos, uma boa idade para a retirada da política, dando à Nação um sucessor mais jovem. Era, certamente, o que queria o partido, no país mais idadista da Europa (sem mencionar a África ou a Ásia, onde os velhos parecem ser menos depreciados do que na própria Europa). É interpretação minha, ninguém me intimou a sair, pelo contrário. Miguel Relvas, simpaticamente, perguntou-me se queria continuar e eu disse que não. E, futuramente, apesar de o Miguel ter feito alguns detratores, eu mantenho-o na minha coutada dos simpáticos. Por essa altura, cuidei de apresentar a minha derradeira coletânea de intervenções parlamentares, que recebeu o título “Comunidades Portuguesas – os direitos e os afetos”. Apresentava e oferecia os livros, como de costumo. Não sou boa a vender nada… Com o destaque reconhecido aos afetos, tornei-me uma espécie de precursora do Presidente Marcelo, ao antecipar o seu “leit-motiv” uma década antes. No meu caso, a defesa dos seus direitos era o escopo principal, os afetos vieram por acréscimo. E mostraram-se, abundantemente, na hora de dizer adeus, entre amigos, em Newark/Elizabeth, Toronto, Montreal, em Buenos Aires (na espetacular festa no Centro Pátria Portuguesa), Rio de Janeiro (na Casa do Porto, uma organização perfeita de Dona Benvinda). Impossível ir a todo o lado, num círculo à dimensão do mundo (menos a velha Europa). Por sorte, poucos meses antes, tinha feito extensas visitações ao Brasil, (do Nordeste ao Sul e a S. Paulo), à Venezuela e Caraíbas, e ao sul da África. Meio mundo! Assim findava um longo, longo capítulo de vida já sexagenária. Em solo pátrio, uma deslocação à Madeira, para a comemoração do 8 de março, foi o último ato na qualidade de parlamentar. Ao Funchal. Tive a boa surpresa da presença de Virgílio Teixeira, com Vanda e Pedro. Não sabia, então, mas era um outro adeus… Pensando bem, a minha primeira visita oficial fora do retângulo continental levara-me à Madeira, como Secretária de Estado do Trabalho. Ideal fechar o ciclo ali mesmo, como Deputada, ao lado do Diretor do Departamento das Comunidades Madeirenses, o sempre amável e divertido Gonçalo Nunes Perestrelo, que, já há muitos anos, sucedera a Virgílio Teixeira. Sem planos para o futuro, voltei a Espinho, em modo de férias tranquilas, com a família e os sete gatos. logo interrompidas para as comemorações do 10 de junho em Newark e em Connecticut. No mês seguinte, ao volante do meu Peugeot (marca a que, durante mais de meio século, fui fiel), fiz-me à estrada, até Lisboa, para um almoço organizado pelo jornal “O Mundo Português”. Uma homenagem, imagine-se! Dentro de fronteiras foi a grande exceção. A quem mais podia interessar a saída de cena da velha “deputada emigrante”? Resposta: a um jornal com sede lisboeta, mas voltado para a emigração. Foi uma festa em grande, ou não fosse o Carlos Morais um excelentíssimo organizador. Bem organizada e muito… afetuosa! Reunião d e uma centena de amigos da política, do CCP, da Secretaria de Estado e do MNE, dos “media” … Uma sala cheia de mesas redondas. Na minha, Maria Barroso, Barbosa de Melo, Maria Fernanda Mota Pinto, dois ex-Secretários da Emigração, os socialistas António Braga e Pedro Coelho e, naturalmente, Carlos Morais, Diretor do jornal e nosso elegante anfitrião. A nota dos afetos a emergir na chegada, com um ligeiro atraso e um enorme ramo de rosas vermelhas do Conselheiro das Comunidades Manuel Beja (as rosas justificavam o atraso) Tudo esplêndido, se esquecermos o meu desconforme discurso de agradecimento. Falei, falei … um daqueles dias, não de 8, mas de 80. Ex post fico irritadíssima comigo, o que não é certeza de que a coisa não se repita. Contra todas as previsões, a segunda metade de 2005 trouxe por novos chamamentos, e não só da emigração! Ainda o verão não ia a meio, já eu estava envolvida em duas campanhas eleitorais. Duas: a autárquica e a presidencial. Luís Montenegro era o candidato do PSD à Câmara de Espinho e insistia na minha participação. Um jovem e uma velhota à frente da lista para o Executivo Camarário de Espinho? Porque não? Com a relutância costumeira, cabei por aceitar, embora preferisse, é claro, a Assembleia Municipal. Quando me acenam com lugares de Direção numa qualquer ONG, trato logo de negociar a troca para a Assembleia- Geral (presidência de assembleias é o que mais há no meu CV de voluntariado). A pré-campanha para as presidenciais já andava na rua, em simultâneo, com três cabeças de cartaz: Mário Soares, Cavaco Silva, Manuel Alegre. O meu amigo Carlo Luiz, como eu ex-Deputado de emigração, sondou-me para dar público apoio ao Dr. Soares. Por muitas e variadas razões, era impossível dizer “não”, ou irresistível dizer “sim”. Porque o velho Senhor era uma preciosa mais valia, o único que tinha notoriedade e prestígio internacional, era ouvido, seguido e admirado, “world wide” - como marca, ultrapassava largamente o país, na sua valência atual. Porque partilhava o meu “luso-brasileirismo” e me tinha dado a mais decisiva contribuição para aprovar a reciprocidade portuguesa ao Tratado de Igualdade entre os dois países, na Revisão Constitucional de 2001. O seu testemunho na audição da respetiva comissão parlamentar, (que era pública e cheia de imprensa), forçou a resistência do PS. Com palavras corajosas, explosivas, à Soares, no seu melhor. Vale a pena, ler as atas da Comissão, que também são públicas… Porque era octogenário, uma bandeira na luta contra o idadismo, por cá, tão fundo e absurdo, como a nossa parva e tradicional misoginia… Porque a esperança na vitória era mínima, mas isso nunca foi coisa que me desanimasse, e, entre outros “porquês”, nunca tinha votado nele e aqui estava a última ocasião de me redimir, Contudo, a minha inclusão num lustroso comité de apoio à candidatura causou “sururu”. Os jornalistas estavam lembrados das expulsões pelo PSD dos seus membros que se haviam alistado na campanha (vencedora) de Soares, em 1985 e repetiam, um atrás de outro, a pergunta sacramental sobre se eu já tinha um processo em cima da cabeça. Ao que eu respondia que as presidenciais não são eleições partidárias e me sentia livre para fazer a escolha, sem olhar a consequências. Não as houve. Creio que maior susto foi para Montenegro, e de curta duração, porque o presidente do PSD, Luís Marques Mendes, homem tolerante, não viu qualquer incompatibilidade. E até podia dar votos em Espinho, no bairro piscatório, onde fiz campanha por Soares. Ambas as eleições foram perdidas, mas não por minha causa. Sucesso indiscutível teve o envolvimento, no meu terreno favorito das migrações, e com enfoque na discriminação de género. Que eu me voltasse, mais ativamente, para a “Mulher Migrante – Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade” era previsível, mas já não o era o como e a dimensão que o projeto iria alcançar. Curiosamente, no princípio lá esteve o acaso - um telefonema de Estocolmo, da presidente da Federação Internacional de Mulheres Lusófonas (PIKO), a pedir a minha intervenção junto de Anita Gradin, antiga Ministra da Imigração e Comissária Europeia. Queriam que ela estivesse presente no seu 20º aniversário e sabiam da minha proximidade com Anita. Fiz o contacto, de imediato, contentíssima por falar com uma amiga, com quem há muito não me encontrava, e por prestar serviço às feministas portuguesas. E ao constatar que a PIKO tinha sido fundada em 1985, lembrei-me que esse era o ano da realização, em Viana, do 1º Encontro Mundial de Mulheres. Não sei se há um nexo causal entre o Encontro de Viana e o nascimento da Federação, sei que o contacto da Federação me levou a propor ao Governo a comemoração do aniversário do Encontro. E daí decorreu a tardia, mas urgente, implementação de políticas públicas para a igualdade na emigração. O que não pude, por falta de tempo, executar como Secretária de Estado, acabei por influenciar como cidadã, em voluntariado, duas décadas depois. Falei coma Rita, presidente da “Mulher Migrante”, (fundada, note-se, para cumprir as recomendações do Encontro de Viana) e com o SECP António Braga, antigo colega, em S Bento e na Delegação ao Conselho da Europa. Propus-lhe a realização, pela SECP, de um novo congresso mundial, oferecendo a discreta colaboração da Mulher Migrante. António Braga gostou da ideia, porém, em setembro, já não havia orçamento para tanto. Sugeri alternativa mais modesta , talvez uma conferência temática, em comunidade a designar, e logo o SECP teve a luminosa ideia de dar, ao longo do seu mandato, periodicidade anual a congressos organizados nos diferentes continentes. Congressos Regionais. E insistiu em que fosse a Mulher Migrante e outras ONG, não diretamente o Governo, como eu preferia, a encabeçar a iniciativa. E pela simples razão de que, com a pesada máquina burocrática estatal, tudo se tornava bastante mais caro, um argumento irrespondível… Depois destas frutuosas conversações, tudo se passou com uma dinâmica incomum. A parceria Estado/Sociedade Civil assentava, auspiciosamente, na identidade de pontos de vista e no trabalho de pessoas que se conheciam há muito tempo: pelo Gabinete, a coordenadora era a Maria do Céu Cunha Rego, ela própria membro da AMM! E a Presidente de Honra, por escolha unânime, a Dr.ª Maria Barroso, já habituada a assumir o mesmo papel nos eventos maiores da AMM. Esta equipa tinha tudo para dar certo e a metodologia do “congressismo”, também. E deu. Chamámos aos congressos regionais os “Encontros para a Cidadania – a igualdade entre mulheres e homens”. Todos foram coorganizados por uma ONG feminina (ou feminista) do país anfitrião, com apoio de Embaixadas e Consulados (apoio variável, mais substancial no primeiro, em Buenos Aires, e no terceiro, em Toronto onde a Cônsul –Geral, Maria Amélia Paiva foi a alma de uma grande Conferência, mas todos colaboraram, ao menos com a sua presença) .Operacionais, a AMM da Argentina, em Buenos Aires, a PIKO, em Estocolmo (onde Anita Gradin foi copresidente de honra, com Maria Barroso, uma pluralidade de ONG em Toronto, a Liga das Mulheres Portuguesas, em Joanesburgo, a Prof Deolinda Adão, pelo Departamento de Estudo Europeus da Universidade, em Berkeley, Califórnia. Sorte minha, ter tido o privilégio de “correr mundo” ao lado da Dr.ª Maria Jesus, com um projeto de mobilização das mulheres emigrantes na bagagem. Sorte de todos os que estiveram nos “Encontros” e puderam ouvi-la e participar nos trabalhos. António Braga e Jorge Lacão foram o rosto do Governo em cada um dos congressos e a AMM firmou-se num percurso singular, e fica na história deste capítulo da luta pela igualdade das mulheres emigrantes, em especial no bastião patriarcal, que era o associativismo das comunidades. Vinte anos depois, já não o é! A igualdade de sexos não está alcançada nas estatísticas, mas, em qualquer caso, ver mulheres na presidência, na direção dos clubes e centros culturais tornou-se coisa natural. Não vamos nunca apurar o peso real daquela concertação entre a sociedade civil (associativismo feminino/feminista) e o Estado, a assumir, embora tardiamente, que a tarefa de promover a igualdade, de que a Constituição o incumbe, não se limita às fronteiras do território. Teve, certamente, bastante, mas impossível quantificar. Há outras coisas que fiz, com mesmo empenho e otimismo, e sobre o resultado das quais tenho mais dúvidas. Muito a leste do catecismo “woke”, acredito no pensamento igualitário das queridas avós (feministas, republicanas e grã-mestres de lojas maçónicas e no “congressismo” como método eficaz de consciencialização. No século XXI, os sucessivos governos, que foram rodando no terreiro do Paço partilharam a minha crença, que é também coletivamente a da AMM. José Cesário intensificou enormemente o ritmo das iniciativas, com dois congressos mundiais e dezenas de colóquios no estrangeiro, em muitos casos em parceria com prestigiadas universidades e centros de investigação. E José Luís Carneiro, sem abandonar a mesma, apontou ao envolvimento do CCP, nestes domínios, que o Conselho sempre descurou, embora no seu interior tenham germinado, em 1984, a ideia e a proposta do histórico Encontro de Viana. Neste apelativo voluntariado, em constantes deambulações pela Diáspora, continuava a não ter pausa em agenda. A reforma podia esperar. Como vereadora da oposição, na Câmara de Espinho, espreitava a realidade do governo local. As relações com o Presidente José Mota eram excelentes – as dos outros vereadores do PSD, e as minhas, em particular. Ele fora o anfitrião e patrocinador do primeiro e espetacular congresso mundial organizado pela AMM, em 1995, pouco tempo depois da sua fundação. Cerca de quatrocentos participantes dos cinco continentes (nem com o apoio da SECP, os congressos do século XXI atingiram dimensão comparável). Por isso, no meu caso, a amizade com o Presidente Mora, antigo deputado e sindicalista, vinha de longe, sendo as cores partidárias irrelevantes. De resto, na AMM nunca jamais entrou a politiquice, coisa a que somos alérgicas e alérgicos – é congregação mista, os aliados homens foram bem-vindos desde a primeira hora. Eu era, pois, uma frequentadora das instalações camarárias, onde os três representantes da oposição tinham um pequeno gabinete simpático. Como todos éramos portista (nisso alinhando com José Mota), ninguém se opôs a que eu enchesse as paredes de cartazes, que poderiam levar um visitante a pensar que estava numa delegação do FCP… O único protesto foi relativo a um vistoso “poster” de Diego, depois que ele partiu para a Alemanha. Mas eu sou fiel aos meus ídolos, para onde quer que eles vão e disse: Diego fica (na parede, que não no FCP)… Em março de 2009, encerramos esse primeiro ciclo de “Encontros para a Cidadania”, com um encontro internacional em Espinho, deixando-me com mais tempo para me dispersar em inúmeros pequenos pontos de uma agenda que nunca era de um sempre adiado sossego. Afinal, já ia a meio da segunda metade dos meus sessenta. E, no verão, entrei em nova campanha eleitoral. De novo a nº 2 da lista para a Câmara, mas, desta vez, não com Montenegro, mas com o seu “alter ego” Pinto Moreira. Era o antigo nº 3, conhecia-o vagamente das reuniões do Executivo, que nem sempre é o melhor terreno para percecionar o outro. Eu não percecionei. E eis que, para espanto geral, ganhámos as eleições, graças a Silvalde, a um ótimo candidato vareiro (vareiro e empresário de sucesso), que arrebatou os votos do bairro piscatório, habitualmente socialista. Ele era bom, mas ajudou o desastroso enterramento da linha de comboio, que não chega a um quilómetro, que começa a norte, junto ao casino e termina a vários blocos daquele bairro populoso e em polvorosa. Na verdade, sentimos o mesmo a norte do casino: há um muro de cimento entre o mar e a nossa rua. Espinho nunca mais será a cidade aberta, em comunhão com o mar e o comboio, de que se fez desde a primeira hora. E, com esta vitória improvável dos reformistas no rasto da revolta popular, me vi, em outubro vereadora com pelouro. O pelouro da Cultura, que, em havendo uma mulher no governo local lhe é quase sempre atribuída e não porque as julguem mais cultas do que eles, mas porque a Cultura é a última das suas preocupações e os meios para agir e conseguir obra são mínimos. Em Espinho era, indubitavelmente, esse o caso. Nada a que não estivesse habituada. Sempre encabecei pelouros onde era preciso ultrapassar a pobreza franciscana dos orçamentos com muito imaginação e boa vontade. O meu trabalho de vereação ativa foi a mais fascinante das experiências de trabalho em equipa. Eu não estava, de todo, preparada para o choque da diferença de qualidade e de coesão dos serviços municipais, que me coube coordenar, face aos ministeriais. Não digo que isso seja a regra, nem sequer em Espinho. O meu pelouro foi, porventura, uma milagrosa exceção, que abrangeu os seus quatro departamentos – Direção da Cultura, Biblioteca, Museu e Arquivo – os seus quatro dirigentes, Idalina de Sousa, Isabel de Sousa, Armando Bouçon e Beatriz Matos Fernandes Que belo recomeço, nas vésperas da minha década de setenta! Como foi minha prática, sempre, aceitei, à partida, o que vinha de trás, o “Tu cá, tu lá” (que congregava as manifestações do associativismo local), os festivais de marionetes, de estátuas vivas, as exposições do Museu, os debates na Biblioteca com autores de renome, a abertura do Arquivo às escolas, etc. etc. Nem podia deixar de ser assim, ainda por cima, com colaboradores tão competentes… É minha convicção inabalável que dar continuidade aos projetos em curso é bom princípio neste país de loucas ruturas, que perde energias e desperdiça milhões, na constante descontinuidade de ação e num centralismo autoritário, duas causas do nosso atraso (previsivelmente, irremediável). Na verdade, acredito que o progresso não está em desfazer legados, mas em acrescentar coisas novas. Neste aspeto, saiu-me a sorte grande: estávamos em tempo de preparar a comemoração de um evento raro, um centenário, o da República. Como é sabido eu nem sou republicana, sou “res publicana”, conceito em que abarco a monarquia, mas considerei imperdível a oportunidade de reflexão histórica e de análise diacrónica de um século, que uma celebração multifacetada nos permitiria. E a custo zero (ou quase). O único evento que estava programado era uma exposição sobre “Rostos da República”, a inaugurar nas galerias do Museu, a 5 de outubro de 2010. Uma equipa qualificada de historiadores preparava o material biográfico e a iconografia e necessário, Evento obviamente intocável. Limitei-me a dizer, “en passant”, ao Dr Bouçon:: “Senhor Doutor, nesse rol de eleitos, não esqueçam os rostos femininos da República!”. A prece foi ouvida e às “obrigatórias” Ana de Castro Osório e Adelaide Cabete, que constavam da lista inicial, se juntaram mais dezoito ilustres mulheres. Num total de sessenta vultos de época, quarenta homens e vinte mulheres, precisamente um terço. Passei a dizer, por graça: “a nossa exposição tem quota!” Para além dessa iniciativa matriz, as nossas comemorações espinhenses foram somando eventos e convocatórias, com uma espetacular adesão das pessoas, das coletividades e das escolas da cidade. Ao todo, mais de trinta eventos, de março a dezembro de 2010, entre a recriação de serões e comícios republicanos, tertúlias, colóquios, conferências, concertos, ciclos de cinema, edições fac-similadas de jornais centenários… De início a termo, como era de esperar, enfoque muito especial no movimento feminista e republicano. Na sessão solene de 8 de março, que abriu as celebrações, foi oradora Maria Barroso, e no 5 de outubro, depois da inauguração da “expo”, em ambiente mais informal, mas não menos empolgante e participado, Maria José Ritta. Nas dezenas de memoráveis debates, o meu destaque vai para o que reuniu dois antigos Deputados, colegas, amigos, Pedro Roseta e Miguel Urbano Rodrigues, a refletirem sobre o tema “Reformismo ou Revolução?”. Eu fiz questão de ser a moderadora e o meu papel foi fácil. Eles entendiam-se tão bem, até nos desentendimentos, qual deles o mais fulgurante! Talvez nunca em Espinho se tenha visto uma audiência em que da esquerda à direita, estavam presentes, líderes e cidadãos anónimos, e a corrente positiva passava por todos. Democracia em estado puro. Ainda tive a tentação de estender as comemorações ao ano de 2011, mas a constatação de quanto isso pesava sobre tão bons, mas poucos, funcionários travou-me o ímpeto. Vantagens da idade - se fosse mais nova não atentava nisso…. E, na verdade, o nosso quotidiano normal já era suficientemente intenso. Muito aconteceu no primeiro semestre, para mim o último como vereadora. Os seis espetáculos do Maestro António Vitorino de Almeida, com uma periodicidade mensal, foram momentos absolutamente imperdíveis e inesquecíveis. Título do ciclo: “Conserto/Desconserto”. Só mesmo o Maestro o podia protagonizar. Pensei no título e, logo, em AVA. Só o conhecia através da TV, um amigo comum fez o contacto. Local: o vasto e originalínal átrio do Centro Multimeios, que as audiências enchiam, à volta do piano, na contígua galeria de exposições, e, de pé, nas escadarias, nos patamares superiores, e até nas rampas de acesso. Valia a pena… o Maestro, em variados guiões era invariavelmente mágico! É impossível detalhar a maioria dos “happenings” que fomos organizando, sempre à volta de uma “távola redonda”. Eu ia para as nossas reuniões semanais, antegozando horas felizes no Fórum de Arte e Cultura de Espinho (FACE). Eram, sempre, sempre um tempo lúdico, as propostas surgiam, íamos retocando, reinventando. No final, a coisa a executar já era outra, de todos, nem interessava saber quem tinha reformulado o quê… Há um dia de que me recordo, distintamente, o 9 de junho dos meus 69 anos. De tarde, na Biblioteca, Richard Zimmler apresentou o seu ultimo livro, e à noite, no nosso predileto átrio do Multimeios, assistimos a um fantástico concerto de Fausto Neves. Nada de incomum, assim corriam os nossos “dias normais”. Todavia, nem tudo era festa. Muita preocupação e canseira nos deu, sobretudo, a mudança da Biblioteca para novas e excelentes instalações, idealmente situada a nascente do parque João de Deus (obra do grande arquiteto espinhense Rui Lacerda, um amigo que tão cedo nos deixou, anos depois). Preocupação minha, que determinou o adiamento de uma já anunciada cessação de funções, por dois ou três meses. Canseira dos funcionários – um trabalho imenso, formidável, sem a logística necessária, obstaculizado por mil e um empecilhos burocráticos. Na passada, conseguimos, não sem alguma dificuldade, dar nome, quer à Biblioteca, quer às belíssimas galerias de exposição do Museu. Primeiro foi escolhido como patrono da Biblioteca um expoente da nossa Literatura, o escritor José Marmelo e Silva, que em Espinho viveu a maior parte da sua vida. Ajudou ao voto unânime do Executivo que esse fosse o ano do seu centenário. Logo depois, Amadeo de Sousa Cardozo tornou-se nome das Galerias. Amadeo era um “habitué” do verão de Espinho e das tertúlias do “Café Chinês”, e nesta terra morreu, de gripe espanhola, ainda tão jovem e já tão genial… Se tudo corria tão bem, porque deixei o cargo, no meu percurso político o único que não levei até fim de mandato? Pergunta de resposta fácil. Os insistentes convites que recebi para me candidatar em Espinho, nº 2º lugar da lista, em 2005 e 2009, e que acabei por aceitar, (depois de ter recusado convites para ser cabeça de lista em Câmara de maior dimensão, na minha terra natal, Gondomar) eram “para eleitor ver”. Nada de particularmente raro, neste país de brandos costumes democráticos, mas eu não me apercebi. Em 2005, na oposição, não dava para perceber. Em 2009, foi uma evidência, desde a primeira reunião. O novo Presidente da Câmara, abriu os trabalhos, com a comunicação da hierarquia real (na qual eu passava para o último lugar), e dos pelouros, em que eu ficava com o último na hierarquia das machas prioridades. Sem dizer palavra, desliguei da discussão em curso, e fui cogitando os prós e os contras de uma demissão imediata. Tudo visto e considerado, achei que devia aos eleitores do PSD permanecer por uns meses, talvez um ano, e fazer o máximo que pudesse pela cidade. Sabia que contava com bons serviços, embora sem imaginar que fossem tão bons. E o FACE oferecia infinitas possibilidades. O espaço encanta qualquer um, e, com carta branca, teríamos conseguido àquele espaço privilegiado a vida que ainda hoje não tem. As propostas foram variadas – instalar um clube de jazz, criar um polo do Museu da Imprensa e um núcleo museológico do da fotografia, e do violino, (com oficina de “luthier”, tendo à frente o Eng.º Capela), residências artísticas, cursos de pintura. E mais… Todavia, nem sequer consegui apoio dos colegas do Executivo para a abertura de uma simples cafetaria, que atraísse público, sobretudo jovem, com amplas esplanadas frente ao mar. Ainda hoje, tudo o que há é uma máquina de bebidas, que funcionava no bar restrito a funcionários, no 1º andar, que, prontamente, fiz deslocar para o espaço público no rés-do-chão. O mistério subsiste, porque as infraestruturas existiam, existem, e o Museu de Espinho continua a ser um dos raros que, no país, não tem acoplado um pequeno café, um “self”, um restaurante… Não só disso me queixo. Estava de bem com o meu plantel, mas a leste dos políticos, a funcionar como “boy’s club”. No jornal com que celebravam os feitos camarários, por altura do 1º aniversário de governação, não havia uma única linha sobre o domínio da Cultura! Os nossos mundos não se cruzavam. Ao meu, daquela equipa inteira, só pertencia, verdadeiramente, o Chefe de Gabinete, Dr. Jorge Ratola – além de competentíssimo, uma simpatia. Ao que parece, indicação de Montenegro, então já em rota para outos patamares da política. E, assim, superabundam e dominam as boas recordações. Ainda por cima, o Executivo, na hora da despedida, decidiu atribuir-me uma medalha de honra (com esse ou outro nome) no dia cidade. E, não menos espantoso, a Assembleia Municipal aprovou por unanimidade, um voto de louvor pelo meu trabalho de dezoito meses. O mais curioso é que o voto foi apresentado pelo Bloco de Esquerda. Nesse ano e meio, não descurei, completamente, a cooperação com a AMM, apenas abrandei o ritmo, aproveitando para a incluir em vários pontos da agenda das festividades de 2010, onde as migrações não poderiam ser esquecidas. Entretanto, houvera eleições legislativas e na pasta das Comunidades estava José Cesário. Um aliado seguro, o autor de uma inédita Recomendação ao Governo para o desenvolvimento das políticas da Igualdade. No Governo havia de querer acatar a sua própria Recomendação. Pedi-lhe audiência e logo ali nasceu a ideia de um novo Congresso Mundial de Mulheres da Diáspora. Dois ou três meses depois, o Congresso teve lugar no Fórum da Maia, com um ambicioso programa e a participação de mulheres notáveis dos cinco continentes. Não há dúvidas de que somos bons no improviso, bons organizadores do excecional (a rotina é que é problema, não apela ao nosso melhor…). Pela primeira vez, o Congresso começou com uma mesa redonda de homenagem a grandes figuras femininas, que a Ditadura condenara ao exílio: Maria Lamas e Maria Archer. Um académico, o Reitor Salvato Trigo, entre mulheres da família das duas homenageadas e da “família académica”, pioneiras nos estudos sobre as suas obras. Entre 2011 e 2015, levamos a bom termo, além de um outro Congresso Mundial, em 2013, no Palácio das Necessidades, mais de uma trintena de encontros, conferências e colóquios em comunidades das Américas, da África e da Europa, juntando duas componentes, que não é, à partida, muito fácil juntar: a académica e a outra, a comunitária e associativa. Trabalho a tempo inteiro! A José Cesário sucedeu José Luís Carneiro. A sintonia de propósitos e a boa relação pessoal e institucional não se alterou. Houve, é certo, mais constrangimentos orçamentais (decorrentes do novo posicionamento da DGACCP, a Direção Geral, que absorveu o, em má hora, extinto IAECP, o organismo específico das Comunidades Portuguesas…). Inteligentemente, José Luís Carneiro apelou ao CCP, como parceiro privilegiado, para a prossecução das políticas da igualdade. É, afinal, um regresso às origens, já que no CCP nasceu a ideia do Encontro de Viana. E a AMM manteria o seu estatuto de parceria. Foi a pandemia, em 2019, que veio interromper essa aliança de cerca de quinze anos – anos áureos de combate pela igualdade, anos de mudança - a que decorreu desse esforço, e a que foi acontecendo noutros contextos, por força de outras dinâmicas. A ascensão do sexo feminino nos diversos domínios vai-se fazendo, em formas e ritmos os mais diversos, ainda longe das metas e já com ameaças de retrocesso um pouco por todos o lado, com a emergência de movimentos populistas de extrema direita e do seu doutrinamento reacionário, do endurecimento de regimes ditatoriais selváticos, de aiatolas, talibãs e equiparados… A AMM, após a morte da presidente histórica Rita Gomes, atravessava fase, que poderemos adjetivar de conturbada, e eu afastei-me de lutas pela liderança, que não são o meu forte. Com a Rita trabalhava bem, informalmente e a meias, pouco importando que ela fosse a Executiva e eu colaborasse a partir da Assembleia-Geral. Tinha sido eu a da ideia de tomar o combate cívico e feminista de Lamas e Archer como paradigma de ação intemporal. E, por isso, decidi continuar nessa linha e num modo de tertúlia, sem hierarquias, sem chefes, em “távola redonda”. Avancei para a criação do “Circulo de Culturas Lusófonas Maria Archer” (porque Archer é, em comparação com Lamas, a mais esquecida). Em 2018, a primeira iniciativa do Círculo foi o lançamento, no Porto, de um livro de Elisabeth Battista, a professora brasileira, a primeira a fazer um (brilhante) doutoramento sobre Maria Archer. A COVID 19, que se seguiu, poderia ter implicado longa hibernação ou fim do “Círculo”, mas não, ao invés, acabou por constituir a oportunidade da sua internacionalização. Aderi, prontamente, ao sucedâneo digital, que teve a imensa vantagem de eliminar distâncias geográficas. Problemas só mesmo os dos fusos horários, que tornaram complicado conciliar os horários aceitáveis na Califórnia, Extremo Oriente e Austrália. As séries de colóquios por “zoom” sucederam-se… muitos! Num ciclo dedicado a escritoras, começámos por Júlia Néry e os seus magníficos retratos da emigração feminina através dos séculos. (do tempo das “órfãs del rei” à “emigração a salto” e à emigração de “braindrain”, que hoje tanto nos preocupa. Maria Archer, Maria Lamas não foram, naturalmente, esquecidas, num segundo ciclo, como cultoras da literatura infantil, na esteira de feministas como Ana de Castro Osório. No início de 2022, nos 40 anos da morte de Maria Archer, duas conferências internacionais em sua memória, ocuparam os meus dias com a pressão de “in illo tempore”. Em parceria com o Instituto de Literaturas Comparadas Margarida Losa, da Faculdade de Letras do Porto, com o título “Maria Archer e outras Mulheres de Referência e de (Ir)Reverência”, e, dando colaboração a “Faces de Eva” (Universidade Nova), “Maria Archer, Reflexos e Reflexões”, organizado pela Profª Isabel Henriques de Jesus, na Biblioteca Nacional. Ao longo do ano, sucederam-se as iniciativas, uma exposição de pintura, uma série de colóquios, organizados, na casa de infância de Sophia, que é hoje Museu (e jardim botânico). Ainda a pandemia nos obrigava ao uso de máscara, “in loco” e não podíamos prescindir, em simultâneo, da participação por “zoom”. Estive, igualmente, envolvida na coordenação de duas publicações, no Brasil, uma coletânea de estudos, “ Maria Archer e a Partilha do Sensível” (lançada pela Profª Elisabeth Battista, uma das cofundadoras do “Círculo”), e, em Portugal, a recolha das comunicações apresentadas às referidas Conferência, uma iniciativa da Prof Isabel Henriques de Jesus, Diretora de “Faces de Eva”, com o título “Maria Archer – um Percurso Insubmisso”. Esta edição, que agrega autores de variados países e universidades, sofreu, ao longo de 2023 delongas explicadas pela sua ampla “internacionalização”. Um atraso verdadeiramente providencial, pois permitiu apresentar o livro em janeiro de 2024, o ano do cinquentenário da revolução de Abril, o ano do centenário da Escritora feminista, que lutou contra a ditadura e, por isso, sofreu um longo exílio no Brasil. Em 2022, entrava na minha oitava década. Em boa verdade, a vida depois dos 80 continuava muito igual ao que fora – ainda crente na força do diálogo, no “congressismo” domínios das migrações, da igualdade, organizando colóquios, editando obra. O “Conselho das Comunidades Portuguesas – Espaço de Utopia e Experimentação”, foi a minha contribuição para as comemorações dos quarenta anos do CCP, que os atuais Conselheiros, muito justamente, encabeçaram. Mas lancei-me, também, em aventuras editoriais inéditas, como a passagem a papel de um blogue da família, que teve o seu pico de participação entre 2008/2010, época áurea do bloguismo, ou uma pequena biografia de meu pai, quando jovem e poeta. Em progresso (lento) está a de minha mãe, a pianista rebelde. Não se imagina o trabalhão! Contudo, vale a pena, mais para que as novas gerações não esqueçam do que pela dimensão da alma.... No país do idadismo, onde há uns rapazes (do PSD de Passos Coelho) que falam de “peste grisalha”, o avançar dos anos não tem sido óbice ao súbito ressurgir do inesperado no meu quotidiano. Vejo-me presidente das Assembleias-Gerais da Associação “Todos somos Portugueses”, da Associação “Amigos da Biblioteca José Marmelo e Silva”, da AMM, da Universidade Sénior (USE), membro da Comissão de Toponímia de Espinho… E, entre 2020/24 uma “proposta de trabalho” que, pelo inesperado, bateu todas as outras. Estas coisas acontecem, geralmente, pelo telefone. E assim foi. Era o Dr. Lourenço Pinto a convidar-me para o acompanhar da mesa da Assembleia- Geral do FC Porto. Um dos brilhantes alunos voluntários do ano em que regi o curso de Introdução ao Estudo do Direito em Coimbra. Impossível dizer-lhe que não. Desta vez, pensei, por sorte, vou direta para a AG, sem ter de negociar a troca de um inicial lugar de direção. Enganei-me. No dia seguinte é Jorge Nuno Pinto da Costa a insistir numa troca de sentido contrário. Não consegui recusar e eis que me vi no cargo de Administradora não Executiva do FCP-SAD. Para mim, o “jamais vu”, estar num Executivo, sem ser executiva, mas do mal o menos, não sendo talhada para o empresariado e tendo trabalhado para o Estado uma vida inteira. Com especial vocação para o trabalho “pro bono”, foi em regime de voluntariado que acabei aceitando, com a condição de não receber nada, nem mesmo senhas de presença. Em tempos idos, eu já tinha pertencido ao Conselho Cultural do FCP, e, vinte anos depois, ao Conselho de Delegações, mas isso era o Porto/Porto, o originário, antes da viragem para as SAD, a que não se pode fugir. A equipa da SAD/2020 era formada por cinco homens (os executivos) e três mulheres, todas não executivas, as Doutoras Cristina Azevedo, Rita Moreira e eu. A fronteira de género, e do poder real, não podia ser mais nítida. Em qualquer caso, a experiência teve o seu encanto! Havia uma breve reunião mensal, em ambiente sempre simpático, e as minhas colegas eram ótimas, estávamos sintonizadas, no fundamental, incluindo na extrema urgência de o clube abrir portas ao futebol feminino. E já na 25ª hora, pois há muitos anos os outros chamados “grandes” deram o bom exemplo! O Braga, no feminino, na esteira do pioneiro Boavista, é, agora, e suponho que vai ser, pelo menos, na próxima década, a nova potência do Norte…. Mas a experiência mais fantástica fiquei a deve-la, não diretamente ao futebol, mas à COVID-19. Ver os jogos na tribuna presidencial, ou no meu lugar de sócia há mais de meio século era coisa semelhante, com a diferença de não puder usar camisola ou cachecol clubista, nem manifestar regozijo, exuberantemente, aos saltos ou aos gritos (quando é caso disso). Já ver os jogos num estádio interdito ao público, com a exceção dos oito membros da SAD, era incrível! Um vazio espetacular, um vazio distópico! Ouvíamos tudo o que se dizia em campo – esse era o outro lado da moeda, divertidíssimo… Talvez ainda mais perturbador do que a visão das bancadas sem gente, sem vida, era a passagem por sucessivas barreiras policiais, pelo menos três! O estádio estava barrado por todos os lados, em círculo concêntricos, como se fosse um gueto pestífero. Não se via um só carro em movimento. O meu livre-trânsito funcionava, mas nem por isso desfazia a força repressiva que pesava sobre nós, cidadãos indefesos. Nem na ditadura me senti assim! Depois, foram franquearam restaurantes, cinemas, concertos, convívio em espaços fechados, e continuaram a proibir assistência, mesmo que muito limitada, nos estádios, ao ar livre. E ninguém protestava, nem federações, nem clubes. Submissos e calados, com a exceção do costume - Pinto da Costa. Este meu mandato findou nas eleições de 2024. Para mim, terminaria, sempre, independentemente do resultado. Experiência interessante, a de bordejar um rio que não se atravessa, na outra margem um mundo que apenas se vislumbra. Com muitos momentos dramáticos a assistir a todos os jogos no Dragão… Obrigação auto-imposta, especialmente stressante neste ano de 2023/24, com tantas vitórias tangenciais, derrotas inexplicáveis contra os últimos da Liga (os que põem o autocarro à frente da baliza), apenas compensados pelo êxtase daquele golo de última hora contra o Arsenal ou dos 5-0 contra o SLB. Numa dessas noites de angústia, em que marcámos mesmo antes do apito final, coincidi à saída, no elevador, com o “eterno capitão” João Pinto, um homem sisudo, na aparência, mas muito espirituoso. Perguntou-me: “Quantos anos tem, Doutora?”. Quando respondi “81”, olhou-me, abanou ligeiramente a cabeça e vaticinou: “Então se não morreu hoje, não morre mais!”. Lembrei-me logo, saudosamente, do Tio David, que por medo de morrer de ataque cardíaco, nas bancadas, (como acontecera a um amigo, mesmo ao seu lado), deixou de assistir a jogos dos séniores, e trocou-os pelos juniores, que ganhavam sempre, sem dificuldade. Acompanhei-o muitas vezes e, graças a ele, tive o privilégio de ver, ao vivo, muitos “golaços” de um promissor Fernando Gomes, com assistências do extremo Maia.” É um craque”, afirmava e meu tio. E não se enganou. Vou agora: retomar as idas ao futebol, mais espaçadamente, com o cachecol favorito (Sevilha 2003) ao pescoço, no meu lugar anual; preparar mais conferências sobre Maria Archer; iniciar uma linha editorial de fotobiografias de mulheres migrantes; planear viagens turísticas à Islândia, se a atividade vulcânica o permitir, e às Repúblicas Bálticas, antes que seja tarde. E outras coisas mais. Assim vai vida depois dos 80…